Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2525/21.5T8BRR.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
RENDIMENTO INDISPENSÁVEL
INFLAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. A contabilização do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor, para efeitos de fixação do montante a entregar ao fiduciário, durante o período de cessão e no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante (art.º 239.º, nº3, alínea b) i) do CIRE), deve ser feita ponderando a inclusão dos valores auferidos pelo insolvente a título de subsídio de férias e de subsídio de Natal; assim, fixando o juiz o rendimento indisponível em montante equivalente a 1 (uma) retribuição mínima mensal garantida, o valor a entregar mensalmente pelo insolvente é alcançado pela fórmula: RMMG x 14 : 12.2.

2. Constitui um facto notório (art.ºs 412.º, nº1 e 5.º, nº2, alínea c) do CPC) que o país tem assistido, tendo por referência o período que nos interessa (2022 e 2023), a uma subida generalizada e sustentada dos preços dos bens e serviços consumidos pelas famílias, mas o que releva fundamentalmente é a medida dessa subida porquanto é por aí que se pode avaliar a sua repercussão na vida dos cidadãos, particularmente os que auferem menores rendimentos; usualmente a taxa de inflação é aferida tendo em conta o índice de preços no consumidor (IPC), por comparação dos preços atuais dos bens e serviços com os preços dos mesmos bens e serviços em períodos anteriores. Os dados estatísticos disponíveis evidenciam uma subida da taxa de inflação em 2022, com referência ao ano anterior, acompanhando os demais países da zona euro, com tendência de descida desde o início do ano de 2023. 

3. A atualização da RMMG para 2022 correspondeu a uma percentagem de aumento de 6% (relativamente a 2021) e para 2023 a uma percentagem de aumento de 7,8% (relativamente a 2022) pelo que, ponderando os valores da inflação, conclui-se que a atualização da RMMG, quer para 2022, quer para 2023, não representou, ao contrário da intenção manifestada pelo legislador no preâmbulo de cada um dos diplomas (Decreto-Lei n.º 109-B/2021, de 07-12 e Decreto-Lei n.º 85-A/2022, de 22-12), uma valorização real do salário mínimo nacional, podendo concluir-se que a atualização ficou aquém da taxa de inflação apurada para o período respetivo.

4. Afigurando-se-nos que essa constatação não era evidente, nem inteiramente percetível, ainda, à data em que foi proferida a decisão (14-03-2022) que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando o rendimento indisponível no valor correspondente a um salário mínimo nacional, aferido apenas mensalmente; só o decurso do tempo permitiu aquilatar da efetiva evolução da taxa de inflação e, principalmente, da consistência da subida generalizada dos preços dos bens e serviços consumidos pelos cidadãos em termos tais que, efetivamente, dependendo do concreto condicionalismo que se apresenta ao julgador, ponderando as especificidades do caso concreto, pode justificar-se nova aferição do valor que deve ter-se como necessário para assegurar o mínimo de subsistência inerente a uma existência condigna, num quadro de superveniência que é, assim, atendível.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa  
I. RELATÓRIO
Ação
Insolvência pessoa singular (Apresentação).
Insolvente
MS, nascida a 31-05-1957 [ [1] ] e declarada insolvente por sentença proferida em 05-01-2022.  

Despacho
Em 14-03-2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“A insolvente veio requerer a exoneração do passivo restante.
 Pronunciou-se o Senhor administrador no sentido do seu deferimento, sendo que não foi oferecida oposição.
 Conforme se dispõe no artigo 235.º do CIRE “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (...)”. 
(…) O senhor administrador da insolvência, após a apreciação dos elementos que apurou por mera estimativa, foi de parecer no sentido de que a insolvente não tem meios para cumprir as obrigações emergentes dos financiamentos que contraiu e que lhe deverá ser deferida a pretensão de exoneração. 
 (…)
Ora, dos factos constantes dos autos, não resulta que a requerente tenha tido qualquer comportamento enquadrável nas situações de indeferimento liminar já mencionadas.
Assim, não se vislumbrando quaisquer fundamentos para que se indefira liminarmente o pedido de exoneração, mostram-se reunidos os requisitos para que seja proferido despacho inicial. Por tudo o que ficou exposto, ao abrigo do artigo 237.º do CIRE e restantes disposições legais supra referidas, defiro o pedido de exoneração do passivo restante da insolvente.
***
Para exercer as funções de fiduciário, nos termos e para os efeitos dos artigos 240º e 241.º do CIRE, designo o atual Sr administrador. A remuneração do Fiduciário será efetuada nos termos do artigo 25.º da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho e artigos 240.º, n.º 1 e 241.º, n.º 1 alínea c) do CIRE. 
Nos termos e para os efeitos do n.º 2 e 3 do art.º 239º do CIRE, importa considerar, de acordo com os elementos constantes dos autos, a seguinte factualidade:
a) A insolvente é solteira, residindo em casa pela qual suporta uma renda mensal de € 350,00;
b) A insolvente trabalha, auferindo o equivalente ao salário mínimo nacional, acrescido de subsídio de alimentação diário de €4,77 e abono mensal para falhas de €38,00;
c) A necessidade de pagar o essencial ao seu sustento;
d) As despesas que tem, com exceção das de saúde, devem ser reequacionadas, pois o que cumpre é reduzir despesas e adequá-las à nova situação financeira criada.
Sustento mínimo condigno corresponde ao assegurar das despesas de alimentação, vestuário no mínimo indispensável, e alojamento. 
Por outro lado, impõe-se realçar que a concessão, a final, da exoneração do passivo restante apaga todas as dívidas, decorridos os cinco anos, permitindo um novo começo. Mas esse novo começo tem, necessariamente, um preço a pagar durante cinco anos. E isso significa que tem de importar um esforço, para ser sentido, e não pode implicar a manutenção de um nível de vida superior ao que se tinha - em não raros casos, deverá mesmo implicar uma alteração negativa, quando o nível de vida anterior tenha contribuído para a situação de insolvência. 
Cumpre, pois, alterar os hábitos financeiros, na esperança de que a insolvente consiga gerir melhor o seu património no futuro.
Desta forma, e tendo ainda em consideração os indicadores de sobrevivência da OCDE (vide, entre outros, Ac. Relação de Coimbra, processo n.º 1254/12.5TBLRA, de 12.03.2013), determino que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir mensalmente se considere todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia correspondente a um salário mínimo nacional.
Consigna-se ainda que, como resulta do acima exposto, as despesas extraordinárias de saúde se consideram excluídas do dever de cessão, desde que devidamente comprovada a respetiva necessidade e com apresentação das faturas respetivas ao senhor fiduciário.
 Nos termos e para os efeitos do n.º 3 do mesmo artigo 239.º, consigna-se que integram o rendimento disponível da insolvente todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exclusão daqueles enumerados nas alíneas a) e b) do mesmo normativo legal. 
Durante o período da cessão, e de acordo com o n.º 4 do artigo 239.º, fica ainda a insolvente obrigada a: 
- não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, devendo informar este Tribunal e o fiduciário, ora nomeado, sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo que tais informações lhe sejam requisitadas; 
- exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, ou procurar diligentemente trabalho, quando desempregado; 
- entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; 
- informar este Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado, sobre as diligências com vista à obtenção de emprego;
- não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar especial vantagem para algum deles. 
Fica, ainda, a insolvente advertida de que poderá ocorrer cessação antecipada do procedimento de exoneração se ocorrer alguma das circunstâncias a que alude o artigo 243.º do CIRE. 
 ***
Cumpra o disposto no artigo 247.º do CIRE (publicitação e registo). 
 Notifique. 
 Declaro encerrado o processo, mas apenas para efeito de início do período de cessão de rendimentos - artigos 230.º, n.º 1, e) e 233.º, n.º 7 do CIRE, na redacção introduzida pelo Dec.Lei n.º 79/2017, de 30 de junho”. 
Despacho notificado aos intervenientes processuais, nomeadamente, à insolvente e ao mandatário respetivo, por comunicação de 16-03-2022 e do qual não foi interposto recurso.

Em 18-04-2022 foi proferido despacho determinando o encerramento do processo de insolvência por “insuficiência da massa insolvente”.

Requerimentos
Em 11-10-2022 a insolvente apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor:
“(…) com a qualidade de insolvente (brevitatis causa requerente), vem expor e requerer o seguinte:
1.  À requerente (a propósito da exoneração do passivo restante), foi-lhe atribuído que: “durante o período de cessão, de cinco anos (Que se deverá entender por três anos, face à atual redação do CIRE), contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir mensalmente se considere todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia correspondente a um salário mínimo nacional”.
2.  Sucede que face a todos os acontecimentos mundiais que têm influência direta na realidade portuguesa (de conhecimento oficioso), a requerente está com muita dificuldade em manter um padrão mínimo de dignidade da condição de pessoa humana.
3.  A requerente tem o atrevimento de informar que aufere o RMN acrescido do subsídio de alimentação, pagando desde logo € 350,00 de renda pela casa onde habita e o seu agregado familiar é composto apenas por si, para além de todas as despesas de saúde já provadas nos presentes autos. 
4.  Os preços dos bens essenciais (como é do conhecimento oficioso, pelo que nem carece de alegação), têm subido exponencialmente.
5. Sendo certo, que ainda procede ao pagamento do crédito titulado pelo credor H Unipessoal, Lda., o que por si só já representa o cumprimento de uma exigência de sacrifício. 
6.  A requerente afirma que o que sobra é manifestamente pouco para a sua sobrevivência com o mínimo de respeito pela dignidade mínima, não conseguindo fazer face a todas as despesas, especialmente pelo quadro internacional, sendo este um facto superveniente. 
Face ao exposto, a requerente solicita que o rendimento disponível, passe a comtemplar o seu subsídio de férias e Natal, por forma permitir que a mesma tenha uma vida que respeite os mínimos da dignidade da condição humana, de outra forma não terá como sobreviver.
É tudo quanto, por ora, expõe e requer”.
 
Na sequência do despacho de 26-10-2022 [ [2] ], veio a insolvente apresentar, em 07-11-2022, requerimento com o seguinte teor:
“(…), notificada do douto despacho de fls. ___, para esclarecer: 
“a) a que se pretende referir quando afirma que "ainda procede ao pagamento do crédito titulado pelo credor H Unipessoal, Lda."; e 
b) em que medida os subsídios em causa alteram a gestão mensal dos respetivos rendimentos, posto que a devedora deve gerir as suas finanças numa base mensal”, vem proceder aos seguintes esclarecimentos:
A. Quanto a al. a):
1. Por requerimento datado de 20/01/2022, com a ref.ª citius 31433012, solicitou a insolvente, no seu art.º 18.º, o seguinte: “[a] Insolvente bem sabe que não pode favorecer um credor em detrimento de outro, pelo que requer, desde já, ser autorizada a pagar a este credor em especial, por se tratar de bem essencial quer para a sua vida, quer para poder trabalhar, até porque lida diretamente com o público (caso não seja liquidado a Insolvente poderá perder este instrumento essencial ao seu trabalho), o que perfaz a quantia média mensal de €674,06 (599,55+74.51)”, sublinhado agora.
2. Tendo o referido requerimento, merecido o seguinte despacho (datado de 31/01/2021, com a ref.ª citius 412563858), notificado à insolvente e transitado em julgado: “Req. de 20.01.2022 – Informe a insolvente que, por ora, deverá aguardar pelo despacho que venha a deferir o pedido de exoneração do passivo restante, sendo que, caso o mesmo seja liminarmente deferido, o valor despendido será excluído do dever de cessão. Por ora, porém, não poderá proceder a qualquer pagamento, salvo se o senhor administrador da insolvência assim o determinar, posto que apenas este tem agora poderes para dispor do património da insolvente – sem prejuízo do que acima se firmou, em sede de pedido de exoneração do passivo restante. 
Dê conhecimento ao senhor administrador da insolvência”, sublinhado nosso. 
3. A 2-2-2021, veio o Senhor Administrador, por requerimento com a ref.ª citius 31549697, consignar que: (…)
4. A 9-2-2021, foi proferido, com a ref.ª citius 412851196, o seguinte despacho: “Req. de 02.02.2022 – Atento o exposto pelo senhor administrador da insolvência, notifique a insolvente de que se encontra autorizada para proceder aos pagamentos que solicitou, relativos ao aparelho auditivo”.
5. E como tal, tem vindo a ser descontado por débito direto a referida prestação, com absoluto conhecimento do Senhor Fiduciário. B. Quanto a al. b):
6. A insolvente encontra sérias dificuldade intelectuais em explicar ao tribunal, que auferindo a remuneração mínima, e pagando uma renda mensal de € 350,00, sendo o seu agregado familiar composto apenas por si, para fazer face às despesas regulares mensais (que constam dos autos), cujos preços aumentam diariamente, como é facto óbvio e notório atenta a subida extraordinária da inflação. 
7. Ademais o Senhor fiduciário através do Relatório do Administrador - 155º CIRE, apresentado a 23-02-2022, com a ref.ª citius 31772547, fez constar, o seguinte: (…)
8. Pelo que a gestão não será, data venia, mensal, mas anual. 
9. Veja-se o que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 6074/13.7TBVFX-L1-1, por unanimidade a 22-09-2020:   “I – A concretização do principio da dignidade humana e a inviolabilidade constitucional do direito a uma retribuição mínima periodicamente atualizada (cfr. art.º 59º, nº 2 da CRP) – que é válido para cada dia da semana, para cada semana do mês, e para o mês de cada ano –, exige, tal qual como na fixação do montante indisponível por necessário ao sustento minimamente condigno do exonerando, que na consideração da referência temporal para o apuramento do rendimento disponível objeto de cessão se atenda às particularidades do caso concreto, numa ponderação casuística suportada em premissas gerais que, antes de mais, tenham como critérios orientadores o desiderato legal e constitucional de assegurar/salvaguardar o sustento minimamente condigno do devedor e do respetivo agregado familiar, e o cumprimento dos princípios constitucionais da igualdade e, na concretização deste, da justiça relativa. II - Do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão, tando mais que, conforme art.º 240º, nº 2 do CIRE, é anual a periodicidade para a elaboração e apresentação do relatório do período de cessão pelo Fiduciário”, sublinhado nosso.
 10. Acresce que os eletrodomésticos da insolvente são velhos, principalmente o frigorifico, que já não tem conserto.
11. Acresce que foi necessário proceder ao restauro de um dente, que só foi possível, porquanto o Senhor Fiduciário a autorizou. 
12. Note-se que a insolvente (€705,00-350,00) queda-se com €355,00 mensais o que dá €11,80 por dia (€355,00:30).
13. Repete a insolvente, aqui requerente, que que o que sobra é manifestamente pouco para a sua sobrevivência com o mínimo de respeito pela dignidade mínima, não conseguindo fazer face a todas as despesas, especialmente pelo quadro internacional, sendo este um facto superveniente. 
Face ao exposto, espera ter respondido às instâncias que lhe foram colocadas, reiterando o seu requerimento anterior.
É tudo quanto, por ora, expõe e requer”.
 
Decisão recorrida
Ouvidos os demais intervenientes processuais foi proferida, em 07-12-2022, a seguinte decisão:
“Reqs. de 11.10 e 07.11.2022 - Veio a devedora requerer que os subsídios de Natal e de férias passem a constituir também rendimento indisponível, alegando crescentes custos de vida e o facto de se encontrar a cumprir mensalmente uma dívida que foi nos autos autorizada a pagar, bem como a necessidade de adquirir novos eletrodomésticos. Mais afirmou que o cálculo dos rendimentos para efeitos de exoneração do passivo restante tem base anual e não mensal.
Notificados, os credores nada opuseram nesta matéria. Vejamos.
No despacho que concedeu liminarmente a exoneração do passivo restante, foi determinado que a devedora entregasse à fidúcia todos os rendimentos que, mensalmente, excedessem o equivalente a um salário mínimo nacional.
Tal despacho transitou em julgado, pelo que apenas perante factos novos e significativos poderá o ali decidido ser alterado. Sucede que da alegação da devedora nada de novo, verdadeiramente, resulta.
E tal vale quer para o tempo de cálculo dos rendimentos, quer para a disponibilidade dos subsídios em causa.
Ainda assim, sempre se esclarecerá o seguinte: conforme tem sido entendimento de todos os juízos deste tribunal de Comércio, decorre claramente da lei que os devedores em período de exoneração do passivo restante devem entregar à fidúcia, no momento em que os recebem, todos os rendimentos sujeitos a cessão. É exatamente o que determina a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE:
“Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão” (sublinhado nosso).
De resto, cremos ainda que qualquer entendimento que defenda que os valores a ceder à fidúcia devem ser calculados anualmente olvidam, salvo melhor opinião, o verdadeiro propósito deste “período de prova’: a adaptação dos devedores à situação em que se encontram, que os obriga a melhor organizar e gerir as respetivas finanças domésticas. Nenhum cidadão gere as suas contas anualmente. É perante as despesas de cada mês que adequam os respetivos orçamentos. A entrega de valores no final de cada ano, aliás, não raras vezes determinará incumprimentos, exatamente porque os valores continuaram na disponibilidade dos devedores, impedindo-os de operar a necessária gestão de gastos mensais, por referência ao valor fixado, para cada mês, de rendimento indisponível.
Por outro lado, as razões invocadas para que os subsídios de Natal e férias sejam agora incluídos no rendimento indisponível, já se encontram asseguradas com o demais decidido: quaisquer despesas extraordinárias como as referidas - desde despesas com o tratamento dentário necessário ou a aquisição de eletrodomésticos necessários (como é o caso do frigorífico) -, não justificam a alteração do rendimento indisponível, mas apenas a respetiva comprovação, mediante os orçamentos e faturas respetivas, a fim de serem descontadas dos valores devidos. No mais, seguramente que as necessidades próprias para uma "sobrevivência condigna" não são maiores nos meses em que se recebem tais subsídios.
Em suma, porque do alegado não resulta qualquer facto novo que não houvesse sido já ponderado no despacho liminar, transitado em julgado, nada há a ordenar.
Notifique”.

Recurso
Não se conformando, a insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:
“1. A Recorrente apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo.
A Recorrente respondeu a todas as instâncias colocadas pelo tribunal, apresentando absoluta colaboração, como lhe compete.
3. O Senhor fiduciário através do Relatório do Administrador - 155º CIRE, apresentado a 23-02-2022, com a ref.ª citius 31772547, fez constar, o seguinte: (…)
4. No entanto, o tribunal a quo proferiu decisão no sentido de que o rendimento disponível deveria ser de apenas de 1 salário mínimo em vez do 1,25 proposto pelo Administrador, por considerar que a insolvente deve sentir o peso da sua condição.
5. A Recorrente, de facto, conformou-se com a decisão e dela não apresentou recurso.
6. Porém, tem surgido factos novos, que levou a Recorrente a apresentar o seguinte requerimento a 11-1-2022: “2. Sucede que face a todos os acontecimentos mundiais que têm influência direta na realidade portuguesa (de conhecimento oficioso), a requerente está com muita dificuldade em manter um padrão mínimo de dignidade da condição de pessoa humana. (…) 4. Os preços dos bens essenciais (como é do conhecimento oficioso, pelo que nem carece de alegação), têm subido exponencialmente”. (…) 6. A requerente afirma que que o que sobra é manifestamente pouco para a sua sobrevivência com o mínimo de respeito pela dignidade mínima, não conseguindo fazer face a todas as despesas, especialmente pelo quadro internacional, sendo este um facto superveniente.”
7. Tendo o tribunal instado a Recorrente a explicar, entre outros: “(…) b) em que medida os subsídios em causa alteram a gestão mensal dos respetivos rendimentos, posto que a devedora deve gerir as suas finanças numa base mensal”.
8. Tendo a requerente, quanto a esta instância, exposto da seguinte forma:
“B. Quanto a al. b):
                                                                         6.
A insolvente encontra sérias dificuldade intelectuais em explicar ao tribunal, que auferindo a remuneração mínima, e pagando uma renda mensal de € 350,00, sendo o seu agregado familiar composto apenas por si, para fazer face às despesas regulares mensais (que constam dos autos), cujos preços aumentam diariamente, como é facto óbvio e notório atenta a subida extraordinária da inflação.
7.  Ademais o Senhor fiduciário através do Relatório do Administrador - 155º CIRE, apresentado a 23-02-2022, com a ref.ª citius 31772547, fez constar, o (…)
                                                                       8.
Pelo que a gestão não será, data venia, mensal, mas anual. 9. Veja-se o que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 6074/13.7TBVFX-L1-1, por unanimidade a 22-09-2020: “I – A concretização do principio da dignidade humana e a inviolabilidade constitucional do direito a uma retribuição mínima periodicamente atualizada (cfr. art.º 59º, nº 2 da CRP) – que é válido para cada dia da semana, para cada semana do mês, e para o mês de cada ano –, exige, tal qual como na fixação do montante indisponível por necessário ao sustento minimamente condigno do exonerando, que na consideração da referência temporal para o apuramento do rendimento disponível objeto de cessão se atenda às particularidades do caso concreto, numa ponderação casuística suportada em premissas gerais que, antes de mais, tenham como critérios orientadores o desiderato legal e constitucional de assegurar/salvaguardar o sustento minimamente condigno do devedor e do respetivo agregado familiar, e o cumprimento dos princípios constitucionais da igualdade e, na concretização deste, da justiça relativa. II - Do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão, tando mais que, conforme art.º 240º, nº 2 do CIRE, é anual a periodicidade para a elaboração e apresentação do relatório do período de cessão pelo Fiduciário”, sublinhado nosso.
10. Acresce que os eletrodomésticos da insolvente são velhos, principalmente o frigorifico, que já não tem conserto.
11. Acresce que foi necessário proceder ao restauro de um dente, que só foi possível, porquanto o Senhor Fiduciário a autorizou.
12. Note-se que a insolvente (€705,00 - 350,00) queda-se com €355,00 mensais o que dá €11,80 por dia (€355,00:30).
13. Repete a insolvente, aqui requerente, que que o que sobra é manifestamente pouco para a sua sobrevivência com o mínimo de respeito pela dignidade mínima, não conseguindo fazer face a todas as despesas, especialmente pelo quadro internacional, sendo este um facto superveniente.
Face ao exposto, espera ter respondido às instâncias que lhe foram colocadas, reiterando o seu requerimento anterior.
É tudo quanto, por ora, expõe e requer”.
9. Entendeu o tribunal a quo que; “(…) Em suma, porque do alegado não resulta qualquer facto novo que não houvesse sido já ponderado no despacho liminar, transitado em julgado, nada há a ordenar”.
10. E é aqui que a Recorrente discorda (com absoluto respeito intelectual pela mesma), com a decisão em crise.
11. Não se alcança como não pode o tribunal conhecer oficiosamente do aumento do custo de vida, da crise anunciada, do aumento dos valores de renda, do gás, do combustível, alegando que o subsídio de Natal e de férias não contabiliza para gestão mensal e do que resulta da Lei do Orçamento de Estado.
12. Por fim, acreditamos que o resultado da guerra na Ucrânia que afeta a economia mundial, em especial um país como Portugal e que cria sérias dificuldades ao cidadão comum, quanto mais ao cidadão insolvente, o que resulta num facto superveniente.
Por todo o exposto e motivos apresentados, deverá o presente recurso proceder por provado e consequentemente o douto despacho em crise ser revogado por outro em que o rendimento contemple os subsídios de Natal e de férias.
E assim se fará a Acostumada Justiça!”.

Não foram apresentadas contra-alegações
Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.ºs 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apreciar se, como entende a apelante/insolvente, posteriormente à decisão proferida em 14-03-2022, pela qual o tribunal fixou um “salário mínimo nacional” como correspondendo ao rendimento indisponível, equivalente ao montante do que é razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor (art.º 239.º, nº3, alínea b) , i) do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção específica), ocorreram factos (supervenientes) que justificam o deferimento da pretensão formulada pela insolvente/apelante.

2. Cumprindo, antes de mais, determo-nos, quer na pretensão formulada pela insolvente e que foi objeto de indeferimento pela primeira instância, motivando o presente recurso, quer na decisão que foi tomada em 14-03-2022 e que, sem discussão, se mostra transitada em julgado porquanto a devedora não recorreu da mesma, como mencionado no despacho recorrido e expressamente reconhecido pela apelante.
Começando por esta última, temos que o tribunal indicou, em março de 2022, como segue:
“(…) determino que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir mensalmente se considere todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia correspondente a um salário mínimo nacional” [ [3] ].
E que “fica ainda a insolvente obrigada a” “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão”.
É este específico segmento dessa decisão que a apelante, decorridos que foram quase sete meses depois, pretende seja alterada, nos seguintes termos, que correspondem à parte conclusiva do seu requerimento de 11-10-2022, renovada pelo requerimento de 07-11-2022:
“Face ao exposto, a requerente solicita que o rendimento disponível, passe a comtemplar o seu subsídio de férias e Natal, por forma permitir que a mesma tenha uma vida que respeite os mínimos da dignidade da condição humana, de outra forma não terá como sobreviver.
É tudo quanto, por ora, expõe e requer”.
Com a ressalva de que nos parece que onde a apelante indica “rendimento disponível” se deve ler “rendimento indisponível”, porquanto só essa interpretação é consentânea com o teor do articulado e da posição expressa pela requerente, como também se entendeu na decisão recorrida.
Começamos por esclarecer, uma vez que na decisão recorrida, pese embora o Juiz tenha indicado que tal matéria não estava em causa porquanto abrangida pelo caso julgado formado pela decisão anterior  [ [4] ], ainda assim avançou com aquele que indica ser o “entendimento de todos os juízos deste tribunal de Comércio”, a propósito dos moldes como devem ser ponderados, quanto a esta matéria, as quantias auferidas a título de subsídios (de férias e de Natal), que esta Relação vem adotando entendimento diferente daquele sustentado pelo Tribunal de Comércio do Barreiro, considerando-se, como já se deu nota no acórdão deste TRL de 22-03-2022 [ [5] ] que “[a] contabilização do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor, para efeitos de fixação do montante a entregar ao fiduciário, durante o período de cessão e no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante (art.º 239.º, nº3, alínea b) i) do CIRE), deve ser feita ponderando a inclusão dos valores auferidos pelo insolvente a título de subsídio de férias e de subsídio de Natal; assim, fixando o juiz o rendimento indisponível em montante equivalente a 1 (uma) retribuição mínima mensal garantida, o valor a entregar mensalmente pelo insolvente é alcançado pela fórmula: RMMG x 14 : 12”.
Assim, num caso em que estava em causa pretensão do apelante em ver reconhecido que o valor fixado como correspondendo ao rendimento indisponível fosse “acrescido de 50% dos subsídios de férias e de Natal”, escreveu-se [ [6] ]:
“O despacho (recorrido) é omisso na ponderação dos valores alusivos a subsídios de férias e de Natal auferidos pelo requerente ou, mais precisamente, o despacho é omisso quanto à forma de contabilização dos valores a entregar à fidúcia.
Com os parâmetros apontados, a questão que se coloca é a de saber se essa ponderação deve ser feita tendo por referência os 12 meses do ano ou, ao invés, devem igualmente ser contabilizados – e em que termos – os valores correspondentes aos subsídios de férias e de Natal (13º e 14º meses).
Esta questão não tem encontrado resposta uniforme na jurisprudência.
Para uns os valores recebidos pelo insolvente a título de subsídios de férias e de Natal devem ser, na totalidade, entregues ao fiduciário; é a solução propugnada pelo acórdão do TRC de16-10-2018, assim sumariado:
“I. A subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE não garante rendimentos ao devedor; o que ela garante, havendo rendimentos, é que uma parcela deles não será atingida pela cedência ao fiduciário.
II. O regime da penhora de vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação, que vigora no processo de execução, constitui uma indicação quanto ao que o legislador considera necessário para garantir o mínimo indispensável à vida do executado e do seu agregado familiar, podendo tal indicação ser transposta para a decisão a proferir em cumprimento da subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
III - A variação, em cada mês, do montante dos rendimentos do devedor não implica a alteração do âmbito da exclusão ditada pela subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE; a modificação do âmbito dessa exclusão justifica-se quando haja alteração do que é necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Assim, não tem amparo no CIRE a pretensão do devedor no sentido de, nos meses em que recebe subsídio de férias e subsídio de Natal, autonomizar estas prestações, em relação à pensão de reforma, para efeitos da aplicação da exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239º” [ [7] ] [ [8] ].
Para outros, a contabilização dos valores que devem considerar-se a coberto de qualquer diligência de apreensão ou entrega – no caso, entrega à fidúcia –, porque correspondem ao mínimo de subsistência inerente à salvaguarda a dignidade da pessoa humana, deve englobar não só a remuneração mínima mensal, mas ainda aqueles subsídios.
Foi essa a solução preconizada no acórdão do TRP de 22-05-2019, assim sumariado:
“I - Ao devedor insolvente deve ser resguardada da cessão ao fiduciário, pelo menos, quantia equivalente à retribuição mínima garantida, que corresponde, anualmente, à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por catorze.
II - Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano e constituindo a remuneração mínima anual 14 vezes aquele montante, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze” [ [9] ].
Afigura-se-nos que não está em causa, em primeira linha, ponderando os interesses em jogo, aferir da natureza dos subsídios aludidos, enquanto incluídos no conceito de retribuição versus meros complementos desta [ [10] ]. Efetivamente, não está aqui em causa questão laboral que cumpra dirimir ou qualquer litígio que implique a delimitação da retribuição auferida pelo trabalhador, com vista a avaliar da titularidade dos seus créditos sobre a entidade empregadora, em face do que dispõem os art.ºs 260º, 263º, 264º, 273º e 274º do Código do Trabalho (CT), aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro, ou seja, a determinação qualitativa da retribuição [ [11] ] [ [12] ]. 
Também não impressiona, como argumento, a invocação do conceito de retribuição mínima anual uma vez que o legislador nunca alude, para os efeitos que ora relevam, a esse conceito [ [13] ]; salienta-se, no entanto que, para efeitos fiscais, o valor dos subsídios até é contabilizado para aferição do “mínimo de existência” [ [14] ].
A questão põe-se, de forma similar, no âmbito da ação executiva e em face do que dispõe o art.º 738º, nº3 do CPC – com correspondência, ainda que com alterações, no anterior art.º 824º, nº2 –, tendo já sido objeto de apreciação pelo TC, nomeadamente no acórdão nºs 770/2014, de 12-11-2014, em que se se decidiu, “não julgar inconstitucional a norma extraída “da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do C.P.C., na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional mas que, coincidindo temporalmente o pagamento desta e subsídio de natal ou de férias se penhore, somando as duas prestações, na parte que excede aquele montante” [ [15] ].
No entanto, o acórdão não obteve a unanimidade dos respetivos juízes, lendo-se na fundamentação expressa na declaração de voto de um dos Juízes [ [16] ]:
“O direito do credor à satisfação do seu crédito à custa do património do devedor, enquanto direito de conteúdo patrimonial, tutelado pelo artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, encontra-se limitado pelo direito fundamental de qualquer pessoa a um mínimo de subsistência condigna, o qual se extrai do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1.º da Constituição.
Daí que a penhora de bens ou rendimentos do devedor para satisfação do direito do credor não possa privar aquele dos recursos que dispõe para viver com o mínimo de dignidade.
Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) .
Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.
E se os rendimentos de prestações periódicas deixam de ter justificação para estar a salvo, quando o executado dispõe de outros rendimentos ou de bens que lhe permitam assegurar a sua subsistência, os subsídios de férias e de Natal não podem ser considerados outros rendimentos para esse efeito, uma vez que eles integram o referido mínimo dos mínimos. Os subsídios de férias e de Natal não são outros rendimentos diferentes da pensão paga mensalmente, mas o mesmo rendimento periódico, cujo momento de pagamento coincide com o das prestações mensais.
Daí que tenha defendido que a interpretação sindicada deveria ser julgada inconstitucional por violação do direito fundamental de qualquer pessoa a um mínimo de subsistência condigna, o qual se extrai do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1º da Constituição” (sublinhado nosso).
Aderindo-se ao raciocínio assim exposto nesta declaração de voto e ponderando o disposto no art.º 17.º, nº 1, tendemos a considerar que, em princípio [ [17] ] os subsídios em causa devem ser computados para efeitos de determinação do valor correspondente ao sustento minimamente digno do devedor, ou seja, a contabilização dos valores a entregar mensalmente ao fiduciário deve ser efetuada segundo a seguinte fórmula: SMN x 14 : 12M”.
Não sendo essa a questão a decidir nos presentes autos, facilmente se alcança que o resultado pretendido pelo apelante, na pretensão que ora formulou e que o Juiz indeferiu, se reconduz afinal àquele contexto (de contabilização dos subsídios), pretendendo o apelante, ainda que por outra via, alterar a decisão já transitada, no que a esta matéria respeita, o que, se perspetivado nesses moldes, não é aceitável.
Ainda assim, sempre se dirá que o apelante vai mais longe porquanto pretende que os subsídios auferidos sejam integralmente considerados como fazendo parte do rendimento indisponível e não é essa a posição que resultaria do entendimento sufragado por esta Relação.
Concretizando e ponderando o corrente ano de 2023, o valor correspondente ao rendimento indisponível, no nosso entendimento, seria de 886,66€/mês (760,00€ x 14 :12), donde, nos meses em que são processados os subsídios, a apelante teria que entregar todo o rendimento auferido que excedesse esse montante; num juízo de prognose, auferindo um devedor quantia equivalente, estritamente, à RMMG, temos que, pelo critério adotado, seria cedida à fidúcia, no ano de 2023, o valor de 1.266,68€. 
Valor este que é diferente do que resulta do entendimento do tribunal recorrido, pelo qual se concluiu que a apelante teria de entregar, no ano de 2023, a quantia de 1520,00€, correspondente ao valor integral dos dois subsídios (ou seja, 253,32€ mais do que o valor que resulta do entendimento desta Relação) mas também diferente do propugnado pela apelante, que pretende nada entregar à fidúcia, integrando os subsídios, inteiramente, no rendimento que lhe está reservado, para o seu sustento, ou seja, por isso mesmo, no rendimento indisponível – cfr. a formulação do referido art.º 239.º.  
Feita esta delimitação, vejamos, então, da invocada ocorrência de factos supervenientes.

3. A apelante fundamenta a superveniência, essencialmente, na ocorrência de um facto, a saber, a inflação – cfr. as conclusões 6, 11 e 12 e, quanto aos requerimentos apresentados, os art.ºs 4.º e 6.º do requerimento de 11-10-2022 e o art.º 13.º do requerimento de 07-11-2022.
Efetivamente, quanto a outras despesas, de carater ocasional (despesas de saúde e eletrodoméstico essencial), como resulta da alegação da insolvente e do processo, as mesmas estão já ressalvadas e foram atendidas pelo tribunal em momento anterior, como corretamente se indica na decisão recorrida.
Tem razão a apelante quando considera que a inflação deve ser entendida como um facto notório (art.º 412.º, nº1 do CPC), entendendo-se que um facto “é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos” [ [18] ], salientando-se que se trata de facto que o juiz pode conhecer (art.º 5.º, nº2, alínea c) do CPC).
Assim, constitui um facto notório que o país tem assistido, tendo por referência o período que nos interessa (2022 e 2023), a uma subida generalizada e sustentada dos preços dos bens e serviços consumidos pelas famílias, mas o que releva fundamentalmente é a medida dessa subida porquanto é por aí que se pode avaliar a sua repercussão na vida dos cidadãos, particularmente os que auferem menores rendimentos. Usualmente a taxa de inflação é aferida tendo em conta o índice de preços no consumidor (IPC), por comparação dos preços atuais dos bens e serviços com os preços dos mesmos bens e serviços em períodos anteriores. Os dados estatísticos disponíveis evidenciam uma subida da taxa de inflação em 2022, com referência ao ano anterior, acompanhando os demais países da zona euro, com tendência de descida desde o início do ano de 2023 [ [19] ] [ [20] ].  
Quanto ao valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua redação atual, o Decreto-Lei n.º 109-B/2021, de 7 de dezembro aprovou a atualização do valor da RMMG a partir de 1 de janeiro de 2022, fixando-a em (euro) 705 (art.º 3.º), aplicável a todo o território continental, com efeitos a 1 de janeiro de 2022 (art.º 11.º) [ [21] ].
Lê-se no preâmbulo do diploma:
“Assim, mesmo em plena pandemia, o Governo decidiu manter a opção estratégica de valorização real do salário mínimo nacional. O efeito combinado das medidas de combate à pandemia e da evolução da situação epidemiológica com os apoios dirigidos às empresas e à manutenção de emprego permitem observar em 2021 uma recuperação dos níveis de emprego e do desemprego para os níveis pré-pandemia, de 2019. Os principais indicadores relativos ao mercado de trabalho recuperaram, assim, dos impactos da pandemia e, por outro lado, não revelam efeitos negativos do aumento do salário mínimo nacional sobre o emprego, perspetivando-se, aliás, um cenário de aceleração da recuperação económica para 2022.
Neste quadro, ponderadas as condições para aprofundar a trajetória de valorização real da RMMG e atendendo ao compromisso do XXII Governo Constitucional, o presente decreto-lei vem determinar o aumento para (euro) 705 do valor da RMMG, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2022”.
Para 2023 esse valor foi atualizado pelo Decreto-Lei n.º 85-A/2022, de 22 de dezembro, para o montante de (euro) 760, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2023 (art.º 3.º e 5.º) [ [22] ].
Lê-se no preâmbulo do diploma:
“A trajetória de atualização da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), prevista sucessivamente nos Programas do XXI, XXII e XXIII Governos Constitucionais, representa um compromisso para a recuperação do emprego e valorização dos salários, ancorada no diálogo tripartido e num quadro de estabilidade e previsibilidade.
Neste contexto, com o objetivo de assegurar a melhoria dos rendimentos e dos salários dos trabalhadores e de reforçar a produtividade e a competitividade da economia, o XXIII Governo, em sede de concertação social, celebrou com os parceiros sociais o Acordo de Médio Prazo de Melhoria dos Rendimentos, dos Salários e da Competitividade (Acordo).
No âmbito do Acordo assume-se, como objetivo primeiro, a valorização dos salários em Portugal, nomeadamente com o propósito de fazer aumentar o peso das remunerações no PIB em, pelo menos, três pontos percentuais até 2026 e de convergir com a média da União Europeia.
Prosseguindo o caminho de valorização real da RMMG que tem sido estabelecido de forma sustentada nos últimos anos, através de aumentos que foram acompanhados de criação de emprego e de crescimento da atividade económica, no Acordo assume-se ainda o objetivo de estabelecer uma trajetória plurianual de atualização da RMMG até ao final da legislatura. De forma faseada, previsível e sustentada, com metas concretas anuais, com o objetivo de atingir, pelo menos, (euro) 900 em 2026.
Com efeito, num momento de incerteza sobre a evolução da situação económica global, é necessário assegurar que os salários mais baixos têm uma melhoria efetiva e sustentada.
Acresce que, a trajetória de recuperação dos rendimentos do trabalho percorrida ao longo dos últimos anos e a consequente melhoria do poder de compra dos trabalhadores não só tem na sua base uma razão de justiça, como tem demonstrado contribuir para a dinamização do mercado de trabalho, nomeadamente com o efeito de arrastamento dos restantes salários, e contribuição para a dinamização, crescimento e fortalecimento da nossa economia.
Outrossim, a trajetória tem-se revelado essencial para atenuar as desigualdades salariais, conferindo uma maior justiça e equidade na distribuição dos rendimentos, contribuindo também para a redução da pobreza e diminuição do risco de exclusão e respondendo à exigência social, económica e política de assegurar a melhoria das condições de vida dos trabalhadores de mais baixos salários, reforçando-se, assim, a coesão social e económica”.
A taxa de variação média anual do IPC em 2022 foi fixada pelo INE em 7,8%; com referência ao corrente ano de 2023, e ponderando a taxa de variação homóloga de dezembro de 2022 (9,6%), a taxa de variação homóloga do IPC diminuiu para 8,4% em janeiro; diminuiu para 8,2% em fevereiro e para 7,4% em março de 2023 [ [23] ].
Em suma, a atualização da RMMG para 2022 correspondeu, pois, a uma percentagem de aumento de 6% (relativamente a 2021) e para 2023 a uma percentagem de aumento de 7,8% (relativamente a 2022)     [ [24] ], pelo que, ponderando os valores da inflação, conclui-se que a atualização da RMMG, quer para 2022, quer para 2023, não representou ao contrário da intenção manifestada pelo legislador no preâmbulo de cada um dos diplomas, uma valorização real do salário mínimo nacional, podendo concluir-se que a atualização ficou aquém da taxa de inflação apurada para o período respetivo.
Afigurando-se-nos que essa constatação não era evidente, nem inteiramente percetível, ainda, à data em que foi proferida a decisão (14-03-2022) que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante – fixando o rendimento indisponível no valor correspondente a um salário mínimo nacional, aferido mensalmente. Como resulta do que se expôs, só o decurso do tempo permitiu aquilatar da efetiva evolução da taxa de inflação e, principalmente, da consistência da subida generalizada dos preços dos bens e serviços consumidos pelos cidadãos em termos tais que, efetivamente, dependendo do concreto condicionalismo que se apresenta ao julgador, ponderando as especificidades do caso concreto, pode justificar-se nova aferição do valor que deve ter-se como necessário para assegurar o mínimo de subsistência inerente a uma existência condigna, num quadro de superveniência que é, assim, atendível.
É o que acontece no caso em apreço, ao contrário do que entendeu a primeira instância, o que não significa que possa aceitar-se a pretensão formulada pela apelante, na dimensão pretendida, como passamos a analisar.

4. A apelante pretende que se altere a referida decisão em ordem a que o rendimento indisponível “passe a comtemplar o seu subsídio de férias e Natal, por forma permitir que a mesma tenha uma vida que respeite os mínimos da dignidade da condição humana, de outra forma não terá como sobreviver”.
Ora, pelos motivos assinalados supra e como já se referiu, essa pretensão, nesses moldes, não pode ser atendida porquanto, insiste-se, redundaria na alteração da decisão proferida e já transitada, no que respeita aos moldes de contabilização desses valores, tanto mais que se trata de matéria em que a jurisprudência tem divergido pelo que não podia a insolvente deixar de estar atenta à mesma, aquando da notificação dessa decisão.
Mas pode aceitar-se que, em ordem a atender ao aludido facto superveniente, se amplie o valor fixado pela primeira instância naquela decisão, permitindo-se que dos valores que a insolvente venha a auferir a título de subsídios (de férias e de Natal) possa ser afetada uma parte ao rendimento indisponível, assim colmatando, minimamente, os efeitos (nefastos) da inflação. Dessa forma, o aumento que se fixar ainda se contém no valor do pedido feito pela apelante, assim se salvaguardando o princípio do dispositivo, também aplicável aos autos nos termos do art.º 17.º, nº1 e salvaguarda-se o caso julgado formado pela decisão anterior, porquanto não se altera a determinação do tribunal de primeira instância quanto à contabilização da quantia que mensalmente entendeu por bem fixar, que se mantém incólume.
Mais importante, assegura-se o desiderato do legislador ordinário, quando fixou a RMMG, salvaguardando-se igualmente exigências de cariz constitucional. O conceito constitucional de “dignidade da pessoa humana” – art.º 1.º da CRP – é um conceito estruturante e assume projeção no plano económico e social. Assim, “a dignidade da pessoa exige condições económicas de vida capazes de assegurar liberdade e bem-estar”, refletindo-se, nomeadamente, na obrigação do Estado estabelecer e atualizar o salário mínimo nacional, nos moldes que resultam do art.º 59.º, nº2 da C.R.P. “Daí, consequentemente, o direito das pessoas a uma existência condigna [art.º 59.º, nº2, alínea a), in fine] ou a um mínimo de subsistência, numa dupla dimensão: Negativa – garantia de salário, impenhorabilidade do salário mínimo ou de parte do salário e da pensão que afecte a subsistência (...)”[ [25] ].
Em consonância, por diversas vezes o TC tem sido chamado a pronunciar-se em casos em que se dirimiu o conflito entre o direito do cidadão devedor a uma existência condigna, que lhe é assegurada pelo fruto do seu trabalho, o salário e, portanto, do qual não pode ser (inteiramente) privado e, por outro lado, o direito do credor ao recebimento das quantias que aquele lhe deve, sendo que o TC, “tem feito uma utilização do princípio plena de consequências, associando-o, aí, à invocação e reconhecimento constitucional – com base na dignidade da pessoa humana – de um direito fundamental ao mínimo necessário para uma existência condigna” [ [26] ].
Tendo em conta o concreto condicionalismo que o processo fornece ao julgador, temos que, no caso em apreço, é impressivo o montante que a apelante despende em habitação, de 350,00€ mensais, salientando-se que a apelante reside na Av. (…) Amora [ [27] ]; acresce que, sendo o agregado familiar da insolvente constituído exclusivamente pela própria, esta não pode partilhar essa despesa, nem as demais que se apresentam como normais e inerentes à vida quotidiana, sem necessidade de concreta definição dos valores respetivos (água, eletricidade, gás, transportes, comunicações, etc) [ [28] ]. Também não é irrelevante a ponderação da idade da apelante, que atinge os 67 (sessenta e sete) anos em 31-05-2023, o que significa que as suas despesas de saúde tenderão a ser cada vez mais elevadas, mesmo as despesas correntes e triviais cujo enquadramento no disposto em iii) da alínea b) do número 3 do art.º 239.º nem sempre será linear  [ [29] ].
Em suma, como a apelante refere nas alegações de recurso, paga que seja a aludida renda, a apelante fica com a quantia de 410,00€ (760,00€ - 350,00€) para fazer face a todas as demais despesas, quantia que se tem por diminuta, para uma pessoa de quase 67 anos e que vive sozinha, devendo ser complementada, no contexto de superveniência a que se aludiu, com parte dos subsídios (de férias e de Natal) que forem processados a seu favor, no montante, que se me afigura razoável, ponderando também os interesses dos credores, de metade dos valores respetivos.
Procede, pois, parcialmente, a apelação interposta.
 *
Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a apelação, decide-se alterar a decisão recorrida e, consequentemente, fixar que integra o rendimento indisponível da devedora insolvente, para além da quantia já fixada pelo tribunal de primeira instância na decisão de 14-03-2022, o valor de metade do subsídio de férias e metade do subsídio de Natal que a apelante auferir, devendo o remanescente ser entregue à fidúcia.
Custas a cargo do insolvente na proporção de metade (art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.

Lisboa, 02-05-2022
Isabel Fonseca
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo

_______________________________________________________
[1] A devedora apresentou -se à insolvência em 22-12-2021, alegando que trabalha para a sociedade C Lda, com a categoria de empregada de balcão, juntando documentos (cópia do contrato de trabalho e recibo de vencimento); no cabeçalho da petição inicial indicou residir na “Av. (…) Amora”.   
[2] Com o seguinte teor:
“Req. de 11.10.2022- Em primeiro lugar, notifique a devedora para, em cinco dias, esclarecer:
a) a que se pretende referir quando afirma que "ainda procede ao pagamento do crédito titulado pelo credor H Unipessoal, Lda."; e 
b) em que medida os subsídios em causa alteram a gestão mensal dos respetivos rendimentos, posto que a devedora deve gerir as suas finanças numa base mensal”.
[3] Salvaguardando, obviamente, que, com a entrada em vigor da Lei 9/2022 de 11-01, em 11-04-2022, ou seja, em momento posterior à decisão, o período de cessão foi fixado em três anos.
[4] Assim:
“Tal despacho transitou em julgado, pelo que apenas perante factos novos e significativos poderá o ali decidido ser alterado. Sucede que da alegação da devedora nada de novo, verdadeiramente, resulta.
E tal vale quer para o tempo de cálculo dos rendimentos, quer para a disponibilidade dos subsídios em causa”.
[5] Proferido no processo 15004/21.1 T8LSB-B. L1, Relatora: Isabel Fonseca, Adjuntas: Fátima Reis Silva e Amélia Sofia Rebelo.
[6] Acórdão que não se mostra publicado, razão pela qual se transcreve a fundamentação respetiva, na parte que interessa, assim se evitando determinação de junção de cópia do mesmo e subsequente notificação dos intervenientes.
[7] Processo nº 1282/18.7T8LRA-C.C1 (Relator: Emídio Santos).
[8] Parece-nos que é nesse sentido que aponta, maioritariamente, o TRC e o TRG. Assim, entre muitos outros, cfr. os seguintes acórdãos:
- Do TRC: de 04-02-2020, processo nº 1350/19.8T8LRA-D.C1 (Relator: Maria João Areias), de 03-12-2019, processo nº 8794/17.8T8CBR-B.C1 (Relator: Ferreira Lopes) e de 17-03-2015, processo n.º 6/11.4TBVIS.C1(Relator: Fonte Ramos);
- Do TRG: de 12-07-2016, processo n.º 4591/15.3T8VNF.G1(Relator: Francisca Micaela Vieira) e de 26.11.2015, processo nº 3550/14.8T8GMR.G1 (Relator: Maria Amália Santos);
Cfr. ainda, novamente a título exemplificativo, o ac. TRP de 2018-05-07, processo nº 3728/13.1TBGDM.P1(Relator: Augusto Carvalho).
[9] Proferido no processo: 1756/16.4T8STS-D.P1 (Relator: Maria Cecília Agante);
No mesmo sentido cfr. ainda os seguintes arestos:
- Do TRL de 27-02-3018, processo: 1809/17.1T8BRR.L1-7 (Relator: Higina Castelo);
- Do TRP de 28-06-2017 Processo: 114/96.0TAVLG-A.P1 (Relator: Pedro Vaz Pato).
[10] Como se sabe, trata-se de prestações que são calculadas com base na média dos valores de retribuições e compensações retributivas auferidas nos últimos 12 meses, ou no período de duração do contrato se esta for inferior (art.º 160.º, nº4 do CT).
[11] Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 2006, Coimbra: Almedina, p. 455.
[12] Cfr. o acórdão do TRP de 23-09-2019, processo: 324/19.3T8AMT.P1 (Relator: José Eusébio Almeida).
Pode aí ler-se:
“Podemos simplificar, avançando a seguinte constatação: os subsídios de férias ou de natal (tal como, eventualmente, outras atribuições patrimoniais) serão excluídos da indisponibilidade quando – apenas quando -, o montante singelo do rendimento do devedor já alcança o montante fixado como rendimento indisponível.
Explicando-nos melhor.
Em primeiro lugar, entendemos que o valor do salário mínimo nacional enquanto equivalente ao sustento minimamente digno é uma referência e é uma referência mensal[13]: o salário mínimo nacional, esse valor de referência, em sede de CIRE, não se confunde com o crédito do trabalhador subordinado.
As fórmulas de cálculo do valor hora ou do rendimento anual, utilizáveis, desde logo, no direito laboral (para efeitos vários como por exemplo o cálculo das horas extraordinárias ou da indemnização por acidente de trabalho) não têm qualquer sentido operacional para o valor mensal que se considerou ser a referência operativa para a ponderação do mínimo de dignidade de sustento do devedor.
Assim, e em segundo lugar, teremos de considerar, respeitando outros entendimentos jurisprudenciais[14], que o salário mínimo nacional, enquanto referência ou padrão mínimo para a estipulação – pelo tribunal e olhando às particularidades de cada caso concreto - do (mínimo) rendimento indisponível do devedor, ou seja, não sujeito a cessão ao fiduciário (artigo 239, n.º 2 e n.º 3, alínea b), ii) do CIRE) é o salário mínimo nacional mensal, legalmente fixado, e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por 14 daquele valor[15].
Sustentar-se o contrário, e sabendo-se que os subsídios de natal e férias são pagos apenas, legal e habitualmente, duas vezes em cada ano (desde logo atendendo à finalidade dos mesmos) equivaleria a reconhecer-se, algo contraditoriamente, que o devedor ficaria com um rendimento indisponível abaixo do mínimo (de sustento digno) durante a maioria dos meses.
Em acórdão proferido a 7.05.2018[16] já esta Secção Cível decidiu, conforme sumariado, que “III - Os subsídios de férias e de Natal devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário” e ficou escrito no corpo do acórdão, também além do mais, o seguinte: “Quanto à consideração dos valores recebidos a título de 13º e 14º mês como rendimento disponível não se vê que belisque o direito às férias ou à subsistência e dignidade humana. Os subsídios de férias e de Natal, sendo um complemento da retribuição com a finalidade de ajudar ao gozo de férias e auxiliar nas despesas, normalmente acrescidas na quadra natalícia, nem por isso devem ser considerados imprescindíveis à satisfação das necessidades básicas da insolvente e, nesse sentido, como foi decidido, devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário”.
Diríamos até, sem que tal choque com a conclusão avançada no acórdão acabado de citar, que a questão relevante, num caso como o presente e nos semelhantes, não é uma questão de qualidade, mas de quantidade. Ou seja, o salário mínimo nacional, sempre que utilizado como referência e como equivalente ao mínimo de subsistência é, tão-só mas relevantemente, um valor, um montante, uma quantidade.
E, por sua vez, os subsídios de férias e de natal (como os prémios de produtividade, as ajudas de custo quando ultrapassam o valor das despesas tidas pelo trabalhador[17], as comissões e outras atribuições patrimoniais[18]) são “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”, incluídos ou não na cessão (239, n.º 3 e n.º 3, alínea b) i). Incluídos ou excluídos em razão da quantidade, não da qualidade, pois esta, em todos aqueles casos é a qualidade de “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”.
Que assim é - ou para que melhor se entenda que é assim -, basta substituir o conceito pela quantidade, pelo valor que em dado momento representa o salário mínimo. Efetivamente, se ficar estabelecido que o rendimento indisponível mensal é de 600,00€ (em vez de se dizer que é de um salário mínimo nacional) ninguém sustentará que o rendimento indisponível fixado foi de 700,00€ (600 X 14/12). Igualmente, se se fixasse o rendimento indisponível em 900,00€ (salário mínimo e meio), ninguém leria ali 1050,00€ (600 X 14/12 X 1.5)”
[13] Encontramos a alusão à retribuição mínima nacional anual (RMNA) num contexto completamente diferente e que, portanto, em nosso entender, não pode linearmente ser transposto para a hipótese que se nos depara, porque os conceitos valem no sistema normativo em que operam. Assim, o Decreto-Lei n.º 158/2006, de 8 de agosto, que aprovou os regimes de determinação do rendimento anual bruto corrigido e a atribuição do subsídio de renda, no âmbito do NRAU estabelece, no seu art.3º, sob a epígrafe “definições”, como segue:
Para efeitos do presente decreto-lei, considera-se:
a) «Retribuição mínima nacional anual (RMNA)» o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses” (sublinhado nosso).
[14] Assim, o art.º 70.º, nº1 do Código do IRS, sob a epígrafe “[m]ínimo de existência”, dispõe:
“1 - Da aplicação das taxas estabelecidas no artigo 68.º não pode resultar, para os titulares de rendimentos predominantemente originados em trabalho dependente, em atividades previstas na tabela aprovada no anexo à Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, com exceção do código 15, ou em pensões, a disponibilidade de um rendimento líquido de imposto inferior a 1,5 x 14 x (valor do IAS). (Redação da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)”.
[15] Proferido no processo n.º 485/2013 (Relator: Ana Guerra Martins). Lê-se na fundamentação respetiva:
“6. Mas a questão de constitucionalidade, propriamente dita, colocada pelo recorrente prende-se com a afetação, pela penhora, do valor pago a título de aposentação quando este coincida com o pagamento simultâneo da pensão mensal e do acréscimo correspondente a subsídio de férias ou a subsídio de Natal. Isto é quando essa penhora afete integralmente o montante do subsídio de férias ou de Natal – porque pago juntamente com a pensão mensal – e não apenas a parcela de cada um daqueles subsídios que fosse superior ao salário mínimo nacional.
Independentemente da natureza jurídica dos subsídios de férias e de Natal – que para o caso em apreço não releva – verifica-se que o critério normativo aplicado pelo tribunal recorrido foi o de que nos meses em que são pagos os subsídios de férias e de Natal aos respetivos beneficiários, estes se incorporam e se fundem com o montante base (e usual) da pensão paga mensalmente, pelo que, surgindo ao Tribunal Constitucional como um dado, é sobre este critério normativo que temos de nos debruçar.
Assim sendo, o que se tem de averiguar é se se deve reputar de atentatório da dignidade da pessoa humana, por colocar em crise o mínimo essencial à subsistência do recorrente, que se interprete a norma extraída da conjugação da alínea b) do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 824º do CPC, na redação anterior à atualmente vigente, no sentido de ser admissível a penhora de todo o montante do pagamento mensal que funda a pensão mensal com um subsídio de férias ou de Natal, desde que fique preservado o montante correspondente ao salário mínimo nacional.
Ora, posta assim a questão, constituindo o subsídio de férias e o subsídio de Natal um complemento à pensão normalmente devida, não se vislumbra que possam corresponder a uma quantia que deva ser qualificada como garantia desse mínimo essencial à subsistência condigna do recorrente, pelo que a interpretação normativa aplicada pelo tribunal recorrido não se afigura inconstitucional”.
[16] Declaração de voto: João Cura Mariano.
[17] Como se referiu, a delimitação do valor correspondente ao sustento minimamente digno do devedor pressupõe uma análise casuística.
[18] Acórdão do TRC de 22-06-2010, processo: 1803/08.3TBVIS.C1 (Relator: Carvalho Martins).
Cfr., ainda Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2013, Coimbra: Almedina, p. 74, no sentido de que o facto notório “vale de per si, não requerendo a formulação do nexo lógico ínsito à presunção. Também não é confundível com as máximas da experiência porquanto estas (neste enfoque) constituem regras para valorar factos e não factos”, apontando, exatamente, como um dos exemplos de facto notório “a inflação”.             
[19] A inflação homóloga reporta-se à taxa de variação entre um mês e o mesmo mês do ano anterior; a inflação média refere-se à taxa de variação entre a média dos valores do índice no último ano e a média do ano imediatamente anterior; cfr. a informação disponível no Portal do Banco de Portugal, in  https://bpstat.bportugal.pt/conteudos/paginas/1492, incluindo o Índice Harmonizado de Preços no Consumidor (IHPC), que é o índice utilizado na área do euro; “Ao ser "harmonizado" significa que todos os países da área do euro têm as mesmas categorias de bens e serviços nos seus cabazes e utilizam os mesmos métodos de cálculo. A composição do IHPC foi concebida de forma a que o cabaz de compras geral seja representativo em todos os países. Para além da despesa realizada pelos residentes num determinado território (país ou área do euro), o IHPC inclui também as despesas realizadas por turistas nesse território”.
[20] Cfr. ainda a informação disponível no Portal do INE (https://www.ine.pt/bddXplorer/htdocs/minfo.jsp?var_cd=0002386&var_cd=0002388&var_cd=0002390&lingua=PT),
[21] Para 2021, o valor da RMMG foi fixado 665,00€, pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2020 de 31-12.
[22] Sobre o qual incidem contribuições para a Segurança Social de 11% devidas pelo trabalhador, donde o salário mínimo líquido é de 676,40 € em 2023.
[23] Informação atualizada a 13 de abril de 2023, sendo os dados acessíveis no Portal do INE indicado.
[24] Cfr. ainda o Portal da Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho, acessível in https://www.dgert.gov.pt/evolucao-da-remuneracao-minima-mensal-garantida-rmmg.
[25] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 88-89.
[26] Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, Reimpressão, p. 66.
[27] Cfr. o documento alusivo ao contrato de arrendamento celebrado em 20-10-2020, cuja cópia foi junta com a petição inicial e o respetivo recibo de renda, cuja cópia também foi junta.
[28] Esse quadro factual foi definido na decisão proferida em 14-03-2022 e mantém-se atual ao que resulta do processo.  
[29] Salienta-se que a apelante juntou um conjunto de documentos a esse propósito, com a petição inicial, alguns alusivos a patologias de que padecerá.