Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
58/21.9T8CSC.L1-4
Relator: LEOPOLDO SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I–A descaracterização do acidente exige a verificação de dois requisitos:
- que o acidente provenha de comportamento indesculpável, temerário em alto e relevante grau do sinistrado;
- que tal conduta seja a causa exclusiva do mesmo.


(Elaborado pelo relator)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


AAA, (…) intentou processo especial para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, contra Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.

Em 16 de Março de 2022,  realizou-se tentativa de conciliação, presidida pelo MºP, em que apenas foi obtido acordo quanto à existência de relação laboral, à retribuição anual do sinistrado e à transferência de responsabilidade para a Ré.[1]

Em 10 de Maio de 2022,  o MºPº, patrocinando o sinistrado, apresentou, no prazo a que alude o nº 1 do art. 119.º, do CPT, a petição inicial.[2]

Pediu a condenação da Ré no pagamento de:
 pensão anual e vitalícia de € 5.412,51 ou a que vier a ser calculada se outro grau de IPP for fixado em resultado de Junta Médica e devida desde o dia seguinte ao da alta se outro vier a ser fixado;
  € 341,00 a título de despesas relativas a consultas e tratamentos e de 10,00€ a título de despesas, bem como as vincendas a tais títulos;
 indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, no montante de € 21.114,55;
a quantia de € 4.396,43 a título de subsídio por situações de elevada incapacidade permanente;
juros de mora, vencidos e vincendos à taxa anual legal, desde a data dos respectivos vencimentos até integral pagamento.

Segundo a petição inicial em sede factual:
«
1º–
No dia 9 de Janeiro de 2019, às 13h05, em … Cascais, o A. foi vítima de um acidente,

2º–
quando prestava o seu trabalho sob a direcção, autoridade e fiscalização de …, Ld.ª, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado.

3º–
Nela exercia o A. as funções próprias de Operário Qualificado, competindo-lhe, designadamente, a montagem de pneus, funções que desempenhava no armazém da sua empregadora sito em Trajouce.

4º–
Cumprindo um horário de trabalho diário das 08h30 ás 12h30 e das 14h00 ás 19h00, com intervalo para almoço das 12h30 ás 14h00.

5º–
Na verdade, naquele dia e hora, o A. porque estivesse no seu período de almoço, e atenta a inexistência de refeitório no seu local de trabalho, pretendia dirigir-se á sua residência, como o fazia diariamente, para almoçar.

6º–
Devido ao facto do portão de acesso ao exterior se encontrar fechado e não ter qualquer forma de sair, já que se encontrava sozinho no armazém sem acesso ás chaves do portão, o A. transpôs, por salto, um muro com cerca de 2 metros de altura.

7º–
Após saltar o muro, o A. ficara imobilizado no chão sem se conseguir levantar, altura em que um transeunte, apercebendo-se do sucedido, contactara a entidade empregadora do A., na pessoa de (…), o qual ali acorrera solicitando a comparência no local do corpo de Bombeiros Voluntários  que transportaram o A. ao Hospital de (…)– cfr. verbete de socorro/transporte junto com a presente petição.

8º–
O A. dera entrada no Hospital nesse mesmo dia pelas 14h52, tendo a médica que o assistira Drª. (…) anotado: “ fract do pilão tibial; imobiliza-se com tala gessada post; doente dora de área; ac de trabalho” – cfr. resumo informação clinica junto com a presente petição.

9º–
O A. fora encaminhado e transferido nesse mesmo dia para o Hospital (…) onde pernoitara.

10º–
Os exames complementares de diagnóstico efectuados demonstraram fractura do calcâneo direito e fractura cominutiva do pilão tibial e bimaleolar do tornozelo esquerdo, tudo conforme documentação clínica junta aos autos.

11º–
Foi operado ao calcâneo direito, tendo sido submetido a osteossíntese com placa externa por via do seio do tarso e submetido a fixador externo do tornozelo esquerdo.

12º–
Teve alta da Companhia de Seguros em 02-02-2019.

13º–
A R. Seguradora comunicara ao sinistrado, ora A., e à tomadora do seguro Vulcanizadora, …, Ldª, por cartas datadas de 04-02-2019 a não assunção de qualquer responsabilidade no tratamento daquela, declarando o seguinte:
“Esclarecemos que, no decurso das diligências realizadas por esta seguradora, foi possível apurar que o acidente supra se encontra descaracterizado, nos termos da alínea b) do nº 1, do artigo 14º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, devido a negligência grosseira do Sinistrado. Face ao exposto, não lhe conferindo a legislação aplicável o direito a qualquer prestação, quer em espécie, quer pecuniária, informamos que iremos proceder ao encerramento do processo.”

14º–
Tomando conhecimento da posição da R. Seguradora, e devido ás dores que ainda se manifestavam desde o evento ocorrido, designadamente ao nível do tornozelo esquerdo, agravadas durante a marcha, rigidez articular e edema periarticular dos tornozelos, e ao abandono a que fora votada pela Seguradora e face ao desinteresse pela mesma manifestado na sua recuperação, o A. passou a ser seguido no Hospital onde fora submetido, a 07-03-2019, a extração de fixador externo – cfr. Relatório junto aos autos a fls. 75.

15º–
Foram-lhe prescritos, entre outros, tratamentos de MFR, tratamentos de fortalecimento muscular, estimulação eléctrica neuromuscular, o que efectuara no Centro de Fisioterapia de Recuperação.

16º–
Manteve baixa pelo Médico de Família desde 03-02-2019 até á presente data.

17º–
O A. informou do sucedido a sua entidade patronal, que tomou a iniciativa de participar o evento à ora R., qualificando-o como Acidente de trabalho, indicando expressamente na aludida participação que o evento ocorrera, como ocorreu, no dia 09-01-2019 pelas 13h05 – cfr. cópia da participação do evento pela empregadora à Seguradora junta aos autos.

18º–
Submetido a exame pericial neste Tribunal, o Perito Médico atribuiu ao A. uma IPP de 21,44% com IPATH, a partir da data da alta que fixou em 30-11-2021. Considerou ainda que o A. sofrera as seguintes incapacidades temporárias e durante os seguintes períodos:
- ITA – de 10-01-2019 a 30-11-2021

19º–
À data do acidente a A. auferia a retribuição anual de € 9.970,00 correspondente ás seguintes componentes remuneratórias: € 615,00 x 14 (salário base) + € 110,00 x 11 (subsídio alimentação) + 12,50 x 12 (prémio assiduidade).

20º–
À data do acidente a entidade empregadora do A. tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a R. Seguradora, mediante a celebração de contrato de seguro do ramo de Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice nº AT pela totalidade da retribuição supra indicada e auferida pelo A., dando assim cumprimento ao disposto no art. 79º da LAT que estabelece ser o empregador obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista naquela lei para entidades legalmente autorizadas a realizar seguros.

21º–
Até ao momento, a A. despendeu € 10,00 em transportes com as deslocações efectuadas ao Tribunal no âmbito deste acidente de trabalho.

22º–
Despendeu ainda em consultas e tratamentos de tratamentos de MFR, tratamentos de fortalecimento muscular, estimulação eléctrica neuromuscular, a quantia de € 341,00 – cfr. facturas juntas com a presente Petição.

23º–
Realizada a Tentativa de Conciliação, como a lei determina, viria a mesma a frustrar-se, porquanto a R. Seguradora não aceitara a caracterização do evento descrito como sendo acidente de trabalho, assim como também não aceita que o sinistrado tenha sofrido, em consequência do acidente, as lesões referidas nos autos, particularmente as consideradas pelo Perito Médico do tribunal no seu exame, nem o nexo causal entre esse acidente e estas lesões, não aceitando também a avaliação da incapacidade atribuída pelo Perito Médico do Tribunal, entendendo que o acidente se encontra descaracterizado nos termos do disposto na al. b) do nº 1 do art. 14º da Lei nº 98/2009 de 4 de Setembro, por negligência grosseira do sinistrado, razão pela qual não aceitara a conciliação nos termos propostos pelo Ministério Público.

24º–
Porém, do referido Auto de Tentativa de Conciliação, resulta que a R. aceitara que à data do acidente se encontrava transferida para a Companhia de Seguros a remuneração anual de € 9.970,00 correspondente ás seguintes componentes remuneratórias: € 615,00 x 14 (salário base) + € 110,00 x 11 (subsidio alimentação) + 12,50 x 12 (prémio assiduidade), e que a entidade patronal tomadora do seguro tinha celebrado com a R. Seguradora e estava em vigor o contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho titulado pela apólice nº AT que cobria integralmente o mencionado salário anual transferido.

25º–
Devem, assim, tais factos aceites pela R. no Auto de (Não) Conciliação ser considerados definitivamente assentes em conformidade com o disposto nos arts. 114º nº 1, 131º nº 1 al. c), e 135º, todos do Código de Processo do Trabalho.

26º–
Pelo que apenas se pode exercitar na fase contenciosa destes autos os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo, in casu, a questão da caracterização do evento como acidente de trabalho bem como a questão do nexo de causalidade entre a existência de um evento caracterizado como Acidente de Trabalho e as lesões patenteadas pelo sinistrado nos exames periciais efectuados.

27º–
Não assiste porém razão á R. quanto à inexistência do acidente em discussão e sua caracterização como sendo de trabalho, nem tão pouco quanto á inexistência do referido nexo causal entre o acidente e as lesões sofridas pelo A. conforme consideradas pelo Perito Médico do Tribunal na sua perícia e atestadas nos autos e, consequente, não caracterização do acidente como de trabalho por falta de verificação do citado elemento causal (nexo de causalidade entre o evento e a lesão), nem tão pouco quanto á alegada descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado.» - fim de transcrição.

A Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A, contestou.[3]

Alegou, em suma,  não ter qualquer responsabilidade pelo sinistro por ter ocorrido caducidade do direito de acção.

Mais sustenta que o acidente foi causado por negligência grosseira do sinistrado.

Assim, deve ser descaracterizado como de trabalho.

Também impugna as invocadas despesas assim como a avaliação da incapacidade.

Citado para o efeito,  o Instituto da Segurança Social, I. P., com sede (…) Lisboa, pediu o  reembolso das prestações de segurança social, no valor de € 12.864,10 (doze mil, oitocentos e sessenta e quatro euros e dez cêntimos).[4]

Em 8 de Novembro de 2022, foi  julgada improcedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção.

Foi proporcionado o contraditório relativamente à descaracterização do acidente de trabalho.

Em 9 de Janeiro de 2023, considerou-se que:[5]
«O estado do processo consente que se conheça, no momento presente e sem necessidade de produção de prova, do mérito da causa (art. 131.º, n.º 1, al. b) do CPT)».

De seguida, proferiu-se sentença que logrou o seguinte dispositivo:
«
Em face do exposto, decide-se julgar a acção improcedente, por não provada, e em consequência, absolver a Ré Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. do pedido.
Valor da causa: 2.000,00€ (dois mil euros).
Custas da acção pelo Autor.
Registe e notifique.» - fim de transcrição.

As notificações da sentença foram expedidas em 12 de Janeiro de 2023, data em que o MºPº também foi notificado. [6]

Em 30 de Janeiro de 2023, AAA, com o patrocínio oficioso do Ministério Público, recorreu.[7]
Concluiu que:
« (…)
Sustenta a revogação da decisão recorrida.

Em 14 de Fevereiro de 2023, a Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. Entidade Responsável , contra alegou.[8]
Concluiu que:
(…)
«Por legal, tempestivo e interposto por quem com legitimidade para o efeito, admite-se o recurso de apelação interposto da sentença proferida nos presentes autos (arts. 79.º-A, n.º 1, al. a), 80.º, n.º 2, e 81.º, n.º 1, do CPT e art. 631.º, n.º 1, do CPC).
Determina-se a subida imediata dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa (arts. 82.º, n.º 1, 83.º, n.º 1, 83.º-A, n.º 1, do CPT). » - fim de transcrição.

Foram colhidos os vistos.

Nada obsta ao conhecimento.

***

Eís a matéria dada como provada:
1.–Este exercia as funções de Operário Qualificado, competindo-lhe, designadamente, a montagem de pneus, funções que desempenhava no armazém da sua empregadora;
2.–Cumpria um horário de trabalho diário das 08h30 às 12h30 e das 14h00 às 19h00, com intervalo para almoço das 12h30 às 14h00.
3.–No dia 9 de Janeiro de 2019, às 13h05, quando prestava o seu trabalho sob a direcção, autoridade e fiscalização de Vulcanizadora, Fragoso e Filhos, Ldª, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado, o Autor porque estivesse no seu período de almoço, e atenta a inexistência de refeitório no seu local de trabalho, pretendia dirigir-se à sua residência, como fazia diariamente, para almoçar;
4.–Devido ao facto do portão de acesso ao exterior se encontrar fechado e não ter qualquer forma de sair, já que se encontrava sozinho no armazém sem acesso ás chaves do portão, o Autor transpôs, por salto, um muro com cerca de 2 metros de altura;
5.–Após saltar o muro, o Autor ficara imobilizado no chão sem se conseguir levantar, altura em que um transeunte, apercebendo-se do sucedido, contactara a entidade empregadora do Autor, na pessoa de (…), o qual ali acorrera solicitando a comparência no local do corpo de Bombeiros Voluntários que transportaram o Autor ao Hospital de (…)
6.–O Autor sofreu fractura do calcâneo direito e fractura cominutiva do pilão tibial e bimaleolar do tornozelo esquerdo.
7.–A Ré comunicara ao sinistrado, ora Autor, e à tomadora do seguro (…)Ldª, por cartas datadas de 04-02-2019 a não assunção de qualquer responsabilidade no tratamento daquela, declarando o seguinte:
“Esclarecemos que, no decurso das diligências realizadas por esta seguradora, foi possível apurar que o acidente supra se encontra descaracterizado, nos termos da alínea b) do nº 1, do artigo 14º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, devido a negligência grosseira do Sinistrado.
Face ao exposto, não lhe conferindo a legislação aplicável o direito a qualquer prestação, quer em espécie, quer pecuniária, informamos que iremos proceder ao encerramento do processo.”
8.–O Perito Médico atribuiu ao Autor uma IPP de 21,44% com IPATH, a partir da data da alta que fixou em 30-11-2021, considerando ainda que o Autor sofrera ITA de 10-01-2019 a 30-11-2021.

*
É sabido que o objecto do recurso apresenta-se delimitado pelas conclusões da respectiva alegação (artigos 635º e 639º ambos do CPC  ex vi do artigo 87º do CPT aplicável)[9].[10]

In casu,  suscita-se  uma única questão que  consiste em saber  se o acidente em apreço [cuja verificação não se mostra questionada , tal como a relação laboral entre o sinistrado e a sua entidade patronal [11]a transferência da respectiva responsabilidade infortunística laboral desta para a Seguradora, assim como a relação de causalidade adequada entre a lesão sofrida pelo sinistrado.
e o resultado do acidente[12]]  se deve reputar descaracterizado como de trabalho tal como se considerou na decisão recorrida.

Sobre o assunto a sentença – na parte para aqui relevante -  discreteou:
«
D.Da descaracterização de acidente de trabalho
A Ré defende que deve o acidente de trabalho ser  descaracterizado, devido a negligência grosseira do sinistrado.

A descaracterização do acidente de trabalho encontra-se prevista no art. 14.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, que estatui:

«1–O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a)-For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b)-Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c)-Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2–Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3–Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.»

A descaracterização de um acidente de trabalho constitui uma causa de exclusão da responsabilidade infortunística e, consequentemente da respectiva reparação, fundada em uma das seguintes situações:
  • Dolo do sinistrado;
  • Violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
  • Negligência grosseira do sinistrado;
  • privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado.
Cabe salientar que a descaracterização, como causa de privação total da reparação por acidente de trabalho, terá de assumir um carácter de excepcionalidade, atento o respectivo impacto, em termos tais que se possa ter por inexigível ao empregador suportar as consequências do acidente de trabalho e por legitimamente arredado o regime normal de tutela infortunística laboral. (cf. JÚLIO VIEIRA GOMES, O Acidente de Trabalho – Acidente em Itinere, pp. 232-234 e 240-246)

Na situação vertente, compete ponderar acerca da causa de descaracterização invocada pela Ré: a negligência grosseira do sinistrado.

O conceito de negligência grosseira é definido no art. 14.º, n.º 3, da Lei dos Acidentes do Trabalho, cuja delimitação se opera em sentido positivo (comportamento temerário em alto e relevante grau) e negativo (que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão).
O desenho legal da dimensão positiva do conceito de negligência grosseira inicia-se pela referência a um comportamento – isto é, um acto ou omissão voluntário do sinistrado, requisito essencial para que se lhe possa imputar uma culpa negligente.
Ao aludir à temeridade, o legislador refere-se a um posicionamento intelectual e emocional do sinistrado, diante da representação do facto e das suas possíveis consequências (mesmo que não acredite na sua ocorrência), dado que a temeridade, na relação de antonímia com os sentimentos de medo e receio, implica que a pessoa rejeite ou menorize os efeitos previsíveis da sua conduta e, ainda assim, se decida a observá-la.
Acresce que o comportamento, a ser temerário, deve sê-lo em alto e relevante grau, ou seja, ultrapassando tanto a mera imprudência como a falta simples de diligência ou cuidado.
Nesta óptica, o juízo de censura a dirigir ao sinistrado tem de revestir elevada intensidade (o que se alinha com o carácter excepcional da figura da descaracterização do acidente de trabalho), por infringir as mais básicas normas de cuidado que lhe sejam exigíveis.
Mostra-se também necessário que, entre a negligência do sinistrado, o evento e as consequências dele emergentes, se possa estabelecer um nexo de causalidade adequada, de modo a dizer-se que, não fora o comportamento temerário, os danos não teriam acontecido, sendo que, na concorrência de outra causa que afaste a negligência como causa exclusiva do acidente, não haverá, em princípio, lugar à descaracterização. (cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2017, Proc. n.º 156/14.5TBSRQ.L1.S1)
Nesta linha, a lei não se basta com a mera negligência ou uma distracção, sendo necessário, para satisfazer o ónus que impende sobre o responsável infortunístico (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil), que o comportamento seja, além de «ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência». (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-12-2020, Proc. n.º 1059/13.6TTCBR.C1)
No que concerne à dimensão negativa do conceito, é estabelecida uma exclusão da descaracterização sempre que se conclua que o comportamento temerário radica na habituação que, por efeito do tempo de prestação de trabalho e da experiência adquirida, se tenha desenvolvido no sinistrado, sendo por isso menos censurável a redução do nível de cautela por si observado, de acordo com a razoável consideração de que a exposição continuada ao perigo conduz a um relaxamento do grau de cuidado empregue.
A matéria de facto – sem prejuízo da impugnação da Ré – é suficiente para verificar que a descaracterização do acidente de trabalho é, mesmo aceitando toda a alegação do Autor (isto é, assumindo que a mesma vai ser provada), procedente como excepção peremptória de ordem impeditiva.
Cumpre resolver de imediato as questões mais evidentes.
Em primeiro lugar, verifica-se que o salto do Autor, sobre o muro, não concorreu com nenhuma outra causa para a produção do acidente, pelo que é dele causa exclusiva.
Por outro lado, ao contrário do que defende o Autor na resposta de 18-11-2022, é notório que a função de montar pneus não apresenta qualquer esfera de sobreposição com o acto de saltar de muros com 2 metros de altura, pelo que não é possível acompanhar a argumentação expendida pelo Autor, no sentido de que houvesse um excesso de confiança induzido pela experiência profissional adquirida.
Diremos, mesmo, que o acidente ocorrido não tem, de modo algum, relação com as funções exercidas pelo Autor, sendo antes motivadas pela ideia de beneficiar da pausa para almoço definida, entre as 12h30 e as 14h, tanto mais que não se alega que tal método de saída das instalações já tivesse acontecido anteriormente.
Contudo, o gozo do período de interrupção para almoço e o intuito de, gozando-o, retomar o trabalho com pontualidade não se apresentam como causas justificativas bastantes para o risco em que o Autor incorreu.
Nesta senda, embora a impossibilidade de o Autor tomar a respectiva refeição, conforme previa, se trate de uma circunstância desagradável, não estamos perante uma emergência (como seja um incêndio no local de trabalho) que justifique, tornando menos censurável, o comportamento temerário do Autor.
Com efeito, mesmo que pretendendo exercer o seu direito ao repouso, era previsível, à luz do senso-comum e da normalidade do acontecer, que um indivíduo de 43 anos, ao saltar de uma altura de dois metros (se não mais) sofresse uma lesão em virtude do impacto da queda.
Parece-nos subtraído a toda a controvérsia de que se tratava do desfecho mais provável.
Nesta linha, não vemos como não se possa reputar como altamente reprovável a conduta de um indivíduo adulto que, sendo incapaz de aguardar uma hora (supondo que só voltaria a porta a ser aberta pelas 14h) no local de trabalho, se lança – dizemos lança, porque o Autor utiliza a expressão transpor, não fazendo qualquer alusão a ter-se, por exemplo, sentado no muro antes de saltar – de um muro com dois metros de altura, quadro circunstancial em que uma lesão nos membros inferiores surge como mais provável do que a hipótese de o trabalhador sair ileso de tal acontecimento.
Ora, é de censurar, por quase infantil, a escolha feita pelo Autor: diante de duas alternativas – gozar o período de almoço como habitualmente, mas correr o sério risco de produzir trauma corporal ou ficar no local de trabalho durante o horário de almoço e não se expor à produção de dano corporal – o Autor elegeu a opção marcadamente menos avisada, discernindo-se uma actuação de especial insensatez por parte do mesmo.
Não está sequer em causa um evento de natureza dinâmica em que o Autor, no curso de uma sequência de acontecimentos e de decisões, tivesse decidido mal ou imprudentemente: o Autor não tinha qualquer urgência em sair do local de trabalho, tendo tido de se dirigir ao muro para o transpor.

Do mesmo modo, não nos encontramos perante um episódio em que o Autor se expôs ao perigo em virtude do exercício das suas funções, nem por força da circulação rodoviária ou que tivesse escorregado daquele: o Autor, querendo ir almoçar à sua residência, mas não podendo sair pela porta principal, subiu a um muro de dois metros e saltou para a via pública.
Como é evidente, não se pretende dizer que o Autor se tivesse exposto, com probabilidade relevante, a risco de vida ao proceder àquele salto. No entanto, as lesões por si sofridas são, à luz das regras de experiência comum, inteiramente consentâneas com o perigo a que se expôs.
É, pelo susdito, manifesto que o Autor tomou uma opção deliberada de actuação que envolvia uma elevada probabilidade de produção do evento conforme o mesmo ocorreu, o que o mesmo previu e quis.
Embora se saiba o motivo que levou o Autor a querer sair do local de trabalho do modo perigoso como saiu, este não só não é justificação suficiente para o perigo a que o Autor conscientemente se expôs, como chega a emprestar uma imagem de gratuitidade do acontecimento lesivo.
Repare-se que, no que arriscaríamos classificar como a totalidade das situações, há sempre uma razão que explica – mesmo que não justifique – os mais temerários dos comportamentos adoptados pelos sinistrados, pelo que a existência de uma explicação para o comportamento não implica que o mesmo se tenha por justificado e legitimado à luz das finalidades que guiam a matéria da reparação de acidentes de trabalho.
Ora, o responsável infortunístico, seja o empregador, seja uma seguradora, não pode estar sujeito à obrigação de indemnizar mesmo os actos em que a previsibilidade de produção de lesão é elevada, sem que haja um contraponto que justifique a prática de um tal acto – e o gozo do repouso para almoço não é motivo bastante para o efeito.
Assim, não se escamoteando a excepcionalidade da aplicação da figura da descaracterização, num caso como o vertente avulta a nitidez com que se apresenta, aos olhos do homem comum, a irresponsabilidade do Autor.
A temeridade da actuação do Autor é, por isso, verdadeiramente excepcional, no sentido em que é fruto de uma decisão na qual este, isento de qualquer deformação da capacidade de avaliar por efeito da experiência profissional, tinha condições para representar e prever o que iria suceder de seguida, dado que a consequência mais provável era a que, enfim, se materializou.
Diremos mais: bastaria uma probabilidade ligeiramente mais alta para asseverar que se trata, efectivamente, de dolo eventual.
Teríamos, outrossim, dificuldade em não apodar como paternalista um regime legal que outorgasse uma indemnização à pessoa que, não correndo nenhum perigo, toma a decisão de subir a um muro de, pelo menos, dois metros e transpô-lo, aterrando na via pública.
Parece-nos inequívoco que o regime de tutela infortunística laboral não se encontra vocacionado para proteger os sinistrados que tomem decisões que, além de despropositadas e desproporcionadas, atentem intrinsecamente contra o mais básico senso de prudência, tal é a reprovação que merece a atitude do sinistrado.
Nesta linha, e salvo melhor opinião, não qualificar o comportamento do Autor como grosseiramente negligente significaria, atenta a existência de uma previsão atinente ao dolo do sinistrado, esvaziar inteiramente a consagração do art. 14.º, n.º 1, al. b) do LAT.

Em face do exposto, é de declarar a descaracterização do acidente de trabalho, devido a negligência grosseira do Autor.
*
Ficam prejudicados os pedidos de reparação deduzidos contra a Ré pelo Autor, dado que a Ré não está obrigada a reparar os danos emergentes do acidente de trabalho.
Fica prejudicado igualmente o pedido de reembolso efectuado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., dado que não foi reconhecida a obrigação de indemnizar da Ré (art. 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de Fevereiro).
*
As custas da acção devem ser suportadas pelo Autor, por ter saído vencido da mesma (art. 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).» - fim de transcrição.
Concorda-se com tal decisão.
Tal como se referiu em aresto do STJ , de 26-10-2017, proferido no processo nº 156/14.5TBSRQ.L1.S1, Nº Convencional: 4ª Secção, Relator Conselheiro Gonçalves Rocha, acessível em www.dgsi.pt:
«
(….)a descaracterização do acidente de trabalho constitui assim uma causa de exclusão da sua reparação, argumentando-se para tanto que, resultando esta protecção do trabalhador de responsabilidade objectiva do empregador, que assenta basicamente no risco da autoridade, não se justifica que ela subsista quando o acidente for totalmente imputável a um comportamento intencional ou altamente culposo da vítima.
E assim, apesar do acidente se revestir de todas as características de um acidente de trabalho, há algo resultante dum comportamento do próprio sinistrado que faz com que o direito à reparação não funcione, o que acontece nomeadamente quando o acidente provier exclusivamente de negligência grosseira deste.
Por outro lado, diz-nos ainda o nº 3 do supracitado preceito da LAT que terá aptidão para integrar esta figura “o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”.
Trata-se da consagração da doutrina que se foi firmando no domínio da Lei nº 2127, de cuja base VI, nº 1, alínea b) advinha que não dava direito a reparação o acidente de trabalho que proviesse, exclusivamente, de falta grave e indesculpável da vítima, só assumindo esta natureza um comportamento temerário do sinistrado, inútil para o trabalho, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, conforme jurisprudência sedimentada pelos nossos tribunais, vendo-se neste sentido os acórdãos do STJ de 20/9/88, BMJ 379/527 e de 12/5/99, BMJ 487/208.
Também para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b), do nº 1, do artigo 14º da actual LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só um comportamento temerário em alto e relevante grau é que é apto a produzir tal efeito, não tendo esta virtualidade os comportamentos do sinistrado que constituam meras imprudências, inconsiderações, irreflexões ou leviandades.

Efectivamente, a culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto – cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º – 151, podendo nela distinguirem-se três graus:
- culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar;
- o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média;
- o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada.
No entanto, para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da aludida alínea b) do nº 1 do artigo 14º da LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, só a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado sendo apta a produzir tal efeito.
Nesta linha, a jurisprudência vem defendendo, com foros de unanimidade, que só as temeridades e imprudências inúteis, fortemente indesculpáveis e sem ligação directa com a actividade exercida no trabalho são susceptíveis de constituir falta grave e indesculpável descaracterizadora do acidente, assim decidindo nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011, Recurso n.º 433/08.4TTFUN.L1.S1 e de 24/2/2010, Recurso n.º 747/04.2TTCBR.C1.S1, ambos desta 4ª Secção.

Assim e na linha do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2014, Processo n.º 39/12.3T4AGD.C1.S1, pode afirmar-se que a figura da descaracterização do acidente de trabalho pressupõe três requisitos:
(i)-uma “acção especialmente perigosa” (traduzida, v.g., na infracção de um dever de cuidado especialmente importante ou de vários deveres menos significativos);
aliada a um
(ii)-“resultado de verificação altamente provável (à luz da conduta adoptada)”; e, nessa medida,
(iii)-uma atitude especialmente censurável de leviandade ou de descuido, reveladora de “qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez”.
Por isso, e desde logo temos que afastar da descaracterização do acidente aqueles comportamentos da vítima que constituam meras imprudências, inconsiderações irreflexões ou leviandades, pois é preciso que o comportamento do sinistrado assuma o alto grau de censura e reprovação correspondente ao exigido para a negligência grosseira.
Mas também não basta a mera existência duma conduta susceptível de integrar uma negligência grosseira do sinistrado, pois exige-se ainda que a conduta do sinistrado seja causa adequada e exclusiva do acidente[1].[13]

Efectivamente, e seguindo a doutrina do acórdão deste Supremo Tribunal de 27.3.2014, revista n.º 1328/10.7TTAVR.C1.S1 (Fernandes da Silva), a descaracterização do acidente de trabalho com o fundamento previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, exige a verificação de dois requisitos: que o acidente provenha de culpa grosseira do sinistrado - entendida como um comportamento temerário em alto e relevante grau - e que esta conduta seja a causa exclusiva do mesmo.
Também o acórdão deste Supremo Tribunal 03-03-2016, Proc.º 568/10.3TTSTR.L1.S1 (Revista - 4.ª Secção) vai no mesmo sentido, sustentando que a alínea b) do n.º 1 do art. 14º da LAT não se contenta com a circunstância do trabalhador que sofreu um acidente ter actuado com negligência grosseira, pois exige ainda que a actuação que a consubstancia seja, em exclusivo, a causa do acidente.
No caso presente estamos perante um acidente de trabalho que simultaneamente é um acidente de viação.
Neste âmbito, e seguindo também jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, nomeadamente o acórdão de 2009.09.17, processo n.º 451/05.4TTABT.S1, “não basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado integrar uma infracção ao Código da Estrada, ainda que eventualmente qualificável como contra-ordenação grave ou muito grave, para se dar como preenchido o requisito da negligência grosseira que constitui fundamento da descaracterização do acidente”.
Assim, o critério da gravidade das infracções no domínio rodoviário não pode servir para qualificar como “grosseira” a culpa do sinistrado num acidente de trabalho, pois para tanto é necessário demonstrar que a conduta do sinistrado se integra na definição de negligência grosseira, devendo por isso integrar um comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão, conforme decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de 14-12-2005, proferido no processo n.º 2337/05 - 4.ª Secção (Maria Laura Leonardo).
Em idêntico sentido se pronunciou este Supremo Tribunal no acórdão de 09-11-2011, Recurso n.º 924/03.3TTLRA.C1.S1 - 4.ª Secção, (Pereira Rodrigues), de cuja doutrina se retira que a prática por parte do sinistrado de uma infracção estradal, caracterizável de grave ou muito grave, mesmo que decorrente de negligência grosseira, e que tenha estado na origem de um acidente, não basta, só por si, para que deva considerar-se descaracterizado o mesmo acidente, sendo, ainda, necessário que se conclua que o acidente, com as consequências concretas dele resultantes, teve como causa exclusiva o comportamento grosseiramente negligente do sinistrado.
Efectivamente, as diferenças teleológicas do acidente de trabalho reclamam mecanismos de protecção diversos dos da legislação rodoviária, pois na problemática da descaracterização do acidente de trabalho a função social subjacente ao seu regime impõe que o critério das infracções no domínio rodoviário não pode servir, sem mais, para descaracterizar um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, exigindo-se, para o efeito, que a conduta do sinistrado preencha a densificada noção de negligência grosseira.»- fim de transcrição.

Dito isto, com respeito por opinião distinta, atenta a matéria assente [
1.–Este exercia as funções de Operário Qualificado, competindo-lhe, designadamente, a montagem de pneus, funções que desempenhava no armazém da sua empregadora;
2.–Cumpria um horário de trabalho diário das 08h30 às 12h30 e das 14h00 às 19h00, com intervalo para almoço das 12h30 às 14h00.
3.–No dia 9 de Janeiro de 2019, às 13h05, quando prestava o seu trabalho sob a direcção, autoridade e fiscalização de (…), Ldª, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado, o Autor porque estivesse no seu período de almoço, e atenta a inexistência de refeitório no seu local de trabalho, pretendia dirigir-se à sua residência, como fazia diariamente, para almoçar;
4.–Devido ao facto do portão de acesso ao exterior se encontrar fechado e não ter qualquer forma de sair, já que se encontrava sozinho no armazém sem acesso ás chaves do portão, o Autor transpôs, por salto, um muro com cerca de 2 metros de altura;
5.–Após saltar o muro, o Autor ficara imobilizado no chão sem se conseguir levantar, altura em que um transeunte, apercebendo-se do sucedido, contactara a entidade empregadora do Autor, na pessoa de (…), o qual ali acorrera solicitando a comparência no local do corpo de Bombeiros Voluntários  que transportaram o Autor ao Hospital de (…);
6.–O Autor sofreu fractura do calcâneo direito e fractura cominutiva do pilão tibial e bimaleolar do tornozelo esquerdo.
7.–A Ré comunicara ao sinistrado, ora Autor, e à tomadora do seguro (…) Ldª, por cartas datadas de 04-02-2019 a não assunção de qualquer responsabilidade no tratamento daquela, declarando o seguinte:
“Esclarecemos que, no decurso das diligências realizadas por esta seguradora, foi possível apurar que o acidente supra se encontra descaracterizado, nos termos da alínea b) do nº 1, do artigo 14º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, devido a negligência grosseira do Sinistrado.
Face ao exposto, não lhe conferindo a legislação aplicável o direito a qualquer prestação, quer em espécie, quer pecuniária, informamos que iremos proceder ao encerramento do processo.”
8.–O Perito Médico atribuiu ao Autor uma IPP de 21,44% com IPATH, a partir da data da alta que fixou em 30-11-2021, considerando ainda que o Autor sofrera ITA de 10-01-2019 a 30-11-2021.] afigura-se-nos evidente que o sinistrado adoptou um comportamento especialmente perigoso .
É que , sem necessidade absoluta de o fazer [não se detecta que a sua vida corresse perigo se não comesse ou se o fizesse com atraso] o sinistrado /recorrente  saltou de um muro com cerca de 2 metros [14]de altura.
Trata-se de conduta que, mesmo tendo em conta a estatura do sinistrado[15], atentou contra o mais elementar sentido de prudência, apresentando-se como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do senso comum.
Quem é que morando num primeiro andar  sai de casa pela janela e não pela porta, a não ser  numa emergência notória (vg: um incêndio que faça perigar a sua vida se o não fizer…)  ?
Argumentar-se-á que se o Autor não saísse  pelo muro , como fez, perdia a hora de almoço (entre as 12h30 às 14h00) e não ia a casa tomar a refeição sendo que depois tinha que prosseguir com o horário de trabalho normal.
Contudo, independentemente de se poder questionar se na era dos telemóveis [16][17], o sinistrado não podia ter telefonado a sua entidade patronal ou a um colega relatando a situação e solicitando que lhe fossem abrir a porta, ou até mesmo se tem aguardado dentro das instalações e oportunamente relatado o sucedido não lhe seria concedido um período mesmo que encurtado para ir comer qualquer coisa  ainda assim, a nosso ver, salvo melhor opinião, o seu comportamento [anote-se que nasceu em 15.2.1975 (vide fls .121) pelo que à data do acidente ( 9.1.2019) tinha 43 anos e em breve ia perfazer os 44, sendo que não se provou que o sinistrado fosse um paraquedista ou um atleta …] tem que se reputar despropositado e temerário.
Um salto da altura em causa é no mínimo arriscado e perigoso.
Esgrimir-se- á que fiado na sua idade [nasceu em 15.2.1975 pelo que em 9.1.2019 tinha  44 anos], altura e na do muro o sinistrado se convenceu que não corria perigo e que o podia fazer sem problemas.
Esse tipo de convencimento, aliás, muitas vezes é fonte de grandes problemas [vg: ultrapassagens mal calculadas…., atravessamento de linha de comboio na altura inadequada….]. 
A saída em causa podia correr bem, mas também, tal como se veio a verificar, pode correr (muito)  mal, sendo certo que a função de montar pneus não apresenta qualquer esfera de sobreposição com o acto de saltar de muros com 2 metros de altura.
E mesmo o  - eventualmente - não  almoçar não se nos afigura justificar o risco que o sinistrado decidiu correr.
Aliás, cumpre salientar que não se alegou nem se provou que a suceder isso fizesse perigar a sua vida, tal como não se alegou nem provou que o sinistrado  era um atleta acostumado aquele tipo de saltos.
E nem se esgrima que, tal como refere Carlos Alegre ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador afastou implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras e estaria, certamente, a referir-se à negligência lata que confina com o dolo. [18]
A nosso ver, com respeito por opinião diversa, no caso concreto estamos perante uma situação de negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
A conduta em causa afigura-se-nos temerária.
Estamos, pois, a nosso ver, salvo melhor opinião, perante um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, voluntária embora não intencional, injustificado  pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão.
Por outro lado, é patente que  o acidente resultou exclusivamente desse comportamento.
Em nosso entender, tratou-se  de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares em face das condições da própria vítima e mesmo em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.
Em relação ao facto de a descaracterização do acidente constituir um facto impeditivo do direito que o sinistrado, como Autor, se arroga e, como tal, de acordo com os critérios gerais de repartição do ónus da prova, a sua prova competir ao Réu (in casu a seguradora  - vide artigo 342º, n.º 2, do Código Civil), dir-se-á que a mesma sempre a logrou obter.
Esgrimir-se-á como faz o recorrente que «…. da apurada dinâmica do acidente não se afigura em nossa óptica poder assacar ao sinistrado a imputada negligência grosseira.
O sinistrado, operário qualificado, habilitado profissionalmente a montar pneus, profissão que exige uma forte capacidade e destreza física, e que naquele espaço estava habituado a trabalhar e a movimentar-se, com muita probabilidade estaria convencido de que nas circunstâncias descritas poderia saltar o muro, o que mitiga em muito a sua culpa.
Aliás, desconhece-se se noutras situações e anteriormente o sinistrado já havia saltado o muro sem quaisquer consequências danosas.
Olhando para o computo das circunstâncias envolvidas nos factos não cremos se lhe possa assacar uma atitude especialmente censurável de leviandade ou uma conduta gratuita.
O sinistrado foi movido pelo cumprimento do seu horário de trabalho e tentara encontrar um “atalho” para fazer a sua refeição no horário que lhe está atribuído para o efeito, e para retomar o seu trabalho a horas.
A necessidade de ir tomar a sua refeição, necessidade normal para quem está a trabalhar e sobretudo para quem exerce actividade em que é exigida grande força física – não o podendo fazer no seu local de trabalho atenta a inexistência de refeitório; a circunstância do portão se encontrar fechado e não ter o A. qualquer forma de aceder ao exterior, já que não lhe haviam sido facultadas as chaves respectivas; o desejo de retomar o trabalho a horas e cumprir as suas obrigações laborais, e até mesmo o excesso de confiança físico induzido pela própria profissão, confiança na própria destreza física e a superação das dificuldades que vão surgindo nesse contexto; tudo isto, poderá ter motivado alguma precipitação da sua parte, não se podendo concluir, contudo, em nosso entender, por um comportamento arrojado, arriscado, temerário em alto e relevante grau.
A actuação do A. poderá revelar uma falta de consideração pelo perigo que objectivamente se abria para a integridade física de quem se expôs a tal comportamento.
Ainda assim, a temeridade comportamental do mesmo, num tal circunstancialismo não conduz porém a que se considere que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria adoptado similar actuação.
Não existem elementos firmes de facto dos quais se possa extrair que a falta de cuidado e diligência do A. deva ser qualificada como grosseira.
Por outro lado também não se pode excluir que outros factores, não elencados na factualidade carreada pelo A., e atendíveis, hajam contribuído para o sucedido, como sejam as condições atmosféricas (vento/chuva), o estado do piso em que o A. aterrou, a existência de algum obstáculo/objecto no pavimento, desconhecendo-se as causas próximas da ocorrência do sucedido.
A conclusão de que o comportamento do sinistrado ao transpor o muro configura um comportamento temerário, infantil, insensato, constitui uma ilação fáctica obtida por recurso ás máximas da experiência, aos juízos concretos de probabilidade, aos princípios do lógico ou aos próprios dados da intuição humana.
Tais ilações estabelecem o nexo causal naturalístico entre a conduta do sinistrado e a produção do acidente, pois concluem que a queda foi consequência directa e necessária do facto do sinistrado ter saltado o muro.
Afastadas essas ilações queda improvado o imprescindível nexo causal exclusivo entre o comportamento do sinistrado e o acidente.
Em suma, não nos parece poder concluir que o A. tenha agido com negligência grosseira, não podendo a prova de facto desfavorável ao sinistrado, na ausência de qualquer outra prova que a corroborasse assentar unicamente na versão dos factos do A., cabendo aliás á R. o ónus da prova dos correspondentes factos atenta a natureza impeditiva do direito á reparação (art. 342º nº 2 do Código Civil).
É indiscutível que o comportamento do sinistrado/A. revelou uma falta de consideração pelo perigo que objectivamente se abriu para a integridade física de quem se expôs a tal comportamento, e denota um impulso leviano que não considerou os prós e os contras.
Todavia, a factualidade elencada não apresenta elementos firmes dos quais se possa extrair que a falta de cuidado e diligência inerente áquele comportamento se deva considerar como grosseira, atentos os factores supra expostos que apontam para a mitigação da culpa do sinistrado/A., que com muita probabilidade estaria convencido de que poderia saltar o muro.
Nestes termos, e perante a factualidade apurada não pode imputar-se, em nossa óptica, o acidente em referência ao A. a título de negligência grosseira.
Conclui-se, pois, que não resultam verificados os requisitos cumulativos supra enunciados para a procedência da excepção de descaracterização em análise, não se encontrando, por isso, o acidente dos autos descaracterizado à luz do citado artigo 14º da LAT.» - fim de transcrição.
Todavia, pelos motivos supra expostos, entende-se que não é assim, sendo que não se alegou nem provou matéria que permitisse ao Autor considerar  que tinha destreza considerável para o efeito.

Improcede, pois, na íntegra  o recurso.

**      
Em face do exposto, acorda-se em julga improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
DN (processado e revisto pelo relator).



Lisboa, 2023-05-03


Leopoldo Soares
Alves Duarte
Maria José Costa Pinto


[1]Vide fls. 121 a 124..
[2]Vide fls. 125 a 125 a 134 v.
[3]Vide fls. 148 v a 151 v .
[4]Vide fls. 143 v a 144 v.
[5]Vide fls. 169 a 176.
[6]Fls. 192 v.
[7]Vide fls. 177 a 184.
[8]Vide fls. 185 a 187 v.
[9]Nas palavras do Conselheiro Jacinto Rodrigues Bastos:
“As conclusões consistem na enunciação, em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso…
Se as conclusões se destinam a resumir, para o tribunal ad quem, o âmbito do recurso e os seus fundamentos pela elaboração de um quadro sintético das questões a decidir e das razões porque devem ser decididas em determinado sentido, é claro que tudo o que fique para aquém ou para além deste objectivo é deficiente ou impertinente” – Notas ao Código de Processo Civil, volume III, Lisboa, 1972, pág 299.
Como tal transitam em julgado as questões não contidas nas supra citadas conclusões.
Por outro lado, os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas  pelas partes e decididas pelos Tribunais inferiores, salvo se importar conhecê-las oficiosamente ( vide vg: Castro Mendes , Recursos , edição AAFDL, 1980, pág 28, Alberto dos Reis , CPC, Anotado, Volume V, pág 310 e acórdão do STJ de 12.12.1995, CJSTJ, Tomo III, pág 156).
[10]As questões (a resolver) não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma. – neste  sentido vide vg: acórdão  do STJ de 21-04-2016., proferido no processo nº299/14.5T8VLG.P1.S1 , Nº Convencional: 4ª Secção,, Relator  Conselheiro Mário Belo  Morgado (acessível em www.dgsi.pt), nota nº 2.
[11]«Revertendo ao caso dos autos, discerne-se que o sinistrado prestava trabalho a favor da sociedade (…), Lda. sob as suas ordens, autoridade e fiscalização, pelo que se lhe aplica a LAT, no que ao âmbito subjectivo do diploma diz respeito.»
[12]«Existe assim relação de causalidade adequada entre a lesão e o resultado do acidente, sendo o evento que resulta do acervo factual causa adequada para a lesão sofrida pelo sinistrado».
[13]Neste  sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 17/3/2010, processo nº 110/06.0TTCBR.C1.S1, www.stj.pt (base de dados).
[14]A fls. 155 v refere-se cerca de 2,63  no local do salto o que não se provou .
[15]A fls. 156 refere-se que o sinistrado tem 1,80 m de altura, o que também não se provou.
[16]Vide, no entanto, qui a fls. 156 se refere que segundo Paulo Duarte é norma da casa os funcionários não andarem com telemóvel   no local de trabalho.
[17]Certamente que nas instalações da entidade patronal  havia telefone fixo,
[18]vide Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2.ªEdição, pág. 63..



Decisão Texto Integral: