Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23994/16.0T8LSB-B.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA LISTA PROVISÓRIA DE CRÉDITOS
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
LEGITIMIDADE ACTIVA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO LITIGIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–Tendo o recorrente usado o direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no art.º 130.º do CIRE, o que foi depois objeto de apreciação em sede de sentença de verificação e graduação de créditos, com a improcedência da impugnação apresentada pelo recorrente, não há como não reconhecer ao mesmo a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 1 do CPC para interpor o presente recurso.

II–Acresce que, o reconhecimento desses créditos comuns, que o recorrente considera indevidamente reconhecidos, sempre lhe causaria um prejuízo direto e efetivo, na medida em que, sendo ele também titular de um crédito comum, verá, necessariamente, reduzida a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente, que se mostra insuficiente para a satisfação integral de ambos os créditos reconhecidos, pelo que, também por aqui, assegurada estaria a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 2 do CPC para interpor o presente recurso.

III–Sendo o Estado Português titular de um direito de crédito sobre o BPP, tendo visto no âmbito do processo de liquidação do mesmo verificado e reconhecido o seu crédito, nada impede que, à luz dos arts.º 491.º e 501.º do CSC., em face da existência de relação de domínio entre a aqui insolvente e o BPP, e demais pressupostos ali previstos, o mesmo Estado reclame e veja reconhecido o mesmo crédito no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.

IV–Por outro lado, também a Comissão liquidatária do BPP, em face daquela relação de domínio, poderá exigir e reclamar, à luz do art.º 502.º do CSC, a compensação das suas perdas no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.

V–As normas previstas nos arts.º 501º e 502º do CSC, ao abrigo das quais o Estado Português e a Comissão liquidatária do BPP, respetivamente, reclamaram créditos sobre a aqui insolvente, enquanto sociedade dominante, não são normas alternativas cuja aplicação cumulativa implique, in casu, o reconhecimento duplicado ou redundante de um mesmo crédito, já que as perdas anuais de um determinado exercício económico, enquanto prejuízo anual, não contemplam necessariamente o passivo da sociedade subordinada, sendo diferentes as causas de pedir de um e outro crédito, não evidenciando os autos o “erro manifesto” que a lei exige para retificação da lista apresentada e homologada pela sentença recorrida.

VI–Ainda que se possa entender que o art.º 82.º n.º 3 do CSC estabelece uma inibição temporária (enquanto durar o processo de insolvência), tal inibição é para propor ações diretamente, ações judiciais que correm por apenso ao processo de insolvência, tal como resulta do n.º 6 do aludido preceito, e não para reclamar créditos à luz do art.º 128.º do mesmo código.

VII–A legitimidade exclusiva do administrador da insolvência para propor aquelas ações contra os responsáveis legais pelo pagamento, tendo em vista o aumento da massa insolvente, não impede nem retira a legitimidade ao credor de exercer o direito que o art.º 501º, n.º 1 do CSC lhe confere, apresentando a sua reclamação de créditos (de que é titular perante a sociedade dominada, que não cumpre as suas obrigações) no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.

VIII– E é precisamente por os credores poderem sempre reclamar os seus créditos no processo de insolvência, nos termos do art.º 36.º, n.º 1, alínea j) do CIRE, enquanto credores da insolvência (art.º 47.º do CIRE), que o citado preceito não é inconstitucional, permitindo o mesmo tratamento e igualdade material a todos os credores que estejam nessa situação.

IX–A existência de um crédito litigioso, em discussão em juízo, que não se confunde com um crédito condicional a que apela o art.º 50.º do CIRE,  não dispensa o credor de reclamar o aludido crédito nos autos de insolvência, se nele quiser obter pagamento, em face do que decorre dos arts.º 90.º e 128.º do CIRE.

X–Após a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respetivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de quaisquer ações declarativas, pois que os alegados créditos têm que ser objeto de reclamação no processo de insolvência e discutido no âmbito desse mesmo processo, mediante o seu reconhecimento ou não, por parte do AI, na lista de créditos apresentada nos autos, e possibilidade de impugnação com posterior decisão.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA



I-/ Relatório:


Foram os presentes autos de reclamação de créditos, instaurados por apenso aos autos de insolvência n.º 23994/16.0T8LSB, em que foi declarada insolvente “Privado Holding SPS, SA”, por sentença já transitada em julgado, na qual foi fixado o prazo de trinta dias para os credores reclamarem os seus créditos, nos termos do disposto no art.º 128.º do CIRE.
Dentro do referido prazo, os credores reclamaram os respetivos créditos.

O AI apresentou a lista definitiva de créditos, prevista no art.º 129.º do CIRE, em 17/12/2016, nela reconhecendo ao Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças dois créditos:
(i)-um, com data de vencimento em 10/05/2010, no valor de €450.974.875,00, mais €97.072.532,98 de “juros até à data da insolvência 27/10/2016”, mais €26,275.184,19 de “despesas”, num total de €574.322.592,17, com fundamento em Garantia prestada e acionada pelo Sindicato Bancário, sobre o empréstimo concedido ao BPP, que qualificou como “comum”;
(ii)-outro, com data de vencimento em 27/10/2016, no valor total de €15.589.199,00, com fundamento em Penhor sobre os valores mobiliários pertencentes à Pcapital e à Kinetics“, que qualificou como “sob condição nos termos do art.º 50.º do CIRE”.

Reconheceu também ao Banco Privado Português, S.A. - Em Liquidação, representado pela sua Comissão Liquidatária, diversos créditos, num valor total de €1421.962.241,33, e, entre eles:
(i)-com data de vencimento em 27/10/2016, o valor de €826.139.176,00, relativo a “perdas”, e €413.250.659,60 de “juros até à data da insolvência 27/10/2016”, num valor total de €129.389.835,60, que qualificou como “comum”.

Tal lista foi depois retificada em 27/12/2016, no que diz respeito à qualificação do crédito reconhecido ao Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças (ali se fazendo constar que, por lapso, se havia reconhecido como “Comum” o crédito reclamado como “Garantia prestada e acionada pelo Sindicato Bancário, sobre o empréstimo concedido ao BPP”, reconhecendo-se agora que esse crédito é Garantido, nos termos do art.º 47.º n.º 4 al. a) do CIRE).

O Banco Privado Português, S.A. - Em Liquidação, representado pela sua Comissão Liquidatária, impugnou a lista de créditos apresentada pelo AI, à luz do art.º 130.º do CIRE, em 10/02/2017, peticionando, no que ao caso agora interessa, (ii) a redução, exclusão e alteração da classificação atribuída ao crédito reconhecido ao Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças.
O Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças respondeu à impugnação deduzida, alegando, desde logo, a sua extemporaneidade, bem como a sua manifesta improcedência.

Por despacho proferido em 28/10/2022, foi ordenada a notificação do AI para informar qual o valor reconhecido no processo de liquidação do Banco Privado Português relativamente ao crédito do Estado - Direção Geral do Tesouro e Finanças que também foi reclamado nos presentes autos.
Em resposta, o AI informou que não tem acesso ao aludido processo e desconhece o valor que foi reclamado e reconhecido naqueles autos.

Para a massa insolvente foram apreendidos os bens móveis (equipamentos, meios financeiros, ações) melhor identificados no Apenso G e atualizados no auto de apreensão junto aos presentes autos por requerimento de 15/11/2022.

Em sede de sentença de graduação e verificação de créditos, proferida em 05/12/2022 (onde foi consignada a consulta do processo n.º 519/10.5TYLSB-V, processo de liquidação do Banco Privado Português, SA, do qual resulta que a sentença de verificação e graduação de créditos ali proferida já transitou em julgado) foi a impugnação apresentada pelo Banco Privado Português, S.A. - Em Liquidação, julgada extemporânea, por ser deduzida fora do prazo, assim não sendo admitida, sem prejuízo da apreciação de eventual erro manifesto, passível de ser conhecido oficiosamente pelo Tribunal.
Apreciando depois o crédito reconhecido ao Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças, que julgou não impugnado, face aos elementos constantes dos autos e aferindo se ocorrera erro manifesto no reconhecimento do mesmo, concluiu-se na sentença recorrida que:
«O AI reconheceu dois créditos, um no valor de €574.322.592,17 correspondente a “garantia prestada e acionada pelo sindicato bancário sobre o empréstimo concedido ao BPP” e outro no valor de €15.589.199,00, com natureza condicional.
Não se vislumbrando erro manifesto no reconhecimento dos créditos, importa, contudo, clarificar que, quanto ao primeiro crédito, sendo o BPP o devedor originário, o crédito apenas pode ser reconhecido nos termos em que for reconhecido o crédito sobre o BPP no respetivo processo de liquidação judicial (Processo n.º 519/10.5TYLSB-V)».
E ainda «Os créditos reconhecidos a Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças, no valor de €574.322.592,17 foram considerados garantidos, por beneficiarem de penhor sobre as verbas apreendidas sob os n.ºs 8 e 9.
Porém, por requerimento de 15.11.2022, o AI informou que não logrou proceder à apreensão efetiva de tais verbas, uma vez que as mesmas se encontram registadas a favor do Estado e não a favor da insolvente.
Assim, tais créditos serão considerados comuns».

Foram, pois, reconhecidos dois créditos comuns, ao Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças, nos valores de € 574.322.592,174 e € 15.589.199,005, tendo sido, a final, graduados todos os créditos reconhecidos, da seguinte forma:
«Pelo produto da venda dos bens móveis (equipamentos, meios financeiros, ações):
1º.– O crédito privilegiado reconhecido à Autoridade Tributária, no montante de €1.545,57;
2º.– Os créditos comuns, rateadamente.
As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem (artigo 172º- 1 e 2 do CIRE)
Custas pela massa insolvente (artigo 304º do CIRE)
Registe e Notifique».

Não se conformando com o assim decidido, o Banco Privado Português, S.A. - Em Liquidação, representado pela sua Comissão Liquidatária, interpôs o presente recurso, que culmina com as conclusões que aqui se reproduzem:
A)–Na sentença de verificação e graduação de créditos, datada de 5 de dezembro de 202238, o Tribunal de 1.ª instância reconheceu dois créditos comuns ao ESTADO PORTUGUÊS – DIREÇÃO GERAL DO TESOURO E FINANÇAS (doravante, “ESTADO PORTUGUÊS”).
B)–Ao fazê-lo, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto:
(i)-o primeiro crédito (reconhecido no valor de € 574.322.592,1739) não pode ser reclamado senão pela Comissão Liquidatária do aqui RECORRENTE, sob pena de duplicação fictícia do passivo da massa insolvente; tendo, aliás, sido já parcialmente liquidado pelo RECORRENTE no âmbito do respetivo processo de insolvência; e
(ii)- o segundo crédito (reconhecido no valor de € 15.589.199,0040) é litigioso.
QUESTÃO PRÉVIA: DA LEGITIMIDADE DO RECORRENTE
C)–O Recorrente, enquanto titular de um crédito comum sobre a INSOLVENTE, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 631.º do CPC, tendo em consideração os prejuízos reais e efetivos que a sentença recorrida, (na parte de que se recorre) produziria na sua esfera jurídica,
D)–Uma vez que os créditos comuns são pagos na proporção respetiva, sempre que a massa insolvente se mostre insuficiente para a sua satisfação integral (cfr. artigo 176.º do CIRE e artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil),
E)–Daí resultando que o reconhecimento (indevido) de créditos comuns do ESTADO PORTUGUÊS causa, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo ao RECORRENTE, na medida em que reduz a sua quota-parte no produto da liquidação do património da INSOLVENTE,
F)–Sendo este prejuízo sujeito a duas agravantes, como sejam:
(i)- O valor global dos créditos (indevidamente) reconhecidos ao ESTADO PORTUGUÊS, que ascendem a € 589.911.791,17 e a € 15.589.199,00, e
(ii)- A notória insuficiência do património da INSOLVENTE para pagar os créditos sub judice (cujo valor ultrapassa mil milhões de euros).
DOS ERROS DE JULGAMENTO
G)–O Tribunal a quo reconheceu ao ESTADO PORTUGUÊS dois créditos comuns:
(i)- O primeiro, no valor de € 574.322.592,17, com fundamento na «Garantia prestada e acionada pelo Sindicato Bancário, sobre o empréstimo concedido ao BPP», que qualificou como crédito comum;
(ii)- O segundo, no valor de € 15.589.199,00, com fundamento no «Penhor sobre os valores mobiliários pertencentes à PCapital e à Kinetics», que qualificou também como crédito comum.
DO CRÉDITO NO VALOR DE € 574.322.592,17
H)–O ESTADO PORTUGUÊS reclamou (e bem) no processo de liquidação judicial do aqui RECORRENTE (que corre termos sob o n.º 519/10.5TYLSB, junto do Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 2) um crédito garantido, por força da garantia por si prestada e acionada pelo Sindicato Bancário, no âmbito do empréstimo, no montante de € 450.000.000,00, por este concedido ao RECORRENTE no dia 5 de dezembro de 2008.
I)–Este crédito, correspondente aos montantes despendidos pelo ESTADO PORTUGUÊS, enquanto garante, para cumprimento das obrigações contratuais do RECORRENTE perante o Sindicato Bancário, é um crédito direto sobre o RECORRENTE, assumindo este a qualidade de devedor principal.
J)–Pelo que foi legitimamente reclamado e reconhecido nos termos da sentença de verificação e graduação de créditos proferida, e transitada em julgado, naqueles outros autos (cfr. DOC. N.º 1, que como os demais aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
K)–Sucede que esse mesmo crédito, foi também reclamado pelo ESTADO PORTUGUÊS no presente processo de insolvência ao abrigo do disposto no artigo 501.º do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), aplicável ex vi artigo 491.º do mesmo diploma.
L)–Esse crédito veio a ser reconhecido na sentença de que ora se recorre, no valor de € 574.322.592,17, ainda que o respetivo reconhecimento tenha «como limite o crédito sobre o BPP no respetivo processo de liquidação judicial (Processo n.º 519/10.5TYLSB-V)».
M)–Sucede que na sentença recorrida foi justamente reconhecido ao ora RECORRENTE um crédito comum, no valor global de € 1.422.766.034,60, no qual se inclui, designadamente, um crédito no valor de € 1.239.389.835,60, reclamado por força da responsabilidade legal da INSOLVENTE pelas perdas registadas em balanço do RECORRENTE, nos termos do disposto no artigo 502.º, n.º 1, aplicável ex vi artigo 491.º, ambos do CSC.
N)–Essas perdas do RECORRENTE incluem, designadamente, o passivo resultante do empréstimo de € 450.000.000,00 que lhe foi concedido pelo Sindicato Bancário, e garantido pelo ESTADO PORTUGUÊS, em 5 de dezembro de 2008.
O)–Deste modo, ao reconhecer, por um lado, o crédito do ESTADO PORTUGUÊS ancorado no artigo 501.º do CSC e na responsabilidade legal da INSOLVENTE pelas dívidas do aqui RECORRENTE (no valor reconhecido de € 574.322.592,17), decorrentes do acionamento da garantia prestada pelo ESTADO PORTUGUÊS, no âmbito do empréstimo concedido pelo Sindicato Bancário ao RECORRENTE no dia 5 de dezembro de 2008,
P)–E, por outro, o crédito do RECORRENTE fundado no artigo 502.º do CPC e proveniente da responsabilidade legal da INSOLVENTE pelas suas perdas (no valor global reconhecido de € 1.422.766.034,60), nas quais se inclui o passivo resultante daquele mesmo empréstimo,
Q)–O Tribunal a quo reconheceu duas vezes o mesmo crédito sobre a insolvência.
R)–Sob pena de se admitir uma duplicação fictícia do passivo reconhecido, é forçoso concluir que o crédito de € 574.322.592,17 reclamado pelo ESTADO PORTUGUÊS não poderia ter sido verificado e graduado na sentença recorrida, devendo ordenar-se, agora, a respetiva exclusão da lista de credores reconhecidos.
S)–Isso porque o Estado Português não tem legitimidade para reclamar créditos sobre a Insolvente com fundamento no artigo 501.º do CSC, em face do disposto no artigo 82.º, n.º 3, alínea c), do CIRE, nos termos do qual o administrador da insolvência tem «exclusiva legitimidade» para propor e fazer seguir «ações contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente».
T)–Ora, «[a] sociedade dominante, porque responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das obrigações da sociedade dominada, é considerada “responsável legal” para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 6º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas»,
U)–E a reclamação de créditos do ESTADO PORTUGUÊS sobre a INSOLVENTE subsume-se no âmbito do artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, o qual visa «(i) um objetivo de concentração processual, na medida em que se evita a proliferação de ações e assegura-se economia processual, (…); (ii) igualdade entre os credores, visando-se garantir que todos eles são satisfeitos na mesma medida através do património dos responsáveis.»
V)–Com efeito, a finalidade precípua deste preceito é:
(i) assegurar que «aquelas ações que são (e devam ser) intentadas em benefício direto da generalidade dos credores ou em prol do devedor e, por via disso, suscetíveis de aproveitar, reflexa ou indiretamente, à generalidade desses mesmos credores enquanto titulares de interesses individuais, mas homogéneos», sejam (e só possam ser) intentadas pelo administrador da insolvência;
(ii) «evitar que a propositura de ações de responsabilidade pelos mais diversos credores – potencialmente muito numerosos – se reflita no processo de insolvência e introduza um fator de complexificação e atraso na satisfação dos credores da entidade insolvente», sobretudo num processo de insolvência como o do aqui RECORRENTE, com cerca de uma centena de credores reconhecidos;
(iii) salvaguardar o princípio par conditio creditorum (cfr. artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil, e artigo 194.º do CIRE), fundado no princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP), e «impedir que algum credor possa obter, fora desse processo, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores».
W)–No mesmo sentido, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA entendem que «uma vez que a responsabilidade legal beneficia a generalidade dos credores e respeita a globalidade das dívidas – ou, pelo menos, de um núcleo muito significativo delas -, a reserva de legitimidade processual ao administrador salvaguarda a igualdade de tratamento. A um tempo, permite o benefício comum e obvia ao efeito prior in tempore, potior in iure».
X)–Além disso, a legitimidade exclusiva do administrador da insolvência nesse âmbito é coerente com as respetivas competências na administração e liquidação da massa insolvente, tendo em vista a sua repartição entre os credores.
Y)–À luz destas considerações, veio então o legislador «“transferir” para o administrador da insolvência os poderes para propor todas as ações contra terceiros que possam influenciar, de forma direta ou reflexa, o valor da massa insolvente, incluindo, portanto, a ação em que se pretenda acionar a responsabilidade de sociedade dominante ao abrigo do citado art. 501º, a qual assume inequivocamente a qualidade de “responsável legal” para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 6º do CIRE» (destaque e sublinhado nossos).
Z)–Por idênticas razões, note-se que também nunca se poderia admitir a aplicação, in casu, do regime previsto no artigo 95.º do CIRE, sob a epígrafe «Responsáveis solidários e garantes».
AA)–Até porque o referido regime vem pensado para os casos de solidariedade passiva típica, regidos integralmente pelo disposto nos artigos 512.º e seguintes do Código Civil, nos quais não se enquadra a responsabilidade legal da sociedade dominante, uma vez que esta é unilateral (não tem qualquer contrapartida ou solidariedade recíproca da parte da sociedade dominada), não admite direito de regresso e é subsidiária.
BB)–Com efeito, o artigo 95.º do CIRE não está, evidentemente, pensado para um regime ad hoc como o constante do artigo 501.º do CSC, o que fica desde logo evidente na redação dada ao seu n.º 2, que ao referir-se ao «direito [de regresso] contra o devedor insolvente», torna-se desde logo inconciliável com a realidade ínsita ao caso sub judice, em que não há direito de regresso aplicável.
CC)–A interpretação dos artigos 82.º, n.º 3, alínea c), a contrario, e 95.º, n.º 1, do CIRE, no sentido de que os mesmos, por um lado, não precludem a reclamação de créditos por credor de sociedade dominada insolvente no processo de insolvência da respetiva sociedade dominante, com fundamento no disposto no artigo 501.º, n.º 1, do CSC, por dispor o mesmo de legitimidade ativa para o efeito, ao invés do administrador de insolvência da sociedade dominada, e, por outro lado, permitem ao credor da sociedade dominada reclamar a totalidade do seu crédito a cada uma das massas insolventes, da sociedade dominada e da sociedade dominante, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, designadamente na sua vertente de igualdade material dos credores (par conditio creditorum), porquanto limita de modo desproporcional e sem qualquer justificação material objetiva os direitos dos demais credores da sociedade dominada e derroga a graduação de créditos, inconstitucionalidade que desde já se arguí para todos os devidos e legais efeitos.
DD)–Por todo o exposto, impõe-se concluir que enquanto estiver pendente o processo de insolvência do aqui RECORRENTE, encontra-se o ESTADO PORTUGUÊS privado de legitimidade ativa para reclamar créditos nos presentes autos com fundamento na responsabilidade legal da INSOLVENTE ao abrigo do artigo 501º do CSC, porquanto a sua pretensão creditícia contra a INSOLVENTE reconduz-se inequivocamente à fattispecie do artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, para a qual só a Comissão Liquidatária do RECORRENTE tem legitimidade.
EE)–Foi nesse sentido que decidiu, de resto, o Tribunal da Comarca de Lisboa, por sentença proferida no Processo n.º 1230/11.5TLSB, em 4 de novembro de 2013 (transitada em julgado), que julgou o ESTADO PORTUGUÊS parte ilegítima para a ação intentada contra a ora INSOLVENTE, com base na referida norma do CIRE.
FF)–Solução que – importa frisarem nada prejudica a pretensão creditícia DO ESTADO PORTUGUÊS, porquanto a mesma foi também exercida, e devidamente reconhecida e graduada, em sede própria, isto é, no processo de insolvência do devedor principal, que é a sociedade dominada, aqui RECORRENTE.
GG)–Tendo o RECORRENTE, por sua vez, exercido a pretensão que legitimamente lhe cabe nos termos do artigo 502.º do CSC, pelas perdas anuais, contra a aqui INSOLVENTE, na sua qualidade de sociedade dominante,
HH)–Pretensão esta que também foi devidamente reconhecida e graduada nestes autos, e que, como tal, importará o recebimento pela massa insolvente do RECORRENTE da quota-parte correspondente no produto da liquidação do património da aqui INSOLVENTE, a qual, por sua vez, será sucessivamente distribuída no processo de insolvência do RECORRENTE, entre os seus credores reconhecidos, inclusive o ESTADO PORTUGUÊS, de acordo com a graduação de créditos correspondente.
II)–Acresce que nunca o crédito do ESTADO PORTUGUÊS poderia ter sido reconhecido nos termos em que o foi, porquanto no âmbito do processo de insolvência do aqui RECORRENTE, onde o crédito sub judice do ESTADO PORTUGUÊS foi (e bem) reclamado e reconhecido, foi o mesmo já parcialmente liquidado, fruto dos pagamentos parciais aí efetuados, no montante global de € 406.315.946,57 (cfr. DOC. N.º 2 e respetivo anexo, junto como DOC. N.º 3).
JJ)–Por todo o exposto, o Tribunal a quo errou ao reconhecer o crédito de € 574.322.592,17 em benefício do ESTADO PORTUGUÊS, devendo a sentença recorrida ser revogada nessa parte e substituída por acórdão que determine a exclusão do crédito de € 574.322.592,17 reconhecido ao Estado Português da lista de credores reconhecidos, ou subsidiariamente, caso assim não se entenda - o que por mera cautela de patrocínio se considera, sem conceder -, que determine o reconhecimento do crédito, subtraído do valor já recuperado no processo de insolvência do Recorrente.
DO CRÉDITO NO VALOR DE € 15.589.199,00
KK)–O ESTADO PORTUGUÊS reclamou sobre a INSOLVENTE um crédito litigioso, no valor de € 15.589.199,00, correspondente à indemnização peticionada pelo ESTADO PORTUGUÊS em ação contra a sociedade KINETICS, incorporada na INSOLVENTE.
LL)–O próprio ESTADO PORTUGUÊS declarou, na sua reclamação de créditos, que «se trata de um crédito litigioso, só se tornando efectivo quando existir sentença de condenação com trânsito em julgado».
MM)–Tal crédito foi incluído na lista de credores reconhecidos, pelo Senhor Administrador da Insolvência, como crédito condicional, e na sentença recorrida esse crédito foi reconhecido como comum.
NN)–Ora, houve um erro manifesto na inclusão desse crédito do ESTADO PORTUGUÊS na lista de credores reconhecidos como crédito condicional, porquanto «[u]m crédito condicional é aquele que, existindo, não pode ainda ser exigido, pelo facto de não se ter ainda por verificada a condição, conquanto um crédito litigioso é aquele que não pode ser exigido, até ser reconhecido, nomeadamente, por decisão transitada em julgado
OO)–Por outro lado, não sendo o crédito litigioso exigível, não podia o mesmo ter sido reconhecido na sentença recorrida como comum.
PP)–Deveria o Tribunal a quo ter ordenado, face ao seu caráter litigioso, a exclusão de tal crédito do ESTADO PORTUGUÊS da lista de credores reconhecidos, ou, no mínimo, determinado na sentença de verificação e graduação de créditos que o respetivo reconhecimento como crédito comum estava dependente do desfecho da ação judicial pendente.
QQ)–Também por isso, deverá a sentença recorrida ser revogada na parte em que reconheceu ao ESTADO PORTUGUÊS o referido crédito de € 15.589.199,00, sendo substituída por acórdão que o exclua da lista de credores reconhecidos da INSOLVENTE.
Termos em que deverão V. Exas conceder total provimento ao presente recurso de apelação, e em consequência:
(i)-Revogar a sentença recorrida na parte em que reconheceu o crédito de € 574.322.592,17 ao ESTADO PORTUGUÊS, substituindo-a por acórdão que determine a exclusão do referido crédito da lista de credores reconhecidos;
Subsidiariamente,
(ii)-Revogar a sentença recorrida na parte em que reconheceu o crédito de € 574.322.592,17 ao ESTADO PORTUGUÊS, substituindo-a por acórdão que determine o reconhecimento do crédito, subtraído do valor já recuperado no processo de insolvência do RECORRENTE;
Em qualquer caso,
(iii)-Revogar a sentença recorrida na parte em que reconheceu o crédito de € 15.589.199,00 ao ESTADO PORTUGUÊS, substituindo-a por acórdão que determine a exclusão do referido crédito da lista de credores reconhecidos.

O M.P., em representação do Estado Português - Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, apresentou contra-alegações nos autos, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida, argumentando, em suma:
(i)-que o recorrente não tem legitimidade para a interposição do presente recurso, porquanto a sentença proferida não tem incidência direta nos seus interesses e esfera jurídica, relevando, somente, de forma reflexa e indireta, uma vez que o crédito do recorrente foi reconhecido nos termos por si reclamados;
(ii)-que, no que concerne ao crédito de € 574.322.592,17, inexiste duplo reconhecimento de créditos, uma vez que o recorrente não demonstrou nos autos que as perdas anuais reclamadas, consubstanciadas no prejuízo apurado no exercício de 2008, ao abrigo do art.º 502º do CSC, inclui o valor total das suas responsabilidades, sendo que, alega, estamos fora do âmbito de aplicação do art.º 82.º n.º 3 do CIRE, onde o recorrente se baseia para afastar a legitimidade do recorrido para reclamar o alegado crédito, e que qualquer valor que venha a ser entregue ao Estado Português, por conta do produto da liquidação da aqui insolvente, estará sempre limitado ao valor do crédito que lhe foi reconhecido no processo de liquidação judicial do BPP, deduzido de todos os pagamentos que hajam sido efetuados;
(iii)-que, no que concerne ao crédito de € 15.589.199,00, para que o mesmo fosse contemplado na insolvência teve obrigatoriamente de ser reclamado, ao abrigo do disposto no art.º 128.º do CIRE, e que com a redação do n.º 1 do art.º 50.º, introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20/04, o legislador tomou posição clara, acautelando os direitos de crédito que se vierem a constituir no âmbito de ações declarativas pendentes à data da declaração de insolvência, pelo que a inclusão desse crédito do Estado Português na lista de credores reconhecidos como crédito condicional não consubstancia qualquer erro, não suscitando qualquer reparo a sua classificação de crédito comum.

Admitido o recurso interposto, foi já nesta instância determinado que o Administrador da Insolvência enviasse aos autos cópia das reclamações dos créditos do Estado Português em causa nestes autos.
Junta cópia de tais reclamações e colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:

Estando o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, como decorre dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões colocadas à apreciação deste tribunal consistem em:

(i)-Aferir da legitimidade do recorrente para efeitos do presente recurso;
(ii)-Em caso de se concluir por essa legitimidade, aferir se deve ser excluído da sentença recorrida o crédito de €574.322.592,17, reconhecido como comum ao Estado Português, por tal crédito sobre a insolvência ter sido duas vezes reconhecido na sentença em recurso;
(iii)-Subsidiariamente, e assim não se entendendo, se deve ser subtraído a tal valor o crédito alegadamente recuperado no processo de insolvência do recorrente;
(iv)-Aferir se deve ser excluído o crédito de €15.589.199,00 reconhecido como comum ao Estado Português, revogando nessa parte a sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que determine a exclusão do referido crédito da lista de credores reconhecidos, por se tratar de crédito litigioso.

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III-/ Fundamentação:
Com interesse para a decisão da causa, encontram-se provados os factos plasmados no relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.

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IV-/ Do objeto do recurso:

Questão prévia:

(i)- Da legitimidade do recorrente
Principia o recorrente por afirmar a sua plena legitimidade e interesse para recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos, pois que, alega, o reconhecimento (indevido) de créditos comuns do Estado Português causa, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo ao recorrente, também ele titular de um crédito comum, na medida em que reduz a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente.
Em contra-alegações, defende o MP, em representação do Estado Português, que a sentença recorrida não tem incidência direta nos interesses e na esfera jurídica do recorrente, relevando, somente, de forma reflexa e indireta, uma vez que o seu crédito já foi reconhecido nos termos reclamados, estando em igualdade para com o recorrido em face de os créditos de ambos serem considerados comuns.

Vejamos então.
Nos termos do art.º 631.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi art.º 17.º, n.º 1, do CIRE, os recursos podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, bem como pelas pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
Como se vê, este normativo, nos seus n.ºs 1 e 2, convoca um critério formal e subjetivo e um critério material e objetivo, respetivamente, que pressupõe, na primeira parte, a condição de parte principal nos autos e neles vencida, e, na segunda parte, um prejuízo real ou um interesse direto do recorrente na procedência do recurso.
Sobre esta matéria, Abrantes Geraldes (na obra “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, pág. 71/72), diz-nos, que «A exigência de um prejuízo direto tem subjacente a ideia de que a decisão visa diretamente o recorrente, afastando os casos em que o prejuízo, ainda que efetivo, é indireto, reflexo ou mediato, ou atinge unicamente a pessoa representada (…)».
Se nas situações normais a legitimidade para recorrer se afere através de um critério formal, verificando se o recorrente é parte no processo e conferindo o resultado da lide, nos casos em que o recurso advenha de terceiro diretamente prejudicado pode revelar-se necessária a demonstração dos factos onde assenta o alegado interesse, o que, sem embargo dos poderes de averiguação do tribunal, deve ser feito pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso (arts. 637º, n.º 2, e 641º, n.º 2, al. a)).».

No caso em apreço, teremos ainda de nos ater ao facto de o processo de Insolvência constituir um procedimento universal e concursal, cujo objetivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores, destinando-se a massa insolvente à satisfação dos credores, de acordo com o que é decidido na sentença de verificação e graduação de créditos.
O incidente da verificação de créditos, que corre por apenso ao processo de insolvência (art.º 132.º do CIRE), deve assim englobar todos os créditos da insolvência, visando o pagamento pelo produto da massa insolvente (art.º 128.º, n.º 5, do CIRE), segundo as regras estabelecidas nos CIRE (arts.º 172.º e ss).
Por ser assim, os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos de crédito no âmbito do respetivo processo, têm que apresentar a competente reclamação de créditos, dispondo para o efeito do prazo fixado na sentença de declaração de insolvência. A reclamação é feita mediante requerimento dirigido ao administrador da insolvência, acompanhado de todos os documentos probatórios disponíveis (art.º 128.º).
As reclamações apresentadas são depois apreciadas pelo administrador da insolvência, o qual deve apresentar nos autos a lista de todos os credores por si reconhecidos e a dos não reconhecidos, lista que pode ser sujeita a impugnação, nos termos do disposto no art.º 130.º n.º 1 do CIRE, que dispõe que Nos 10 dias seguintes ao termo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.”.
A essa impugnação pode haver “Resposta”, nos termos consignados no o art.º 131.º que estipula que «1- Pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor. 2- Se, porém, a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontre sujeito ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou uma qualificação de grau superior à correta, só o próprio titular pode responder. 3- A resposta deve ser apresentada dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no artigo anterior ou à notificação ao titular do crédito objeto da impugnação, consoante o caso, sob pena de a impugnação ser julgada procedente».

A ser assim, tendo o recorrente usado, no caso dos autos, do direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no citado art.º 130.º do CIRE, o que foi depois objeto de apreciação em sede de sentença de verificação e graduação de créditos, com a improcedência da impugnação apresentada pelo recorrente (ainda que por extemporaneidade) não há como não reconhecer ao mesmo a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 1 do CPC. As especificidades processuais do procedimento de verificação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência, faz com que - neste particular confronto, entre reclamante/impugnante, em que este peticionava a exclusão dos créditos daquele, incluídos na lista apresentada pelo AI nos autos, pretensão em que decaiu, com a improcedência daquela impugnação, - o recurso interposto tenha que ser analisado então, desse ponto de vista, por quem, sendo parte nos autos, ficou vencido, atento o conflito existente entre impugnante e titular do crédito reconhecido.
Acresce que, seja como for, o reconhecimento de créditos comuns do Estado Português, que o recorrente considera indevidamente reconhecidos, causará ao recorrente, como este bem argumenta, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo, pois que, sendo também ele titular de um crédito comum, verá, necessariamente, reduzida a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente. Tendo sido reconhecidos ao recorrente e ao recorrido créditos sobre a insolvência, igualmente graduados como comuns, que serão pagos na proporção respetiva, sempre que a massa insolvente se mostre insuficiente para a sua satisfação integral (cfr. artsº 176.º do CIRE e 604.º, n.º 1, do CC), dúvidas não restam, também por aqui, sobre a legitimidade do recorrente para interpor o presente recurso, nos termos do disposto no art.º 631.º n.º 2 do CPC, tendo em consideração os prejuízos reais e efetivos que a sentença recorrida (na parte de que se recorre) produziria na sua esfera jurídica, o que aqui se reconhece e declara.
Reconhece-se, pois, ao recorrente legitimidade para interpor o presente recurso.

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Do mérito da sentença:
Sustenta depois o recorrente o seu recurso no facto de o Tribunal a quo ter errado ao reconhecer ao Estado Português dois créditos comuns, (i) o primeiro, no valor de € 574.322.592,17, com fundamento na «Garantia prestada e acionada pelo Sindicato Bancário, sobre o empréstimo concedido ao BPP»  e o (ii) segundo, no valor de € 15.589.199,00, com fundamento no «Penhor sobre os valores mobiliários pertencentes à PCapital e à Kinetics».
Para tanto, alega, o primeiro crédito apenas poderia ser reclamado pela Comissão Liquidatária do recorrente sob pena de duplicação fictícia do passivo da massa insolvente, o que aconteceu, assim se revelando o erro de julgamento em que incorreu o tribunal recorrido na sentença proferida; o segundo não poderia ser reconhecido por ser litigioso, o que resultava dos autos, devendo a lista apresentada pelo AI ser corrigida em face do manifesto erro de que padecia.

Vejamos então.
Vimos já a tramitação inerente ao incidente da verificação de créditos, desde a reclamação, apresentação da lista de créditos pelo AI, impugnação e resposta.
No caso dos autos, vimos também que, nos termos do art.º 130º, n.º 1 do CIRE, o agora recorrente veio impugnar a lista de créditos apresentada pelo AI, peticionando, entre outros, e ao que ao caso agora interessa, (ii) a redução, exclusão e alteração da classificação atribuída ao crédito reconhecido ao Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças.
O Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças respondeu à impugnação deduzida.
Considerando que o AI apresentou a lista definitiva de créditos prevista no art.º 129.º do CIRE, por requerimento de 17/12/2016, que retificou em 27/12/2016, e que o prazo de impugnação terminaria no dia 06/01/2017 ou, com multa, ao abrigo do disposto no art.º 139.º, n.º 5 do CPC, no dia 11/01/2016, a sentença recorrida considerou que a impugnação apresentada pelo recorrente em 10/02/2017, se encontrava fora do prazo, pelo que não atendeu à mesma.
Apreciando depois o crédito reconhecido ao Estado Português, que julgou não impugnado, face aos elementos constantes dos autos e aferindo se ocorrera “erro manifesto” no reconhecimento do mesmo, concluiu que «O AI reconheceu dois créditos, um no valor de €574.322.592,17 correspondente a “garantia prestada e acionada pelo sindicato bancário sobre o empréstimo concedido ao BPP” e outro no valor de €15.589.199,00, com natureza condicional.
Não se vislumbrando erro manifesto no reconhecimento dos créditos, importa, contudo, clarificar que, quanto ao primeiro crédito, sendo o BPP o devedor originário, o crédito apenas pode ser reconhecido nos termos em que for reconhecido o crédito sobre o BPP no respetivo processo de liquidação judicial (Processo n.º 519/10.5TYLSB-V)».
E ainda «Os créditos reconhecidos a Estado Português - Direção Geral do Tesouro e Finanças, no valor de €574.322.592,17 foram considerados garantidos, por beneficiarem de penhor sobre as verbas apreendidas sob os n.ºs 8 e 9.
Porém, por requerimento de 15.11.2022, o AI informou que não logrou proceder à apreensão efetiva de tais verbas, uma vez que as mesmas se encontram registadas a favor do Estado e não a favor da insolvente.
Assim, tais créditos serão considerados comuns».

Vejamos então.

(ii)– Do crédito de €574.322.592,17 (reconhecido como comum ao Estado Português):
Analisando o recurso interposto, vemos que o recorrente em nada ataca a decisão acima consignada (e agora objeto de recurso), no que concerne à tramitação dada nos autos, aceitando assim a decisão que julgou improcedente a impugnação deduzida por extemporaneidade, não questionando agora a decisão ali tomada quanto à inexistência de qualquer “erro manifesto” que a lista apresentasse e que cumprisse corrigir.
Limita-se, mais uma vez, sem questionar a existência ou não do aludido “erro manifesto”, a impugnar novamente a lista de credores, argumentando aquilo que já argumentara em sede de impugnação, e que não foi considerada nos autos por extemporânea.

Ora, a ser assim, na inexistência de impugnação válida, e segundo o formalismo da tramitação legal estabelecida, ao juiz competia, apenas, homologar aquela lista, sem prejuízo de, naturalmente, aferir se da mesma, ou dos documentos juntos aos autos, existia um qualquer erro que o impedia de verificar, nos termos exarados na sentença proferida, o mencionado crédito (de €574.322.592,17)  - erro que, reitera-se, não foi apontado pelo recorrente nos autos em sede de recurso. Não detetado qualquer fundamento, evidente e manifesto em face dos elementos dos autos, nada impedia que a lista fosse homologada nos termos em que o foi, com a verificação do mencionado crédito.
Com efeito, o n.º 3 do art.º 131.º do CIRE diz-nos que «Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta», estipulando o art.º 136.º n.º 1 do mesmo código, na parte que agora importa, que «Junto o parecer da comissão de credores ou decorrido o prazo previsto no artigo anterior sem que tal junção se verifique, o juiz declara verificados com valor de sentença os créditos incluídos na respetiva lista e não impugnados, salvo o caso de erro manifesto (…)» (destaques  nossos).

Atentemos então no conceito de “erro manifesto”, a que aludem os aludidos preceitos legais.
Carvalho Fernandes e João Labareda (no CIRE anotado, 3ª edição, QJ Sociedade Editora, pág. 528) dizem que «(...) a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência. Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados para as impugnar. Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações. Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação. Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite (…)».
Por ser assim, nada impede que o juiz, nesta sindicância a que está obrigado, se socorra de tudo o que resulta do processo de insolvência, incluindo os respetivos apensos, solicitando, se necessário for, ao administrador da insolvência todos os esclarecimentos e elementos que para o efeito se revelem necessários.
Veja-se, sobre esta questão, o acórdão desta secção e Relação de Lisboa, de 23/03/2021 (proc. 1641/19.8T8SNT-A.L1-1), relatado por Isabel Fonseca, disponível na dgsi, assim sumariado «1. Não sendo apresentadas impugnações, o art. 130.º, nº 3 do CIRE impõe a imediata prolação de decisão pelo tribunal, decisão homologatória da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, o que pressupõe que se dê como adquirido para o processo o circunstancialismo enunciado pelo administrador no que concerne aos elementos de facto que devem constar dessa lista e referidos no art. 129º, nº 2 do mesmo diploma alusivos, nomeadamente, ao montante do capital e juros e garantias. 2. Só assim não acontecerá quando for evidente ou notório – é esse o significado da expressão manifesto que consta do citado preceito –, ter ocorrido um erro, impondo-se considerar que esse erro pode abranger questões de facto e de direito; ou seja, se os elementos constantes do processo patentearem, de forma flagrante, que o administrador da insolvência cometeu um lapso, ou que se verifica alguma incongruência no juízo do administrador da insolvência vertido na lista apresentada, então impõe-se que o juiz o corrija, podendo para o efeito diligenciar por obter, previamente, os elementos pertinentes a essa aferição. 3. Se o apelante não deduziu, em tempo devido, a impugnação que pretendia, nos termos do art. 130.º, nº 1 do CIRE, não pode depois, por via de recurso, suscitar questões que só têm cabimento no âmbito daquele procedimento de impugnação, tendo por referência, obviamente, questões que não são de conhecimento oficioso (princípio da preclusão dos meios que as partes têm ao seu alcance)» (destaques nossos).
E também, com relevância para o caso, o acórdão desta seção de 19/03/2024, relatado por Amélia Rebelo, no proc. 9183/17.0T8LSB-C.L1-1, também disponível na dgsi, onde se pode ler «O erro passível de ser sindicado nos termos dos arts. 130º, nº 3 e 131º, nº 3 do CIRE tem como objeto inconsistências factuais ou jurídicas manifestadas nos próprios termos da alegação do interessado ou no confronto com o documentado ou processado nos autos (em sentido lato) e que se imponham valorar em si mesmos, esclarecer e/ou corrigir; não abrange a sindicância ou o apuramento da correspondência da factualidade alegada com a realidade que, consoante o caso, cabe a cada interessado impugnar e/ou demonstrar, não recaindo sobre o tribunal o dever de se substituir à parte no cumprimento desses ónus».

No caso dos autos, não vemos, na verdade, quaisquer razões para alterar o decidido na sentença em recurso, nem o apelante as aponta, não reportando qualquer erro crasso ou manifesto que a lista apresentada cumprisse retificar, no juízo a que procedeu o julgador e que não é questionado em recurso. Nenhum lapso flagrante nem nenhuma incongruência no juízo feito são apontados, pretendendo o recorrente apenas ressuscitar a argumentação aduzida em sede de impugnação que não foi atendida nos autos.

Não obstante, e ainda assim, estando o recurso sustentado num alegado erro de julgamento do tribunal a quo quanto ao reconhecimento do aludido crédito ao Estado Português, não esquecendo que a própria natureza do processo de insolvência e o princípio da igualdade consagrado no art.º 194.º do CIRE impõem uma decisão justa e equitativa, que obriga a que o juiz, nesse enquadramento, exerça um efetivo controle judicial, diremos então, analisando agora nesta instância recursiva a lista de créditos apresentada pelo AI e demais elementos dos autos, que a conclusão a que chegamos terá de ser a mesma, não estando evidenciadas quaisquer inconsistências nos autos que se imponham valorar, esclarecer ou corrigir, com alteração da aludida lista e exclusão do crédito do Estado.

Vejamos porquê.
Na reclamação de créditos apresentada pelo Estado Português no processo em apreço (junta já nesta instância de recurso, em cumprimento do despacho da então relatora) foi requerido o reconhecimento do seu crédito sobre o BPP, no valor global de € 574.322.592,17, ao abrigo do disposto no art.º 501.º do CSC, aplicável ex vi art.º 491.º, do mesmo diploma legal.
Dos autos resulta também que foi a pedido do Banco Privado Português, S.A. (doravante, BPP), banco que era o centro do grupo empresarial da sociedade Privado Holding SGPS, insolvente nos autos (que detinha a totalidade do capital social do BPP, pelo menos desde 2004), que o Estado Português prestou garantia a um empréstimo de €450.000.000,00, à data em negociação entre aquele banco e um sindicato bancário (constituído pelo BCP, CGD, BPI, Santander Totta, CCAM).
Tendo sido revogada, pelo Banco de Portugal, a autorização para o exercício da atividade bancária do BPP, com o consequente vencimento imediato de todas as suas obrigações, venceu-se o aludido empréstimo, tendo, na sequência daquela revogação, sido requerida a liquidação judicial do BPP. Acionada a garantia, o Estado Português, em execução da mesma, procedeu, a 10/05/2010, ao pagamento do mencionado montante, acrescido de juros remuneratórios.
No processo de liquidação judicial do BPP foram, em sede de saneador sentença, reconhecidos e verificados ao Estado Português os aludidos créditos, créditos que o mesmo Estado reclama agora à Privado Holding, invocando o consagrado nos arts.º 491.º e 501.º do CSC, em face da existência de relação de domínio entre a aqui insolvente e o BPP, e demais pressupostos ali previstos.
Veja-se que aquele art.º 501.º n.º 1, ao dispor que «A sociedade diretora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao termo deste», tem aqui aplicação, uma vez que o capital social do recorrente, à data do contratualizado empréstimo, era então integralmente detido pela aqui insolvente.
Esta responsabilidade para com os credores sociais, em que incorrem quer a sociedade diretora (em caso de subordinação), quer a sociedade dominante (em caso de domínio total), é uma responsabilidade que, nas palavras de Raúl Ventura (na obra “Novos Estudos sobre Sociedades Anónimas e Sociedades em Nome Colectivo, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, pg. 123) nem é perfeitamente solidária, atento que apenas pode ser exigida 30 dias após a constituição em mora, nem é meramente subsidiária, pois não requer a prévia excussão dos bens da sociedade subordinada ou dependente.
Para Engrácia Antunes (em “Os Grupos de Sociedades - Estrutura e Organização Jurídica da Empresa Plurissocietária, 2ª edição, revista e actualizada, Almedina, 2002, págs. 798 e ss.) esta responsabilidade é ilimitada e acessória. Diz-nos o mesmo que «As obrigações contraídas pela sociedade subordinada constituem verdadeiras obrigações solidárias (….), com a particularidade de se haver previsto uma condição ou termo especial relativamente ao momento da sua exigibilidade a um dos condevedores (isto é, o decurso de um prazo de 30 dias contado a partir da mora do outro condevedor (….) A previsão deste requisito legal vem conferir assim à responsabilidade solidária da sociedade directora uma configuração muito particular: não constituindo seguramente uma responsabilidade subsidiária (ou de segunda linha) - pois que, designadamente, não se exige que os bens da sociedade subordinada tenham sido previamente excutidos para que seja possível a agressão directa do património da sociedade directora por parte do credor daquela -, também não se pode considerá-la como uma responsabilidade solidária absolutamente perfeita (ou em primeira linha) - pois a este credor não é permitido dirigir-se indistintamente a qualquer uma das sociedades condevedores, devendo antes observar uma ordem cronológica relativamente ao momento da respectiva exigibilidade ou vencimento. [...] Nesta ordem de ideias, e em suma, o nascimento da responsabilidade da sociedade directora pelas obrigações da sua subordinada está assim dependente de dois requisitos fundamentais: por um lado, que a sociedade subordinada não tenha querido ou não tenha podido cumprir a dívida em causa; por outro, que hajam decorrido 30 dias após a sua constituição em mora».

Ou seja, e revertendo aos autos, independentemente da posição assumida sobre o tipo de responsabilidade em causa, uma coisa é certa: o Estado Português enquanto credor do BPP, devedor originário e principal, pode exigir da aqui insolvente, sociedade dominante, também o valor por si pago por força da garantia prestada, pois que esta sociedade é responsável pelas obrigações da sociedade dominada, constituídas durante a relação de domínio.

Não obstante, alega o recorrente, na sentença recorrida foi-lhe também reconhecido um crédito (no valor global de € 1.422.766.034,60) que inclui o valor de € 1.239.389.835,60, reclamado por força da responsabilidade legal da insolvente pelas perdas do recorrente, nos termos do disposto no art.º 502.º, n.º 1, aplicável ex vi art.º 491.º, ambos do CSC, estando incluídas nessas perdas, alega, o passivo resultante do empréstimo de €450.000.000,00 concedido pelo Sindicato Bancário e garantido pelo EP em 05/12/2008.

Vejamos então.
O preceito legal agora convocado, 502.º n.º 1, dispõe que «A sociedade subordinada tem o direito de exigir que a sociedade diretora compense as perdas anuais que, por qualquer razão, se verifiquem durante a vigência do contrato de subordinação, sempre que estas não forem compensadas pelas reservas constituídas durante o mesmo período».
Pronunciando-se sobre o estabelecido neste preceito legal, Engrácia Antunes (na mesma obra), explica o vetor da proteção ali consignado “o dever de cobertura das perdas sociais visa justamente garantir que, qualquer que sejam as vicissitudes ocorridas durante a vigência do contrato, a sociedade diretora deixará a sociedade subordinada, pelo menos na mesma situação patrimonial em que a encontrou”, assinalando este vetor como o significado jurídico-económico associado a este mecanismo de tutela.
O direito aqui previsto está assim dependente da verificação de três pressupostos, dois positivos e um negativo que sejam a existência de perdas anuais apuradas nas contas sociais, que essas perdas se tenham verificado durante a vigência do contrato e que essas perdas não hajam sido compensadas por reservas constituídas no mesmo período.
Tais perdas, compensáveis, serão então as contabilísticas. Na obra citada, (pgs. 688 a 690) Engrácia Antunes, escreve que «Importa ainda referir que se trata aqui apenas de perdas registadas nas contas sociais, não de qualquer perda patrimonial – ou seja, de meras perdas contabilísticas. Esta precisão é importante.», concluindo adiante que «Daqui se retira a seguinte importante conclusão: a assunção de perdas pela sociedade diretora do art.º 502º apenas garante a manutenção do valor contabilístico do património originário da sociedade subordinada e não necessariamente o valor real.”

No caso concreto, da lista apresentada nos autos pelo AI resulta indicado o valor de €826.139.176,00, de “perdas”, argumentando o recorrente que de acordo com as demonstrações financeiras relativas ao exercício de 2008 foram essas as suas perdas anuais, o que, diz, está também indicado na certificação legal de contas, relativas às demonstrações financeiras individuais de 2008 que «evidencia[m] um total de 1.020.559.757 Euros e capitais próprios negativos no montante de 652.001.025 Euros, incluindo um resultado líquido negativo de 826.139.176 Euros (…)».
A Demonstração de Resultados, uma das demonstrações financeiras obrigatórias mais utilizadas, é um documento contabilístico que fornece um resumo financeiro dos resultados das operações financeiras da empresa durante um determinado período específico, o qual pretende retratar os proveitos e custos desse mesmo período de exercício, somando as receitas, depois as despesas e subtraindo um valor do outro, dessa forma apurando o resultado, detetando se houve lucro ou prejuízo. O resultado líquido do exercício traduz assim o resultado aritmético dos saldos a débito e a crédito que a empresa obtém durante o seu desempenho num determinado período de tempo, correspondendo, pois, à diferença entre os ganhos (ou proveitos) e os gastos (ou perdas) que a empresa realizou nesse mesmo período, objeto de lançamento em cada uma das correspetivas contas, definidas pelo Sistema Nacional de Contabilidade.

No caso dos autos, e ao que agora interessa, o valor reclamado pelo BPP, nos termos do disposto no art.º 502.º, n.º 1 do CSC, valor reconhecido na lista apresentada pelo AI, como valor de “perdas”, é sustentado, como resulta da própria alegação do recorrente, no valor apurado como resultado líquido negativo de €826.139.176, correspondente ao exercício de 2008. Diz o apelante que essas perdas incluem, designadamente, o passivo resultante do empréstimo de € 450.000.000,00 que lhe foi concedido em 05/12/2008. Ora, a existência de uma perda, na Demonstração de Resultados, significa que os proveitos não foram suficientes para compensar os custos durante determinado período. A perda reflete assim a falta de disponibilidade financeira para suportar o passivo (isto é, todas as despesas, dívidas e obrigações financeiras de um negócio, as responsabilidades perante terceiros), mas não se confunde com ele. Incluir nas perdas os passivos cria, aliás, a possibilidade de simultaneamente se estar a exigir que se cubram perdas e se paguem passivos.
Seja como for, no que ao caso importa, não evidenciando os autos um erro manifesto na lista apresentada pelo AI e homologada pelo tribunal, e é desse que aqui cuidamos (ultrapassada que está a fase de impugnação processualmente prevista), forçoso se torna acompanhar o Estado Português quando, em contra-alegações, refere que não demonstra o recorrente como é que o valor do prejuízo apurado no exercício de 2008 inclui o valor do passivo, i.e., do valor total das suas responsabilidades (nem o poderia demonstrar uma vez que os prejuízos dum determinado exercício, neste caso o de 2008, não justificam necessariamente o valor total do passivo do BPP - concretamente o que emerge dos créditos que foram reconhecidos no seu processo de Insolvência - desde logo porque reportados a uma data posterior, i.e. 24.06.2010, e que ascendem ao montante de € 1.613.466.000,00, de acordo com o Plano de Liquidação junto aos respetivos autos de liquidação judicial pela Comissão Liquidatária do BPP). Donde, e sem mais, se conclui que a sentença recorrida não padece do erro que lhe é assacado em recurso, não tendo assim razão o recorrente quando alega que as normas previstas nos arts.º 501.º e 502.º do CSC ao abrigo das quais o Estado Português e a Comissão liquidatária do BPP, respetivamente, reclamaram créditos sobre a aqui insolvente, enquanto sociedade dominante, são normas alternativas cuja aplicação cumulativa implica, in casu, o reconhecimento duplicado ou redundante de um mesmo crédito, já que as perdas anuais de um determinado exercício económico, enquanto prejuízo anual, não contemplam necessariamente o passivo da sociedade subordinada, com ele não se confundindo, e nada disso, na verdade, os elementos disponíveis nos autos o evidenciam, suportando o erro crasso que a lei exige para a retificação da lista de créditos apresentada pelo AI.
Em conclusão, não podemos afirmar que a sentença recorrida reconhece duas vezes os mesmos créditos, sendo certo que, seja como for, os mesmos estão sustentados em causas de pedir distintas, que nunca se excluiriam, estando sempre o crédito do Estado Português limitado aos termos em que foi reconhecido no processo de liquidação do recorrente, seu devedor originário (Processo n.º 519/10.5TYLSB-V), em nada afetando o crédito que também a este foi reconhecido nestes autos, e que, por sua vez, terá de ser distribuído no seu processo de liquidação de acordo com a graduação a que ali se procedeu.
Improcede assim, nesta parte, o recurso intentado.

Continuando, argumenta ainda o apelante em recurso:
(i)-que o Estado Português se encontra privado de legitimidade ativa para reclamar créditos nos presentes autos, com fundamento na responsabilidade legal da Insolvente ao abrigo do artigo 501.º do CSC, por tal pretensão se reconduzir ao art.º 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, só assistindo tal legitimidade ao recorrente.
(ii)-que a responsabilidade da sociedade dominante ao abrigo do citado art.º 501.º, na qualidade de “responsável legal” para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 6.º do CIRE, afasta a aplicação do disposto no art.º 95.º do CIRE, quanto aos responsáveis solidários e garantes, sendo inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP, o entendimento que permite a reclamação de créditos por credor de sociedade dominada reclamar a totalidade do seu crédito a cada uma das massas insolventes, da sociedade dominada e da sociedade dominante.

Não lhe assiste razão.
Vejamos porquê.

Em primeiro lugar, e no que concerne à alegada inaplicabilidade do art.º 501º do CIRE, em virtude do regime do art.º 82.º, n.º 3, do CIRE, cumpre notar que tal norma não tem aqui aplicação. Estando nós perante uma reclamação de créditos em sede de insolvência, nunca tal normativo poderia obstar ao direito à reclamação dos seus créditos por cada credor.
Com efeito, dispõe o convocado art.º 82.º n.º 3 al. c) do CIRE que «3- Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir: (…) c) As ações contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.»
Por outro lado, a noção de “responsáveis legais”, encontra-se prevista no art.º 6.º n.º 2 do CIRE que estipula que «2- Para efeitos deste Código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário.»
Por fim, diz o art.º 95.º n.º 1 do CIRE que «1- O credor pode concorrer pela totalidade do seu crédito a cada uma das diferentes massas insolventes de devedores solidários e garantes, sem embargo de o somatório das quantias que receber de todas elas não poder exceder o montante do crédito. (...)».

Ora, resultando dos autos que o Estado Português é credor da sociedade dominada, e sendo a aqui insolvente a sociedade dominante, dúvidas não há que a responsabilidade desta última, enquanto responsável legal, nos termos do art.º 501.º, n.º 1 do CSC, confere legitimidade ao EP para reclamar o seu crédito, como fez, e viu reconhecido, junto do AI.
Ainda que se possa entender que o art.º 82.º n.º 3 do CSC estabelece uma inibição temporária (enquanto durar o processo de insolvência), tal inibição é para propor ações diretamente, ações judiciais que correm por apenso ao processo de insolvência, tal como resulta do n.º 6 do aludido preceito, e não para reclamar créditos à luz do art.º 128.º do mesmo código.
A legitimidade exclusiva do administrador da insolvência para propor aquelas ações contra os responsáveis legais pelo pagamento, tendo em vista o aumento da massa insolvente, não impede nem retira a legitimidade ao credor Estado Português de exercer o direito que o art.º 501º, n.º 1 do CSC lhe confere, apresentando a sua reclamação de créditos (de que é titular perante a a sociedade dominada, que não cumpre as suas obrigações) no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.
E não vemos como tal interpretação dos arts.º 82.º, n.º 3, alínea c), e 95.º, n.º 1, do CIRE, no sentido de os credores da sociedade dominada poderem reclamar os seus créditos diretamente em ambos os processos possa ser inconstitucional por violação do princípio da igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP, designadamente na sua vertente de igualdade material dos credores (par conditio creditorum).
Tal possibilidade, que nos termos da sentença recorrida foi acolhido, teve, porém, como limite, e bem, o reconhecimento do aludido crédito sobre o BPP no respetivo processo de liquidação judicial (Processo n.º 519/10.5TYLSB-V). E é precisamente por os credores poderem sempre reclamar os seus créditos no processo de insolvência, nos termos do art.º 36.º, n.º 1, alínea j) do CIRE, enquanto credores da insolvência (art.º 47.º do CIRE), que o citado preceito não é inconstitucional, permitindo o mesmo tratamento e igualdade material a todos os credores que estejam nessa situação (ver, sobre o tratamento de questão similar, o acórdão do STJ de 29/05/2024, relatado por Maria Olinda Garcia e disponível na dgsi, proferido no âmbito do proc. 18962/21.2T8PRT.P1.S1).
Aliás, diremos ainda, sendo o reclamante Estado Português detentor de um direito substantivo de crédito, que, na tese do recorrente, cederia tão-só na esfera processual em face da legitimidade única da Comissão Liquidatária, sempre a esta caberia assegurar, na sua reclamação, a satisfação daquele direito, reclamando-o, o que, como vemos e resulta dos autos, não fez, nada obstando assim, também por esta via, que o Estado Português reclamasse ele próprio, diretamente nos autos, o seu crédito.
Improcede, assim, a pretensão do recorrente, sendo evidente que, ao nível dos pagamentos e rateio, todos os valores que foram e venham a ser entregues ao Estado Português por conta do produto da liquidação da aqui insolvente estará sempre limitado ao valor do crédito que lhe foi reconhecido no processo de liquidação judicial do BPP, deduzido de todos os pagamentos que hajam sido efetuados sejam em que moldes forem, o que deverá depois resultar da proposta de rateio que venha a ser feita e junta aos autos pelo AI.

(ii)–Do crédito de €15.589.199,00 (reconhecido como comum ao Estado Português):
Alega o recorrente que o crédito, no valor de €15.589.199,00, foi desde logo assumido pelo Estado Português, aquando da sua reclamação, como um crédito litigioso, razão pela qual, argumenta, não é um crédito sob condição, na aceção prevista no art.º 50.º do CIRE, pelo que a sua inclusão na lista de credores reconhecidos, como crédito condicional, consubstancia um erro manifesto, que deveria ter sido sanado, nos termos do disposto no art.º 130.º, n.º 3, do CIRE. Por outro lado, sendo litigioso não é exigível, não podendo assim ser reconhecido como comum.

Vejamos então.

Dos autos resulta que o crédito em causa foi reclamado sob condição, ao abrigo do disposto no art.º 50.º, n.º 1, do CIRE, que prevê nesta categoria os créditos cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da Lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico”.
Não há dúvidas que para serem considerados no âmbito do processo de insolvência, os créditos têm que ser obrigatoriamente reclamados nesse processo, ao abrigo do disposto no art.º 128.º do CIRE, sem esquecer que, de acordo com o art.º 90.º do mesmo código, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do Código, durante a pendência do processo de insolvência, atenta a sua natureza de liquidação universal.
É certo que o Estado admite que o crédito é litigioso, por estar a ser discutido em ação judicial.
Não obstante, e em primeiro lugar, em face da redação dada ao art.º 129.º n.º 2 do CIRE nada impõe que um crédito seja identificado como litigioso.
Aliás, o CIRE não invoca essa definição para efeitos de reclamação de créditos, pelo que, apelando ao art.º 579.º n.º 3 do CC diremos que é litigioso «… o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado».
A ser assim, facilmente se depreende que um crédito litigioso (em discussão e onde ainda não foi proferida decisão) não se confunde com um crédito condicional (que é aquele que já existe mas não pode ainda ser exigido, pelo facto de não se ter ainda por verificada a condição, fazendo apelo o art.º 50.º do CIRE a uma “decisão judicial”).
Ainda assim, não estando em causa nos autos um crédito condicional, como, de facto, não está, mas sim um crédito litigioso, a ser contestado em juízo, tal não dispensava o credor de reclamar o aludido crédito nos autos de insolvência. Veja-se, no sentido do aqui em discussão, o acórdão deste Tribunal de 17/07/2017, relatado por Ondina Alves, no processo 20213/16.2T8LSB.L1-2, disponível na dgsi, onde se sumariou «Um crédito condicional é aquele que, existindo, não pode ainda ser exigido, pelo facto de não se ter ainda por verificada a condição, conquanto um crédito litigioso é aquele que não pode ser exigido, até ser reconhecido, nomeadamente, por decisão transitada em julgado. 2. A menção “decisão judicial” introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20/04, ao n.º 1 do artigo 50º do CIRE, nenhuma alteração essencial aditou ao preceito, apenas se pretendeu esclarecer que a fonte da condição também poderia derivar de decisão judicial e não apenas da lei ou do negócio jurídico. 3. A nova redação dada ao artigo 50.º, n.º 1 do CIRE, pela Lei nº 16/2012, de 20.04, não fez perder qualquer sentido ao Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2014, de 08.05.2013, mantendo o mesmo inteira aplicabilidade. 4. Transitada em julgado a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respetivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de acção declarativa instaurada com vista ao reconhecimento de eventuais direitos de crédito do demandante, pois estes sempre teriam de ser objeto de reclamação no processo de insolvência, já que aquela declaração obsta à instauração de qualquer acção executiva contra a massa insolvente. (….)».

Donde, acompanhando o assim prolatado, forçoso se impõe concluir que, nestes autos, a partir da declaração de insolvência da sociedade dominante, e na pendência do processo, os direitos que os credores da insolvência pretendem exercer apenas o poderão fazer em conformidade com os preceitos do Código, atenta a sua natureza de liquidação universal, o que, no caso, passaria, como passou, pela reclamação de créditos deduzida no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, créditos esses que o Estado viu reconhecidos na lista apresentada pelo administrador da insolvência nos autos, e que poderiam ter sido objeto de impugnação e discussão no processo, ao nível substantivo, perdendo assim qualquer utilidade a acção declarativa pendente, onde aqueles créditos se discutiam.
Por conseguinte, a inclusão do crédito em apreço, titulado pelo Estado Português, na lista de credores reconhecidos não teria que ser listado como crédito condicional, em face do exame e juízo que se impõe ao AI fazer, não suscitando, todavia, qualquer reparo a sua classificação de crédito comum como se concluiu em sentença.

Improcede, pois, e totalmente a presente apelação.

*

VI-/ Decisão:

Por todo o exposto, acordam as Juízas desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, assim se confirmando a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
Registe e notifique.


Lisboa, 11/07/2024


Paula Cardoso
Fátima Reis Silva
Manuela Espadaneira Lopes