Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUI COELHO | ||
Descritores: | INTEGRIDADE FÍSICA INTENÇÃO DE MATAR DANO MORTE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE HOMICÍDIO TENTADO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/11/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | (da responsabilidade do relator): I - Atenta a zona atingida e as lesões causadas pode-se concluir que foi usada uma lâmina suficientemente perfurante e comprida para provocar ferida tão funda; que foi utilizada num golpe perfurante, profundo, exigindo uma acção forte; e que o Arguido agiu intencionalmente nesse golpe quer quanto à intensidade da acção quer quanto à sua localização. II – Com tal golpe, quis lesar a integridade física, mas tal não bastou para demonstrar a directa intenção de matar. Se estivesse animado pela intenção de matar, seguramente não se quedaria por apenas aquele golpe. III -Tendo em conta a zona atingida e o meio utilizado sabia o Arguido que colocava em perigo a vida da vítima. Ciente desse perigo, não se coibiu de agir como o fez, conformando-se com tal resultado. Agiu assim com dolo eventual de perigo. IV - Admitir a criação do risco para a vida é diferente da admissão da criação do dano morte. V - Para podermos imputar a prática de um crime de homicídio teremos que ter sempre provado uma forma de dolo quanto ao resultado morte. VI – Assim, a previsão do perigo para a vida não é bastante para a imputação do crime de homicídio. A conformação do Arguido não foi com o resultado morte, mas sim com a criação de perigo para a vida. Por isso, é de afastar a prática do crime de homicídio tentado e imputar a prática do crime de ofensa à integridade física grave, atento o resultado. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No Juízo Central Criminal Lisboa – J11, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo: « Por todo o exposto, decide-se: a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, sem prejuízo da sua condenação pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade grave, previsto e punido pelo artigo 144º, alínea d), do Código Penal; b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144º, alínea d), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, a qual se suspende na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova (artigos 50º, nºs 1 e 5, e 53º, nºs 1 e 2, e 54º, nº 1, do Código Penal). c) Absolver o arguido BB da prática, como instigador, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal. d) Absolver os arguidos CC e BB do pedido de indemnização civil deduzido pelo ...; e) Condenar o arguido AA a pagar ao ... a quantia de 3.798,52 € (três mil, setecentos e noventa e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal para os juros civis, desde a data em que o pedido de indemnização civil foi ao mesmo notificado; f) Condenar o arguido AA no pagamento de reparação, fixada nos termos do disposto no artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 16º, nº 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04 de setembro, a DD, no montante de 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais. g) Determinar que os bens apreendidos ou à ordem dos autos (artigo 374º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Penal), e cujo destino não foi ainda fixado nos autos, deverão ser devolvidos aos proprietários, com sujeição ao regime do artigo 186º, nº 3, do Código de Processo Penal; h) Custas criminais pelo arguido AA, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta, valendo no mais os critérios supletivos; i) Custas quanto ao pedido de indemnização civil pelo arguido AA e pelo demandante ..., sem prejuízo da isenção quanto ao demandante nos termos do artigo 24º, do DecretoLei nº 34/2008, de 26 de fevereiro.» - do recurso - Inconformado, recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões: «Por decisão proferida nos presentes autos o Tribunal “a quo”: - absolveu o arguido AA da prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, de que vinha acusado, - condenou o arguido AA pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144º, alínea d), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, a qual se suspende na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova (artigos 50º, nºs 1 e 5, e 53º, nºs 1 e 2, e 54º, nº 1, do Código Penal). 