Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2985/20.1T8CSC.L1-4
Relator: FRANCISCA MENDES
Descritores: DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
REFORMA DO ACORDÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: 1.Tendo-se apurado que o trabalhador se apropriou de bens que não lhe pertenciam, foi quebrada, de forma irremediável, a confiança da entidade empregadora no trabalhador, pelo que não é exigível a continuação da relação laboral, ocorrendo justa causa de despedimento.

2. Perfilhando o reclamante entendimento diverso do adotado no acórdão proferido nos autos, no que concerne à interpretação do art.º 240.º, n.º 1 do Código do Trabalho, tal divergência interpretativa não está contemplada no art.º 616.º, n.º 2 do CPC, conjugado com o art.º 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, uma vez que o respetivo âmbito de aplicação se circunscreve a situações em que por mero lapso tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


Em 6 de Abril de 2022 foi proferido o seguinte Acórdão por este Tribunal da Relação :


« I–Relatório


AAA impugnou a regularidade e licitude do despedimento promovido pelo seu empregador, a BBB.

A entidade empregadora apresentou o articulado motivador do despedimento, alegando, em síntese, que no dia 10 de Julho de 2020, cerca das 11 horas, o trabalhador furtou bens (não especificados) do empregador.

O trabalhador contestou, impugnando os factos dados como provados no procedimento disciplinar, para além de pugnar pela invalidade do procedimento disciplinar por falta de especificação dos factos na nota de culpa e na decisão de despedimento, por a decisão conter factos não descritos na nota de culpa, sustentando ainda a nulidade da prova (imagens CCTV) carreada para o processo face à sua desconformidade legal.

Concluiu pelo direito à reintegração e pelo pagamento dos salários intercalares.

Em sede de reconvenção peticionou a condenação da entidade empregadora no pagamento ao trabalhador da quantia de €3798,98 (referente ao subsídio de alimentação de 1 de Abril a 17 de Junho de 2020, à retribuição correspondente a 21 dias de Outubro de 2020, acrescida do respectivo subsídio de alimentação, ao subsídio de alimentação de Setembro de 2020, a dezasseis dias de férias vencidas e não gozadas no ano de 2020, ao subsídio de férias de 2020, aos proporcionais de férias, subsídio de férias e de subsídio de Natal do ano da cessação do contrato e à formação proporcional não ministrada de 2016 a 2020), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.

Peticionou ainda a condenação da R. no pagamento da indemnização por danos não patrimoniais no montante € 25.000,00.

Procedeu-se a Julgamento.

Em audiência o trabalhador optou pelo direito a indemnização.

Foi proferida sentença.

Pelo Tribunal a quo foram considerados provados os seguintes factos:

a)-Da decisão disciplinar:

Em 22 de março de 2020, a Empregadora declarou a verificação de situação de crise empresarial em virtude da quebra abrupta e acentuada de, pelo menos 40% da facturação, nos 60 dias anteriores à submissão do pedido junto da Segurança Social (Apoio Extraordinário à manutenção de contratos de trabalho em situação de crise empresarial) e por força do encerramento do estabelecimento …, e do legalmente determinado no Decreto 2-A/2020, de 20MAR, para os efeitos do disposto na Portaria 71-A/2020, de 15MAR, rectificada pela Declaração de Retificação nº 11-C/2020, de 16MAR, alterada pela Portaria 76-B/2020, de 18MAR, o que foi certificado pelo contabilista certificado da mesma.


No dia 30 de julho de 2020, foi elaborado auto de ocorrência por (…), Director de … (doravante (…)), onde é relatado o seguinte:
“Como é do conhecimento de V. Exas na data de 22MAR20 o estabelecimento hoteleiro … foi encerrado mantendo-se apenas os serviços mínimos necessários à manutenção e à posterior reativação da atividade dessa unidade hoteleira, por motivos de força maior ditados pela “alteração anormal de circunstâncias” imposta pela declaração de Estado de Emergência proferida pelo Presidente da República acima identificada, pela entrada em vigor das medidas do Governo supra referidas e demais decisões proferidas pelo mesmo e em suma por força da crise sanitária causada pela doença Covid-19 originada pelo Corona Vírus (SARS-CoV-2),
1.Durante o encerramento e como consequência do mesmo não foram adquiridos e/ou vendidos quaisquer produtos e ou serviços, nomeadamente bebidas;
2.Aos 17MAR20 foi realizada uma contagem de Stock no local denominado Gradeamento de Banquetes da Cozinha Quente, sito no piso -1, tendo sido apuradas as respectivas existências/Stock;
3.Aos 16JUL20, aquando da reabertura do Hotel ao público, foi realizada uma nova contagem de existências/Stock no local denominado Gradeamento de Banquetes da Cozinha Quente, sito no piso -1, tendo sido apuradas as respectivas existências/Stock;
4.Do confronto de stocks/existências realizado nas datas acima referidas resultaram as diferenças constantes do documento que se anexa - DOC. 1;
5.Como se poderá constatar da leitura do documento, aos 16JUL20 encontravam-se em falta no local denominado Gradeamento de Banquetes da Cozinha Quente as garrafas de bebidas alcoólicas constantes do referido Doc. 1, perfazendo o valor global de 1.700,06€;
6.Questionei o colaborador (…) (doravante (…)), Responsável de IT para a Protecção de Dados no Grupo Quinta da Marinha (QM), sobre a existência de imagens de CCTV que pudessem esclarecer as faltas em causa;
7.O … dispõe de um sistema de videovigilância com a finalidade de proteção de pessoas e bens, nos termos da autorização da CNPD nº 10663/2011;
8.Aos 29JUL20 solicitei ao colaborador (…) que procedesse à visualização das imagens constantes do sistema de CCTV instalado no período compreendido entre 17MAR a 16JUL20, no sentido de verificar se esta visualização poderia ajudar a esclarecer o sucedido com as garrafas em falta/desaparecidas.
9.Na sequência da visualização o (…)informou-me que apenas lhe tinha sido possível visualizar as imagens recolhidas no período de 29JUN a 28JUL20 e que tinha verificado uma ocorrência fora do normal, ocorrida aos 10JUL20 cerca das 11h00 (da manhã), na zona da rampa de acesso aos caixotes de lixo, tendo-lhe sido possível identificar a participação, na mesma, dos trabalhadores do departamento de manutenção AAA, BBB e CCC, ocorrência que se encontra registada com a referência “10-07-2020 11:44:42 Casa do Lixo” em vídeo captado pelo sistema de CCTV do (…), imagens essas (imagens vídeo com a referência “10-07-2020 11:44:42 Casa do Lixo”) que foram preservadas nos termos da Lei.”


No dia 17.06.2020, o trabalhador AAA apresentou a demissão com efeitos a 17.07.2020, não sendo hoje trabalhador da empresa.


No dia 31.07.2020 o trabalhador CCC, confrontado com o sucedido, apresentou a sua demissão com efeitos imediatos, não sendo hoje trabalhador da empresa.


No dia 3 de agosto de 2020, a Administração da sociedade (…). determinou a abertura de processo disciplinar ao trabalhador BBB, com intenção de despedimento, suspendendo preventivamente o trabalhador, com efeitos imediatos e antes da elaboração da Nota de Culpa e respectiva notificação, interditando-lhe o acesso às instalações da empresa e determinando-se ainda que o mesmo entregasse todo e qualquer bem ou equipamento a esta pertencente que tivesse na sua posse, designadamente chaves, ferramentas, farda e telemóvel.


O empregador apresentou queixa-crime contra BBB, e CCC, junta a fls. 73v/74v que aqui se reproduz - a qual viria a ser arquivada por despacho proferido no inquérito nº 3671/20.8T9CSC do DIAP de Cascais junto a fls. 249/252.


No dia 7 de setembro de 2020, o trabalhador BBB recebeu a comunicação da Empregadora no sentido de ter sido decidido instaurar ao mesmo um processo disciplinar com vista ao seu despedimento com justa causa acompanhada da respectiva Nota de Culpa e documentos conexos junta a fls. 92 e ss e cujo teor aqui se reproduz.


No dia 10 de julho de 2020, pelas 11h44, na zona de rampa de acesso aos caixotes de lixo foram captadas imagens através do sistema CCTV instalado pelo empregador nas suas instalações, sendo a câmara em apreço designada “Casa do Lixo”.


Naquele local e hora, o trabalhador, afecto ao departamento de manutenção do hotel e por isso com acesso a todas as divisões do mesmo transportou um caixote do lixo verde para a área do lixo, abriu a tampa do caixote de lixo verde por si transportado atrás da viatura do seu então colega CCC de forma a que a câmara de CCTV não filmasse o que ia fazer, abriu o porta bagagens do dito veículo marca … matrícula … do então colaborador CCC e retirou do interior do caixote do lixo verde por si transportado, diversos bens que colocou no porta bagagens do veículo da marca … matrícula … devidamente encobertos pela porta da bagageira.

10º
De seguida, simulou despejar o caixote do lixo verde na área de recolha do lixo, o qual se encontra sem lixo porquanto BBB já havia esvaziado o seu conteúdo para o interior do porta bagagens do veículo …

11º
O trabalhador retirou do hotel objectos que sabia não lhe pertencerem, dos mesmos se apropriando, utilizando para o efeito um caixote do lixo onde os transportou, de forma encapotada, colocando-os na bagageira do veículo marca .. que foi estrategicamente ali estacionado por CCC com o intuito de impedir que a Câmara de CCTV captasse claramente o sucedido,

12º
Após o que abandonou o local de trabalho naquela viatura na companhia dos seus colegas CCC e AAA, sem disso dar conta ao seu superior hierárquico durante o seu período de trabalho matinal.

13º
Na sequência do sucedido o então colaborador CCC, que se encontrava ao volante do veículo … matricula …, confrontado com a situação, apresentou de imediato a sua demissão em 31 de julho de 2020 (fls. 86).

14º
A decisão de despedimento de fls. 120/138, foi notificada ao trabalhador em 21 de outubro de 2020.

Mais se provou que:
15º
O trabalhador foi admitido ao serviço do empregador em 6.03.2015 para sob a sua direcção desempenhar as funções de técnico de manutenção/mecânico nível auferindo por último a remuneração base de € 700,00 (setecentos euros), e subsídio de almoço no valor diário de € 4,77 (quatro euros e setenta e sete cêntimos).

16º
No âmbito do contrato designado como “contrato de trabalho sem termo” celebrado entre as partes e junto a fls. 164 e ss, que aqui se tem como reproduzido, o trabalhador aceitou que o direito a férias, a respectiva retribuição e subsídio fossem gozados e pagos no ano civil em que o trabalho que lhes deu origem fosse prestado.

17º
O A. cumpria um horário de trabalho nos dias úteis das 8h00 às 12h00 e das 13h00 às 17h00 (fls. 115v).

18º
O empregador emitiu o recibo de “fecho de contas” junto a fls. 168v que comunicou ao trabalhador e à respectiva mandatária em 28 de outubro de 2020 e que apenas não foi liquidado pelo facto de o trabalhador discordar dos valores ali discriminados, não o aceitado tal pagamento.

19º
No ano de 2019, o trabalhador gozou 22 de férias relativas a 2019 (fls. 181 e 181v).

20º
No ano de 2020, o trabalhador gozou seis dias de férias relativas a 2020.

21º
A R. pagou ao A. em junho de 2020 a quantia de € 350,00, a título de subsídio de férias e a mesma quantia a título de subsídio de natal.

22º
Pelas razões mencionadas em 18º, a R. não pagou ao A. 21 dias de vencimento base de Outubro de 2020, no valor de € 490,00, acrescido do respectivo subsídio de alimentação relativo a 14 dias, no valor de € 66,78, nem os proporcionais de subsídio de férias e de subsídio de natal, bem como as férias não gozadas.

23º
A R. não pagou ao A. 12 dias de subsídio de alimentação do mês de Setembro de 2020, no valor de €57,24.

24º
A R. não proporcionou ao A. formação profissional certificada nos anos de 2016 a 2020.

25º
Em 22 de março de 2020, em reunião do Conselho de Administração, a R. deliberou, conforme acta nº 73, junta a fls. 182/184:
Ponto Um: Deliberar encerrar o estabelecimento hoteleiro … e declarar a verificação de situação de crise empresarial nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 3º da Portaria 71-A/2020 de 15MAR,
(…)
Ponto Dois: Deliberar requerer o apoio extraordinário à manutenção dos postos de trabalho nos termos e para os efeitos do disposto na Portaria 71-A/2020 de 15MAR (…)
Ponto Três: Deliberar requerer o Incentivo financeiro extraordinário para apoio à normalização da atividade da empresa nos termos do disposto no art. 9 da Portaria 71-A/202 de 15MAR, (…)”; decisão essa que teve como pressupostos/considerandos:
“(…)
a)- o Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18MAR, no qual o Presidente da República declarou o Estado de Emergência, pelo período de 15 dias, sem prejuízo de eventuais renovações, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública;
b)- as medidas do Governo consagradas no Decreto 2-A/2020, de 20MAR, que consagraram um dever geral de recolhimento domiciliário, bem como o encerramento de diversas instalações e estabelecimentos, nomeadamente restaurantes, bares, ginásios, piscinas e quaisquer locais destinados a práticas desportivas e de lazer;
c)- o cancelamento de voos diários pelas companhias aéreas, que tem impossibilitado a chegada de clientes que se veem assim impedidos de gozar a sua estadia, algumas delas já pagas, no …;
d)- a situação de histeria e pânico generalizado que tem levado à efetivação de inúmeros cancelamentos de estadia no … por parte de clientes, nacionais e estrangeiros;
e)- a impossibilidade de esta Sociedade ter antevisto e ou antecipado a crise sanitária da doença Covid-19, originada pelo Corona Vírus (SARS-CoV-2), e que os consequentes acontecimentos que se desenrolam dia-a-dia estão fora do seu poder de decisão e/ou controlo;
f)- a difícil situação económica em que se encontra a Sociedade por estar impossibilidade de exercer a sua atividade e assim fazer face às suas obrigações, nomeadamente ao pagamento de salários, de empréstimos bancários, de fornecedores e outros, motivada pela ausência de receitas decorrentes da aplicação das medidas determinadas pelas autoridades acima identificadas, com a consequente indisponibilidade de liquidez na tesouraria, em virtude da verificada “alteração anormal das circunstâncias” e consequentes motivos de força maior;
g)- a maioria das restantes sociedades do … se encontrarem em situação idêntica por as suas atividades fazerem parte daquelas que o Governo mandou encerrar e, consequentemente, terem ficado privadas das suas receitas;
h)- em suma, que das medidas acima referidas resulta inequivocamente uma “alteração anormal” das circunstâncias” e, consequentemente, um caso de força maior a que esta Sociedade é alheia tendo assim ficado impossibilitada de, no curto prazo, cumprir a maioria das obrigações por si assumidas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 437º do Código Civil (CC), o que constitui uma causa legítima de impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações assumidas a que se refere o art. 406.º do CC, tudo tendo em vista a sobrevivência da Sociedade, do grupo económico onde se insere e, consequentemente, a preservação do maior número possível de postos de trabalho e a sua capacidade produtiva, vendo-se assim esta Sociedade impossibilitada de exercer em plenitude a sua atividade económica por motivos de força maior ditados pela “alteração anormal de circunstâncias” imposta pelo Governo na sequência da entrada em vigor das medidas supra referidas, foi, por unanimidade, deliberado: (…)”;

26º
No dia 19 de abril de 2020, com a renovação do estado de emergência e o verificado agravamento das medidas impostas pelo Governo a R., em reunião do Conselho de Administração, determinou o seguinte que se transcreve e resulta da acta nº 74, junta a fls. 184 v a 185v.:
Ponto Único: Apreciação da situação da sociedade face à crise sanitária da doença Covid-19, originada pelo Corona Vírus (SARS-CoV-2) e deliberação sobre medidas a tomar pela Sociedade; (…)”
deliberação essa que teve como pressupostos/considerandos e decisão:
“(…)
a)-o Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18MAR, (…)
b)-O deliberado na última reunião do Conselho de Administração havida;
c)-A renovação do estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (…)
d)-O encerramento, por tempo indeterminado, do estabelecimento hoteleiro …explorado pela Sociedade, desde o dia 22MAR2020, ditado por motivos de força maior ditados pela “alteração anormal de circunstâncias” imposta pela declaração e posterior renovação do Estado de Emergência proferida pelo Presidente da República acima identificada, pela entrada em vigor das medidas do Governo supra referidas e demais decisões proferidas pelo mesmo;
e)-O Decreto n.º 2-B/2020 de 02ABR, que mantém o encerramento do estabelecimento supra referido e procede à execução da declaração/renovação do estado de emergência, objecto da renovação supra referida;
f)- a difícil situação económica em que se encontra e mantém a Sociedade, dada a paragem da sua actividade e receitas, por estar impossibilidade de exercer em plenitude a sua atividade e assim fazer face às suas obrigações, nomeadamente ao pagamento de salários, de empréstimos bancários, de fornecedores e de outros credores, motivada por força da ausência de receitas decorrentes da aplicação das medidas determinadas pelas autoridades acima identificadas, com a consequente indisponibilidade de liquidez na tesouraria, em virtude do acima referido e da consequente “alteração anormal das circunstâncias e consequentes motivos de força maior”, a que esta Sociedade é alheia, tendo assim ficado impossibilitada de cumprir a maioria das obrigações por si assumidas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 437º do Código Civil (CC), o que constituiu e constitui uma causa legítima de impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações assumidas a que se refere o art. 406.º do CC, tudo tendo em vista a sobrevivência da Sociedade, do grupo económico onde se insere e, consequentemente, a preservação do maior número possível de postos de trabalho e a sua capacidade produtiva, vendo-se assim esta Sociedade por motivos de força maior ditados pela “alteração anormal de circunstâncias” na sequência da entrada em vigor das medidas supra referidas obrigada a deliberar, o que faz, por unanimidade:
Ponto Único: mandatar qualquer um dos membros do Conselho de Administração para determinar a supressão da atribuição, com efeitos a partir de 01ABR2020, total ou parcialmente, de todos os potenciais prémios, abonos e subsídios aos trabalhadores, até determinação em contrário.
(…)”;

27º
Na sequência das deliberações supra referidas, no dia 20 de abril de 2020, a R. comunicou ao A. a supressão de prémios, abonos e subsídio de alimentação conforme comunicação cujo conteúdo se transcreve e que se mostra junta a fls. 191v.:
“(…)Tendo em consideração o Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18MAR, no qual o mesmo declara o Estado de Emergência pelo período de 15 dias, a sua renovação mediante Decreto do Presidente da República n.º 17- A/2020, de 2ABR, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, bem como as medidas do Governo consagradas no Decreto nº 2-A/2020, de 20MAR e posteriormente no nº 2-B/2020 de 02ABR, a sociedade foi forçada contra a sua vontade a encerrar os seus estabelecimentos e ou reduzir substancialmente a sua actividade durante o período em que tal declaração e medidas vigorarem.
Impossibilitada que se encontra assim de auferir receitas que lhe permitam fazer face às suas obrigações e de exercer a sua actividade por tempo indeterminado, situação esta que configura uma clara e inequívoca “alteração anormal de circunstâncias”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 437º do Código Civil (CC), vem esta Sociedade comunicar-lhe que fica suprimida a atribuição, com efeitos a partir de 1 de abril de 2020, de todos os prémios, abonos e subsídios aos trabalhadores, tendo-se determinado aos serviços administrativos e financeiros da Sociedade que procedam em conformidade. (…)”;

28º
No dia 24 de junho de 2020 a R., com efeitos a 1 de junho de 2020, retomou a atribuição do subsídio de alimentação aos seus colaboradores que se encontrassem a prestar trabalho efectivo, como era o caso do A. – cfr. fls. 186.

29º
Aquando do encerramento do estabelecimento da Ré, o Autor continuou a prestar o seu trabalho, durante o período normal de trabalho (40 horas semanais), sem qualquer alteração no tempo, modo e lugar de execução do mesmo.

30º
Pelos motivos supra expostos a Ré suspendeu, com efeitos a partir de 1 de Abril de 2020 e durante o mês de maio de 2020, o pagamento do subsídio de alimentação do A.

31º
O A. reside no concelho de Loures pelo menos desde janeiro de 2021 (data em que comunicou aos autos a alteração de morada – fls. 150 e ss).
*

Pelo Tribunal a quo foi consignado:
Não se provaram os demais factos alegados e bem assim os que se encontram em contradição com os supra dados como provados, que aqui se reproduzem.

Assim, com relevo para a causa, não se provou, designadamente que:
-Na sequência do despedimento, o A. dificilmente conseguirá trabalho na mesma área em que exercia funções, não só pela crise social e no mercado de trabalho que já se faz sentir e se agravará ainda mais atenta a crise económica actual, agravada pela situação pandémica que atravessamos;
-Ao ter sido chamado o Autor a uma reunião no dia 31 de Julho de 2020 (quando, aliás, se encontrava de baixa médica), na qual na presença de um Administrador, do Director de Recursos Humanos e do que vinha a ser o Instrutor do processo disciplinar, Dr. …, o Autor foi confrontado e pressionado por aqueles, para que apresentasse a sua demissão, logo ali, tendo-lhe sido dito, designadamente, que tinha praticado um crime, “que o seu registo criminal ficaria manchado e que teria dificuldade em arranjar outro trabalho nessa situação porque os empregadores solicitam o mesmo aos novos colaboradores”. Que “nunca mais iria arranjar trabalho em nenhum hotel, muito menos nos circundantes”, porque “a informação passa com muita facilidade”, pelo que a melhor solução era assinar a sua demissão e confessar os factos que a Ré alegava, algo que o Autor se se recusou perentoriamente a fazer;
-Ao ter procedido ao despedimento do Autor, com acusação injusta e sem provas, a Ré empurrou o Autor para uma situação de desemprego, causando-lhe, para além de uma situação de inegável fragilidade económica e colocando em causa a subsistência do seu agregado familiar (do qual, aliás, faz parte um menor), angústia e sofrimento, bem como vergonha e humilhação perante os demais colegas que trabalham na Ré e perante terceiros que tiveram conhecimento de que o Autor foi despedido;
-Ao ter feito uma participação criminal contra o Autor, pelos mesmos factos nos quais fundamenta o despedimento que ora se impugna, mesmo sabendo que a mesma não ter qualquer fundamento, causando-lhe angústia e sofrimento, bem como vergonha e humilhação perante os demais colegas que trabalham na Ré e perante terceiros que tiveram conhecimento de tal situação;
-Com os comportamentos descritos nos artigos anteriores, a Ré causou danos morais ao Autor, agravados pelo sofrimento e impacto negativo que o despedimento está a ter na sua vida pessoal e profissional, vivendo a situação de tristeza e sofrimento que se arrasta no tempo, e que afecta negativamente a sua estabilidade emocional e prejudica o seu equilíbrio familiar - sendo que o Autor tem um filho menor, ao qual acaba por transmitir sentimentos de sofrimento e de tristeza por ter sido despedido pela Ré, assim como à sua mulher que se encontra grávida, com gravidez de risco, motivada pela angústia e stress que a mesma igualmente vive fruto desta situação;
-O despedimento operado pela Ré, contra o Autor, que é ilícito, causou-lhe e continua a causar danos na sua imagem profissional, prejudicando-a negativamente, perante terceiros que trabalham na área de actividade desenvolvida pela Ré, consubstanciando uma “mancha” no seu percurso profissional;
-Mais, fruto do despedimento de que foi alvo e, consequentemente da situação de fragilidade económica que passou a viver (não só por força da forte diminuição de rendimentos seus e, pelo supra exposto, da sua esposa e, ainda, agravada pelo facto de não lhe terem, sequer, sido pagos os créditos laborais a que tinha direito com a cessação do contrato de trabalho), o Autor viu-se obrigado a abandonar a sua casa de morada de família, sita no concelho de Cascais, vendo-se obrigada a deslocar-se para um concelho onde as rendas não fossem tão elevadas (dado que deixou de conseguir suportar o valor mensal de renda que tinha até à data do despedimento);
-O que, para além de representar uma mudança radical nos seus hábitos de vida (e onde, aliás, tinha já conhecimentos, rede de apoio de vizinhos e amigos), acarretou para o seu agregado familiar uma mudança igualmente prejudicial, nomeadamente para o seu filho que teve de mudar de estabelecimento de ensino, perdendo contacto com os professores, auxiliares, colegas de escola e amigos que mantinha desde há vários anos;
-O que para além de tudo o mais, é também causa de tristeza e angústia quer do Autor quer do seu agregado familiar, contribuindo, assim, para um clima de incerteza e infelicidade que o Autor e família passaram a vivenciar deste a data do despedimento.
*

Pelo Tribunal a quo foi decidido :
«A)-Declarar a licitude do despedimento promovido pelo empregador com efeitos em 21 de outubro de 2020;
B)- Julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada e em consequência condenar o empregador a pagar ao trabalhador as seguintes quantias:
a.-€ 490,00 (quatrocentos e noventa euros) a título de retribuição do mês de outubro de 2020 e € 66,78 (sessenta e seis euros e setenta e oito cêntimos) a título de subsídio de alimentação do mesmo mês, quantias essas acrescidas de juros desde a data da citação, até pagamento;
b.- € 57,24 (cinquenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos) a título de remanescente de subsídio de alimentação de setembro de 2020 e acrescida de juros desde 30 de setembro desse ano, até pagamento;
c.- € 445,45 (quatrocentos e quarenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos) a título de férias não gozadas de 2020 (proporcionais), acrescida de juros desde a citação até pagamento;
d.- € 95,45 (noventa e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos) a título de proporcionais de subsídio de férias de 2020, acrescida de juros desde a citação, até pagamento;
e.- € 214,21 (duzentos e catorze euros e vinte e um cêntimo) a título de proporcionais de subsídio de natal de 2020, acrescida de juros desse a citação, até pagamento;
f.- €760,20 (setecentos e sessenta euros e vinte cêntimos) a título de crédito por horas de formação não ministrada, nem paga, acrescida de juros desde 21 de outubro de 2020, até pagamento.
g.- € 209,88 (duzentos e nove euros e oitenta e oito cêntimos) a título de subsídio de alimentação devido no período de 1 de abril a 31 de maio de 2020 e acrescida de juros desde a data do seu vencimento, até pagamento.
C) Condenar o trabalhador e o empregador no pagamento das custas que sejam devidas em juízo na proporção do respectivo decaimento que se fixa em 92,55% e em 7,45%. »

O A. recorreu desta sentença e formulou as seguintes conclusões :
(…)
(…)
A recorrida contra-alegou, sem formular conclusões, pugnando pela improcedência do recurso

O Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.      
  
IIImporta solucionar as seguintes questões :
- Se a sentença recorrida padece do vício de nulidade;
- Se não foram precisados na nota de culpa os factos imputados ao trabalhador;
- Se deve ser alterada a decisão referente à matéria de facto;
- Se ocorre despedimento sem justa causa;
- Se o recorrente tem direito a ser indemnizado e ao pagamento dos salários intercalares;
- Se deve ser atribuída ao recorrente uma indemnização a título de danos não patrimoniais;
- Se a sentença recorrida deve ser modificada no que concerne aos créditos referentes às férias vencidas em 2020 e proporcionais do ano da cessação do contrato e ao montante do subsídio de refeição durante o período de suspensão do referido subsídio.

IIIApreciação

Vejamos se a sentença recorrida padece do vício de nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, d) do CPC).

Na sentença recorrida é referido em sede de motivação da decisão referente à matéria de facto: 
« (…) Na verdade, não é compreensível a manobra deste veículo senão que o mesmo visasse a ocultação do que os demais trabalhadores efectuavam nas traseiras do carro, assim suficientemente longe da câmara que bem sabiam estar a registar aqueles movimentos. E o jogo dos caixotes de lixo e a abertura da tampa de um dos Molok´s serviram apenas para desviar atenções e suspeições, sendo certo que nada é despejado do último caixote. Naqueles bastidores o operador das imagens alegou ter conseguido visualizar, note-se, com recursos técnicos de maximização da imagem, que não dispomos, os dois trabalhadores a carregarem a bagageira do carro com duas ou três caixas que para ali carregaram. Ora, é certo que não temos a perfeição de tal imagem, mas os movimentos ali efectuados não deixam qualquer dúvida quanto ao carregamento que os trabalhadores se encontravam a fazer, guardando pertences na bagageira do veículo de Christopher.
Pertences que apenas poderiam ser do empregador, sendo esta a única explicação para o esquema oculto e a simulação de descarga de lixo.
Pertences que com grande probabilidade seriam pelo menos parte das bebidas alcoólicas que misteriosamente desapareceram do hotel num período em que apenas os colaboradores da manutenção permaneceram no local a trabalhar (…)
Consideramos até que mais longe poderia ter ido a decisão disciplinar no sentido de concluir que foram parte das bebidas que estavam guardadas no gradeamento de baquetes que foram apropriadas naquele dia 10 de julho de 2020 pelo trabalhador e pelos dois colegas.».

E em sede de fundamentação de Direito refere a sentença recorrida :
« Na situação dos autos, provou-se que o A. violou deveres a que estava adstrito por força do vínculo laboral mantido com o seu empregador.
Com efeito e pese embora não se ter apurado em que medida, demonstrou-se que o trabalhador à revelia do empregador, retirou do hotel bens que sabia não lhe pertencerem e que transportou daquele local, fazendo-os seus.
A forma premeditada e concertada com que agiu, com mais dois colaboradores, de tal escopo apropriativo, aproveitando-se das circunstâncias anormais que se viviam na empresa e aliás no mundo, indiferente até à situação difícil que a empresa, impossibilitada de laborar, enfrentava, valendo-se da circunstância do reduzido movimento no local e do acesso privilegiado que tinha naquelas instalações, face às suas funções, para “brincar” com um esquema de transporte de falso lixo dirigido ao veículo da fuga, levam-nos a concluir que este trabalhador não é merecedor de qualquer confiança por parte de nenhuma empresa, aliás de nenhum sector, que lesa, à descarada o empregador, sabendo que está a ser filmado, mas que ainda se vem insurgir quanto à decisão do empregador de pôr cobro àquela relação que assim foi ferida de morte.
Tal actuação é manifesto que não pode ser tolerável, sendo que apesar de não ter sido possível quantificar em que medida lesou o trabalhador os interesses patrimoniais da empresa, digamos que estes são até os mais irrelevantes na conjectura mencionada, já que houve aqui uma deslealdade enorme com uma quebra irremediável da confiança implícita em qualquer relação de trabalho, sobretudo quando se deposita a mesma num trabalhador que tem acesso a todas as instalações do empregador e que revela ser indigno de tal confiança.»

Do exposto resulta que a menção das referidas bebidas alcoólicas insere-se apenas na motivação da decisão referente à matéria de facto e constituiu apenas um juízo hipotético e lateral.

A verificação de justa causa de despedimento não teve como alicerce este comentário lateral, mas sim a apropriação pelo ora recorrente de bens que não lhe pertenciam.

Concluímos, por isso, que a sentença recorrida não enferma do vício de nulidade por excesso de pronúncia.
*

O recorrente refere que invocou antes da sentença vários vícios do procedimento disciplinar (Conclusões 2ª a 15ª), mas em sede de recurso apenas invoca  (conclusão 115ª e corpo alegatório) a falta de concretização na nota de culpa dos factos que lhe são imputados.

A este propósito refere a sentença recorrida:
«O trabalhador sustentava a invalidade da decisão disciplinar e ilicitude do despedimento por falta de descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador na nota de culpa, como decorre do artigo 353º, nº 1 do CT e 382º, nºs 1 e 2, al. a), do CT.
Relativamente a esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a nota de culpa desempenha a função própria da acusação em processo-crime: por isso, nela deve constar a descrição circunstanciada, em termos de modo, tempo e lugar, dos factos de onde se extraia a imputação de uma infracção ao trabalhador” .
“Os comportamentos imputados ao trabalhador, susceptíveis de integrar infracção disciplinar, devem ser descritos na nota de culpa com a narração, tão concreta quanto possível, do circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que ocorreram, de forma a permitir ao arguido o perfeito conhecimento dos factos que lhe são atribuídos, a fim de poder organizar adequadamente a sua defesa” (vide ac. do STJ de 14.11.2018 e jurisprudência aí citada, disponível in www.dgsi.pt).
Apesar do modo exigente como a lei se refere à nota de culpa, a jurisprudência tem admitido que as deficiências da nota de culpa se considerem sanadas, desde que, na sua defesa, o trabalhador mostre ter compreendido o teor da nota de culpa.
É uma posição com a qual se concorda já que a finalidade da exigência de indicação circunstanciada dos factos da nota de culpa visa assegurar o direito de defesa do trabalhador, se este se defende em relação a um facto não completamente circunstanciado, mostra que o conhecia, pelo que a finalidade da norma se deve considerar cumprida.
Não basta de facto uma indicação genérica e imprecisa do comportamento imputado ao trabalhador, antes uma especificação dos factos em que esse comportamento se traduziu, bem como as circunstâncias em que tais factos ocorreram.
Ora, na situação dos autos compulsada a nota de culpa, junta a fls. 92 e ss, constata-se que a mesma, à semelhança da decisão disciplinar, está longe de ser escorreita e objectiva, até porque mais que discriminar factos como se imporia, transcreve depoimentos obtidos na fase preliminar, confundindo prova com factos. No entanto, a mesma remete para o teor da queixa crime apresentada pelo empregador que também se transcreve sob no artigo 7º daquela peça, ao mesmo sendo imputado a prática de um crime de furto pelo menos ocorrido no dia 10.07.2020, pelas 11h44m, consistente na apropriação de bebidas do hotel, conforme se inferiu das imagens captadas pelo sistema de vigilância.
Aliás, o arguido respondeu à nota de culpa (fls. 103 a 104) e apesar de se insurgir quanto ao respectivo método, com o qual não podemos deixar de concordar, nega frontalmente que se tenha apropriado de quaisquer garrafas da propriedade do empregador, impugnado o inventário, a validade das imagens, que no seu entender nada demonstram para além de não poderem ser valoradas, sustentando ainda não ter acesso ao local onde as garrafas estavam depositadas por não possuir as respectivas chaves.
Significa isto que o trabalhador compreendeu perfeitamente a imputação que lhe era dirigida, os seus contornos e circunstâncias, em nada ficando beliscado o exercício da sua defesa.
A nota de culpa, apesar das apontas deficiências estruturais foi ainda assim apta a dar a conhecer ao trabalhador os concretos comportamentos imputados. Processo: 2985/20.1T8CSC
Donde, concluímos que não assiste razão ao trabalhador na verificação do apontado vício, que inquinaria o restante procedimento, incluindo a decisão de despedimento. »

Assim e não obstante uma certa falta de rigor na delimitação dos factos dos meios de prova na nota de culpa, sufragamos neste aspecto a sentença recorrida.    
*

Vejamos, agora, se deve ser alterada a decisão referente à matéria de facto.
(…)
Concordamos, por isso, com a apreciação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal a quo.    
     
Improcede, desta forma, o recurso quanto à matéria de facto.
*

Os factos provados são os acima indicados.

Resulta dos factos provados sob 9 a 12 que o ora recorrente apropriou-se de bens que não lhe pertenciam.

De acordo com o art. 351º, nº1 do referido Código do Trabalho, « constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».

Conforme refere Pedro Furtado Martins in “ Cessação do Contrato de Trabalho”, 3 ª edição, pág. 170, é  « necessário reconduzir os factos que estão na base da justa causa -o comportamento culposo do trabalhador – a uma dada situação : a situação de impossibilidade de subsistência da relação de trabalho. Impossibilidade entendida não em sentido material, mas em sentido jurídico e como sinónimo de inexigibilidade: a verificação da justa causa pressupõe que não seja exigível ao empregador que prossiga na relação» (sublinhado nosso).

A impossibilidade de subsistência da relação de trabalho deve ser apreciada de acordo com os padrões de uma pessoa normal colocada na posição do empregador. A este propósito refere Monteiro Fernandes in Direito do Trabalho, 15ª edição, pág. 595 : «Embora num plano de objectividade, o elemento “impossibilidade prática” reporta-se a um padrão essencialmente psicológico : o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, implicando mais ou menos frequentes e intensos contactos entre os sujeitos». E mais adiante :« … a confiança não pode ser senão um modo de formular o suporte psicológico de que a relação de trabalho, enquanto relação duradoura, necessita para subsistir».

De acordo com o nº 3 deste último preceito legal, «na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes».

No caso concreto não foi possível apurar o grau de lesão dos interesses do empregador, mas dos factos provados resulta clara uma violação do dever de lealdade previsto no art. 128º, nº1 f) do CT.

Foi quebrada, de forma irremediável, a confiança da entidade empregadora no trabalhador, pelo que não é exigível a continuação da relação laboral.

Concluímos, por isso, pela verificação de justa causa de despedimento.

Improcedem, em consequência, os pedidos de indemnização em substituição da reintegração, de pagamento de salários intercalares e de indemnização a título de danos não patrimoniais.
*

Vejamos, agora, os demais créditos invocados pelo recorrente.

Quanto a férias refere a sentença recorrida :          
«Provou-se ainda quanto a férias que o A. não tinha férias por gozar pelo trabalho prestado em 2019, pelo que em janeiro de 2020 as mesmas não se venceram, porquanto o trabalhador gozava as férias no ano do trabalho a que as mesmas davam origem.
Assim apenas tem direito aos proporcionais de férias de 2020 nos termos do artigo 245º, nº 1, al. b) do CT, bem como aos proporcionais de subsídio de férias e de subsídio de natal, tendo-se em consideração que o contrato cessou a 21 de outubro de 2020.
Assim,
A lei estabelece que "o período anual de férias tem a duração mínima de 22 dias úteis" (art.º 238.º, n.º 1 do Código do Trabalho), como tal se considerando "os dias da semana de segunda-feira a sexta-feira, com excepção de feriados", (artigo 238º, nº 2 do CT) sendo que "a retribuição do período de férias corresponde à que o trabalhador receberia se estivesse em serviço efectivo" (artigo 264º, nºs 1 e 2 do CT).
Em decorrência, o cálculo do valor diário das férias não gozadas nem pagas proporcionais ao ano da cessação corresponderá não a 1/30 da retribuição mensal, mas, outrossim, a 1/22 da retribuição mensal.
Ora, tendo o A. gozado seis dias de férias naquele ano da cessação do contrato, num total de 20 a que teria direito, será a R. condenada a pagar-lhe 14 dias de férias não gozadas, o que considerando a sua retribuição base de € 700,00, perfaz o valor ilíquido de: € 1/22 da retribuição mensal (no caso: € 700,00: 22 = € 31,81). Destarte, tendo direito a receber 14 dias de férias proporcionais, isso equivale a (€ 31,81(..) x 14 =) € 445,45.
O mesmo terá direito a título de proporcional de subsídio de férias do ano da cessação do contrato, sendo que estando provado que a tal título já recebera em junho de 2020, € 350,00, apenas lhe é devida a quantia de € 95,45.»

Resulto provado
-No âmbito do contrato designado como “contrato de trabalho sem termo” celebrado entre as partes e junto a fls. 164 e ss, que aqui se tem como reproduzido, o trabalhador aceitou que o direito a férias, a respectiva retribuição e subsídio fossem gozados e pagos no ano civil em que o trabalho que lhes deu origem fosse prestado (facto provado sob 16);
-No ano de 2019, o trabalhador gozou 22 de férias relativas a 2019 (facto provado sob 19)
-No ano de 2020, o trabalhador gozou seis dias de férias relativas a 2020 (facto provado sob 20);
-A R. pagou ao A. em junho de 2020 a quantia de € 350,00, a título de subsídio de férias e a mesma quantia a título de subsídio de natal (facto provado sob 21).

Ora, conforme resulta do disposto no art. 237º, nºs 1 e 2 do CT, o trabalhador tem direito, em cada ano civil, a um período de férias que se vence em 01 de Janeiro.
O direito a férias reporta-se, em regra, ao trabalho prestado no ano civil anterior.
Estatui o a art. 240º, nº1 do CT que as férias são gozadas no ano civil em que se vençam.
Estamos perante uma norma imperativa que não foi observada no acordo das partes.
O recorrente tem, assim, direito a 16 dias ( 22-6) férias vencidos em 1 de Janeiro de 2020 e ao subsídio de férias respectivo ( 700-350).
O recorrente tem ainda direito aos proporcionais de férias e de subsídios de férias pelo trabalho prestado durante o ano da cessação do contrato.

Quanto ao subsídio de refeição refere a sentença recorrida :
«Por fim, quanto à invocada alteração anormal das circunstâncias legitimadora da omissão do pagamento de subsídio de alimentação ao trabalhador no período compreendido entre 1 de abril a 31 de maio de 2020, já que ante os documentos juntos aos autos e supra aludidos e extractos bancários não e demonstra o que vinha alegado pelo A., i.e, que tal suspensão de pagamento e tivesse prolongado até 17.06.2020.
Como é consabido, por força do nº 2 do artº 260º CT, o subsídio de refeição não integra, em regra, o conceito de retribuição, a menos que, na parte que exceda o seu montante normal, tenha sido previsto no contrato de trabalho ou se deva considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Não vinha invocada a natureza retributiva de tal prestação sendo que considerando que o seu valor diário (€ 4,77) correspondente ao valor actual do subsídio de refeição da função pública, fixado em 1 de agosto de 2017 pelo nº 1 do artigo 20º da Lei nº 42/2016 – Orçamento do Estado para 2017 e atento o custo médio de uma refeição, não se considera que tal valor exceda o inerente custo, ficando certamente até aquém do mesmo.
O artigo 437.º do C. Civil determina no seu nº 1 que se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa -fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
E no seu n.º 2 estipula-se que “requerida a resolução, a parte contrária pode opôr-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior (nº 2).
É, assim, possível ao contraente lesado resolver ou modificar o contrato se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, que não seja desenvolvimento ou consequência da situação já conhecida à data do contrato, por forma a que a exigência do cumprimento da obrigação ofenda o princípio da boa fé.
Nada na lei obriga à existência de um subsídio de alimentação, mas apenas que existindo o seu valor mínimo actual corresponda aos €4,77 auferidos pelo trabalhador.
O artigo 437.º do CC permite, por isso, a modificação ou resolução de um contrato no caso de alteração da chamada base negocial.
Constitui uma evidente alteração da base negocial, ou de alteração anormal das circunstâncias que presidiram à realização de um contrato a superveniência de uma pandemia, que paralisou a actividade económica e a liberdade de circulação das pessoas, confinadas ao seu domicílio e a saídas tipificadas a um propósito delimitado pela lei.
No entanto, estamos na área laboral, perante um trabalhador que aufere uma retribuição base de € 700,00 e que continuou a trabalhar sem qualquer alteração, pelo que acaso seria legítimo ao empregador suspender o pagamento de um subsídio de alimentação diário de 4,77€ relativamente a um trabalhador a quem o contrato não foi suspenso, nem beneficiou de quaisquer medidas relativas a lay-off, mantendo-se o trabalhador a cumprir o seu horário de trabalho normal e a suportar o custo das suas refeições em cada dia de trabalho?
Não, o que ofende os princípios da boa fé é justamente a medida de suspensão do pagamento de um subsídio de alimentação, que apesar de não obrigatório por lei tem na sua base uma génese compensatória de despesas imprescindíveis à subsistência do trabalhador e que foi convencionada pelas partes.
Não se pode por isso considerar que a manutenção de tal pagamento diário, mesmo nas circunstâncias apuradas, seja enquadrável num dano grave e intolerável para o empregador, que aliás voltou a processar tal subsídio a 1 de junho de 2020, antes até da reabertura do estabelecimento.
Por isso, tem o trabalhador direito ao pagamento do subsídio de alimentação correspondente ao período de 1 de abril a 31 de maio de 2020, à razão diária de € 4.77, que se computam em 44 dias, no total de € 209,88. »

Defende o recorrente que tal subsídio é devido até 17 de Junho.

Vejamos.

Resulta dos factos provados sob 28 e 30 que a recorrida retomou o pagamento do subsídio de refeição com efeitos a 1 de Junho de 2020, pelo que, nesta parte, carece de razão o recorrente.

IVDecisão
Em face do exposto, acorda-se  em julgar o recurso parcialmente procedente e , em consequência : 
a)-Confirmar a declaração de licitude do despedimento e absolver a recorrida dos pedidos de pagamento de uma indemnização em substituição da reintegração, dos salários intercalares e de uma indemnização a título de danos não patrimoniais;
b)-Alterar as alíneas B) c) e d) da decisão que passarão a ter a seguinte redacção :
- O Tribunal decide condenar o empregador no pagamento ao trabalhador de:
- 16 (dezasseis) dias de retribuição de férias vencidas em 01.01.2020, acrescidos de subsídio de férias no montante de €350 ( trezentos e cinquenta euros);
-proporcionais de férias e subsídio de férias pelo trabalho realizado pelo trabalhador no ano da cessação do contrato;
c)- Manter no mais a sentença recorrida.
Custas em ambas as instâncias pelo A. e pela R. na proporção do decaimento, levando em atenção a decisão referente ao apoio judiciário concedido ao A.. » 

A recorrida veio requerer a reforma do Acórdão proferido, com os seguintes fundamentos:           
«1.Por força do disposto no art. 616.º, nº 2, do CPC, não cabendo recurso da decisão - como é o caso -, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma daquela  quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da
proferida.
2.Ora, o acórdão reformando, não obstante manter praticamente in totum o sentido e decisão constantes da sentença recorrida, vem proceder à alteração do ali   decidido nas als. c) e d) da Alínea B) do respectivo segmento, a saber:

i.- Sentença - Decisão:
Al.B):Julgar a reconvencã̧o parcialmente procedente, por provada e em consequência condenar o empregador a pagar ao trabalhador as seguintes quantias:
(...)
c.- € 445,45 (quatrocentos e quarenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos) a titulo de férias não gozadas de 2020 (proporcionais), acrescida de juros desde a citação até pagamento;
d.-€ 95,45 (noventa e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos) a título de proporcionais de subsídio de férias de 2020, acrescida de juros desde a citação, até pagamento;”

ii.- Acórdão - Decisão:
“ Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso parcialmente pocedente, e, em consequência:
(...)
b)-Alterar as alíneas B) c) e d) da decisão que passarão a ter a seguinte redacção:
- O Tribunal decide condenar o empregador no pagamento ao trabalhador de:
- 16 (dezasseis) dias de retribuição de férias vencidas em 01.01.2020, acrescidos de subsídio de férias no montante de €350 (trezentos e cinquenta euros);
- proporcionais de férias e subsídio de férias pelo trabalho realizado pelo trabalhador no ano da cessação do contrato;”

3.Para alterar a sentença na parte a que nos vimos referindo, no acórdão expende-se a seguinte fundamentação:

“Resultou provado:
- No âmbito do contrato designado como “contrato de trabalho sem termo” celebrado entre as partes e junto a fls. 164 e ss., (...), o trabalhador aceitou que o direito a férias, a respectiva retribuição e subsídio fossem gozados e pagos no ano civil em que o trabalho que lhes deu origem fosse prestado (facto provado 16)
- No ano de 2019, o trabalhador gozou 22 de férias relativas a 2019 (facto  provado sob 19)
- No ano de 2020, o trabalhador gozou 6 de férias relativas a 2020 (facto  provado sob 20)
- A Ré pagou ao A. em junho de 2020 a quantia de €350, a título de subsídio de férias e a mesma quantia a título de subsídio de natal (facto provado sob 21).
Ora, conforme resulta do disposto no art. 237º, nºs 1 e 2 do CT, o  trabalhador tem direito, em cada ano civil, a um período de férias que se vence em 01 de Janeiro. O direito a férias reporta-se, em regra, ao trabalho prestado no ano civil anterior.
Estatui o art. 240º, nº 1 do CT que as férias são gozadas no ano civil em que se vençam.
Estamos perante norma imperativa que não foi observada no acordo das partes.
O recorrente tem, assim, direito a 16 dias (22-6) férias vencidos em 1 de Janeiro de 2020 e ao subsídio de férias respectivo (700-375).
O recorrente tem ainda direito aos proporcionais de férias e de subsídios de férias pelo trabalho prestado durante o ano da cessação do contrato.”
4.Ora, com o devido respeito, ocorre manifesto lapso do julgador na qualificação jurídica dos factos e/ou na aplicação do Direito ao caso concreto.
5.Ainda que a norma do art. 240º do CT seja uma norma imperativa, o seu  sentido e alcance não podem deixar de ser alcançados – a sua interpretação, em suma – em conjugação com outras normas, como sejam as demais relativas ao direito a férias.
6.Ora, a norma do art. 240º do CT, a ser imperativa (ou, preferivelmente,  injuntiva, por contraposição a dispositiva), isto é, não se permitindo o afastamento do seu regime por convenção em contrário,
7.Apenas o impede para prevenir que o trabalhador seja prejudicado, que a empregadora, por razões entendíveis, não possa impor ao trabalhador uma regra contratual diversa que o prejudique.
8.Como é natural, essa proibição já não pode verificar-se se o trabalhador, pelo contrário, não é prejudicado mas sim privilegiado.
9.A norma (regime regra) do art. 240 do CT estabelece que o direito a 22 dias úteis de férias se vence no dia 1 de Janeiro de cada ano, e se reporta ao trabalho prestado no ano anterior, deve ser conjugada com a norma (regime especial) do art. 239º, nº 1, do CT, nos termos da qual, no ano da admissão, o trabalhador tem direito a 2 dias úteis de férias por cada mês de duração do contrato, cujo gozo pode ter lugar após seis meses completos de execução do contrato.
10.O que significa que, sem a norma especial do art. 239º, nº 1, do CT, um trabalhador que entrasse ao serviço em janeiro, estaria a trabalhar sem poder gozar a  totalidade ou a maioria das férias a que vai ter direito até janeiro do ano seguinte, pois o direito a férias pelo trabalho prestado no ano anterior apenas se venceria em 01 janeiro do ano seguinte e as férias apenas poderiam ser gozadas no decurso daquele ano seguinte, conforme art. 240º do CT.
11.A norma do art. 239º, nº 1, do CT vem permitir, derrogando parcialmente o regime regra, ou melhor, estabelecendo um regime especial para o ano da admissão, que o trabalhador goze férias no ano da admissão ou, se trabalhar menos de seis meses nesse ano, que possa gozar férias no ano subsequente mas relativamente a esse período excepcional.
12.Ora, se no contrato de trabalho se vai mais além, quando naquele se estabelece um regime ainda mais favorável que privilegia o trabalhador do que o que resulta da norma do art. 239º, nº 1, do CT, que já contempla um benefício do trabalhador vis-a-vis o regime regra do art. 240º,
13.Qual o problema em o contrato de trabalho prever um regime diverso do da norma imperativa do art. 240º, do qual não decorre a remissão/renúncia, por parte do trabalhador, do respectivo gozo de qualquer dia de férias a que tenha direito outrossim a possibilidade de antecipar o gozo de dias de férias futuras ainda não vencidas?
14.Tendo o regime do art. 240 do CT natureza imperativa para fins de protecção do trabalhador, não pode deixar de se considerar, atendendo precisamente à teleologia da norma e fundamento da sua imperatividade (injuntividade, como se prefere), que essa limitação, esse obstáculo, cessa quando o trabalhador é beneficiado face ao regime regra.
15.Ora, resulta indubitavelmente dos factos provados que o contrato de trabalho prevê a aceitação, pelo trabalhador, que o direito a férias, a respectiva retribuição e subsídio fossem gozados e pagos no ano civil em que o trabalho que lhes deu origem fosse prestado.
16.E ficou igualmente indubitavelmente provado que no ano de 2019 o trabalhador gozou 22 dias de férias relativamente a 2019 e que em 2020 o trabalhador gozou seis dias de férias relativamente a 2020, tudo com base em documentos subscritos pelo trabalhador,
17.E indubitavelmente recebeu os respectivos subsídios de férias.
18.Ora, o que na realidade aconteceu é que a Recorrida antecipou ao  trabalhador um direito - gozar férias e receber o respectivo subsídio -, que este apenas iria poder exercer e beneficiar mais tarde, isto é, a partir do dia 1 de janeiro do ano seguinte, pelo que claramente do contratualmente previsto resulta um privilégio/vantagem para o trabalhador e não a renúncia a qualquer direito inalienável.
- ou seja os proporcionais relativos ao trabalho prestado em 2020 e que seriam, em princípio, pagos e gozados em 2021 já o foram, gozados e pagos no próprio ano de 2020, motivo pelo qual o trabalhador nada tem a receber ou a gozar -,
19.E, antecipadamente ou não, o que é certo é que o trabalhador beneficiou  do direito correspondente, e a Recorrida cumpriu, antes do prazo, as suas obrigações legais que lhe impunham o gozo de férias pelo trabalhador e o pagamento do respectivo subsídio.
20.Antecipadamente, mas a Recorrida cumpriu. Antecipadamente, mas o  trabalhador gozou dos seus direitos e viu serem satisfeitas as suas pretensões legais.
21.Como é doutrina geral de Direito, admitindo, apenas em tese, que a norma do art. 240º do CT, na sua interpretação declarativa, não admite considerar a situação acabada de relatar e que corresponde ao caso sub judice,
22.Então terá que se efectuar uma interpretação restritiva da norma, como impõem as regras da hermenêutica jurídica, à luz do argumento “lá onde cessa a razão de ser da norma cessa a sua aplicação”,
23.Pois que os limites da norma pretendidos pelo legislador (se se adoptar  uma vertente subjectivista da interpretação) ou pelo pensamento legislativo (vertente objectivista) ficam aquém do que a interpretação literal da norma permite, devendo, pois, cessar o seu âmbito aplicativo onde cessa a sua razão de ser.
24.Em suma, o trabalhador, gozou (e recebeu a retribuição de férias e  respectivo subsídio) efectivamente os dias de férias referentes ao trabalho prestado em 2019 e o trabalho prestado em 2020, pelo que, a admitir-se a concretização do segmento decisório do acórdão reformando, o trabalhador Recorrente iria beneficiar de um maior número dias de férias e respectivo subsídio do que o que resultaria da aplicação do regime imperativo” do art. 240º e, ainda, de um maior número de dias de férias do que os seus colegas, demais trabalhadores da Recorrida, a quem se aplica o regime contratual por todos livremente aceite, por constituir um privilégio/vantagem reconhecido pelos trabalhadores relativamente ao estatuído no Código do Trabalho, designadamente nos arts. 239º e 240º. ou, por outras palavras e simplificando, iria ter direito a mais dias de férias - o dobro - (de gozo, de retribuição e de subsídio) dos que os consagrados no Código do Trabalho.
25.Ora, para os efeitos do presente pedido de reforma, assente no manifesto e contraditório lapso do julgador na qualificação jurídica dos factos ou na errada determinação da norma aplicável, o que releva é que certamente reside em manifesto lapso o dar-se como provados os factos acima elencados nos nºs 16, 19 e 20 dos Factos Provados e, depois, considerar que o trabalhador aqui Recorrido tem direito a gozar 16 dias de retribuição de férias vencidas a 1 de janeiro de 2020 e respectivo subsídio.

26.Em consequência de ser ter dado como provado os factos acima elencados em 16, 19 e 20, i.e.:
i.-do trabalhador ter aceite que o direito a férias, a respectiva retribuição e subsídio fossem (e foram) gozados e pagos (também foram) no ano civil em que o trabalho que lhes deu origem fosse prestado (facto provado 16);
ii.-pelo facto de no ano de 2019 (facto provado sob 19) o trabalhador ter  gozado (e recebido) 22 de férias relativas ao trabalho prestado nesse mesmo ano de 2019 e,
iii.-pelo facto de no ano de 2020 (facto provado sob 20) o trabalhador ter gozado (e recebido facto provado sob 21) 6 dias de férias relativas ao trabalho prestado nesse mesmo ano de 2020, terá de concluir-se que o Trabalhador gozou e recebeu todos os dias de férias a que tinha direito, relativamente ao trabalho prestado no ano de 2019 e ao trabalho prestado no ano de 2020, nada mais tendo a receber.
27.O gozo/exercício de um direito, seja ele qual for, extingue esse direito, não o renova ou duplica,
28.da mesma forma como, sendo devida uma prestação ao banco de um empréstimo a 1 JAN de determinado ano se a mesma for antecipadamente liquidada no ano anterior, a 1 JAN desse ano já não se venceria tal prestação, por já não ser devida, em virtude do pagamento antecipado efectuado pelo devedor.
29.O Recorrente não terá assim (por já ter recebido e gozado) “(…) direito a 16 dias (22-6) férias vencidos em 1 de Janeiro de 2020 e ao subsídio de férias respectivo (700-375) nem terá direito “aos proporcionais de férias e de subsídios de férias pelo trabalho prestado durante o ano da cessação do contrato.”;
30.Mais, a invocada norma imperativa do nº 1 do art. 240º do CT é de  aplicação impossível ao caso em concreto porquanto se refere ao “gozo” de férias, sendo que se o Trabalhador já não se encontra ao serviço da Empregadora, por motivo de cessação do contrato, nunca poderia o mesmo gozar as férias aquando do seu vencimento no ano seguinte, mas tão somente, receber o respectivo subsídio e vencimento, o que, no caso em concreto, e tal como provado (factos provados sob 16, 19, 20 e 21) sucedeu, nada mais lhe sendo devido.
31.A manter-se a condenação supra referida deverá então o Acórdão  também condenar o Trabalhador, pelo menos, a devolver o montante já recebido indevidamente a título de férias e respectivo subsídio antecipadamente recebidas e gozadas para assim ser reposta a legalidade.
Termos em que se requer se proceda à reforma do acórdão de 6.04.2022, e, consequentemente, seja o mesmo alterado no sentido de se manter o decidido na sentença recorrida constante das als. c. e d. da Al. B) da Decisão.»
*

Vejamos.

De acordo com o disposto no art. 616º, nº2 do CPC conjugado com o art. 666, nº1 do mesmo Diploma Legal, pode ser requerida a reforma do Acórdão quando, por manifesto lapso dos juízes :
a)-Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b)-Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

Ora, da reclamação apresentada resulta que a reclamante perfilha entendimento diverso do adotado no Acórdão proferido no que concerne à interpretação do art. 240º, nº1 do CT.

As divergências interpretativas não estão, contudo, contempladas no citado preceito legal, uma vez que o mesmo circunscreve o seu âmbito de aplicação a situações de mero lapso.

Não ocorre manifesto lapso na qualificação jurídica dos factos.

Em face do exposto, acorda-se em indeferir a reclamação e, em consequência, manter o Acórdão reclamado.
Custas pela reclamante.
Registe e notifique.



Lisboa, 22 de Junho de 2022



Francisca Mendes
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos



Decisão Texto Integral: