Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2949/15.7T8VFX-B.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- De acordo com a doutrina fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, de 20/3 (publicado no DR, I-Série de 19/5/2014), o promitente-comprador de um contrato promessa de compra e venda, sinalizado, que tenha beneficiado da tradição da coisa prometida vender, tem direito, em caso de recusa de cumprimento por banda do Administrador da Insolvência, à indemnização calculada nos termos gerais previstos no artº 442º nº 2 do Código Civil.

II- Esse crédito é garantido pelo direito de retenção previsto no artº 755º nº 1, al. f) do Código Civil, desde que o promitente-comprador tenha a qualidade de consumidor.

III- O promitente comprador que apenas logrou provar que no imóvel prometido comprar tem ao seu serviço uma empregada de limpeza, que contactou técnicos de construção civil para a realização de obras na casa e que na mesma casa recebeu amigos, não pode ser considerado consumidor, daí que não possa ser reconhecido que o seu crédito está garantido pelo direito de retenção, nos termos do artº 755º nº 1, al. f), do Código Civil.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :


I – Relatório


1- Por Sentença já transitada em julgado, proferida nos autos principais em 25/9/2015, foi decretada a insolvência de M….
2- Nos presentes autos de reclamação de créditos, foi proferido Saneador-Sentença, no qual foram verificados os seguintes créditos :
-“Agrogarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A.”, no montante de 57 279,22 €.
-“Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A.”, no montante de 33 584,98 €.
-“Caixa Geral de Depósitos, S.A.” garantido, no montante de 830 141,66 € ;  comum, no montante de 3.250,29 €.
-“Caixa Leasing – Instituição Financ. Crédito, S.A.”, no montante de 48 270,64 €.
-Estado – Fazenda Nacional comum no montante de 3.134,29 € ;  privilegiado, no montante de 1.046,25 €.
“Galp Power, S.A.”, no montante de 2 397,14 €.
-“Grazicar – Comércio e Indústria de Carnes, Ldª”, no montante de 885.343,04 €.
-Instituto da Segurança Social, I.P., no montante de 63.276,72 €.
-“Suinicomércio – Comércio de Suínos, Ldª”, no montante de 585.088,81 €.
3- Foi determinado o prosseguimento dos autos para apreciação da impugnação referente ao crédito reclamado por N...
4- Foram seleccionados os Temas da Prova.
5- Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
6- Foi proferida Sentença que julgou procedente a impugnação apresentada pelo credor N..., reconhecendo-lhe um crédito no valor de 400 000 €, com direito de retenção, e onde consta na sua parcela decisória :
“Pelo exposto, graduo os créditos sobre a insolvente, M… para serem pagos da seguinte forma:
A. Do produto da venda do prédio misto, sito em A..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 785/19970102 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1201 urbano e rústico artigo 10, secção J :
1º Estado – Fazenda Nacional € 1.046,25.
2º N….s 400.000,00€.
3º Caixa Geral de Depósitos, S.A. € 830.141,66.
4º rateadamente :
(…)B. Do produto da venda de todos os bens e direitos apreendidos e a apreender para a massa insolvente, incluindo os valores da cessão:
Rateadamente
Agrogarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. € 57.279,22.
Banif - Banco Internacional do Funchal, S.A. € 33.584,98.
Caixa Geral de Depósitos, S.A. € 3.250,29 € 830.141,66.
Caixa Leasing – Instituição Financ. Crédito, S.A. € 48.270,64.
Estado – Fazenda Nacional € 3.134,29.
Galp Power, S.A. € 2.397,14.
Grazicar – Comércio e Indústria de Carnes, Lda. € 885.343,04.
Instituto da Segurança Social, I.P. € 63.276,72.
N… Santos 400.000,00 €.
Suinicomércio – Comércio de Suínos, Lda € 585.088,81.
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As dívidas da massa insolvente – artigo 51º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), saem precípuas na devida proporção do produto da venda de cada bem móvel nos termos do artigo 172º nºs 1 e 2).
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Nos termos do disposto no artigo 303º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a actividade processual relativa à verificação e graduação de créditos, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objecto de tributação autónoma.
Assim, não há lugar a custas.
Registe e Notifique”.
7-  Inconformada com a Sentença, a reclamante “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” recorreu da mesma, apresentando as suas alegações, onde conclui :
“I- Ao reconhecimento do direito de retenção previsto no nº 1 da alínea f) do artº 755º do C.C. não pode ser indiferente a utilização/destino dado ao imóvel objecto da promessa de compra e venda.
II- Na génese daquele normativo, o legislador teve em conta um específico contexto económico-financeiro (a crise inflacionista da década de 80) e fez uma clara opção pela parte mais fraca: o promitente-comprador/consumidor de habitação própria/particular.
III- Direito constitucionalmente tutelado no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
IV- Foi, pois, direccionado e concreto o alvo do legislador.
V- Apenas o consumidor em sentido restritíssimo, ou seja, aquele que obteve a tradição do imóvel e simultaneamente, o utiliza como habitação principal, própria e permanente, pode beneficiar do direito de retenção. Entendimento diverso constitui violação dos princípios da igualdade, da confiança e segurança jurídicas – cfr. artigos 2º e 13º da C.R.P.
VI- Mas, sobretudo e principalmente, da proporcionalidade – vide artigo 18º, nº 2 da C.R.P.
VII-A tutela do promitente-comprador e a correspectiva compressão do direito do credor hipotecário só encontra justificação ante a necessidade de tutela da parte mais fraca.
VIII- Ou seja, apenas se deve colocar nos casos em que – objectivamente – há uma situação de desequilíbrio entre as partes.
IX- Não é a situação dos presentes autos: o imóvel sub judice não constitui habitação principal e permanente do Recorrido.
X- Trata-se, diferentemente, de uma casa que aquele não ocupava muito antes da declaração de insolvência de M...
XI- Ou seja, inexiste, comparativa e proporcionalmente, uma “parte mais fraca”.
XII- Inexiste o “desequilíbrio” que justificou a intervenção correctiva dos anos 80 e deu origem à alínea f) do número 1 do artigo 755ºdo Código Civil.
XIII- Ao reconhecer, com prioridade sobre o crédito hipotecário do Recorrente, direito de retenção ao Recorrido a douta sentença recorrida interpretou erradamente e violou o disposto no supra aludido artigo.
XIV- Devendo ser revogada e substituída por douto acórdão que reconheça como comum o crédito reclamado pelo credor Recorrido, N....
Nestes termos e nos demais de Direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso, sendo revogada a douta sentença recorrida nos termos acima expostos.
Assim se decidindo e com tanto quanto V. Exas. doutamente suprirem, será feita Justiça”.
8- O credor reclamante N… apresentou contra-alegações, indicando as seguintes conclusões :
“(…)
VIII) Pelo que bem andou a Douta Sentença quando deu como provado reconheceu e qualificou como garantido o credito do Recorrido por via do direito de retenção sobre o imóvel em causa nos autos.
IX) No presente recurso, está assim em causa, saber se bem andou o douto Tribunal face à prova considerada prova se é possível subsumir o Direito de Retenção.
X) A Recorrente não põe em causa a prova considerada provada pelo Tribunal a quo, colocando apenas em causa, se o Recorrido pode ser considerado consumidor final.
XI) Ora, face aos factos dados como provados, resulta evidente que o Recorrido N... Santos é considerado Consumidor Final, tendo adquirido o imóvel para ser casa de família.
XII) O Recorrido  desde a data da outorga do contrato promessa em causa nos autos, que tomou a posse do imóvel, passando a fazer dela a sua casa morada de família com a sua companheira D. Clarice.
XIII) Aliás resulta dos factos dados como provados, inclusivamente, que fruto do Recorrido estar a habitar o imóvel, viu os seus bens penhorados à ordem de processos executivos em que a Devedora Insolvente era Executada (anos de 2013).
XIV) O Recorrido por ter estado desde a data da outorga do Contrato Promessa que tem passado um calvário – defendendo os seus bens móveis (Recheio do imóvel em causa nos autos) – em processos executivos da Devedora Insolvente – calvário esse que já tem cerca de 7 anos.
XV) Tal como resulta provado o Recorrido encontra-se a pagar todos os meses à empregada de limpeza para que esta mantenha a casa limpa, habitável, os jardins arranjados – cuidando desta como bonus pater família.
XVI) É falso que o Recorrido à data da insolvência não se encontrava a viver no imóvel em causa nos autos – a Recorrente face a toda a prova documental nos autos, não pode por em causa, que o Recorrente desde 2012 se encontra na posse do imóvel e que na data da insolvência fazia do imóvel a sua casa de morada de família
(…)XLI) Pelo que bem andou o Douto Tribunal a quo, não merecendo a Sentença proferida de fls. qualquer censura, porque proferida em conformidade com os factos assentes e a jurisprudência fixada no AUJ, razão pelo qual deve ser mantida com a mesma fundamentação, o que conduz à improcedência do Recurso.
Termos em que, com o mui douto provimento de V. Exas, deverá ser negado provimento ao presente Recurso, confirmando-se in totum, a Douta Sentença recorrida.
Com o que se fará a tão costumada Justiça”.

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II – Fundamentação
a)  A matéria de facto considerada como provada em 1ª instância é a seguinte :
1- M… apresentou-se à insolvência através de requerimento entrado em juízo, nos autos principais, a 23/7/2015.
2- Em 25/9/2015 foi declarada a insolvência, por Sentença proferida no processo principal (a fls. 65 a 69), já transitada em julgado.
3-  A Srª Administradora da Insolvência apresentou o Relatório do artº 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), ao qual anexou inventário e lista provisória de credores.
4- Do inventário e posterior auto de apreensão consta o prédio misto, sito em A..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 785/19970102 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1201 urbano e rústico artigo 10, secção J.
5-  Realizou-se Assembleia de Apreciação do Relatório (acta a fls. 193 a 196 do processo principal), na qual se aprovou a liquidação do activo.
6-  Ao presente apenso foi junta a lista definitiva de credores, que reconhece ao impugnante N... Santos um crédito comum, no valor de 400.000 €, emergente de contrato-promessa, sem reconhecer direito de retenção.
7-  À reclamação de créditos apresentada, o impugnante N... Santos juntou um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 11/9/2012, subscrito pela insolvente e por ele, com o seguinte teor :
“Entre
M... Santos (…) e N... Santos (…)
Os contraentes acordam na celebração do presente contrato-promessa de compra e venda, nos termos das cláusulas seguintes :
Cláusula Primeira
A primeira contraente é dona e legítima proprietária do prédio misto sito em A..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 785/19970102 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1201 urbano e rústico artigo 10, secção J.
Cláusula Segunda
Pelo presente contrato a primeira contraente promete vender ao segundo contraente, que promete comprar, o prédio identificado na cláusula anterior, livre de ónus e encargos e responsabilidades de qualquer natureza, o supra referido prédio pelo preço global de €400.000,00 (quatrocentos mil euros) nos termos e condições seguintes.
Cláusula Terceira
O preço da compra e venda ora prometida será pago da seguinte forma :
a) 100.000,00 € (cem mil euros) a título de sinal e princípio de pagamento, do qual dá a primeira contraente imediata quitação através do presente contrato promessa.
b) 100.000,00 € (cem mil euros) a título de reforço de sinal com a apresentação por parte da primeira contraente do comprovativo do registo do presente contrato promessa.
c) 200.000,00€ (duzentos mil euros) a título de remanescente preço, no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.
(…)
Cláusula Sexta
No caso de não cumprimento por qualquer dos contraentes do presente contrato promessa de compra e venda, pode a parte não faltosa exigir, em alternativa e à sua escolha, a execução específica do mesmo, ou no caso de tal parte ser a primeira contraente fazer seu o dinheiro recebido, ou, no caso de tal parte serem os segundos outorgantes, exigirem o dobro do dinheiro pago.
(…)
Cláusula Décima
Ambos os contraentes acordam mutuamente prescindir do reconhecimento presencial das assinaturas no presente contrato promessa de compra e venda, bem como da certificação da existência de licença da utilização de quaisquer irregularidades que pudessem advir dessa falta de reconhecimento.
Cláusula Décima Primeira
Por força do presente contrato, e atento o pagamento de €200.000,00 (duzentos mil euros) a título de sinal, opera-se desde a respectiva outorga a transmissão da posse sobre o prédio objecto do mesmo para o segundo contraente que poderá administrar usar e fruir plenamente e sem quaisquer restrições”.
8-  A fls. 193 do apenso junto por linha mostra-se junta uma cópia de dois cheques emitidos por N... Santos e que têm como beneficiária a insolvente.  Um deles, datado de 11/9/2012, no valor de 40.000 € e o segundo datado de 12/9/2012, no valor de 60.000 €.
9- Com data de 24/9/2012, N... emitiu o cheque, cuja cópia está junta a fls. 200, no valor de 100.000 €, que teve como beneficiária a insolvente.
10- Cheque que foi apresentado a depósito na conta do Banco “BPI”, da titularidade de Manuel ... Santos.
11-  Em 1/10/2012, a insolvente subscreveu uma declaração, cuja assinatura foi reconhecida na Conservatória do Registo Civil e Predial de C..., com o seguinte teor :
“(…) declaro para todos os devidos efeitos ter recebido o valor de 100.000,00 € a título de sinal e mais 100.000,00 € a título de reforço de sinal referente a contrato promessa outorgado em 11/9/2012”.
12- O prédio misto, sito em A..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 785/19970102 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1201 urbano e rústico artigo 10, secção J, mostra-se inscrito pela ap. 5 de 18/5/2001 em nome da insolvente, adquirido por doação, no estado de casada com Manuel ... Santos, no regime de separação de bens.
13-  Sobre o imóvel mostram-se inscritas as hipotecas seguintes, a favor da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” :
-Ap. 15 de 2001/10/31, montante máximo assegurado 50.621.200$00.
-Ap. 3 de 2003/09/02, montante máximo assegurado 35.184,50 €.
-Ap. 2479 de 2009/09/02, montante máximo assegurado 126.664,20 €.
-Ap. 3027 de 2009/11/16, montante máximo assegurado 939.687,50 €.
-Ap. 4243 de 2010/01/19, montante máximo assegurado 225.525 €.
-Ap. 4274 de 2010/01/19, montante máximo assegurado 187 937,50 €.
14-  Pela Ap. 1100 de 24/9/2012, aquisição, foi lavrado, provisório por natureza o seguinte:
“Causa : compra.
Sujeito activo : N….
Sujeito passivo : M….
Prazo para a celebração do contrato prometido : 8 meses a contar de 24.09.2012”.
15- O reclamante N… enviou à insolvente, através de correio registado com aviso de recepção, a seguinte comunicação :
“Assunto :  Marcação de escritura – contrato promessa de compra e venda celebrado a 11.09.2012.
(…) venho pela presente notificar V. Exa., na qualidade de promitente-vendedora, para que até ao dia 28 de Maio de 2015, faculte toda a documentação necessária à outorga da escritura definitiva, designadamente os distrates de hipoteca e cancelamento de penhora”.
16-  Carta que foi recebida pela Insolvente.
17-  Em 30/6/2015, a insolvente recebeu uma comunicação, na qual o reclamante N...Santos a notificava para comparecer no dia 2/7/2015, no Cartório Notarial de P..., a fim de celebrar a escritura pública.
18- No dia 2/7/2015, a insolvente não compareceu no Cartório Notarial.
19-  O reclamante N…Santos foi notificado no âmbito do processo executivo nº 143/13.0 TBCDV, através de ofício datado de 13/3/2014, do auto de penhora do imóvel sito em A... e para informar se mantém interesse no registo descrito na Ap. 1100 de 24/9/2012, lavrado provisoriamente.
20- O reclamante N...Santos tem ao seu serviço, na casa objecto do contrato-promessa, como empregada de limpeza a Sra. G...
21- Contactou técnicos de construção civil para a realização de obras na casa.
22- E, naquela casa recebeu amigos.
23- Em 4/2/2013, a insolvente deduziu, no processo executivo nº 4803/12.5 TBLRA, em que era Exequente o credor “Suinicomércio – Comércio de Suínos, Ldª”, oposição à penhora do recheio do imóvel sito na Rua ... ..., nº..., sito em A..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 785/19970102 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1201 urbano e rústico artigo 10, secção J.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Assim, perante as conclusões das alegações da recorrente, a única questão em recurso consiste em determinar se pode o recorrido (enquanto promitente comprador) invocar o direito de retenção.
c)  Antes de mais, há que salientar que, uma vez que o recurso não incide sobre a decisão relativa à matéria de facto, é com base na factualidade fixada pelo Tribunal “a quo”, que importa trabalhar no âmbito da análise das questões trazidas em sede de recurso.
d) Vejamos, então, em primeiro lugar, se está verificado o incumprimento definitivo do contrato-promessa em causa nos autos.
“In casu”, estamos perante um contrato-promessa bilateral de compra e venda tendo por objecto mediato um prédio misto descrito nos Factos 4., 7. e 12., prometido comprar à insolvente, que o prometeu vender, tendo havido “traditio” aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda, isto é, antes do contrato prometido, sendo que este se tornou inviável por parte da promitente-vendedora, por via da declaração de insolvência.
Ora, o contrato-promessa a que se referem os artºs. 410º a 413º, 441º, 442º e 830º do Código Civil é, em princípio, um contrato de eficácia obrigacional, o mesmo é dizer que só produz efeitos entre as partes e seus herdeiros.
Podem, porém, as partes atribuir-lhe eficácia real (“erga omnes”) quando tenha por objecto a transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo.
Estabelece a este título o artº 413º do Código Civil, no seu nº 1, que “à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo” ;  por sua vez, o nº 2 do mesmo normativo preceitua que “deve constar de escritura pública a promessa a que as partes atribuam eficácia real ;  porém, quando a lei não exija essa forma para o contrato prometido, é bastante documento particular com reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou de ambas, consoante se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral”.
Como o bem prometido vender é um bem imóvel, então, para que o contrato-promessa em causa nos autos fosse dotado de eficácia real, seria necessário que :
-Constasse de escritura pública ;
-Os seus outorgantes declarassem expressamente que atribuíam eficácia real ao contrato ;
-Se fizesse a inscrição no registo dos direitos emergentes da promessa.
Ora, no caso em apreço, o contrato-promessa não foi celebrado por escritura pública, mas ocorreu transmissão da coisa e esse facto foi inscrito no registo.
Sucede que, ao tempo da declaração de insolvência da promitente-vendedora era um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido.
O princípio geral quanto aos negócios bilaterais ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento (cf. artº 102º nº l do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.).
Compete, assim, ao administrador da insolvência, no interesse dos credores do insolvente, decidir se é mais vantajoso o cumprimento ou incumprimento, sendo que o interesse que emerge como principal é o da protecção dos credores afectados com a declaração de insolvência (neste sentido, cf. Acórdão do S.T.J. de 14/6/2011, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Daí os poderes latos conferidos ao administrador da insolvência que se manifestam na decisão de cumprir ou não cumprir os contratos, onde a lei insolvencial lhe dá essa opção.
Portanto, o C.I.R.E. atribuiu ao administrador da insolvência duas alternativas que, potestativamente, pode exercer:  Ou cumpre ou não cumpre o contrato que estava em curso (neste sentido, cf. o já citado Acórdão do S.T.J. de 14/6/2011, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
“In casu” o cumprimento não ocorreu, sendo certo que teremos de considerar que estamos perante uma situação óbvia de incumprimento definitivo. O recorrido (reclamante), é o promitente comprador no mencionado contrato-promessa celebrado com a insolvente e adquiriu a qualidade de beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre as fracções em causa nos autos.  Além disso, e face à posição do administrador da insolvência, passou a ser, também, titular de um crédito sobre a insolvente (promitente vendedora), por incumprimento por esta do contrato-promessa, crédito esse que tem por objecto o pagamento, em dobro, do montante entregue como sinal, nos termos do artº 442º do Código Civil.  Acresce que obteve a tradição das fracções logo no próprio dia da celebração do contrato-promessa, com consentimento da insolvente, sendo certo que a lei exige apenas essa tradição, ou seja, a obtenção da detenção material da coisa, não exigindo a posse jurídica a que se refere o artº 1251º do Código Civil.
Deste modo, pode-se concluir que a situação “sub judice” confere ao recorrido, em face do incumprimento definitivo do contrato-promessa em causa, o direito ao dobro do sinal, faculdade que é conferida à parte não faltosa, nos termos do já citado artº 442º nº 2 do Código Civil.
Assim sendo, entendemos ser de considerar verificado o crédito do recorrido, tal como se refere na Sentença apelada.
d)  Mas há ainda que ver, para efeitos de graduação de tal crédito, se pode o recorrente (enquanto promitente comprador) invocar o direito de retenção nos termos do artº 755º nº 1, al. f) do Código Civil.
Defende a apelante que tal direito apenas pode ser invocado por quem tenha a qualidade de consumidor, o que não sucede com o recorrido.
Verdadeiro direito real de garantia, o direito de retenção confere ao credor que tem em seu poder certa coisa pertencente ao devedor, não só a faculdade de se recusar a entregá-la enquanto o devedor não cumprir, como ainda a de executar a coisa e pagar-se à custa dela com preferência sobre os demais credores (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, comentário ao artº 754º).  Tal é o que resulta do disposto nos artºs. 754º, 758º e 759º do Código Civil.
Consagrada tal garantia desde a versão originária do Código, só com a entrada em vigor do Decreto-Lei 236/80, de 18/7, os promitentes-compradores passaram a beneficiar do direito de retenção, dispondo o artº 442º nº 3 do Código Civil, na redacção resultante daquele diploma, que no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador gozava, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.
O regime jurídico do contrato promessa veio a ser alvo de alterações através do Decreto-Lei 379/86, de 11/11, que, todavia, manteve as soluções introduzidas pelo já referido Decreto-Lei 236/80, de 18/7, cujo objectivo principal, “foi acautelar a posição do promitente-comprador de edifícios, ou de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais” (cf. Preâmbulo do diploma em causa).
Mais se deixou aí referido que, tendo “o legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedido ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442º, nº 3), pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles”. Sob ponderação que nada justificava que o instituto ficasse confinado a tão estreitos limites, e assinalando que em diversas previsões do artº 755º nº 1 do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o artº 754º do Código Civil pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito, alargou-se a concessão de tal direito ao beneficiário de qualquer promessa com “traditio rei”.
Finalmente, e reconhecendo, embora, que o problema levantava “particulares motivos de reflexão, precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia :  a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, “máxime” tomados de instituições de crédito”, dado que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artº 759º nº 2 do Código Civil), expressou o legislador de 1986 que “neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares.  Vem na lógica da defesa do consumidor.  Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira.  Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.  Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980”.
Assim, assente que nos termos do artº 755º nº 1, al. f) do Código Civil goza de direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artº 442º”, a aplicação do assim preceituado no âmbito do processo de insolvência suscitou diversos problemas, sem que se lograsse obter consenso doutrinário e dando origem a decisões jurisprudenciais divergentes.
Reconhecendo a controvérsia instalada e a dispersão das decisões dos nossos Tribunais, veio o S.T.J. a proferir o Acórdão Uniformizador 4/2014, de 20/3 (publicado no DR, I-Série de 19/5/2014), fixando a seguinte doutrina : “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com “traditio”, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos estatuídos no artº 755º, nº 1, al. f) do Código Civil”.
Assim, não há dúvida que, nos termos da doutrina fixada, o promitente-comprador tem, nestes casos, e na hipótese de recusa do administrador da insolvência, direito a indemnização calculada nos termos gerais prescritos no artº 442º nº 2 do Código Civil, crédito este garantido pelo direito de retenção, desde que seja consumidor, pois só “interferindo a mencionada restrição podem ter cabimento e aplicação a ratio e teleologia convocadas para a aplicação dos correspondentes preceitos legais no âmbito do direito insolvencial” (cf. Acórdão do S.T.J. de 25/11/2014, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
A qualidade de consumidor é, deste modo, elemento constitutivo essencial do direito de retenção, enquanto garantia real, impondo, consequentemente, ao reclamante que dele se pretende prevalecer, o cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade (neste sentido, cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 8/9/2015, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Assente, pois, que está em causa um contrato promessa em curso à data da declaração da insolvência da promitente vendedora (a posterior insolvente), tendo por objecto negócios translativos do direito de propriedade sobre um imóvel, com passagem de sinal, tendo o beneficiário da promessa obtido a tradição da coisa prometida vender antes da declaração de insolvência, remanesce pois, a questão de saber se o recorrido deverá ser, para os aludidos efeitos, considerado consumidor.
À luz da factualidade apurada nos autos, defende o apelante a ausência da necessária qualidade de consumidor do recorrido. 
Refere-se na decisão em apreço que “no caso que nos ocupa o imóvel sito na Rua ... ..., nº..., sito em A..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 785/19970102 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1201 urbano e rústico artigo 10, secção J, constituiu uma vivenda para habitação”.  E acrescenta que “nada se alegou que permita concluir que a aquisição teve por fim a revenda ou outra utilização relacionada com o exercício de uma qualquer actividade económica ou uso profissional, que não seja a utilização da casa para fins pessoais, isto é, como consumidor final”.
Antes de mais, diremos que o conceito de consumidor a adoptar para efeitos de delimitação da previsão normativa deverá ser o consagrado na Lei 24/96, de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor).
Dispõe o artº 2º nº 1 da mencionada Lei que : “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Atenta a formulação legal, a qualificação do sujeito como consumidor depende assim, essencialmente, da finalidade do acto de consumo, detendo tal qualidade aquele “que adquire um bem ou serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico na fórmula da al. a) do art. 2º da Convenção de Viena de 1980 – de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa” (cf. Calvão da Silva, in “Compra e venda de coisas defeituosas”, 4ª ed., pg. 118).
“A noção estrita de consumidor – pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional – que defendemos em geral e temos por consagrada no nº 1 do artº 2º da LDC (…) impõe-se pertinente e inquestionavelmente “in casu” à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que se define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. a) do nº 2 do artº 1º)” (cf. Calvão da Silva, in “Venda de bens de consumo”, 4ª Ed., pgs. 55 e ss.).
Sendo esta a noção que perfilhamos, debrucemo-nos agora sobre a matéria de facto acima elencada a fim de dar resposta à questão que ora nos ocupa.
À luz da descrita factualidade, e considerando tudo quanto se referiu a propósito do conceito de consumidor, afigura-se-nos claro que o apelado não preenche a previsão legal.
Neste ponto há que salientar que à questão de saber qual o conceito de consumidor adoptado pelo Acórdão Uniformizador 4/2014, de 20/3, que tem dividido a Jurisprudência, não podemos deixar de aderir ao conceito restrito do mesmo, ou seja, definindo para efeitos de reconhecimento do direito de retenção o promitente-comprador que destina o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa (neste sentido, cf. Acórdão do S.T.J. de 9/4/2019 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Ora, mostra-se provado nos Factos 20., 21. e 22. que o apelado tem ao seu serviço, na referida casa, uma empregada de limpeza ;  contactou técnicos de construção civil para a realização de obras na casa ;  na mesma casa recebeu amigos.
Fica, no entanto, indemonstrado o uso exacto que o recorrido deu ao imóvel, uma vez que não se apurou que o apelado o utilize para o seu contexto familiar.  Com efeito, os três factos apurados sobre esta questão são, só por si, inócuos, uma vez que a circunstância de ele ter ali ao seu serviço uma empregada de limpeza, não revela que o apelado ali resida (aliás, no seu depoimento, a referida empregada salienta que vai à casa quatro horas por semana, abre as janelas, limpa o chão e o jardim, tendo a chave da habitação consigo para, quando tal lhe é pedido pelo recorrido, abrir a porta) ;  por outro lado, a mera realização de obras na casa, em si, nada nos diz sobre a utilização da mesma ;  por fim, o facto de ali receber amigos também é escasso, pois não sabemos se o faz regularmente, se ocasionalmente.
Atenta a formulação legal que consagra o conceito restrito de consumidor (sendo o mesmo definido, para efeitos de reconhecimento do direito de retenção, como a pessoa que destina o imóvel a uso particular – pessoal, familiar ou doméstico – no sentido de não o comprar para revenda, nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa, destinando-o a satisfazer as necessidades pessoais e familiares), fácil é concluir que não se mostram provados factos suficientes para considerar o recorrido como consumidor.
Com efeito, os factos apurados e acima descritos, são manifestamente insuficientes para se concluir que o apelado reside no imóvel, se tem ali o seu núcleo familiar, isto é, se faz do mesmo habitação permanente.  Aliás, diremos mesmo que, em momento algum dos autos, o recorrido refere que pretendia adquirir o imóvel para sua habitação.
Ora, nos termos do artº 342º nº 2 do Código Civil, o ónus da prova dos factos integradores do conceito de consumidor incumbia ao apelado, e a verdade é que não logrou fazer tal prova.
Deste modo, terá que sofrer as legais consequências.
e) Conclui-se, por conseguinte, que o recorrido não pode ser considerado consumidor.
Daí que não possa ser reconhecido que o seu crédito está garantido pelo direito de retenção, nos termos do artº 755º nº 1, al. f), do Código Civil.
f)  Conclui-se, assim, que a apelação merece provimento, havendo que alterar a decisão recorrida.
g)  Sumário (supra transcrito)

*  *  *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em :
1º- Julgar procedente o recurso interposto pela credora “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”.
2º- Declara-se que o crédito reconhecido ao recorrido N…. não beneficia do direito de retenção.
3º- Consequentemente, deve o mesmo ser reconhecido, graduado e pago como crédito comum, assim se alterando a alínea A) da parte dispositiva da decisão recorrida.
4º-  No mais, mantém-se a Sentença nos seus precisos termos. 
Custas pelo recorrido (artº 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator


Lisboa, 27 de Abril de 2021



(Pedro Brighton)
(Teresa Sousa Henriques)
(Isabel Fonseca)


Decisão Texto Integral: