Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
62/17.1PKLSB.L1-3
Relator: ISABEL CRISTINA GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A doutrina e a jurisprudência dividem-se quanto ao valor probatório do auto de notícia de crime – há quem entenda que se integra no âmbito do artigo 169º do Código de Processo Penal, de forma a atribuir-lhe um valor qualificado por via da sua equiparação a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n.º 2, e 369º do Código Civil, e quem entenda que não tem a força probatória que o artigo 169º do Código de Processo Penal confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo, é tão só um documento intra-processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador;
II – O auto de notícia, exarado com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei constitui um documento autêntico (art.º 363º, n.º 2, do Código Civil).
Não pode, porém, confundir-se a natureza do documento com o problema da sua fé em juízo, no específico âmbito do processo penal e por força dos princípios acolhidos no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, atinentes às garantias da defesa.
Isto, naturalmente, sem prejuízo de os documentos autênticos só fazerem prova plena dos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passam na sua presença (art.º 371º, n.º 1, do Código Civil) e de, no que se refere ao processo penal, ser admitido o contraditório (artigos 165º, n.º 2, e 327º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
III - Inquestionável, portanto, é que o valor probatório do auto de notícia, como documento autêntico nos termos das disposições conjugadas dos artigos 169º do Código de Processo Penal e 371º, n.º 1, do Código Civil, se circunscreve aos comportamentos presenciados e ao que foi percecionado diretamente pela autoridade policial, não se estendendo a outros contributos, mormente às declarações de terceiros aí eventualmente vertidas, nomeadamente as referentes ao relato dos eventos, por parte do queixoso, do suspeito ou de testemunhas.
De resto, a valoração de declarações e depoimentos (formalmente) produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, antes da audiência de julgamento, e aqui reproduzidos, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme estipulado nos artigos 355º, 356º e 357º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. - RELATÓRIO
1. - No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal singular, que corre termos sob n.º 62/17.1PKLSB no Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 13, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido CV___ , filho CAV e de VC, natural de S. Sebastião da Pedreira, nascido a 14/07/1985, solteiro e com última residência conhecida na Rua …, Ramada e Caneças, Odivelas, 1685-595 Caneças, pelos factos descritos naquela peça processual, na qual lhe imputa a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punível pelo artigo 190º, nºs 1 e 3, do Código Penal.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença mediante a qual foi julgada a acusação totalmente improcedente e, em conformidade, decidido absolver o arguido, CV___, da prática de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punível pelo artigo 190º, nºs 1 e 3, do Código Penal.
2. – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público na primeira instância interpôs recurso de tal decisão, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo que, após a motivação, formulou as seguintes conclusões e petitório [transcrição]:
«I. O presente recurso funda-se em divergências que se prendem com a absolvição do arguido CV___, da prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190º, do C.Penal.
II. Existe igualmente erro de julgamento – artigo 412º, nº 2 do código de processo penal – quanto à valoração da prova testemunhal e documental produzida em julgamento, as quais foram incorrectamente valoradas.
III. Com efeito, em face quer do auto de notícia, quer da denúncia, quer ainda atendendo ao depoimento do agente policial ouvido em audiência, a falta de autorização do ofendido deveria ter sido dada por provada.
IV. Não tendo assim decidido o Tribunal cremos que violou o disposto no artigos 127º, 128º, 164º, 169º, 243º a 247º todos do CPPenal e bem assim o artigo 190º, nº 1 do C.Penal.
V. Provados todos os elementos objectivos do tipo em causa, também o elemento subjectivo (al. D) dos factos não provados) deveria ter sido dado por provado, pois que o arguido não podia desconhecer que aquela casa não era sua e que nela estava a entrar sem consentimento do ofendido. Se assim não fosse, não teria ido buscar a sua mochila dentro da casa e saído.
VI. Assim o arguido CV___ deve ser condenado pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190º, do C.Penal porquanto se mostram preenchidos todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo deste crime.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o arguido CV___ ser condenado pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190º, do C.Penal.
Contudo, V. Exas decidindo farão, uma vez mais, a já costumada JUSTIÇA.»
3. - Não foi apresentada resposta ao recurso.
4. - Na vista a que se refere o art.º 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em 20.09.2022, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto consignou que acompanha, nos seus precisos termos em que vem formulada, a motivação do recurso interposto pela Ex.ma Magistrada do Ministério Público na 1.º instância e, a final, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.
5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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II. – FUNDAMENTAÇÃO
1. - Decorre das disposições conjugadas dos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[1]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[2].
No caso concreto, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, e não se vislumbrando quaisquer nulidades, nem (outros) vícios, de conhecimento oficioso, as questões a decidir reconduzem-se, essencialmente, às seguintes:
a) - Impugnação da matéria de facto;
b) - Subsunção jurídica dos factos ao crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e determinação da pena correspondente.

2. - A sentença recorrida exarou o seguinte quanto à factualidade relevante para a decisão da causa e à respetiva motivação, bem como à subsunção jurídico-penal [transcrição]:
« Dão-se como provados os seguintes factos que têm interesse para a decisão da causa:
1. No dia 22 de Janeiro de 2017, pelas 22h00, o arguido deslocou-se à residência de MV, sita na Calçada …, em Lisboa, a fim de pernoitar no interior da mesma.
2. O arguido foi encontrado no interior da residência pelo ofendido MV.
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3. O arguido foi julgado, no âmbito do processo nº 436/15.2PALSB, pela prática, a 01/01/2015, de um crime de injúria agravada, tendo sido condenado, por sentença transitado em julgado no dia 14/02/2022, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima.
- Factos não provados
Com relevância para a decisão da presente causa, não resultaram provados os seguintes factos:
A. Com o intuito de pernoitar na residência de MV, o arguido estroncou a fechadura da porta, abrindo-a e, por ali acedeu ao interior da referida residência.
B. O arguido entrou então nessa casa, embora soubesse que o fazia contra a vontade de MV e que ao agir pela forma descrita ofendia, como ofendeu, a privacidade do seu domicílio e a sua intimidade.
C. Ao agir da forma descrita, o arguido causou prejuízos que o mesmo avalia em €1200,00 (mil e duzentos euros).
D. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente e sabia que condutas como a descrita são proibidas e punidas por lei.
- Motivação da matéria de facto
Para formar a convicção do Tribunal, no que respeita aos factos dados como provados e não provados, procedeu-se a uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Foi ainda considerada a restante prova constante dos autos, tendo o Tribunal apreciado toda a prova, atendendo às regras da experiência comum, tendo sempre em consideração o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Designadamente, foi tida em consideração a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, tendo sido valorado o depoimento que foi prestado pela testemunha MP, agente da P.S.P., chamado para agir no indicado local.
Por fim, foi igualmente alvo de valoração a documental e pericial presente nos autos, designadamente o auto de notícia (fl. 2), auto de denúncia (fl. 3) e certificado de registo criminal do arguido, devidamente junto aos autos.
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Concretizando.
A factualidade vertida no ponto 1 dos factos provados resulta do depoimento da testemunha MP que, ainda que não tenha encontrado o arguido a pernoitar na residência, referiu que o mesmo tinha uma mochila com os seus pertences pessoais no interior daquela residência, tendo, no seguimento da presença de agentes da autoridade, ido ali busca-la. Tendo isto em conta, bem como o teor do auto de notícia, não existem dúvidas que o arguido, naquele dia, se encontrava ali a pernoitar.
Também dos mesmos elementos – prova testemunhal e documental – resulta o facto de ter sido o proprietário da residência, MV, a encontrar o arguido dentro da residência.
Por fim, resulta o facto indicado como provado no ponto 3 do certificado de registo criminal, junto aos autos.
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Relativamente aos factos indicados como não provados, foi tida em consideração a falta de prova carreada para os autos nesse sentido, conforme se explicitará de seguida.
O facto vertido no ponto A resulta da total ausência de prova nesse sentido, tendo mesmo dito a testemunha indicada que a porta não apresentava sinais de arrombamento. Neste seguimento, também não se deu como provado o ponto indicado em C, por não ter sido feita prova nesse dano ou de qualquer outro.
Relativamente ao ponto B dos factos provados, resulta o mesmo da prova insuficiente nesse sentido. É certo que existe um auto de notícia e um auto de denúncia onde se descreve os factos nesse sentido, mas é também certo que, conforme indicou a testemunha, não existiam sinais de arrendamento na residência, ficando o presente Tribunal em dúvida relativamente ao facto de o arguido, ao ali entrar, saber ou não que estava contra a vontade do aqui ofendido, pelo que, na falta de qualquer outro elemento de prova, considera-se esta factualidade como não provada.
Neste seguimento, resulta também como não provado o facto indicado no ponto D.
- Motivação de direito
Enquadramento jurídico penal
Perante os factos dados como provados e o facto dado como não provado, cumpre, agora, subsumi-los às normas do Direito Penal, por forma a decidir se deverá o arguido, CV___, ser responsabilizado criminalmente pela prática de um facto típico, ilícito e culposo.
Assim, cumpre em primeiro lugar apreciar, através da análise dos factos dados como provados, se estes consubstanciam a prática de um ilícito típico, devendo assim apreciar-se se a conduta do arguido preenche objetiva e subjetivamente os elementos de um tipo legal de crime.
Ora, o Ministério Público imputou ao arguido, na sua acusação, a prática, em autoria material e na forma consumada, de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal.
Passemos então a analisar o quadro legal relativo ao tipo de crime em causa, em simultânea análise com o caso concreto, de modo a averiguar a possível subsunção.
Do crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada
O artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal refere que:
 “1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
(…)
3 - Se o crime previsto no nº 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por três ou mais pessoas, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
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Ora, é perceptível pela observação da norma referida que o tipo objectivo da incriminação em causa consiste, para o que aqui releva, em introduzir-se ou permanecer na habitação de outra pessoa sem o consentimento desta última, agravando-se nos termos do nº3, se tal for cometido por meio de arrobamento ou escalamento.
Por sua vez, o tipo subjectivo da incriminação em causa pode ser preenchido por qualquer tipo de dolo (direto, indireto e eventual). Exige-se assim que o arguido tivesse conhecimento de que aquela habitação não lhe pertencia e que o proprietário da mesma não desse consentimento para a sua permanência no local e, ainda assim, quisesse agir nesse sentido.
Sucede que resultou apenas provado que o arguido se deslocou à residência de MV, sita na Calçada ... , em Lisboa, a fim de pernoitar no interior da mesma e que ali foi encontrado pelo ofendido MV.
No entanto, não resultou provado que o arguido, com aquele intuito, tenha estroncado a porta para a abrir e aceder ao interior da residência, o que fez, sabendo que o fazia o fazia contra a vontade de MV, tendo causado prejuízos no valor de €1200,00 (mil e duzentos euros).
Pelo que, face ao exposto, desde logo se indica que não se verifica preenchido nem o elemento objectivo nem o elemento subjectivo do tipo de crime em consideração, pelo que não será o arguido responsabilizado criminalmente pela prática de um facto típico, ilícito e culposo.
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Conclui-se assim que, de acordo com a factualidade dada como provada e não provada e a apreciação aqui efectuada, será o arguido absolvido do crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal.».
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3. - Apreciação do recurso
O recorrente pretende, essencialmente, através do presente recurso impugnar a decisão da matéria de facto por discordar da valoração que o tribunal a quo fez dos meios de prova, em particular da prova documental e testemunhal, pelas razões que explicita na motivação e sintetiza nas conclusões.
A impugnação ampla da decisão da matéria de facto, prevista no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, é o meio adequado para tentar reverter o erro de julgamento, o qual ocorre quando a prova produzida, analisada e valorada não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Através daquela visa-se uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[3].
O recorrente tem de vir demonstrar, através da análise da prova por si especificada no recurso e relativamente aos pontos que indica, que a convicção formada pelo julgador é impossível ou desprovida de razoabilidade. E por isso tem o recorrente, na indicação das concretas provas, de tornar percetível a razão da divergência quanto aos factos, dando a conhecer por que razão tais provas impõem decisão diversa da recorrida.
 Ao tribunal superior compete então reapreciar, em juízo autónomo, a partir dos registos dos depoimentos indicados, e à luz do princípio da livre apreciação da prova, se os factos impugnados têm suporte razoável na prova documentada, avaliando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente que ele considera imporem decisão diversa.
Assim se logrará corrigir eventuais erros de julgamento devidamente assinalados, tendo o Tribunal da Relação autonomia decisória, competindo-lhe formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados.
Contudo, cumpre sublinhar que, como vem assinalando a doutrina e a jurisprudência, «Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exatamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no n.º 3 do artigo 412º, observando o disposto nos n.ºs 4 e 6 do mesmo preceito.
Em síntese conclusiva, importa sinalizar que, como realçou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12-06-2008[4], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412º].
A matéria de facto pode também ser impugnada no âmbito mais restrito, a chamada revista alargada, dos vícios elencados no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os quais têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras de experiência comum, os quais são de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, o recorrente lançou mão do primeiro expediente, indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que, do seu ponto de vista, impõem decisão diversa da recorrida, bem como as concretas passagens da gravação e excertos do depoimento da (única) testemunha inquirida que, na sua perspetiva, o evidenciam.
O motivo principal da divergência radica na circunstância de o recorrente entender que, em face, quer do auto de notícia, quer do auto de denúncia, quer do depoimento do agente policial inquirido em audiência, a falta de autorização do ofendido deveria ter sido dada por provada e, provados todos os elementos objetivos do tipo em causa, também o elemento subjetivo [al. D) dos factos não provados] deveria ter sido dado como provado, pois que o arguido não podia desconhecer que aquela casa não era sua e que nela estava a entrar sem consentimento do ofendido, e, se assim não fosse, não teria ido buscar a sua mochila dentro da casa e saído.
Sustenta o recorrente, em síntese, que «a falta de consentimento do ofendido resulta não só do facto de o ofendido ter apresentado denúncia contra o arguido, manifestando assim o seu desejo de procedimento contra aquele e tendo inclusivamente indicado o montante dos prejuízos sofridos – o que não faria sentido, se tivesse autorizado o arguido a ali entrar; como bem assim do auto de notícia, lavrado após a ocorrência dos factos e do qual consta que o arguido entrou em casa do ofendido “ilegitimamente”; do próprio depoimento da testemunha que disse que lhe pareceu não existir qualquer relação de amizade entre ofendido e o arguido e ainda do comportamento do arguido descrito pela testemunha após saber da sua presença e da do ofendido no local. O que de resto é consentâneo com a prova documental existente nos autos.
Olhando para a articulação destas provas entre si e a sua avaliação conjunta temos o conhecimento global dos factos, i.e., que no dia, hora e local constantes da acusação, o ofendido, depois de se dirigir à sua casa e ali encontrar o arguido CV___, chamou a PSP para se queixar de tal facto, conforme auto de noticia (e posteriormente auto de denúncia junto aos autos). Ora, não o teria feito, não teria chamado a polícia, se tivesse dado o seu consentimento à entrada do arguido.»
O fulcro da argumentação do recorrente prende-se, como é bom de ver, com o valor probatório a atribuir ao auto de notícia e ao auto de denúncia em conjugação com o depoimento de testemunha – MP – que é agente policial, em face da ausência, em audiência de julgamento, quer do arguido, quer do queixoso, e de outras testemunhas.
Com efeito, conforme alega o Ministério Público/recorrente, com respaldo nos autos, apesar das diligências efetuadas em fase de julgamento, não foi possível localizar o ofendido e nem este nem arguido estiveram presentes na audiência, circunscrevendo-se a prova oral ao depoimento da testemunha, agente da PSP que se deslocou ao local nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia datado de 13.01.2017, ao auto de denúncia datado de 30.01.2017 e demais documentos juntos aos autos.
Sucede, porém, que o auto de notícia e o auto de denúncia não têm a força probatória que o recorrente lhe atribui.
Com efeito, o sistema processual penal português é inspirado pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Como decorrência de tal princípio, ressalvado o valor probatório específico dos documentos autênticos e autenticados (169º), do caso julgado (artigo 84º), da confissão integral e sem reservas (344º) e da prova pericial (163º), no processo de formação da convicção do julgador, as primeiras regras a observar são, naturalmente, as da lógica – que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade –, seguidas pelas regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas.
A doutrina e a jurisprudência dividem-se quanto ao valor probatório do auto de notícia – há quem entenda que o auto de notícia se integra no âmbito do artigo 169º do Código de Processo Penal, de forma a atribuir-lhe um valor qualificado por via da sua equiparação a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n.º 2, e 369º do Código Civil (cfr., entre outros, os acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.04.2020 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2017) e quem entenda que o auto de notícia de um crime não tem a força probatória que o artigo 169º do Código de Processo Penal confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo, é tão só um documento intra-processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2020 e 25.11.2020[5]).
Vejamos.
Conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 242.º, n.º 1, al. a), e 243.º do Código de Processo Penal, a elaboração de «auto de notícia» constitui uma obrigação imposta por lei a qualquer autoridade judiciária, órgão da polícia criminal ou entidade policial que presenciar qualquer crime de denúncia obrigatória.
Portanto, o auto de notícia de crime é lavrado por alguma das referidas entidades, com as formalidades prescritas no aludido artigo 243º, que se lhe refere expressamente, estabelecendo que deve ser lavrado “sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória” e definindo o seu conteúdo e destino.
Trata-se de documento escrito, quer à luz do disposto no artigo 164º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quer do artigo 255º, al. a), do Código Penal, quer do artigo 360º do Código Civil.
Nada resultando dos normativos citados quanto à sua natureza, há que atentar no preceituado no artigo 363º do Código Civil, que assim dispõe:
“1. Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares.
2. Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.
3. Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais.”
Por seu turno, estatui o artigo 169º do Código de Processo Penal: "Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa."
Como decorrência, o auto de notícia, exarado, com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei constitui um documento autêntico (art.º 363º, n.º 2, do Código Civil).
Não pode, porém, confundir-se a natureza do documento com o problema da sua «fé em juízo», no específico âmbito do processo penal e por força dos princípios acolhidos no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, atinentes às garantias da defesa[6].
Isto, naturalmente, sem prejuízo de os documentos autênticos só fazerem prova plena dos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passam na sua presença (art.º 371º, n.º 1, do Código Civil) e de, no que se refere ao processo penal, ser admitido o contraditório (artigos 165º, n.º 2, e 327º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., em anotação ao art.º 243.º, pág. 642, «o auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363º, n.º 2, do C. C. e 169º do CPP).
Portanto, não tem qualquer força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que não tenha presenciado a infração, mas tenha procedido a inquérito prévio sobre a matéria nele relatada, nem o auto elaborado por um agente de autoridade que mencione as declarações de uma testemunha, mas já tem força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infração e a descreveu no auto, podendo esse auto fundamentar a sentença, mesmo que o seu autor tenha falecido antes da audiência».
Entendimento partilhado pelos Conselheiros Leal Henriques e Simas Santos, em Código de Processo Penal Anotado, II volume, pág. 16, que referem que «os autos de notícia, desde que obedeçam às prescrições legais, gozam da força probatória que é conferida aos documentos autênticos e autenticados, isto é, fazem prova plena dos factos que documentam, enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (artigo 169º do CPP )»[7].
Inquestionável, portanto, é que o valor probatório do auto de notícia, como documento autêntico nos termos das disposições conjugadas dos artigos 169º do Código de Processo Penal e 371º, n.º 1, do Código Civil, se circunscreve aos comportamentos presenciados e ao que foi percecionado diretamente pela autoridade policial, não se estendendo a outros contributos, mormente às declarações de terceiros aí eventualmente vertidas, nomeadamente as referentes ao relato dos eventos, por parte do queixoso, do suspeito ou de testemunhas.
De resto, a valoração de declarações e depoimentos (formalmente) produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, antes da audiência de julgamento, e aqui reproduzidos, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme estipulado nos artigos 355º, 356º e 357º do Código de Processo Penal.
A título exemplificativo, como se assinala no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.04.2020, «a relevância do auto de notícia só permite valorar o comportamento do queixoso como participante às autoridades de um facto que reclama a intervenção daquelas e somente essa postura de participação – e já não o concreto conteúdo das declarações – é suscetível de ser valorada nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, podendo o auto ser livremente consultado pelo Tribunal e invocado na sua fundamentação, mesmo que não examinado em audiência, sem que aí se aplique o disposto no artigo 355º, n.º 1, do mesmo diploma.
O auto de notícia releva muitas vezes para aferir a data da ocorrência dos factos, quando a testemunha, em audiência de julgamento, confirmando os factos, contudo, não se recorda da data dos mesmos, embora refira corresponder ao dia em que fez a participação. Nesses acasos, pode apreciar-se o auto de notícia, aferindo a data do ato de participação, mas já não o conteúdo da mesma»[8].
Revertendo o exposto ao caso dos autos, temos um auto de notícia datado de 13.01.2017, lavrado por, agente da PSP que se deslocou ao local ali discriminado, no circunstancialismo ali descrito, no qual aquele narra com quem contactou – MV  (referido como lesado/ofendido) e CV___  (referido como suspeito) –, o que lhe foi informado pelo primeiro e respondido pelo segundo e o que percecionou por si próprio – “apercebi-me que alguém estaria a subir as escadas do prédio, averiguei tal facto e deparei-me com CV___  a chegar à entrada do apartamento de MV ”.
Em audiência de julgamento depôs na qualidade de testemunha, confirmando o teor do auto de notícia por si lavrado (cfr. 6m:49 e ss.), relatando os factos de que tinha memória e prestando os esclarecimentos que lhe foram solicitados.
Tendo em perspetiva a linha argumentativa do recorrente, na sequência do que supra analisámos, o auto de notícia apenas faz prova plena da intervenção de, na sua qualidade funcional de agente da PSP, nas circunstâncias de tempo e lugar que ali verteu e que se deparou com CV___  “a chegar à entrada do apartamento de MV ”, tudo o resto consubstanciando declarações informais das pessoas ali visadas, identificadas como lesado/ofendido e suspeito, que não podem, sequer, ser valoradas, pelas sobreditas razões.
De igual modo, também não tem relevo probatório a parte do depoimento da identificada testemunha em audiência de julgamento indicada pelo recorrente referente à resposta à pergunta se percebeu se arguido e ofendido se conheciam – “Não me pareceu. Não me pareceu que existisse ali qualquer relação de amizade.” (cfr. 3:03ss); “Também não houve ali grande diálogo.” (cfr. 5m:21 ss.) e, acrescentamos nós, “Não posso afirmar que havia, mas também que não havia”. Isto porque a mencionada resposta configura uma mera opinião da testemunha, ainda que fundada no que percecionou naquela ocasião, que se mostra claramente insuficiente para formar uma convicção segura, como, de resto, se depreende das respostas conscienciosas dadas por aquela.
 Quanto à menção de que o arguido, ao saber da presença do ofendido e da polícia no local, entrou dentro de casa e retirou uma mochila com coisas suas (conforme referido pela testemunha em audiência de julgamento e exarado na fundamentação da matéria de facto), o auto de notícia não é tão detalhado, apenas mencionando a esse respeito o que supra transcrevemos – CV___  foi visto “a chegar à entrada do apartamento de MV” –, e, assim, apenas isto resulta provado pelo dito auto. Tudo o que foi referido pela testemunha em audiência de julgamento para além do que fez constar do dito auto, apenas pode ser valorado enquanto depoimento testemunhal e está sujeito à livre apreciação do julgador. Remontando os factos a 12.01.2017 e tendo a testemunha sido inquirida em audiência de julgamento em 10.05.2022, ou seja, mais de cinco anos depois, não colocando em causa a sua boa fé, tem que se admitir que a memória que tem dos factos possa estar, involuntariamente, comprometida por outros eventos similares em que tenha tido intervenção. Com efeito, não pode deixar de se estranhar que, volvidos cinco anos, a testemunha recorde pormenores relevantes que não mencionou no auto de notícia. Sinalize-se, porém, que, tendo efetuado a audição da gravação audiofónica do depoimento da testemunha na íntegra, nada percecionámos que indiciasse algum motivo para não lhe atribuir credibilidade, revelando-se um relato escorreito e, aparentemente, isento. Todavia, ao contrário do que sucede com a Ex.ma Juíza a quo, não tendo nós tido contacto direto com a testemunha, não dispomos da total perceção da qualidade do depoimento que a imediação proporciona.
Já o auto de denúncia datado de 30.01.2017 – lavrado pelo agente da PSP CC – apenas atesta que, em 30.01.2017, MV se apresentou “a comunicar que deseja procedimento criminal contra o suspeito identificado no […] auto de notícia”.
E o documento manuscrito, que foi dirigido aos autos em 16.11.2017, indicando o nome e morada do queixoso e o valor global dos danos que teria sofrido com a entrada do arguido em sua casa – 1.200,00€ – também nada comprova, uma vez que não foi confirmada a sua autoria e, além disso, o seu teor não é consentâneo com o depoimento da testemunha e a menção constante do auto de notícia de que a porta se encontrava aberta sem danos aparentes. Aliás, eventualmente por esse motivo, como também consta do auto de notícia, na data dos factos o queixoso “não pretendeu procedimento criminal”, apenas mais tarde, aproximadamente duas semanas depois, vindo a declarar o contrário.
Em suma, o auto de notícia apenas comprova que nas circunstância de tempo e lugar no mesmo descritas, MP, na sua qualidade funcional de agente da PSP, por lhe ter sido determinado pelo Centro de Comando e Controlo, se deslocou à Calçada …, em Lisboa, “em virtude de ali existir notícia de furto no interior de residência”, no local contactou MV, que se perfilou como lesado, e deparou-se com CV___  a chegar à entrada do apartamento daquele, que foi indicado como suspeito.
Por seu turno, auto de denúncia apenas comprova que, em 30.01.2017, MV se apresentou “a comunicar que deseja procedimento criminal contra o suspeito identificado no […] auto de notícia”.
O documento manuscrito, não tendo sequer sido confirmada a sua autoria e conteúdo, nada comprova, sendo, ademais, tal conteúdo contrário ao do auto de notícia e do depoimento da testemunha MP, donde resulta que não havia quaisquer sinais de arrombamento da porta ou outros danos.
Finalmente, o depoimento da testemunha explicita o que esta percecionou no local e, até, o que indagou junto do queixoso e do arguido. Pela mera audição do relato da testemunha, tudo aponta no sentido de que MV não tivesse consentido CV___  a pernoitar no apartamento de que era proprietário. Todavia, já não permite concluir, com um mínimo de segurança, que o arguido soubesse que atuava “contra a vontade de MV  e que ao agir pela forma descrita ofendia, como ofendeu, a privacidade do seu domicílio e a sua intimidade” [B. dos factos não provados], uma vez que, conforme referiu a testemunha, o prédio tinha aparência de estar devoluto, muitas frações já estavam abandonadas, o apartamento que o queixoso dizia ser sua propriedade não era a sua residência habitual,  aparentava estar desabitado, estava todo remexido e não havia sinais de arrombamento.
Conjugados os assinalados recortes de prova, afigura-se-nos que se poderá concluir como altamente provável que MV  não tivesse dado consentimento ao arguido para este pernoitar no seu apartamento, mas já não se pode concluir, com igual proporção de  probabilidade, que o arguido soubesse que assim procedendo atuava contra a vontade daquele, em virtude de o prédio se encontrar aparentemente devoluto e o apartamento estar aparentemente desabitado, todo remexido e de acesso facilitado.
Em resumo, ainda que nos socorrêssemos da prova indireta ou indiciária, os factos que resultam comprovados pelo auto de notícia, pelo auto de denúncia e pelo depoimento da testemunha que lavrou o primeiro são insuficientes para sustentarem, com a necessária segurança, a presunção de que o arguido CV___  entrou no interior do apartamento de MV  sabendo que atuava contra a vontade deste, bem como que estivesse ciente disso e da punibilidade de tal conduta.
Termos em que, sem necessidade de mais considerações, improcede a pretendida modificação da matéria de facto.
Não tendo havido modificação da matéria de facto pertinente para a subsunção jurídica, fica, inelutavelmente, prejudicada a segunda questão que se colocava – a subsunção dos factos [que o recorrente pretendia que fossem considerados provados] ao crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e a subsequente determinação da pena correspondente, que pressupunha tal alteração.
Mostra-se, assim, totalmente improcedente o recurso.
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III. – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público nos autos e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.

Sem custas, atenta a isenção de que goza do Ministério Público [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 4º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais].
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(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – artigo 94º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
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Lisboa, 09 de novembro de 2022

Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro
Rui Gonçalves
Maria Elisa Marques
_______________________________________________________ [1] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[2] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[3] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[4] Proferido no proc. nº 07P4375, acessível em www.dgsi.pt
[5] Todos disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[6] Vide acórdão do Tribunal Constitucional de 10/07/87, em BMJ n.º 369, pág. 258.

[7] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[8] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt