Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3861/20.3T8LSB.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
SUSPENSÃO DOS PRAZOS
LEI N.º 1-A/2020
DE 19 DE MARÇO
SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
PROCESSO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I. Ao decidir que se verificara o prazo da contestação apresentada pela ré sem previamente ter ouvido as partes acerca dessa questão, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório, o que constitui uma nulidade processual (art.os 3.º, n.º 3 e art.º 195.º e 199.º do Código de Processo Civil).
II. As nulidades processuais cobertas por despacho podem ser impugnadas por via de recurso.
III. Nada obsta a que a mesma instância seja suspensa por causas diversas, porquanto diversas são as causas que tal podem determinar; estando suspensa a instância por acordo das partes e sobrevindo disposição legal a determiná-lo, a mesma mantém-se pelo período que for superior.
IV. Recusando a entidade competente emitir cartão para o apelado aceder às áreas restritas do Aeroporto por estar acusado da prática de um crime e sendo as suas funções desenvolvidas apenas no "lado ar", o trabalhador fica impossibilitado de cumprir a sua prestação e o contrato de trabalho suspende-se até decisão do processo criminal (pelo art.º 296.º, n.º 1 do Código do Trabalho).
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório.
AAA intentou a presente acção declarativa com, processo comum, contra BBB, pedindo que a ré fosse condenada:
a) a indemnizá-lo na quantia total de € 15.791,05, sendo € 7.791, a título de danos patrimoniais e € 8.500,00 a título de danos não patrimoniais., aos referidos valores acrescem juros de mora à taxa legal;
b) a reintegrá-lo na função para que foi contratado ou noutro que não implique a titularidade do cartão em causa nos presentes autos emitido pela PSP
alegando, em síntese, que:
• foi admitido ao serviço da então (…), no dia 15/12/1998, com a categoria de operador de rampa e terminais; aquele CIT transmitiu-se, depois, para a aqui R. que passou a ser a sua entidade empregadora;
• esteve de baixa psiquiátrica até 14/07/2019, regressando ao trabalho a 15/07/2019;
• regressou a de férias a 19/08/2019;
• após essa data o seu CIT foi suspenso;
• para desempenhar a sua actividade profissional, o A. necessita de um cartão de identificação Aeroportuário e Certificação de Condução, emitido pela PSP;
• era titular do citado cartão com validade até 22/02/2020, que entregou aquando do processo disciplinar que lhe foi movido pela R., antes da sua situação de baixa;
• este processo disciplinar foi arquivado;
• para fundamentar a suspensão do contrato de trabalho, a empresa R. alega o parecer desfavorável do aeroporto de Lisboa em solicitar a emissão de um novo cartão de identificação Aeroportuário e Certificação de Condução, à PSP;
• na base da recusa em solicitar a emissão de novo cartão está o artigo 41.º n.º 5 do decreto lei n.º 142/2019 de 19 de Setembro que dispõe que 'é fundamento bastante para não atribuição de autorização de acesso às zonas restritas de segurança, entre outras razões devidamente fundamentadas: a) O facto de o candidato ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime doloso contra o património....., ou de qualquer outro crime doloso punido com pena de prisão superior a 3 anos.';
• encontra-se indiciado de um crime de receptação p. p.  pelo artigo 231.º n.º 1 do CP, no processo n.º (…), que corre os seus termos, no Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 1, a dedução da acusação no processo supra identificado teve lugar a 4-7-2017;
• não foi condenado por sentença transitada em julgado por qualquer crime doloso, logo a justificação do aeroporto de Lisboa para não autorizar o pedido de emissão de novo cartão ao ora A., carece de justificação;
• existe na empresa outro colega do ora autor, que foi condenado por um crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, e teve acesso ao cartão que lhe permite desempenhar a função para que foi contratado;
• sem o cartão ora em causa o autor não pode desempenhar as funções para que foi contratado; por esse motivo o autor após regressar de férias e devido à impossibilidade de ter acesso ao cartão ora em causa solicitou à empresa ora ré a sua transferência para funções que não impliquem necessariamente a posse do referido cartão, nomeadamente as funções do sector de engenharia e manutenção – EGE ou a departamento de distribuição de fardamento;
• o contrato de trabalho ora em causa ainda se encontra suspenso actualmente;
• aufere a quantia líquida de 1.558,21 €;
• devido ao facto de se encontrar impedido de desempenhar a sua profissão o autor encontra-se desgostoso e isolado;
• esta situação tem um forte impacto na sua vida quotidiana e no seu relacionamento inter-social com as outras pessoas, provocando-lhe graves problemas a nível psicológico, encontrando-se a ser seguido em consultas de psiquiatria;
• é assim alvo de uma prática discriminatória, assediante e injustificada geradora de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes sem que estas tenham acordado sobre o litígio que os divide, tendo então a Mm.ª Juiz a quo proferi o seguinte despacho, de que todos foram logo notificados:
"Atenta a posição assumida pelas partes, ao abrigo do disposto no art.º 272.º, n.º 4 do CPC, suspendo a instância pelo prazo de 40 dias, para os efeitos pretendidos.
Nada vindo aos autos até ao fim do prazo da suspensão, fica desde já a Ré notificada para, em 10 (dez) dias, prazo que se iniciará no dia seguinte ao termo da suspensão, contestar querendo, a presente acção, sob pena de não o fazendo, serem considerados confessados, os factos articulados pelo Autor na petição inicial (art.os 56.º, al. a), e 57.º, n.º 1, ambos do CPT).
Para audiência de discussão e julgamento designa-se, com o acordo dos ilustres mandatários, o dia 30 de Setembro de 2020, pelas 09:30 horas, e não antes por absoluta indisponibilidade de agenda".
No dia 01-09-2020, foram os autos conclusos à Mm.ª Juiz, a qual proferiu despacho relativo à não contestação da ré e, imediatamente na sequência disso, a sentença, nos termos da qual julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a ré a:
a) pagar ao autor a quantia total de € 15.791,05, sendo € 7.791,05 a título de danos patrimoniais e € 8.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora á taxa legal;
b) reintegrá-lo na função para que foi contratado ou noutra que não implique a titularidade do cartão em causa nos presentes autos emitido pela PSP.
Inconformada, a ré interpôs recurso, pedindo que se revogue o despacho e a sentença em apreço, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"1.ª - O Despacho que antecede a sentença é nulo, já que a forma de contagem do prazo para contestar e a decisão de que esse prazo já havia decorrido constituíram uma decisão surpresa, violando o princípio do contraditório previsto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.
2.ª - A R. constituiu mandatário forense, através de procuração que foi junta aos autos na audiência de partes realizada no dia 11/03/2020, onde foi proferido despacho a suspender a instância pelo prazo de 40 dias, para os efeitos pretendidos para tentativa de acordo, a que se seguiria o prazo de 10 dias para contestar.
3.ª - Entretanto, devido à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 e situação de calamidade pública, no dia 18 de Março de 2020 foi decretado o Estado de Emergência, tendo sido publicada a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, com produção de efeitos a 12 de Março, no art.º 7.º, n.º 1, determinou que 'aos atas processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais (...) aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública'.
4.ª - Posteriormente, a Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, alterou parte do citado artigo 7.º, passando a dispor no seu n.º 1 que: 'todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais (...) ficam suspensos até à cessação da situação excepcional de prevenção contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte', com excepção dos processos urgentes, e a partir de 9 de Março de 2020.
5.ª - A suspensão dos prazos estabelecida terminou em 2 de Junho de 2020, data anterior à entrada em vigor da norma que revogou aquele art.º 7.º (art.os 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29/05).
6.ª - Em 02/09/2020, as partes não tinham junto qualquer acordo, nem a R. tinha apresentado a sua contestação.
7.ª - O Tribunal a quo decidiu, mal, que a suspensão da instância não se traduzia num prazo para a prática de acto processual, pelo que não estava coberta pelo regime do art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, não havendo paragem de contagem do período de suspensão da instância, tendo esta terminado no dia 20/04/2020, data em que o prazo de 10 dias para apresentação da contestação ficou suspenso até 03/06/2020.
8.ª - Face à situação epidémica vivida desde Março de 2020, e à situação de emergência e calamidade decretada, às medidas implementadas e às circunstâncias vividas por todos, foi definido um quadro normativo extraordinário e de suspensão dos prazos processuais.
9.º - Constatando o Tribunal a quo que não tinha sido apresentado qualquer acordo e a R. não tinha apresentado contestação, tendo o entendimento que a suspensão da instância não era abrangida pela suspensão dos prazos determinada pela Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, ao mesmo era exigido que tivesse dado possibilidade às partes para se pronunciarem, ao abrigo do disposto nos art.º 3.º, n.º 3 do CPC, sobre a decisão que se preparava para proferir, em cumprimento do princípio do contraditório, do dever de gestão processual e do princípio da cooperação, o que não fez.
10.ª - Por essa razão, o Tribunal violou o disposto nos art.os 3.º, 6.º e 7.º do CPC, e omitiu um acto com consequências no mérito da causa e feriu de nulidade o processado posteriormente, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do CPC, o que expressamente se invoca.
11.ª - Por outro lado, o Tribunal a quo considerou erradamente que a suspensão da instância não era um 'prazo para a prática de acto processual', pelo que não se aplicava o disposto no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03.
12.ª - O período de suspensão da instância em causa era um prazo de natureza dilatória, que tinha que decorrer para se poder praticar um acto, período esse durante o qual os prazos não correm, não podem ser praticados actos que não sejam urgentes, que se suspende nas férias judiciais e que cessa quando tiver decorrido o tempo fixado, prosseguindo os autos os seus termos e retomados os prazos em curso.
13.º - Sendo que, a contagem de 40 dias de suspensão da instancia para eventual acordo e os 10 dias para a dedução da contestação nos autos, num total de 50 dias, contam-se como um só prazo, atenta a natureza de cada prazo e a regra de contagem conjunta, prazo esse com início no dia 11 de Março.
14.º - No dia seguinte, por força da entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, a suspensão da instancia e ficou abrangida pelo regime de férias judicias, pelo que o seu decurso ficou suspenso.
15.º - Com a entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, que alterou o art.º 7.º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, a contagem da suspensão da instancia parou logo no dia em foi reconhecida e vigorou até ao dia 02/06/2020.
16.º - O primeiro dia de contagem dos 50 dias do prazo começou a correr no dia 03/06/2020, cuja contagem se voltou a suspender entre 16 de Julho e 30 de Agosto por força das férias judiciais de Verão, pelo que, o prazo para contestar só terminaria no dia 7 de Setembro.
17.º - Porém, o despacho e sentença em crise foram proferidos em 2 de Setembro, o que constituiu uma interrupção ilegal do procedimento previsto e dos prazos processuais e legais em curso.
18.º - A decisão de considerar já decorrido o prazo para contestar, quando tal não aconteceu é ilegal e impediu que se considerasse a contestação que, entretanto, deu entrada em 04/09/2020 nos autos e em tempo.
19.º - O Despacho em causa violou o disposto no art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e os art.os 137.º, 138.º e 142.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho e constituiu a prática de um acto ilegal com consequências no mérito da causa, ferindo de nulidade o despacho e o processado posteriormente, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do CPC, nomeadamente a sentença, que devem ser revogados, proferindo-se despacho que receba a contestação apresentada.
20.º - Além das nulidades, o decidido pelo Tribunal a quo na sentença quanto ao mérito não está conforme com o Direito aplicável.
21.º - O Tribunal a quo considerou já ter decorrido o prazo para contestar sem que a contestação tivesse sido junta, e proferiu sentença, condenando a R. de preceito e conforme os pedidos do A. ('a) pagar ao Autor AAA a quantia total de € 15.791, 05 (quinze mil setecentos e noventa e um e cinco cêntimos), sendo 7.791,05 € (sete mil setecentos e noventa e um euros e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e 8.500, 00 € (oito mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, aos referidos valores acrescem juros de mora à taxa legal; b) reintegrar o autor AAA na função para que foi contratado ou noutra que não implique a titularidade do cartão em causa nos presentes autos emitido pela PSP').
22.º - O decidido não resulta duma adequada ponderação e fundamentação de facto e de Direito, pois ao contrário do referido na sentença, a 'manifesta simplicidade da causa' não se verificava, pois, mesmo considerando provados os factos alegados pelo A., a causa exigia e merecia uma reflexão por parte do Tribunal a quo que julgasse a causa conforme fosse de Direito.
23.º - O A. foi contratado para o exercício das funções de Operador de Assistência em Escala, que só podem ser podem ser exercidas, no caso, no designado 'lado ar' do Aeroporto de Lisboa, o que o mesmo A. confessou reiteradamente nos autos.
24.º - A R. dedica-se à actividade de handling, que consiste na assistência em terra prestada pela R. a aviões da companhia de bandeira portuguesa, a (…), bem como a outras companhias que operem em Aeroportos em Portugal, exercendo essa actividade, para além de outras, nas instalações sitas no Aeroporto de Lisboa, que estão concessionadas à (…),.
25.ª - Por razões de segurança, há áreas das instalações do Aeroporto de Lisboa que são restritas e de acesso reservado ao pessoal especialmente autorizado, pelo que, para aceder às mesmas, é necessário ser portador de um cartão de acesso, emitido expressamente para aquele efeito e de acordo com as áreas em causa, sendo que a delimitação e condições de acesso às áreas reservadas resultam da Deliberação n.º 680/2000 do INAC, de 1 de Fevereiro, publicada no DR, II série, n.º 134, de 9 de Junho de 2000.
26.º - É a (…), quem, no exercício das suas atribuições, detém a prerrogativa e a autoridade única para atribuir, restringir, reter, cassar, não renovar ou não emitir cartões de acesso às áreas restritas ou reservadas das instalações aeroportuárias sob a sua autoridade, o que constitui matéria de matéria de Direito, não tendo a R. qualquer intervenção ou poder decisório no referido procedimento de emissão do cartão de acesso e sendo da exclusiva responsabilidade do trabalhador o preenchimento dos requisitos e pressupostos de elegibilidade necessários à emissão e manutenção do referido cartão.
27.º - A questão do cartão não é meramente dependente dos factos alegados pelo A., pelo que Tribunal a quo não podia ter deixado de atender ao regime legal e regulamentar aplicável.
28.º - O A. entregou o cartão de identificação aeroportuária e a certificação de condução n.º (…) em 24/09/2018, enquanto se encontrava de baixa médica, situação que se manteve até Julho de 2019, deixando de ter acesso às áreas restritas e reservadas do Aeroporto de Lisboa, tendo nesse período sido notificado do despacho de acusação em Julho de 2017 no processo crime que identificou.
29.º - Assim, e por força das regras legais e regulamentares aplicáveis, o A. viu-se impedido de aceder ao local de trabalho para executar as tarefas inerentes à categoria profissional de Operador de Assistência em Escala (OAE) e para as quais foi contratado, o que o A. confessou na petição inicial (artigo 16.º da p. i.), confissão que o Tribunal a quo nem ponderou.
30.º - Os postos de trabalho inerentes à categoria profissional de OAE localizam-se exclusivamente nas áreas restritas e reservadas do Aeroporto, como resulta do descritivo funcional, pelo que a execução da actividade do A. está necessariamente condicionada à titularidade do cartão de acesso àquelas áreas restritas e reservadas, que sabia ser da responsabilidade da (…).
31.º - Por outro lado, o cartão de acesso às áreas restritas e reservadas do aeroporto é um verdadeiro título profissional, determinando a sua falta a impossibilidade de o mesmo exercer as funções de Operador de Assistência em Escala.
32.º - A proibição de acesso às áreas reservadas e restritas do Aeroporto, constituiu uma impossibilidade objectiva de a R. poder receber a prestação de trabalho do A. e de este a poder prestar, situação a que a R. foi alheia, encontrando-se o contrato de trabalho suspenso por facto imputável ao trabalhador, razão pela qual a R. não tem que pagar retribuições, o que o Tribunal a quo não podia deixar de conhecer por resultar da aplicação da Lei com factos alegados pelo próprio A.
33.º - A R. não cometeu qualquer ilícito ou violou qualquer direito do A., uma vez que não é ela que impede o acesso às áreas restritas e reservadas do Aeroporto de Lisboa, sendo que não há disponíveis outros postos de trabalho que pudessem ser ocupados pelo A., mas que a existirem implicaria uma reclassificação e mudança de categoria do A., quando não detém qualificações e competências para tal, sendo que tais qualificações nem se quer forma alegadas, tal como não foi alegado que existissem outros postos de trabalho vagos.
34.º - Ainda que tal fosse possível, nem por isso a R. estaria obrigada a encontrar outras funções ou outro posto de trabalho para o A., pois não existe qualquer disposição legal, ou convencional, que imponha uma modificação objectiva do contrato de trabalho.
35.º - Verificada que seja a cessação ou não renovação definitiva do cartão de acesso não poderá a R. deixar de fazer operar a caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade absoluta e superveniente de prestação laboral por parte do A.
36.º - A R. não violou qualquer direito do A., nomeadamente o direito de ocupação efectiva, não praticou qualquer acto de assédio moral ou outro, sendo que não foram alegados nem ficaram provados factos nesse sentido.
37.º - Foi contra legem e o contrato que o Tribunal a quo proferiu decisão que pretende obrigar a R. a encontrar para o A. um outro posto ou função que não implique a utilização do cartão retirado ao A., penalizando assim a R. por uma conduta de terceiro, pelo que jamais podia ter a R. sido condenada a 'reintegrar o autor AAA na função para que foi contratado ou noutra que não implique a titularidade do cartão'.
38.º - A R. nada deve ao A., seja a que título for, pois não havendo prestação de qualquer actividade a favor da R., não tem o A. direito a receber qualquer contrapartida remuneratória, qualquer que seja o seu título, sendo que nesse aspecto nem foi alegada factualidade suficiente, e a decisão abrange até períodos em que o A. tinha o seu contrato de trabalho suspenso atenta a situação de baixa médica prolongada.
39.º - Também não foram alegados factos, logo não está provado, que demonstrassem que a R. tivesse praticado actos ilícitos ou culposos passíveis de causar no A. quaisquer danos pessoais, sendo que os parcos factos alegados jamais justificam a valoração do dano moral na quantia fixada, ainda por cima quando da sentença em crise não resulta qualquer fundamentação para tal.
40.ª - O ónus da alegação e da prova eram do A., não podendo o Tribunal a quo ter desconsiderado tais exigências em relação aos pedidos na sentença ora em crise, pelo que os pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais deviam ter sido julgados improcedentes.
41.º - Assim, e para além das outras normas violadas a que já se aludiu, a sentença em apreço violou ainda o disposto, entre outros, nos art.ºs 57.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, no art.º 607.º do Código de Processo Civil, e nos art.os 496.º, n.os 1 e 3, 563.º, 564.º, n.º 1, e 566.º do Código Civil, que deveriam ter sido interpretados e aplicados nos sentidos supra expostos".
O autor não contra-alegou.
A apelante prestou caução, por depósito autónomo, tendo em vista que fosse atribuído efeito suspensivo à apelação.
De seguida, a Mm.ª Juiz proferiu o seguinte despacho:
"Por estar em tempo, a decisão ser recorrível, ter sido requerido por quem tem legitimidade, paga a taxa de justiça devida e prestada a caução requerida, admito o recurso da sentença interposto pela R. para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Subam os autos ao Tribunal Superior, pelo seguro do correio".
Foi determinado que os autos fossem com vista ao Ministério Público,[1] o que foi feito, tendo nessa sequência o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da decisão ser confirmada.
Apenas a apelante respondeu ao parecer do Ministério Público, dando por reproduzido o que se alegou na alegação de recurso.
Foi determinado que os autos baixassem à 1.ª Instância para que ali fosse emitida pronúncia sobre a arguida nulidade processual, o que foi feito e, por fim, foi a mesma indeferida.
A recorrente manteve o alegado de recurso e requereu a remessa dos autos a esta Relação.
Colhidos os vistos,[2] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, sem prejuízo embora de se dever atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[3] E tendo baixado os autos e a Mm.ª Juiz a quo negado que se verificasse a nulidade invocada, cumpre disso conhecer.
Assim, no presente importa apreciar se:
i. a nulidade decorrente do despacho que antecede a sentença e o posteriormente processado, por constituir uma decisão surpresa e assim violado o princípio do contraditório;
ii. a nulidade por consistir na prática de um acto ilegal, já que decorria o prazo para a ré contestar;
iii. a caducidade do contrato em face da proibição do apelado aceder às áreas reservadas e restritas do Aeroporto por impossibilidade absoluta e superveniente de prestação laboral por parte do apelado, em virtude do mesmo não dispor de cartão da entidade emissora que a tal o autorize;
iv. a suspensão do contrato de trabalho e o princípio constitucional do direito ao trabalho;
v. o direito do apelado a receber retribuição não tendo prestado trabalho;
vi. os danos morais.
***
II - Fundamentos.
1. O despacho pré-sentencial:
"A presente acção não tem natureza urgente.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, ao abrigo do disposto no seu art.º 7.º, suspenderam-se os prazos processuais em curso para a prática de actos processuais com efeitos a partir de 09/03/2020 (art.º 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04).
Em audiência de partes realizada a 11/03/2020, por acordo das partes foi suspensa a instância pelo período de 40 dias (art.º 272.º, n.º 4, do CPC), após o qual se iniciaria a contagem do prazo de 10 dias para dedução da contestação.
A suspensão da instância, importando a paralisação da instância durante o período fixado (a suspensão da instância não se traduzindo num prazo para a prática de acto processual tem efeitos imediatos, não estando coberta pelo art.º 7.º, n.º 1, daquela Lei), determina o não início de qualquer prazo abrangido, nesse momento, pela suspensão do prazo (já não da instância), ao abrigo daquele art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03.
Pois bem:
Face ao acordo das partes, a instância esteve suspensa até ao dia 20/04/2020.
Após essa data, o prazo para dedução da contestação que se iniciaria a 21/04/2020, fica suspenso (desde o início, ao abrigo do art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020) até 03/06/2020 (data da entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29/05, atento o disposto no seu art.º 10.º), iniciando-se nesta data a sua contagem.
Ora, até à presente data, não foi deduzida pela R. qualquer contestação".[4]
2. A sentença:
"I. RELATÓRIO.
(…)
Devidamente notificada, a R. não contestou os factos, pelo que, em conformidade com o disposto no artigo 57.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, julgo confessados os factos articulados pelo A.
*
II. SANEAMENTO.
O Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade.
Não existem excepções dilatórias ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO.
Enquadramento Jurídico:
Atenta a manifesta simplicidade da causa e o disposto no n.º 2 do artigo 57.º, do Código de Processo do Trabalho, adiro aos fundamentos articulados pelo A. e, com base na sua alegação de facto e de Direito, cumpre condenar a R. nos pedidos por aquele formulado.
*
IV. DECISÃO.
Nestes termos, julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno ao Ré BBB, a:
a) pagar ao Autor AAA a quantia total de € 15.791, 05 (Quinze Mil Setecentos e Noventa e Um e Cinco Cêntimos.), sendo 7.791,05 € (Sete Mil Setecentos e Noventa e um Euros e Cinco Cêntimos) a título de danos patrimoniais e 8.500, 00 € (Oito Mil e Quinhentos Euros), a título de danos não patrimoniais., aos referidos valores acrescem juros de mora á taxa legal;
b) reintegrar o autor AAA na função para que foi contratado ou noutra que não implique a titularidade do cartão em causa nos presentes autos emitido pela PSP.
*
Valor da acção: 15.791,05 €, nos termos do disposto no art.º 297.º, n.º 1, do CPC, ex vi  art.º 1.º, n.º 2, a), do CPT.
*
Custas a cargo da Ré, nos termos do disposto no art.º 527.º, do CPC.
*
Face ao decidido, dou sem efeito a realização de julgamento.
*
Notifique e registe".
3. O direito.
3.1 Vejamos então se o despacho e a consequente sentença feriram o princípio do contraditório por não ter sido dado oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a verificação do prazo da contestação sem que tivesse sido apresentada.
Conforme referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no Código de Processo Civil, Anotado, volume 1.º, 3.ª edição, Almedina, 217, página 9, "no plano das questões de direito, é expressamente proibida, desde a revisão do CPC de 1961, a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado (…). Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre elas se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra". Ou seja, conforme sublinha Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, 2018, Almedina, volume I, página 39, "com o desenvolvimento do processo, cada parte ‒ independentemente da sua posição originária e genética de autor e de réu ‒ pode pronunciar-se previamente sobre cada acto que a afecte (proibição da indefesa)".
Assim sendo, está claro que ao decidir que se verificara o prazo da contestação apresentada pela ré ora apelante sem previamente ter ouvido as partes acerca dessa questão, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório acolhido pelo n.º 3 do art.º 3.º do Código de Processo Civil, isto porque salta à evidência que sobre essa questão ainda não tinham tido oportunidade de se pronunciar no processo.
Ora, tal como assumido por todos no processo, a violação do princípio do contraditório é uma nulidade secundária ou processual, sujeita ao regime do art.º 195.º e 199.º do Código de Processo Civil e assim também sido consensualmente considerado pela doutrina[5] e pela jurisprudência;[6] todavia, estando coberta por despacho, como está no caso sub iudicio, pode ser atacada por via de recurso.[7]
Deste modo, não tendo a nulidade sido reparada restaria agora revogar o despacho recorrido e, consequentemente, também a sentença que o pressupõe.
Notificada do despacho da Mm.ª Juiz proferido acerca da nulidade requereu, sem oposição da parte contrária, a subida da apelação tal qual estava. Não obstante, pelas razões que a final se perceberão, daí se não retirarão todas as consequências pois que isso iria manifestamente redundar numa perda de tempo, o que se pretende seja evitado, com o necessário respeito pela posição assumida pela apelante no processo.
3.2 Tendo em conta o atrás referido e uma vez que se pode conhecer desde já da questão ainda em dissídio, vale dizer, da tempestividade da contestação ou da falta dela, será isso que se fará de seguida.
Por despacho proferido pela Mm.ª Juiz a quo na audiência de partes realizada que teve lugar no dia 11-03-2020 a instância foi declarada suspensa por requerimento das partes tendo em vista pôr termo ao conflito.
O art.º 7.º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 1.º da Lei n.º 14-A/2020, de 6 de Abril, estatui que "sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de actos processuais … que corram termos nos tribunais judiciais … ficam suspensos até à cessação da situação excepcional de prevenção … a decretar nos termos do número seguinte", produzindo efeitos esta norma desde o dia 09-03-2020 (art.º 6.º, n.º 2 deste último diploma), ou seja, antes da suspensão da instância determinada judicialmente.
Entretanto, o art.º 7.º da Lei n.º 7-A/2020, de 19 de Março foi revogado pelo art.º 8.º da Lei n.º 4-A/2020, de 29 de Maio, a qual entrou em vigor no quinto dia posterior ao da sua publicação, o que, como salientou o acórdão da Relação de Coimbra, de 29-01-2021, no processo n.º 537/20.5T8LMG.C1, publicado em http://www.dgsi.pt, teve por "consequência que a suspensão de prazos ali regulados deixou de produzir efeitos a partir de 03-06-2020".
Ora, se é certo que nada obsta a que a mesma instância seja suspensa por causas diversas, porquanto diversas são as causas que tal podem determinar, como reconheceu o acórdão da Relação do Porto, de 05-11-2020, no processo n.º 19228/19.3T8PRT.P1, publicado em http://www.dgsi.pt, sendo o prazo da suspensão da instância legal anterior e superior ao da suspensão ditada ope judicis, naturalmente que se manteve por esse período.
Assim, as causas de suspensão da instância não concorrem no tempo, como sustenta a apelante, primeiro decorrendo a legal e depois a judicial, até porque aquela (a lei) por definição se sobrepõe a esta (a vontade das partes). Poderia ser esse o caso, sim, se as partes sabendo da suspensão legal tivessem requerido a suspensão judicial para vigorar num tempo posterior ao da lei, mas isso não poderia ter ocorrido uma vez que o despacho que a determinou foi proferido antes dela ter sido publicada, nem de resto ocorreu, anterior ou posteriormente a isso pois que nada disseram no processo, podendo tê-lo feito fosse essa a sua vontade.
E assim sendo, mesmo admitindo que o prazo da suspensão legal se suspenderá durante as férias judiciais, o que sem mais se admite por necessidade de raciocínio,[8] a verdade é que o prazo de 10 dias para a apelante ré contestar a acção[9] se iniciou no dia 03-06-2020 e se verificou no dia 13-06-2020; e porque esse dia foi Sábado, transferiu-se para o dia 15-06-2020,[10] embora afinal sempre pudesse contestar, pagando multa, até ao dia 18-06-2020.[11]
Porém, tendo contestado no dia 04-09-2020, fê-lo depois da verificação do prazo que para isso dispunha, pelo que nesta parte nada há a apontar em desabono da decisão a esse propósito proferida pela Mm.ª Juiz a quo.
3.3 Vejamos agora se, como pretende a apelante, mesmo considerando os factos provados, ocorreu a caducidade do contrato em face da proibição do apelado aceder às áreas reservadas e restritas do Aeroporto, por impossibilidade absoluta e superveniente da prestação laboral por parte do apelado que para o efeito não dispõe de cartão da entidade emissora que a tal o autorize.
O Código do Trabalho estabelece no art.º 340.º que "para além de outras modalidades legalmente previstas, o contrato de trabalho pode cessar por: a) Caducidade" e no art.º 343.º que "o contrato de trabalho caduca nos termos gerais, nomeadamente: (…) b) Por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber".
Como é sobejamente conhecido nos autos, a apelada não contestou e isso levou a que a Mm.ª Juiz a quo, convocando o disposto no n.º 1 do art.º 57.º do Código do Trabalho, tivesse julgado confessados os factos articulados pelo apelado.
Entre os factos alegados pelo apelado autor e, por conseguinte, provados, contam-se os seguintes:
"2.º A categoria profissional do ora autor é operador de rampa e terminais.
(…)
4.º O autor foi alvo de um processo disciplinar, o qual foi arquivado.
5.º Esteve cerca de três anos de baixa psiquiátrica tendo esta terminado a dia 14 de Julho de 2019.
6.º Tendo o autor regressado ao trabalho no dia 15 de Julho de 2019, conforme carta de apresentação ao serviço enviada a Exma. Senhora Dr.ª (…) da Direcção de RH - Gestão de pessoas, da ora R. (…).
7.º Regressou de férias no dia 19 de Agosto de 2019, o que se prova através do e-mail enviado ao director de recursos humanos da ora Ré (…).
8.º Tendo após essa data o contrato de trabalho sido suspenso.
(…)
10.º Na sequência do processo disciplinar de que foi alvo, o autor procedeu à entrega do supra citado cartão de identificação Aeroportuário e Certificação de Condução com o n.º (…)  válido até 22 de Fevereiro de 2020.
11.º Para fundamentar a referida suspensão do contrato de trabalho, a empresa ora ré alegou o seguinte, em resposta ao pedido do ora autor para que esta solicitasse autorização ao Aeroporto de Lisboa para a emitir o cartão de identificação ora em causa:
'(…)
4. Por carta do Exm.º Senhor Director do Aeroporto de Lisboa ref.ª 693910 datada de 06-09-2019 foi comunicado à SPdH que o pedido de cartão de acesso ao AHD – (…) havia merecido parecer desfavorável por parte da Polícia de Segurança Pública da Divisão Aeroportuária pelo que o mesmo foi indeferido.'
5. Mercê da não renovação do Cartão de Aeroporto, encontra-se V.ª Ex.ª impedido de aceder ao local de trabalho para exercer as tarefas inerentes à categoria de Operador de Assistência em Escala para as quais foi contratado.
6. Atendendo ao descritivo funcional inerente à categoria funcional OAE para a qual foi contratado localizando-se os correspondentes postos de trabalho exclusivamente nas áreas restritas e reservadas do Aeroporto (…)'.[12]
12.º Na base da recusa em solicitar a emissão de novo cartão está o artigo 41.º n.º 5 do decreto lei n.º 142/2019 de 19 de Setembro que dispõe que 'é fundamento bastante para não atribuição de autorização de acesso às zonas restritas de segurança, entre outras razões devidamente fundamentadas:
a) O facto de o candidato ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime doloso contra o património ... ou de qualquer outro crime doloso punido com pena de prisão superior a 3 anos'.
13.º O autor encontra-se indiciado de um crime de receptação p. p. pelo artigo 231.º n.º l do CP, no processo n.º 7006/15.3P8LSB, que corre os seus termos, no Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 1, a dedução da acusação no processo supra identificado teve lugar a 04-07-2017".
Tendo em conta que "a categoria profissional do ora autor é operador de rampa e terminais" e o disposto nos art.os 3.º, alíneas f) e hh), 7.º, n.º 1, alínea r), 22.º, n.º 1, alíneas b) e e), 32.º, n.º 2, alínea c), 41.º, n.os 1 e 5, alínea a) e 42.º, n.º 1, alíneas a) e c) iii) do Decreto-Lei n.º 142/2019, de 19 de Setembro, não restam dúvidas de que para cumprir a prestação a que contratualmente se vinculou para com a apelante o apelado necessita de ser titular de um cartão que o habilite a aceder ao "lado ar" do aeroporto, que a sua emissão é da responsabilidade da ANAC, precedida de parecer favorável da PSP; sendo certo que "a proibição imposta ao autor de aceder a determinado espaço reservado no Aeroporto de Lisboa não tem a ver com as suas aptidões profissionais como Técnico Assistente em Escala, tem unicamente a ver com critérios de segurança do Aeroporto de Lisboa".[13]
Porém, o certo é que o apelado não dispõe actualmente desse cartão porque o entregou quando deixou de temporariamente necessitar do mesmo e o pedido de um novo feito pela apelante foi indeferido pela autoridade emissora, perante o parecer negativo da Polícia de Segurança Pública da Divisão Aeroportuária.
Assim e conforme a apelante lhe comunicou, atendendo ao descritivo funcional inerente à categoria funcional de OAE para a qual fora contratado e localizando-se os correspondentes postos de trabalho exclusivamente nas áreas restritas e reservadas do Aeroporto, está o mesmo impedido de o exercer, vale dizer, impossibilitado de cumprir a sua prestação (exercer as tarefas a que pelo contrato se obrigou) uma vez que a "impossibilidade para prestar o trabalho depende da prévia delimitação da prestação laboral cuja viabilidade de execução se discute";[14] diferentes seriam as coisas se as funções para que o apelado foi contratado também pudessem ser exercidas no "lado terra", situação que por vezes se verifica,[15] mas não no caso sub iudicio.
É certo que o parecer da Polícia de Segurança Pública e a consequente recusa da autoridade competente em emitir o cartão poderão não ter suporte legal, pois que se é verdade que o apelado foi acusado da prática de um crime de receptação previsto e punível pelo artigo 231.º n.º 1 do Código Penal, também não deixa de ser evidente que isso não equivale a uma condenação e, muito menos, transitada em julgado (de resto, como qualquer arguido presume-se inocente até que eventualmente tal venha a ocorrer, ex vi do no n.º 2 do art.º 32.º da Constituição da República).
Mas isso não muda os termos da questão, já que, como está bem de ver e resulta do que atrás já se referiu, enquanto subsistir (e nada nos diz que assim será em definitivo, tendo em conta a sua motivação) não poderá a apelante (nem o apelado) sobrepor a sua vontade à da autoridade emissora do cartão; o mesmo devendo dizer-se relativamente à circunstância invocada pelo apelado na petição inicial da suspensão colocar em causa o principio da igualdade por virtude de existir um trabalhador que desempenha a mesma função e tem a mesma categoria profissional que a sua e foi condenado por um crime doloso de pena superior a três anos e tem acesso ao cartão que lhe permite desempenhar a função para que foi contratado, pois que a desigualdade verificar-se-á, sim, mas a montante da relação laboral: como vimos atrás, trata-se de uma decisão da competência legal de terceiro e não da apelante, que a não pode contrariar.
A questão que em face disso a apelante coloca e pretende ver declarada é a de saber se o contrato de trabalho afinal caducou. Mas a verdade é que dela se não pode conhecer na presente apelação, como veremos.
Com efeito, o Código de Processo Civil estabelece no art.º 627.º que "1. As decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos" e no 635.º que "2. Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre" e que "4. Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso".
Com fundamento nisso, vem sendo pacificamente considerado pela jurisprudência, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, que "não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação";[16] em consonância, diga-se, com a generalidade dos ensinamentos doutrinais que vêm sendo produzidos.[17]
Ora, é precisamente porque só agora na apelação a apelante colocou a questão da caducidade do contrato de trabalho e não antes perante o Tribunal recorrido, desde logo porque contestou fora de tempo, não teve o mesmo oportunidade de sobre ela se debruçar e proferir decisão, para dela a apelante poder recorrer, que se concluiu não ser admissível conhecer desta questão.
Em todo o caso, mesmo que assim não fosse, o que se admite por necessidade de raciocínio, o certo é que resultou provado que em virtude da autoridade competente ter recusado emitir o cartão para o apelado poder aceder ao "lado ar" do Aeroporto a apelante considerou que o contrato de trabalho se suspendeu; e, por conseguinte, não é admissível a apelante dizer, só agora, que o mesmo caducou, provavelmente porque até então (vd. a sua resposta que constitui o documento n.º 5 atrás referido) não considerou a impossibilidade do apelado prestar trabalho como sendo definitiva mas e até ver apenas temporária (caso venha a ser absolvido da acusação que sobre ele impende, verbi gratiæ). E como a este propósito, refere Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Princípia, 2017, páginas 74 e seguinte: "Assim, para que se opere a caducidade do contrato de trabalho, é necessário que a situação de impossibilidade seja: (…) definitiva, uma vez que a impossibilidade temporária não extingue o vínculo, mas apenas o suspende" (em consonância, diga-se, com o estatuído pelo art.º 296.º, n.os 1 e 3 do Código do Trabalho).
Em todo o caso, estando o contrato de trabalho suspenso, assim se manterá até que o apelado obtenha o cartão de acesso ao "lado ar" do Aeroporto de Lisboa ou opere a sua caducidade. Mas por isso mesmo não pode manter-se a sentença na parte em que decidiu condenar a apelante a reintegrar o apelado na função para que foi contratado.
O mesmo ter-se-á que dizer relativamente ao pedido de reintegração noutra que não implique a titularidade do cartão em causa nos presentes autos pois que, como vimos já, não foi contratado para exercer outras funções que não aquelas. É que, como refere Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Princípia, 2017, página 77 e seguinte, a "…impossibilidade para prestar trabalho depende da prévia delimitação da prestação laboral cuja viabilidade de execução se discute. Não está em causa saber se o trabalhador tem capacidade para desempenhar uma qualquer actividade profissional por conta de outrem, mas sim determinar se lhe é possível realizar a prestação contratual a que se obrigou. A impossibilidade de execução da prestação reporta-se pois à actividade contratualmente devida, àquele conjunto de tarefas ou género de trabalho que é delimitado através da categoria profissional".
3.4 Assente embora que o contrato de trabalho se suspendeu (e não caducou), ainda assim não é legítimo pretender, como o apelado, que tal suspensão colide com o princípio geral do direito ao trabalho, consagrado pelo artigo 58.º da Constituição da República. É que se é verdade que essa norma institui um direito fundamental dos trabalhadores, naturalmente que não garante a todos um posto de trabalho ou o exercício de todas as profissões e em todas as circunstâncias, independentemente, portanto, das regras ditadas pela ciência ou segurança exigidas para cada uma delas.
3.5 Por outro lado, decorre da suspensão do contrato de trabalho que o trabalhador não tem direito à retribuição quando não presta trabalho (rectius, quando se não disponibiliza para o prestar, podendo fazê-lo); é que sendo neste sentido a contrapartida do trabalho pressupõe, naturalmente, a sua prestação.[18]
Ora, no caso sub iudicio o apelado trabalhador não cumpriu a prestação a que se obrigou para com a apelante e isso por facto que lhe diz respeito.
Assim sendo, não há razão para condenar a apelante no pagamento ao apelado da quantia por ele pedido na acção a esse título.
3.6 Por fim, não tendo resultado provado que a apelante praticou qualquer acto ilícito,[19] também não pode prevalecer a sua condenação por danos morais causados ao apelado.
Ou seja, sendo inquestionável que está provado que "20 Devido ao facto de se encontrar impedido de desempenhar a sua profissão o autor encontra-se desgostoso e isolado" e que "21. Esta situação tem um forte impacto na sua vida quotidiana e no seu relacionamento inter-social com as outras pessoas, provocando-lhe graves problemas a nível psicológico, encontrando-se a ser seguido em consultas de psiquiatria (...) sendo que as consultas  ora em causa tiveram inicio no dia 07-02-2017 (…)", tal qual decidiu a sentença recorrida, a verdade é que já não está demonstrado que aquela causa destes danos constitua um acto ilícito praticado pela apelante.
Daí que também nesta parte se deva conceder a apelação e, em consequência, revogar, in totum, a sentença recorrida e absolver a apelante de todos os pedidos contra ela formulados pelo apelado na acção.
***
III - Decisão.
Termos em que se acorda conceder provimento à apelação e, em consequência, revogar a sentença recorrida e absolver a apelante de todos os pedidos contra ela formulados na acção pelo apelado.
Custas pelo apelado (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
*
Lisboa, 28-04-2021.
António José Alves Duarte
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
_______________________________________________________
[1] Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[2] Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[3] Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[4] Por despacho proferido no dia 09-09-2020, notificado às partes, o Mm.º Juiz a quo rectificou a data de 03-05-2020, que era a originalmente ali referida no parágrafo antecedente, considerando tratar-se de mero erro de escrita.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit. página 10 e Rui Pinto, ob. cit. página 40.
[6] Neste sentido, pode ver-se, inter alia, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-07-2015, no processo n.º 2641/13.7TTLSB.L1.S1 e de 30-03-2017, no processo n.º 135/11.4TTCSC.L1.S1, publicados em http://www.dgsi.pt.
[7] A este propósito, Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1945, página 507, Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, volume III, 1982, página 134 e os acórdãos da Relação de Lisboa, de 11-01-2011, no processo n.º 286/09.5T2AMD-B.L1-1e de 15-01-2013, no processo n.º 1387/12.8TVLSB.L1-7, publicados em http://www.dgsi.pt.
[8] Como decidiu o acórdão da Relação de Coimbra, de 17-01-2020, no processo n.º 2200/19.0T8CBR-A.C1, publicado em http://www.dgsi.pt, citado pela apelante, "o prazo dilatório de suspensão da instância fixado pelo tribunal a requerimento das partes está sujeito à regra de suspensão em férias judiciais e respectivas excepções consagradas no art.º 138.º/1 do NCPC".
[9] Art.º 56.º, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.
[10] Art.os 279.º, alínea e) do Código Civil e 138.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[11] Art.º 139.º, n.º 5, alínea c) do Código de Processo Civil.
[12] O art.º 11.º da petição inicial diz exactamente o seguinte: "Para fundamentar a referida suspensão do contrato de trabalho, a empresa ora ré alega o parecer desfavorável do Aeroporto de Lisboa em solicitar a emissão de um novo cartão de identificação Aeroportuário e Certificação de Condução, à PSP, o que se prova através da resposta da ré ao pedido do ora autor para que esta solicitasse autorização ao aeroporto de Lisboa para a emissão do cartão de identificação ora em causa (doc. 5) que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos". Uma vez que o documento n.º 5 junto com a petição inicial foi dado por reproduzido pelo apelado autor, isso tivemos em conta para a consideração do facto provado.
[13] Acórdão da Relação de Lisboa, de 06-11-2019, no processo n.º 21636/18.8T8LSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt.
[14] Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Princípia, 2017, página 77.
[15] Como por exemplo no acaso que serviu de mote ao acórdão da Relação de Évora, de 06-04-2010, no processo n.º 131/07.6TTFAR.E1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 07-07-2016, no processo n.º 156/12.0TTCSC.L1.S1; tendo ainda seguido no mesmo sentido, inter alia, nos acórdãos de 14-01-2015, no processo n.º 2881/07.8TTLSB.L1.S1, de 29-09-2016, no processo n.º 291/12.4TTLRA.C1.S2, de 17-04-2018, no processo n.º 1530/15.5T8STS-C.P1.S1, de 10-10-2018, no processo n.º 1082/13.0GAFAF.G1.S1, de 29-09-2020, no processo n.º 909/18.5T8PTG.E1.S1 e, por fim, de 08-10-2020, no processo n.º 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[17] Assim, por exemplo, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em processo Civil, 2009, Coimbra Editora, página 81: "Em Portugal, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida. É especialmente nítida a solução no caso da apelação (…). A jurisprudência tem repetido uniformemente e desde o início da vigência do CPC de 1939 que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova"; e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, página 93: "As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição".
[18] A ideia da correspectividade entre a prestação efectiva da actividade e o pagamento da retribuição resulta de diversas normas do Código do Trabalho, como por exemplo dos seus art.os 11.º ("…uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade…"), 258.º ("…como contrapartida do seu trabalho…) ou 258.º, n.º 1 ("…considera-se retribuição a prestação a que… o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho…").
[19] E por via disso sendo afastada a presunção legal de culpa a que alude o n.º 1 do art.º 799.º do Código Civil.