Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
301/18.1T8ORM.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: VENDA DE BENS PARA CONSUMO
DESVALORIZAÇÃO DA COISA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I– Em consequência da resolução do contrato de venda de bens para consumo, a coisa volta a ser do vendedor e este fica constituído na obrigação de restituir o preço da compra.

II– A eventual desvalorização da coisa, por via de um uso prudente e regular, não implica, só por si, a diminuição do preço a restituir (art. 1269 do CC, por maioria de razão), tal como o vendedor não será obrigado a acrescentar juros de mora à restituição do preço enquanto não for interpelado para a restituição (art. 1270/1 do CC).

III– Nos casos em que a desvalorização da coisa, por via da utilização dela pelo comprador, for de ter em conta para diminuir o valor da restituição, também terão de ser tidos em conta, para aumentar aquele valor, por força do princípio da reciprocidade e da equivalência das prestações, os frutos que o preço produziu ou podia produzir até à sentença.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:


A intentou a presente acção comum contra R-SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 3.890€ a título de danos patrimoniais e 1.500€ a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros moratórios desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em suma, que em 09/04/2016 adquiriu à ré um veículo usado que logo apresentou vários problemas e teve de ser sujeito a várias reparações, sem êxito; em Junho de 2017, na sequência de problemas, entregou o veículo nas instalações da ré, que o levou para uma oficina onde ainda se encontra; o autor acabou por adquirir outro veículo e perdeu interesse naquele veículo, pelo que resolveu o contrato.

A ré contestou, excepcionando a caducidade (embora sem a especificar como tal), porque tinha sido acordado o prazo de garantia de um ano que terminou em 09/04/2017. Impugnou parte dos factos e dos documentos apresentados: até aquela data assumiu todas as despesas relativas aos defeitos denunciados e procedeu às reparações. Os danos no veículo, de Junho de 2017, devem-se à actuação do autor. Deduziu reconvenção: caso seja resolvido o contrato e a ré condenada no pagamento de indemnização, deve ser descontado o valor referente à desvalorização do veículo pelo decurso do tempo e dos km efectuados pelo autor no âmbito da utilização da viatura e pelo parqueamento do veículo na oficina.

O autor replicou, impugnando os factos base da reconvenção e das excepções deduzidas.

Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença condenando a ré a pagar ao autor 3.000€ (tendo em conta uma desvalorização de 890€) + 1.000€ de danos morais, acrescidos de juros de mora à taxa legal supletiva civil desde a citação até efectivo e integral pagamento. A reconvenção foi julgada improcedente e o autor absolvido do pedido reconvencional.

A ré recorreu desta sentença, impugnando parte da decisão da matéria de facto, arguindo nulidades da sentença e dizendo que ela tinha violado o art. 5/2 do DL 67/2003.

O autor recorreu subordinadamente, pondo em causa a desvalorização do veículo durante a vigência do contrato; não respondeu ao recurso da ré.
A ré não respondeu ao recurso do autor.
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Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada; se se verificam as nulidades invocadas; se o veículo deve ser restituído sem o desconto de desvalorização.
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Foram dados como provados os seguintes factos que importa para a decisão daquelas questões:
1.–A ré dedica-se, entre outras actividades, ao comércio de veículos automóveis ligeiros.
2.–A ré dispõe de um stand onde expõe e vende veículos automóveis ligeiros […].
3.–No dia 09/04/2016, o autor deslocou-se ao stand da ré, tendo sido atendido pelo vendedor TM, trabalhador ao serviço desta, que lhe mostrou e vendeu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, marca Renault, modelo Laguna, com a matrícula 00-00-AA, do ano 2003.
4.–No dia 09/04/2016, o autor comprou o veículo, tendo pago à ré, em numerário, o preço de 3.890€, ficando com o mesmo em sua posse.
5.–A ré emitiu a respectiva factura no dia 10/05/2016 (documento de fls. 8 dos autos).
6.–Em Abril de 2016, a solicitação do autor, a ré procedeu a reparação do veículo, tendo substituído o turbo, colocado dois pneus novos e reparado o ar condicionado.
7.–Em 28/06/2016, o autor remeteu à ré, que a recebeu, a carta de fls. 8/verso dos autos, cujo teor se dá por reproduzido [conta a sua versão dos factos, exige a reparação dos defeitos – síntese feita por este TRL].
8.–O autor procedeu a reparação do veículo na Renault de L, no valor de 133,68€, em 13/07/2016, cujo valor a ré lhe pagou (documento de fls. 9/verso).
9.–Após 13/07/2016, o autor deixou o veículo nas instalações da ré, a fim de a ré proceder a mudança/reparação de “Disco do travão, 1 uni; Pastilha Trv 040201; Captor; Tampa; Kit suspensão; Substituição de dois discos travão da frente; Verific. Calculadores; Reparação sensor choque lateral; Reparação apoio suspensão Pend. Mot.; Reparação conjunto Filtr Amortece”.
10.–O veículo foi entregue ao autor cerca de duas semanas depois.
11.–Em 26/06/2017, o veículo foi transportado, por reboque, para as instalações da ré (documento de fls. 10/verso).
12.–Após, o veículo do autor foi levado para oficina da C-Lda, local onde ainda hoje se encontra.
13.–O autor adquiriu um veículo em 16/02/2018 (documento de fls. 66).
14.–Em Junho de 2017, o autor detectou que o carro começou a fazer um barulho anormal.
15.–Em Junho de 2017, o autor contactou a ré, tendo informado que o carro se encontrava a fazer um barulho anormal e foi aconselhado pelo funcionário que o atendeu para imobilizar o referido veículo e chamar a assistência.
16.–No dia 26/06/2017, o autor decidiu levar o veículo para as instalações da ré.
17.–No trajecto realizado para o efeito entre T e F, no IC9, o carro parou, ficando imobilizado.
18.–A C-Lda, apresentou orçamento no valor de 1.000€ para a reparação do veículo.
19.–O autor enviou à R carta registada a indicar o prazo de quinze dias para devolução do pagamento de 3.890€ e resolução do contrato ou a reparação da viatura, conforme documento de fls. 11 e 12, cujo ter se dá por reproduzido [a 16/08/2017 – conforme se pode confirmar no carimbo do registo da carta: acrescento feito por este TRL tendo em conta que o documento foi dado por reproduzido].
20.–O mandatário do autor enviou à ré carta registada com aviso de recepção, datada de 07/02/2018, a resolver o contrato de compra e venda do veículo 00-00-AA, solicitando a devolução, no prazo de 15 dias, do preço pago pelo mesmo, carta que não foi recebida pela ré, constando do verso do envelope a informação aposta pelos CTT “não atendeu… a pedido do cliente” (documentos de fls. 12/v.º a 15).
21.–O veículo foi sujeito a inspecção periódica em 09/01/2016, apresentava 216.836 km, inexistindo anotação de deficiências (documento de fls. 34/v.º).
22.–O veículo foi sujeito a inspecção periódica em 17/02/2017, apresentava 234.163 km, inexistindo anotação de deficiências (documento de fls. 100).
23.–O veículo automóvel Renault Laguna com a matrícula 00-00-AA apresentava, em Novembro de 2019, diversos defeitos/avarias: ausência de componentes no motor, nomeadamente cabeça do motor, sistema de injecção, entre outros; motor parcialmente desmontado; ausência do comutador do vidro eléctrico da porta do condutor e do botão de accionamento dos espelhos retrovisores; ausência do comutador do vidro eléctrico da porta traseira direita; ausência da capa protectora da fechadura exterior da porta do condutor; banco do condutor com um furo; banco dos passageiros traseiro sem fixação no lado esquerdo (“solto”); faróis dianteiros opacos e foscos; escova traseira totalmente ressequida; escova do limpa pára-brisas totalmente ressequida; disco(s) de travão e pastilhas com elevado índice de corrosão; travões bloqueados; danos na pintura lateral direita; danos na pintura lateral esquerda; pneu dianteiro esquerdo sem ar (relatório pericial de fls. 169 a 174).
24.–Em Novembro de 2019, o veículo apresentava 238.997 km (relatório pericial de fls. 169 a 174, nomeadamente fls. 169/v.º).
25.–O autor teve de pedir emprestado o veículo de familiar.
26.–O autor ficou perturbado com esta situação.
27.–O autor teve dificuldades em dormir.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto

A ré entende que devem dar-se como provados os seguintes afirmações de facto que a sentença recorrida considerou não provadas: 
D:O autor acordou verbalmente com a ré a garantia de um ano, tendo em conta que o veículo era de 2003, portanto, usado, e o normal desgaste do mesmo pelo seu uso, bem como o desconto de 1.000€ no valor do preço.
E:O período de garantia acordado entre as partes terminou no dia 09/04/2017.
F:O autor continuou a conduzir após a data em que verificou as alegadas anomalias, durante mais de 4 meses, aumentando assim exponencialmente a gravidade da situação, provocando danos graves e irreparáveis no motor e muito mais oneroso.
G:Em 26/06/2017, a ré informou o autor que não assumiria os custos da reparação do veículo, uma vez que o prazo de garantia tinha terminado, e propôs ao autor levar a viatura para a oficina da C-Lda, para averiguação dos danos do referido veículo e do respectivo orçamento da reparação dos mesmos, o que o autor aceitou.
H:Na oficina da C-Lda, verificou-se que os danos causados no veículo, no motor, tinham sido causados por negligência do autor.
No corpo das alegações também refere a afirmação I, mas não a reproduz nas conclusões.

Para o efeito invoca na íntegra as declarações de parte da ré (através do seu gerente) e o depoimento das suas testemunhas TM e TS, mas depois transcreve, apenas, passagens das declarações de parte e do depoimento da testemunha TM. E invoca ainda o documento com a informação ao autor de que o prazo de garantia era de um ano, apesar do mesmo não ter assinado tal documento. Tanto assim é, acrescenta, que era este o procedimento adoptado pela ré nas negociações e vendas de carros usados. Mais, diz, dos documentos juntos, nomeadamente da ficha de inspecção, o veículo em discussão nos presentes autos tinha sido submetido à inspecção periódica no dia 09/01/2016, não tendo apresentado quaisquer anomalias.

Na sentença recorrida, consta a seguinte fundamentação que importa à apreciação da prova daquelas afirmações:
“[…]
O doc.3 junto com a contestação, a fls. 35 dos autos, não demonstra que tenha sido acordada entre as partes a garantia de um ano. O documento não se mostra assinado pelo comprador/autor. A circunstância de ser a prática adoptada pela ré e/ou ser comunicado aos compradores que a garantia era de um ano (como referido pelas testemunhas AS, TM, TS) não configura um acordo entre vendedor e comprador, tratando-se de uma imposição unilateral e, acrescente-se, ilegal. Assim, tal factualidade não se considera provada.
[…]
AT, casada com o autor, esteve presente na aquisição do veículo. Não foi referido pelo vendedor qualquer alteração da garantia do veículo. […] A ré levou o veículo para a oficina C-Lda mas só informou o autor posteriormente. O autor passou noites sem dormir e ficou muito enervado com a situação. […] Pese embora a expectável parcialidade da testemunha, esta mostrou-se sincera, ainda que por vezes mais emotiva, o que é compreensível. O seu relato mostrou-se verosímil e consistente e as suas declarações foram atentadas.
[…]
JC, dono da oficina C- Lda, onde se encontra o veículo. A ré enviou o veículo para a oficina, por reboque. Após consultar documentos que trazia consigo, referiu que a folha de obra era de 13/07/2017. O motor do veículo estava gripado e a reparação não se justificava devido ao valor, de cerca de 1000€; não teve indicação para fazer a reparação. Desconhece a causa do problema, que pode dever-se a várias circunstâncias, sendo certo que a testemunha não foi ouvida como perito. A testemunha mostrou-se sincera e espontânea.
AS, administrativa na ré, recordava-se da situação e que a ré solucionou problemas do veículo vendido ao autor. Referiu que em veículos (usados) com mais de cinco anos é dado um ano de garantia, mas não assistiu às concretas conversas do vendedor com o autor. Recordava-se que no início de Junho (de 2017) terá havido um telefonema do autor a dizer que o carro fazia barulho e o colega disse para o enviar no reboque, o veículo chegou uma ou duas semanas depois, após ter parado no caminho para as instalações da ré. A ré não assumiu os custos da reparação. A viatura foi enviada para uma empresa externa, a C-Lda, que fez o diagnóstico. A testemunha não negociou com o autor, não falou com o autor quanto à garantia, não falou com o autor quanto aos problemas do veículo nem quanto ao barulho do motor. Não presenciou directa e pessoalmente os factos quanto aos quais depôs, as suas declarações foram opinativas e parciais e não foram atentadas.
TM, foi colaborador da ré, não se recordava do concreto negócio com o autor. Referiu que a prática adoptada era atribuir a garantia de um ano aos veículos usados com mais de cinco anos. Outras questões, relativas aos documentos e demais formalidades, eram com o serviço de pós venda. Mostrou-se espontâneo e sincero.
TS, trabalha para a ré, falou com o autor algumas vezes por problemas com o veículo que tinha sido vendido. Declarou que a ré tem a política de dar um ano de garantia nos veículos usados; desconhece o que foi conversado ou dito ao autor. Recordava-se de o autor ter ligado a dizer que o veículo fazia barulho, disse-lhe para parar e chamar a assistência. O veículo não chegou às instalações da ré nesse dia, nem dois ou três dias depois. A testemunha mostrou-se, no essencial, sincera e colaborante; no entanto, quanto à situação do barulho do motor e respectivas datas/lapso temporal, as suas declarações foram pouco concretizadas, pelo que apenas se deu como provado o que consta no facto 15.
O legal representante da ré prestou declarações de parte. Não teve intervenção pessoal nem tinha conhecimento directo quanto aos factos controvertidos quanto aos quais foi perguntado; no mais, mostrou interesse na decisão da causa, como seria expectável, e as suas declarações foram parciais e opinativas. As suas declarações não relevaram.”
*

Apreciação:
A invocação na íntegra das declarações e depoimentos não tem valor, face ao disposto no art. 640/2-a do CPC, pelo que em relação aos 20 minutos do depoimento de TS não há que o considerar. Quanto às declarações de parte, aquilo que a ré transcreve demonstra a correcção daquilo que a sentença recorrida dizia, ou seja, que “não teve intervenção pessoal nem tinha conhecimento directo quanto aos factos controvertidos quanto aos quais foi perguntado.” Conta apenas aquilo que lhe terá sido contado pelos seus empregados – que depois, quando foram ouvidos, no essencial, não confirmaram nada de concreto - ou aquilo que, segundo ele, costuma acontecer, e não o que é que de facto aconteceu. Não tem qualquer valor. Quanto ao depoimento de TM o ponto é ainda – se possível – mais flagrante, visto que a testemunha nem sequer se recorda do negócio como diz expressamente. Quanto ao documento não assinado não vale nada como já foi explicado pela sentença recorrida, pois que a ré nem sequer diz que alguém tenha confirmado alguma coisa quanto a ele, lembrando-se ainda que o vendedor não se recordava do negócio. Quanto aos documentos juntos, a sua referência não tem qualquer valor, por falta de concretização (art. 640/1-b do CPC). Quanto ao documento de inspecção periódica nem sequer tem a ver com estes factos.
Em suma: é manifestamente improcedente a impugnação da decisão de facto.
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Da nulidade da sentença – art. 615/1-b-c-d do CPC

A ré diz ainda (nas conclusões, mas também, sem desenvolvimento, no corpo das alegações):
22)Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão da ré.
23)A Srª juiz do tribunal a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão e a lei proíbe tal comportamento.
24)O tribunal a quo, com a decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos da recorrente, em não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar a as normas legais aplicáveis ao caso em concreto.
25)A Srª juiz a quo limitou-se a emitir uma sentença, na qual apenas de uma forma simplificada e omissiva foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: a)- toda a prova testemunhal produzida em julgamento; b)- toda a prova documental junta pela ré; c) Todos os elementos constantes no processo, deixando a Srª juiz a quo de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas.
26)A Srª juiz a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão, cometendo, também por esse motivo, uma nulidade.
27)A sentença recorrida viola: o disposto nos artigos 154 e 615/-b-c-d do CPC, 13, 20, 202, 204 e 205 da CRP e 5/2 do DL 67/2003, de 08/04.

Apreciação:
Trata-se de uma impugnação em abstracto da sentença misturada com arguição de nulidades da sentença. Servirá – ou melhor: não servirá – para todas e quaisquer sentenças, nada adiantando de concreto. São meras acusações abstractas sem qualquer ponto de contacto com o caso dos autos.
Diga-se, por isso, apenas, que na sentença constam – já foram transcritos – os fundamentos de facto. Os fundamentos de direito da sentença, com indicação das normas aplicáveis, também constam de 4 páginas da sentença e não se reproduzem aqui apenas para evitar repetições desnecessárias, face à total ausência de qualquer tentativa de argumentação do recurso contra aquela fundamentação. Não há, nem a ré tenta dizer qual seja, qualquer oposição dos fundamentos com a decisão, e a decisão é perfeitamente inteligível. Não houve, manifestamente, qualquer omissão de pronúncia, nem a ré tenta dizer qual é que possa ter sido a questão que ficou por decidir. Dizer-se que a sentença violou o art. 5/2 do DL 67/2003, sem mais, não tem qualquer valor, já que, por falta de fundamentação (sem se dizer como nem porquê), uma sentença não pode ser atacada simplesmente dizendo-se que ela violou uma norma de um regime jurídico.
Em suma, não se verificam manifestamente quaisquer nulidades da sentença, nem é apontado qualquer erro de julgamento que não tenha sido já apreciado.
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Do recurso subordinado

Na parte que importa, a sentença tem a seguinte fundamentação:
No caso em apreço, resultou provado que o veículo adquirido pelo autor apresentou vários problemas, durante o período de garantia, de dois anos. Em Junho de 2017 o veículo foi transportado, por reboque, para as instalações da ré e daí para a oficina da C-Lda, onde se encontra desde então. O veículo não foi reparado e não se encontra em condições de circular.
Não restam dúvidas que o veículo apresenta defeito, pelo que assiste ao consumidor o direito à reparação, substituição, redução do preço, ou resolução do contrato, nos termos do artigo 4º, n.º 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 08/04.
O autor pretende a resolução do contrato.
A resolução é uma forma de extinção dos contratos por vontade unilateral e vinculada de um dos contraentes, fundada na lei ou em convenção, sendo, em princípio, os seus efeitos retroactivos, ou seja, tudo se passando como se o contrato resolvido tivesse sido declarado nulo ou anulado, conforme decorre dos artigos 432 e seguintes do Código Civil.
O artigo 289/1 do CC determina que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
De acordo com o regime legal, o autor tem de devolver o veículo comprado (que, no caso, já se encontra na disponibilidade da ré) e a ré tem de devolver o preço contratual daquele.
No entanto, a devolução do preço de compra envolveria um enriquecimento sem causa por parte do autor, que beneficiou do uso do veículo e não o pode devolver no exacto estado em que o adquiriu.
Assim, na devolução do preço contratual deverá ser abatido o valor correspondente à desvalorização do veículo ocorrida até à entrega do veículo à ré, em Junho de 2017, data em que o mesmo deixou de circular, mantendo-se desde então imobilizado e na disponibilidade da ré.
Ponderando os problemas que o veículo foi apresentando desde a sua aquisição em Abril de 2016; o período de tempo de efectiva disponibilidade do veículo para o autor, pouco mais de um ano; o número de quilómetros realizados pelo autor, pouco mais de 20.000 quilómetros; afigura-se adequado deduzir ao valor de compra, de 3.890€, o montante de 890€, ficando a ré obrigada a entregar ao autor 3000€, correspondente ao valor do veículo em Junho de 2017.
O valor a ter em conta não é o valor de mercado do veículo nas condições em que se encontra, não sendo tais circunstâncias imputáveis ao autor, nem o valor de mercado actual do veículo após reparação, valores que, aliás, a ré não demonstrou, mas o valor do veículo quando foi entregue à ré, em Junho de 2017, que se fixa, como referido, em 3000€.
[…].
      
A discordância do autor prende-se com a aplicabilidade do regime do enriquecimento sem causa
Porquanto (cfr. CARVALHO, Jorge Morais – Manual de Direito do Consumo. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 325): A resolução do contrato tem efeitos retroactivos, pelo que não deve originar a redução, seja a que título for, do montante a devolver pela ré ao autor.
Bem como, do disposto artigo 3 do DL 67/2003, resulta que a falta de conformidade, manifestada no prazo de dois anos, tratando-se de um bem móvel, se presume existente no momento da entrega do bem ao consumidor.
Para além do exposto, no caso vertente não estão preenchidos os requisitos plasmados no artigo 473/1 do CC: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”.
Ora, o autor comprou o veículo à ré; por diversas vezes detectou defeitos no veículo; denunciou à ré a existência dos defeitos detectados, solicitando-lhe a devida reparação; a ré não foi capaz de reparar os defeitos detectados; o autor resolveu o contrato com a ré, por carta registada; a ré não devolveu o dinheiro que lhe foi pago pela compra do carro; desde a data da compra do carro que a ré ficou com o dinheiro correspondente ao preço do carro.
Assim, não podemos aceitar ter existido qualquer enriquecimento do autor à custa da ré.
Mormente porque, de forma alguma aquele se locupletou às custas desta; muito menos de forma injusta; pois desde o dia em que a ré vendeu o carro ao autor, esta recebeu o preço que pedia pelo carro; valor que o autor pagou acreditando ser o justo preço do referido carro em bom estado; e desde essa data a ré ficou a usufruir da totalidade do preço recebido, fazendo seus os frutos de tal quantia monetária.
Neste sentido decidiu, o ac. do TRG de 26/01/2017, proc. 1446/15.5T8CHV.G1: “(…) Sucede que, no presente caso, no mesmo período de tempo em que os autores puderam fruir do veículo, a ré teve na sua posse e fruiu do dinheiro (…) correspondente ao preço do veículo adquirido pelos autores, fazendo seus os respectivos frutos. Decorre ainda dos factos provados que, logo em Abril de 2015, os autores declararam à ré pretenderem resolver o contrato, prestando-se a entregar-lhe o veículo logo que mesma se dispusesse a devolver-lhes o montante que pagaram, sendo que o veículo só não foi de imediato entregue à ré por facto a ela exclusivamente imputável. Acresce que, em virtude da ré não ter aceitado a resolução do contrato e procedido à devolução do montante pago pelos autores, estes não puderam adquirir outra viatura, justificando-se assim que continuassem a utilizar, ainda que esporadicamente, em caso de necessidade, a viatura em questão. Não ocorre assim qualquer locupletamento injustificado do património dos autores. (…).”

Apreciação:
Está em causa a valorização da obrigação de restituição de um veículo adquirido no âmbito de um contrato de venda de bem para consumo, na vigência do DL 67/2013, de 08/04, na redacção vigente com a alteração do DL de 84/2008, de 21/05, e resolvido pelo comprador com base na desconformidade do bem.
O art. 433 do CC dispõe que: Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos seguintes.  
  
O art. 289 do CC, relativamente aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação, dispõe:
1.Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
[…]
3.É aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes.

O art. 1269 do CC dispõe:
O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa.

O art. 1270/1 do CC dispõe:
O possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais percebidos até ao dia em que souber que está a lesar com a sua posse o direito de outrem, e os frutos civis correspondentes ao mesmo período.
O art. 1273.º
1.Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.
2.Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.
O art. 1274.º
A obrigação de indemnização por benfeitorias é susceptível de compensação com a responsabilidade do possuidor por deteriorações.
O art. 1275
1.O possuidor de boa fé tem direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, não se dando detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem haver o valor delas.
2.O possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito.

Das regras do artigo 289 e da sua remessa para os artigos 1269 e seguintes, resultam as seguintes ideias básicas que importam ao caso, tal como expostas por Maria Clara Sottomayor (Comentário ao CC - Parte páginas, UCP/FD/UCE, 2014, páginas 716 a 721):
“[…] O conceito de retroactividade, consequência lógica da ideia de que a invalidade é contemporânea da declaração negocial, tem desempenhado […] um papel central na explicação dos efeitos da invalidade do negócio jurídico e constituiu um meio de prosseguir os objectivos da lei, quando consagra a sanção da invalidade para certos negócios jurídicos: […]; uma vez declarada a nulidade ou a anulação de um negócio jurídico a ordem jurídica pretende um regresso ao status quo ante, ou seja, à situação que existiria se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado. […] o cálculo do valor do dever de restituição, a chamada liquidação do contrato inválido, é uma operação complexa, muito para além da aparente simplicidade dos princípios, daí que não deva ser determinada através de conceitos lógicos, mas antes a partir da avaliação da situação de interesses, tendo em conta as realidades materiais e económicas ocorridas no período intermédio entre o momento da celebração ou da execução do contrato e o da declaração de nulidade ou anulação. […] Em regra, o critério para calcular o valor do gozo da coisa e o valor do serviço prestado será aquele que foi adaptado no próprio contrato inválido que fixou o valor da contraprestação […] Só não será assim, por exemplo, se o valor do serviço for superior ao valor da remuneração estipulada no contrato, a qual não teve em conta os critérios do mercado. Nesta hipótese, o prestador do serviço terá direito ao pagamento da diferença entre o valor recebido e o valor de mercado. […] Em geral, os princípios da boa fé e do equilíbrio de prestações devem ter influência na liquidação do contrato inválido. Declarada a nulidade do contrato, o comprador terá de restituir a coisa e, o vendedor, o preço. […]. Quanto às restantes questões, o artigo 289/3, remete para as regras da posse (artigos 1269.º e ss.). […] A lei atende, assim, ao estado subjectivo do obrigado à restituição para o efeito de calcular o montante do dever de restituir, prevalecendo valores éticos sobre a lógica estrita da retroactividade, que ordena, sem mais, a colocação das partes no estado em que se encontrariam se o contrato inválido não tivesse sido celebrado, princípio cuja coerência lógica exigiria a aplicação das regras do possuidor de má fé para todos os possuidores obrigados a restituir uma coisa alheia ao seu proprietário. […] A lei tem como objectivo impedir que uma das partes enriqueça em relação à outra, recebendo a restituição de uma prestação feita em execução de um negócio inválido, sem, por sua vez, restituir a que foi por si indevidamente recebida. […] Em caso de invalidade, mantém-se a correspectividade das obrigações de restituir, o chamado sinalagma restitutório: a cargo do vendedor recai uma obrigação de restituir o preço recebido e a cargo do comprador uma obrigação de entregar a coisa. […] Mantém-se […] para as obrigações de restituição decorrentes do contrato inválido, a ideia de sinalagma, o que leva alguma doutrina a referir-se ao contrato nulo ou anulado como uma ‘relação de sinalagma de sentido inverso.’ Os deveres de restituição, apesar de constituírem deveres legais e não contratuais, funcionam, na prática, segundo os princípios do modelo contratual, nomeadamente os princípios da reciprocidade e da equivalência das prestações.”

Mais ou menos no mesmo sentido, Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, 2.ª edição, Almedina, 2020, páginas 655 a 659, especialmente 659. Também falando na relação de liquidação, embora lhe chame relação de repristinação, Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinho, Coimbra Editora, 2005, páginas 625 a 627.
Posto isto,
Daquelas regras decorre que em consequência da resolução do contrato, a coisa volta a ser do vendedor e que este fica constituído na obrigação de restituir o preço da compra.

Em princípio, a coisa é restituída ao vendedor no estado em que ela está, podendo estar valorizada (é o que normalmente acontecia aos prédios) ou desvalorizada (é o que normalmente acontece aos móveis) pelo decurso do tempo, e o vendedor não é obrigado a devolver aquela eventual mais valia, nem tem direito à compensação desta eventual desvalorização (neste sentido, por exemplo, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Almedina, Set2017, pág. 245). 

Quanto à desvalorização da coisa tal decorre, se não, desde logo, do art. 289/1 do CC, por maioria de razão, da aplicação da regra do art. 1269 do CC: se o possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa, também não responde pela simples desvalorização da coisa pelo decurso do tempo, ou pela sua utilização prudente e regular.

Esta regra, do regime das invalidades, é de algum modo contrariada no art. 432/2 do CC, para a resolução em geral, mas no regime da venda de bens de consumo é confirmada pelo art. 4/4 do DL 67/2003, que permite a resolução [desde] que a perda ou deterioração não sejam imputáveis ao comprador (Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2.ª edição, UCE/Porto, 2017, páginas 374-375, remetendo a justificação da solução para Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo…. Coimbra II, páginas 993-997, nota 2778, donde este TRL foi buscar a palavra entre parenteses recto).

É isto o que diz um dos dois votos de vencido no ac. do STJ de 10/07/2007, proc. 07B374: a interpretação que se tem feito do art. 289/1 do CC vai no sentido de que a restituição da coisa em caso de nulidade, ou anulabilidade, no caso por força da resolução, consiste na entrega da coisa como ela se encontra depois de um uso normal. Só haverá lugar ao pagamento de qualquer quantia que acrescerá à restituição da coisa se esta tiver sido usada de modo irregular e for restituída com danos (o outro voto de vencido considera que que não está provado qualquer enriquecimento por parte do réu, entre o mais porque, de qualquer forma o preço do dinheiro do comprador usado pelo vendedor há-de equivaler-se ao valor do uso do automóvel pelo comprador. A maioria do colectivo - neste acórdão que respeita a uma acção em que a vendedora, depois de ter sido condenada a restituir o preço, com juros de mora desde a citação para a acção, vem dizer que recebeu o veículo desvalorizado, e pede o enriquecimento sem causa correspondente ao uso da viatura, durante mais de 4 anos e 100.000 km, pela compradora - lembra, no entanto, que enquanto o vendedor restituiu ao comprador o preço da viatura, os juros de mora durante a maior parte do tempo em que dele dispôs e o indemnizou nos termos acima referidos, o comprador usufruiu do gozo da viatura, devolvendo-lha severamente desvalorizada, principalmente depois da resolução do contrato).

No mesmo sentido, veja-se ainda o ac. do TRL de 18/1072018, proc. 169/15.0T8VLS.L1-2: III.- Em regra e ressalvadas situações de patente desequilíbrio que urja corrigir, nomeadamente emergentes de anormal utilização do veículo pelo comprador, a ele imputável e não, por exemplo, à desconformidade em si, o efeito retroactivo da resolução do contrato de aquisição de bem de consumo, causa extintiva do contrato normalmente imputável ao incumprimento do contrato pelo vendedor, não abarca a exigibilidade, ao consumidor, de qualquer valor pela utilização do bem.

Tal como o ac. do TRP de 11/03/2021, proc. 1021/18.2T8AMT.P1: III.- Tendo o consumidor resolvido o contrato, ao montante do preço a restituir apenas deve ser descontado o valor da utilização do bem se o vendedor fizer prova de um uso efectivo do bem de intensidade ou extensão que excedam a utilização a normal do produto em conformidade com a sua natureza e finalidade, um uso que seja causa específica de depreciação do produto ou, em qualquer caso, uso posterior à comunicação da resolução do contrato.

Este acórdão do TRP lembra que o Anteprojecto de Código do Consumidor de 2006, consultável em http://www.oa.pt/upl/%7B074a0e26-88f3-4958-b06b-a07ecb04a19d%7D.pdf, previa no artigo 193/2, o seguinte: “não pode ser exigida ao consumidor qualquer remuneração pelo uso normal e regular que haja dado ao bem antes do exercício do direito de resolução, nem qualquer indemnização pela eventual diminuição de valor que, em consequência disso, sobrevenha.”

Neste sentido, ainda, Brandão Proença, obra citada, pág. 374: “[…] a limitação do efeito recuperatório total avoca as normas sobre frutos e benfeitorias (aplicáveis à resolução por força do art. 289/3) e o desgaste ou deterioração consequentes à utilização normal da coisa restituenda […].”

Em compensação, o vendedor também só tem de restituir o preço, como tal, sem juros de mora que só são devidos a partir da sua interpelação a restituição subsequente à resolução, se esta for válida, ou da citação para a acção (arts. 1270/1 do CC e 564/-a do CPC). 

Dois acórdãos do STJ, da mesma relatora, vieram defender, no entanto, que não sendo possível ao autor restituir o automóvel tal como lhe foi entregue (artigo 289/1 do CC), o vendedor só deve ser condenado a restituir o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão. Isto com o fundamento de que embora a regra da resolução tenha eficácia retroactiva (art. 434/1 do CC), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433 do CC), “tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra” (ac. do STJ de 30.09.2010, proc. 822/06.9TBVCT.G1.S1, e ac. do STJ de 24/03/2011, proc. 52/06.0TVPRT.P1.S1).

Em apoio desta posição, estes dois acórdãos invocam Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, comentário, 2ª edição, Coimbra, 2004, pág. 85: “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espirito do art. 434/2, do CC).” http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif  

Estes acórdãos foram seguidos por vários outros; apenas por exemplo, o ac. do TRG de 05/06/2014, proc. 1725/12.3TBBRG.G1, o acórdão do STJ de 05/05/2015, proc. 1725/12.3TBRG.G1.S1, o ac. do TRP de 02/03/2015, proc. 9455/09.7TBMAI.P1 (estes dois últimos lembrados por Jorge Morais Carvalho, citado abaixo) e o ac. do TRP de 25/05/2021, proc. 20967/18.1T8PRT.P1http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif.http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif 

E estes passaram também a invocar Vaz serra, BMJ, 102.º-168, na seguinte passagem citada através de quem o invoca: “Não pode, porém, exagerar-se o alcance da retroactividade. A retroactividade da resolução só tem lugar até onde a finalidade desta o justificar: as coisas não podem passar-se inteiramente como se nunca tivesse existido o contrato, pois este existiu de facto e dele podem ter surgido obrigações, direitos e situações não abrangidas pela razão de ser da resolução e que esta, portanto, não elimina, subsistindo não obstante ela”.

Diga-se que a fundamentação de que a regra do art. 289/1 do CC “tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra”, é insuficiente para afastar as regras dos artigos 1269 e 1270/1 para a qual remete o art. 289/3 do CC, isto é, da irrelevância da desvalorização não culposa, com o correspectivo de também não ser relevante a posse do preço pelo vendedor.

Neste sentido, para além de tudo o que já foi referido, e pelo menos na leitura deste acórdão, veja-se Menezes Cordeiro, CC Comentado, I – parte geral, CIDP/FDUL/Almedina, 2020, páginas 855 e 856, o qual diz:
O dever de restituição predisposto no art. 289/1 tem natureza legal. Ele prevalece sobre a obrigação de restituir o enriquecimento, meramente subsidiário e pode ser decretado, quando ele conheça, oficiosamente, a nulidade. No entanto, haverá que recorrer às regras do enriquecimento, se a mera obrigação de restituir não assegurar que todas as deslocações patrimoniais injustamente processadas, ao abrigo do negócio declarado nulo ou anulado, foram devolvidas.
Não será assim quando ocorra uma outra causa de atribuição patrimonial. O próprio artigo 289/3 manda aplicar, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269 e seguintes e, portanto: o regime da posse, incluindo as regras sobre a perda ou deterioração da coisa, sobre os frutos, sobre os encargos e sobre as benfeitorias. […]

Já a invocação dos “princípios da reciprocidade e da equivalência das prestações”, subjacentes àqueles acórdãos do STJ, de 2007, 2010 e 2011, são de tomar em conta.

Só que isso impõe que não se ponha a questão, unilateralmente, do lado do comprador/consumidor, isto é, na possibilidade de este ter ficado enriquecido com a utilização do veículo automóvel, e se sopese também as vantagens tidas pelo vendedor com a disponibilidade do preço pago pelo vendedor.

É nesta perspectiva que também vão os dois votos de vencido no acórdão do STJ de 2007, e, entre muitos outros, o acórdão do TRG invocado pelo autor desta acção, já parcialmente transcrito nas alegações do recurso, e ainda o acórdão do STJ de 14/10/2021, proc. 2927/18.4T8VCT.G1.S1:
I.Declarada a resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel com fundamento em defeito que não foi reparado, em regra, o comprador tem o direito de receber a quantia correspondente ao preço que pagou, nos termos dos arts. 433º, 434º, nº 1, e 289º, nº 1, do CC.
[…]
IV.A eventual ponderação das utilidades extraídas pelo comprador na vigência do contrato de compra e venda que é objecto de resolução não pode deixar de ter em conta as circunstâncias em que ocorreu a utilização e o comportamento do vendedor antes e na pendência da acção.
V.Deve ser recusada uma solução que reduza o valor da quantia a entregar ao comprador que exerceu o direito de resolução do contrato num caso em que a utilização do veículo automóvel foi marcada, desde o início, por sucessivas avarias que obrigaram a pelo menos 24 deslocações à oficina da vendedora que nunca permitiram nem permitem uma utilização normal do veículo e em que, além disso, o vendedor negou na acção qualquer responsabilidade e opôs-se ao pedido de resolução do contrato por fundamentos que não foram atendidos pelo tribunal.

Bem como o ac. do TRL de 06/12/2011, proc. 850/10.0YXLSB.L1-7, lembrado por Jorge Morais Carvalho: o tribunal recorrido entendeu que a restituição do veículo, subsequente à resolução, sem atender à desvalorização do veículo, apesar da sua utilização pelo comprador, daria lugar a um enriquecimento sem causa, pelo que considerou a desvalorização da viatura desde a data da sua aquisição até à citação da ré para a acção, tomando por base as “tabelas de desvalorização automática” usadas pelas companhias de seguros para aferição do valor dos veículos, do conhecimento geral.  O acórdão tem em consideração a posição de Vaz Serra e também a dos acs. do STJ de 30/9/2010 e de 24/3/2011, 52/06.0TVPRT.P1.S1, mas, entre o mais, diz que só aparentemente se pode falar em enriquecimento sem causa, uma vez que se deve ter em conta, para além do mais, a desvalorização da moeda, para a compradora e a “capitalização” do preço recebido pela vendedora em 2008. E conclui que não está, pois, demonstrado qualquer enriquecimento sem causa por parte da compradora que importe que a resolução do contrato seja “ponderada com a desvalorização da viatura desde a data da sua aquisição até à citação da ré para a presente acção”, tanto mais que tal não foi, sequer, pedido pela vendedora, devendo ser a vendedora que vendeu bem defeituoso, desconforme com o contrato e não aceitou a desconformidade, a suportar o respectivo dano.

Daí que se compreenda bem que a jurisprudência italiana e francesa (citadas, com crítica, por Maria Clara Sottomayor, nas notas das páginas 558 e 559 e depois na nota 123 das páginas 582 e 583) siga a ideia da compensação dos valores:
“A jurisprudência italiana justifica a caracterização da obrigação de restituição do preço como obrigação pecuniária na identidade jurídico-contratual entre o preço e bem vendido, a qual exige apenas que a invalidade do negócio faça retomar ao património de cada contraente os bens que sem justificação jurídico-negocial dele saíram. Ambos os contraentes suportam o risco dos danos consequentes à invalidade do contrato, ou seja, a depreciação da moeda é suportada pelo comprador e a usura e vetustidade do bem é suportada pelo vendedor, considerando a jurisprudência que estes dois danos são equivalentes e que se compensam mutuamente, para além de entender que a posição das partes deve ser equivalente à de dois possuidores de bens diversos, beneficiando cada um deles da vantagem que obteve ou suportando o prejuízo sofrido. […]. A jurisprudência francesa dos tribunais superiores tende a alterar as decisões dos tribunais inferiores, no sentido de fazer recair sobre o comprador a erosão da moeda e sobre o vendedor o dano da vetustidade, considerando que o gozo da coisa pelo comprador é compensado pela perda dos juros remuneratórios relativamente à quantia paga por este a título do preço. […] J. MESTRE: "a situação global é perfeitamente equilibrada, de tal forma que não há lugar a ter em conta nem aquilo com o que comprador se avantajou com a utilização da coisa nem a forma como o vendedor, por seu lado, dispôs da soma de dinheiro representativa do preço. […] Veja-se, ainda, […] J. Mestre, em que o Tribunal da Cassação decidiu que em caso de resolução de um contrato de cessão de quotas sociais, a dívida de restituição do preço não é uma dívida de valor, por força do princípio da retroactividade, podendo, contudo, o comprador obter uma atenuação indirecta do ónus da depreciação monetária, através de um pedido de indemnização. […]”

A autora critica esta jurisprudência, mas também crítica a posição assumida pelo ac. do TRE de 06/04/2000, publicado na CJ.2000.II, páginas 271-274 : I.- declarada nula a compra e venda de um veículo, o vendedor além do preço recebido não tem que restituir quaisquer juros remuneratórios da imobilização desse capital, a qual se mostra compensada pelo gozo do veículo. II.- No montante do preço a restituir deve ser abatida a quantia equivalente à desvalorização do veículo entretanto obtida. – dizendo (págs. 559-560):
“[…A] decisão impôs ao comprador de boa fé uma dupla oneração: para além de suportar o dano decorrente da utilização do veículo, através da dedução de 80% do preço da venda do veículo, suportou também o dano da desvalorização monetária, pois o remanescente não foi actualizado à data da execução do contrato, admitindo, apenas, o tribunal o pagamento de juros de mora desde a data da citação do réu. Julgamos, portanto, que esta decisão não é equitativa e que, para além da actualização monetária da dívida, o comprador […] teria direito a […].”

Na página 587 e respectiva nota, a autora esclarece, salvo erro, a sua posição para estes casos: o comprador tem direito aos juros, à taxa que deve depender da aplicação que teria feito do dinheiro se o tivesse na sua disponibilidade, descontando-se o valor do gozo da coisa de que usufruiu durante o período em que durou a execução do contrato inválido. Isto no caso de o vendedor estar de má fé. Caso contrário, este tem o direito de reter os frutos que percebeu, abrangendo a obrigação de restituir apenas o capital. Tudo tendo em conta os arts. 289/3 e 1270 e 1271 do CC.

A posição desta autora em termos gerais depende também da sua consideração da dívida de restituição como dívida de valor, posição desenvolvida por força de casos em que o vendedor de um imóvel, com base num contrato declarado nulo muitos anos depois, recebia de volta um imóvel muito valorizado pelo decurso do tempo e apenas tinha de restituir um preço desvalorizado pelo decurso do tempo e pela inflação.

Maria Clara Sottomayor veio então lembrar que a obrigação de restituir era uma dívida de valor e que ela devia ser actualizada (A obrigação de restituir o preço e o princípio do nominalismo das obrigações pecuniárias. A propósito do acórdão do STJ de 11/03/1999, Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003). É também a posição defendida pela autora no já citado Comentário ao CC, pág. 719: “Resulta do princípio da retroactividade, como critério de reintegração patrimonial, e da natureza da obrigação de restituir como dívida de valor, que deve ser aplicado ao montante do preço a restituir o índice do custo de vida de forma a actualizar a divida. […]. Posição que foi também defendida por António Pinto Monteiro (Dívidas de valor e restituição do preço em caso de invalidade ou de resolução do contrato, na RLJ 141, de 2011, n.º 3971), no sentido de que a actualização se devia fazer através de juros de mora legais desde a data a entrega (e não dos juros compensatórios como defende Maria Clara Sottomayor). Também no sentido de que a obrigação de restituir é uma dívida de valor, veja-se Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. II, Coimbra Editora, 2008, página 1000-1001, nota 1273.

Note-se que isto tinha por pressuposto que a restituição do imóvel, apesar de valorizado pelo decurso do tempo, aproveitava ao vendedor, sem que este tivesse que “restituir” fosse a quem fosse a mais-valia obtida. E, no reverso, não se defendia que se o imóvel estivesse desvalorizado por causa não imputável ao comprador, o comprador teria de “restituir” a desvalorização. Neste caso, com base principalmente na regra do art. 1269 do CC, pois que se o possuidor de boa-fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa, também não responderá, neste caso, por maioria de razão, por uma desvalorização se não tiver culpa da mesma, designadamente através de uma utilização prudente e normal. Já se a restituição em espécie fosse impossível, a restituição do valor é, segundo Pinto Monteiro, a restituição do valor do prédio à data da restituição (artigo citado, por exemplo, na pág. 100).

Esta posição levanta um problema de necessidade de compatibilização, designadamente porque, por exemplo, nos contratos de mútuo inválidos por falta de forma, sempre se entendeu que a obrigação do mutuário restituir a quantia emprestada era uma obrigação não actualizável e que só dava origem ao pagamento de juros a partir da citação, com a qual cessava a boa fé do mutuário (artigo 564/-a do CPC = 481/-a antes da reforma de 2013: Além de outros, especialmente prescritos na lei, a citação produz os seguintes efeitos: a) Faz cessar a boa-fé do possuidor). Falando também deste problema, veja-se Brandão Proença, obra citada, páginas 158 a 164 e 375 a 377, especialmente páginas 163 e 164.

Seja como for, a tese de qualificação da obrigação de restituir como dívida de valor, a ser aplicada, impõe que, sempre que a desvalorização da coisa seja tomada em consideração contra o comprador, o preço da coisa também tenha de ser actualizado para a data da restituição agora a favor do comprador, por força dos princípios da reciprocidade e da equivalência das prestações.

Continuando:
Na obra citada (pelo autor desta acção e recurso), Jorge Morais Carvalho, na 3.ª edição, 2016, pág. 244, tem realmente a posição referida, que fundamenta ainda com a remessa para o ac. do TJUE de 17/04/2008, proc. C-404/06 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62006CJ0404&qid=1653685902349) e para o ac. do TRL de 06/12/2011, proc. 850/10.0YXLSB.L1-7. Este autor tem o cuidado de referir que, contra esta posição vão Calvão da Silva, Venda de bens de consumo, 2010, pág. 109, Armando Braga, a venda de coisas defeituosas no CC, 2005, pág. 71, o ac. do STJ de 05/05/2015, proc. 1725/12.3TBRG.G1.S1, e o ac. do TRP de 02/03/2015, proc. 9455/09.7TBMAI.P1 (todos os acórdãos nacionais já foram vistos acima).

O acórdão do TJUE de 2008 refere-se a uma situação de substituição de um bem por outro, portanto quando o consumidor acaba por ficar com o bem que queria adquirir, não a situações de resolução do contrato, em que o consumidor fica sem esse bem, mas o utilizou durante um certo período de tempo. Não ajuda, pois, directamente, à questão.

Lembre-se que a Directiva 1999/44/CE (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31999L0044) do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, que está em causa nestes acórdãos, tem, entre outros, o seguinte considerandos:
(10)-Considerando que, em caso de não conformidade do bem com o contrato, os consumidores devem ter o direito de obter que os bens sejam tornados conformes com ele sem encargos, podendo escolher entre a reparação ou a substituição, ou, se isso não for possível, a redução do preço ou a rescisão do contrato;
(15)-Considerando que os Estados-Membros podem dispor no sentido de que qualquer reembolso ao consumidor possa ser reduzido, de modo a ter em conta a utilização que o consumidor fez dos produtos a partir do momento em que lhe foram entregues; que as disposições de pormenor mediante as quais a rescisão do contrato ganha efeito podem ser fixadas na legislação nacional;

Existe já um outro ac. do TJUE de 23/05/2019, processo C-52/18, que respeita à resolução do contrato, mas trata apenas, grosso modo, de questões relativas ao lugar onde o consumidor tem o dever de colocar à disposição do vendedor um bem adquirido à distância, para que este seja reposto em conformidade em aplicação desta disposição, e adiantamento de despesas conexas, não com o direito a exigir um valor pela utilização do bem.

Aquela directiva foi entretanto substituída por outra, a Directiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32019L0771&qid=1653832476823), relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens que altera o Regulamento (UE) 2017/2394 e a Diretiva 2009/22/CE e que revoga a Diretiva 1999/44/CE (Texto relevante para efeitos do EEE.)

Considerandos e artigo com relevo:
(18)-A presente diretiva não deverá afetar o direito nacional na medida em que as questões em causa não sejam por ela reguladas, em especial a legalidade dos bens, as indemnizações e os aspetos gerais do direito dos contratos, como a formação, a validade, a nulidade ou os efeitos dos contratos. O mesmo se aplica às consequências da rescisão do contrato e a certos aspetos relativos à reparação e substituição que não são regulados na presente diretiva.
59.Nos casos em que o consumidor rescinde o contrato por falta de conformidade, a presente diretiva deverá dispor normas relativas apenas aos principais efeitos e modalidades do direito de rescisão, nomeadamente a obrigação de as partes devolverem o que receberam. Por conseguinte, o vendedor deverá ser obrigado a reembolsar o preço recebido do consumidor e o consumidor deverá devolver os bens.
60.A presente diretiva não deverá afetar a faculdade de os Estados-Membros regularem as consequências da rescisão para além das nela previstas, tais como as consequências da diminuição do valor dos bens ou da sua destruição ou perda. Os Estados-Membros deverão igualmente ser autorizados a regular as modalidades de reembolso do preço ao consumidor, por exemplo as relacionadas com os meios utilizados para esse reembolso ou com eventuais custos e encargos incorridos em resultado do reembolso. Os Estados-Membros deverão, designadamente, ter a faculdade de prever certos prazos para o reembolso do preço ou para a devolução dos bens.
Art. 3/6:- A presente diretiva não afeta a faculdade de os Estados-Membros regularem os aspetos gerais do direito nacional dos contratos, como as regras relativas à formação, à validade, à nulidade ou aos efeitos dos contratos, incluindo as consequências da rescisão de um contrato, na medida em que estes não sejam regulados pela presente diretiva, nem o direito a indemnização.

Portanto, as directivas em causa não ajudam directamente ao caso, porque remetem para o direito nacional.

Já o direito nacional, hoje, ajuda à questão: O DL 67/2003, utilizado pela decisão recorrida, tendo em conta a data do contrato e a da resolução, foi entretanto revogado pelo DL 84/2021, de 18/10, que o substituiu, entrando em vigor em 01/01/2022.

Neste existe agora o art. 11/9 que dispõe: Após a resolução do contrato, o profissional deve restituir ao consumidor a totalidade do montante pago até 14 dias após a referida resolução. Regra depois desenvolvida pelo art. 20, sem excepções.

Estas normas, que não podem ser aplicadas ao caso dos autos como lei, servem, no entanto, por revelar o “espírito” das normas em vigor, para serem consideradas como argumento no sentido de confirmar as conclusões a que acima se foi chegando.
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No caso dos autos, considera-se, desde logo, que não está suficientemente provado que o veículo tenha tido a utilização que a sentença recorrida refere. Nada indica que a quilometragem em 09/01/2016 (facto 21) fosse a quilometragem com que o veículo, 3 meses depois, foi vendido (facto 34). E a quilometragem que o veículo tinha em Nov2019, (facto 24), mais de 2 anos depois da entrega à ré, não indica a quilometragem que o veículo tinha quando ficou em poder da ré (em 26/06/2017 – factos 11 e 12). Pelo que não há pontos de comparação para se poder dizer que o autor/comprador terá andado perto de 20.000 km com o veículo.

Por outro lado, a utilização do veículo, em todo o período de tempo que vai desde a compra, em Abril de 2016, até à disposição da vendedora em Junho de 2017, foi intercalada por períodos de não uso, por força do estado do veículo, e os períodos de uso foram de um veículo com vários defeitos.

Por fim, o preço da venda do veículo esteve na disponibilidade da vendedora desde Abril de 2016 até à data da sentença, em que se reconheceu a validade da resolução, ou seja, perto de 5 anos. A ter em conta a desvalorização do veículo pela utilização pelo comprador, teria também de se ter em conta os juros pela disponibilidade do preço pelo vendedor, juros de mora à taxa legal de 4% ao ano pelo menos desde a data da entrega do veículo à ré, sendo discutível que taxa de juros aplicar ao ano anterior. De qualquer modo, estes juros de 5 anos, equivaleriam praticamente ao valor dado pela sentença pela desvalorização, que foi um valor que teve em conta um período de utilização e uma utilização muito superior ao que está indiciado.

Assim, os valores a pagar pela disponibilidade do preço mais que compensariam a desvalorização pela utilização do veículo, utilização em relação à qual não se pode dizer que tinha sido imprudente ou anormal ou irregular.

Pelo que se conclui que, por uma ou outra via, não se deve dar qualquer valor pela desvalorização/utilização do veículo.
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Pelo exposto, julga-se o recurso da ré improcedente e procedente o recurso do autor, revogando-se a sentença recorrida na parte em que fixa o valor do preço a restituir em 3000€, o qual é fixado agora, por este acórdão, em 3890€.
Custas da acção e de ambos os recursos, na vertente de custas de parte, pela ré (que é quem perde a acção e ambos os recursos).



Lisboa, 09/06/2022



Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas  


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