1. Porém, o Ministério Público não se pode conformar com tal decisão por considerar que a factualidade dada como provada é subsumível à prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 23º, 22º e 131º, todos do Código Penal. 2. O Ministério Público entende que a decisão proferida labora em erro de subsunção jurídica da factualidade provada, como procuraremos demonstrar, padecendo de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal. 3. Consideramos que a factualidade dada como provada nos pontos 1 a 18 permite concluir que o arguido teve intenção de tirar a vida ao Ofendido e, como tal, impunha-se a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º e 131º do Código Penal. 4. Uma leitura atenta do texto do Acórdão, na parte respeitante aos factos em confronto permite, no nosso entender, constatar existir contradição insanável entre os factos provados sob os pontos 1. a 18. e o facto provado 19. e entre estes e o facto não provado h) “Sem prejuízo do concretamente apurado, o arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD.”, porquanto se afigura que as realidades descritas na “factualidade provada” e na “factualidade não provada” são realidades contraditórias, quando o Tribunal julgou provado e ficou descrito no Acórdão, que na realidade o arguido efectivamente logrou ferir com gravidade o ofendido DD e como tal, esse resultado foi consumado e plenamente alcançado por ele. Assim como perante os factos provados não se pode dar como não provado o facto h). 5. Ou seja, não se pode dar como provado que o arguido agiu apenas com intenção de causar ferimentos no corpo do ofendido DD quando se dá como provado que em contexto de contenda, na verdade, se muniu de uma faca e com a mesma desferiu no ofendido duas facadas, uma no braço e outra seguinte no tórax ( e não na região escapular) que lhe atingiu e perfurou o pulmão de um lado a outro, e com as mesmas lhe provocou uma ferida na região interna do terço proximal do antebraço direito e uma ferida penetrante transfixiva do lobo interior esquerdo, desde a parede torácica posterior no limite inferior da omoplata, até ao corpo vertebral, com colapso do pulmão e que mesmo com os cuidados médicos a que foi sujeito, esteve em risco de morrer. 6. A fundamentação usada pelo Tribunal a quo, para explanar o raciocínio a que chegou quanto à ausência de intenção de matar, não assenta em elementos probatórios que pudessem sustentar essa convicção. 7. A questão a dirimir consiste fundamentalmente em saber com que conhecimento da realidade e vontade agiu o arguido AA ao enfrentar o ofendido DD, que se muniu de uma faca e empunhando-a lhe desferiu dois golpes, o primeiro atingindo-o no braço e o segundo no tórax, quando sabia que aquele não tinha consigo qualquer tipo de objecto contundente e que nada tinha a ver com a contenda anteriormente existente e que apenas desferiu no ofendido uma palmada no pescoço. 8. Temos então que o arguido, não obstante saber que o ofendido não tinha consigo qualquer objecto, ainda assim muniu-se de uma faca de características não concretamente apuradas e assim que teve oportunidade, segundos após ter desferido a primeira facada no braço, não satisfeito, desferiu-lhe uma segunda no tórax, imprimindo uma força tal que lhe perfurou o pulmão de um lado ao outro. 9. Não foram duas facadas nas pernas nem apenas nos braços. Foi uma facada no membro superior direito, braço e a outra posterior no toráx -na região dorsal esquerda já que da documentação clinica não resulta que a região fosse a escapular mas sim a região dorsal esquerda, como, aliás, consta dos relatórios, fala-se sempre em trauma torácico, ferida penetrante do lobo inferior esquerdo desde a parede toráxica posterior no limite inferior da omoplata até ao corpo vertebral, nunca se aludindo a zona escapular. 10. Segundo o conhecimento generalizado, uma “faca” ou outro objecto da mesma natureza, seja qual for a envergadura e o concreto tamanho da lâmina, é um instrumento utilizado precisamente para cortar e que, por isso, pode perfurar a pele e, com elevada probabilidade, atingir um dos órgãos importantes do corpo humano para provocar a morte de qualquer pessoa. 11. Como é sabido que a região do corpo designada como “tórax”, situando-se na parte superior do tronco, aloja órgãos de importância vital, nomeadamente coração, pulmões (o que é o caso) e grandes vasos, cujas lesões podem ser potencialmente graves e rapidamente conduzirem à morte. 12. Um golpe de faca ou de outro instrumento dotado de lâmina cortante, com o consequente traumatismo penetrante, pode muito provavelmente provocar insuficiência respiratória, hemorragia maciça, hipotermia e a morte da pessoa atingida. 13. E pode provocar, como provocou a laceração do pulmão esquerdo e hemopneumotórax, como provocou. 14. Não se tratou de um qualquer golpe ou facada na omoplata (osso), tratou-se de uma facada direcionada que atingiu o lobo inferior esquerdo do pulmão, desde a parede torácica posterior no limite inferior da omoplata até ao corpo vertebral, provocando uma ferida pulmonar com trajeto com porta de entrada 2 cm abaixo da cisura ao nível do segmento anterior do lobo inferior esquerdo e saída na face posterior do segmento apical do lobo inferior esquerdo. 15. Por outro lado, os movimentos do arguido que provocaram esses golpes foram livres, conscientes e orientados, pelo que se tem de entender que o mesmo actuou sabendo e querendo atingir aquelas concretas zonas do corpo do ofendido. 16. Temos, pois, como certo que aqueles concretos actos do arguido eram adequados a causar a morte do ofendido, o que apenas não aconteceu devido à pronta assistência médica e mesmo assim, mesmo com a pronta assistência médica o ofendido esteve em risco de morrer. 17. No nossos entender, é inegável que o arguido AA tinha, por um lado, consciência da sua superioridade, não só física pois tem estrutura física muito superior à do ofendido e ainda assim como se tal não bastasse muniu-se de uma faca, bem sabendo que o ofendido não tinha qualquer objeto consigo, o que o tornaria muito mais vulnerável e sem possibilidade de se defender, sabendo também, já que tal é do conhecimento de todo o homem médio e compatível com as regras da experiência, que ao desferir não uma mas duas facadas no corpo de uma pessoa, todas do tronco para cima, braço e tórax, local onde se encontram alojados órgãos vitais, tal poderia provocar-lhe a morte, o que apenas não aconteceu devido à intervenção medica atempada e conformou-se com o resultado. 18. Todos nós sabemos que no tronco humano se encontram alojados órgãos vitais, com estrutura fundamental para a sobrevivência, os quais quando perfurados podem levar à morte. 19. Não é por acaso que quando alguém pretende matar outrem lhe desfere golpes da cintura para cima e não da cintura para baixo e ainda que possam não ser conhecidos de todos os homens médios, os detalhes sobre a função de todos os órgãos e onde se encontram especificamente alojados, o certo é que todo o cidadão comum está ciente que no tronco se encontram alojados órgãos vitais e que a sua perfuração, nomeadamente pulmões, estomago, coração, todos alojados da cintura para cima do corpo, são suscetíveis de causar a morte, daí que se entenda que o arguido previu como possível a morte do ofendido através da acção que desenvolveu, como todo o homem médio preveria, e conformou-se com ele, pois desferiu não um como, aliás, alegou em julgamento mas dois golpes com uma faca, ou seja, espetou por duas vezes uma faca, no corpo do ofendido, tudo da zona da cintura para cima, atingindo-o nas zonas referidas, fazendo-o com violência e força necessária para espetar a pele e perfurar a carne até perfurar o pulmão de um lado a outro e só mais não o fez porque a testemunha vasco conseguiu trava-lo e o ofendido conseguiu sair daquele local, ainda que viesse a desfalecer poucos metros mais à frente, caindo ao solo inanimado. 20. E tal facto é, por outro lado, sinal mais do que evidente de conformidade com a possibilidade de serem atingidas essas zonas do corpo e, desse modo, ser causada a morte do ofendido. 21. Daqui se concluindo que a conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime pelo qual foi acusado, actuando com, no mínimo dolo eventual e não os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime pelo qual foi condenado. 22. Só poderíamos concluir pela não verificação do aludido crime se a conduta do arguido estivesse abrangida pelo n.º 3, do artigo 23.º, do Código Penal, que determina que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime. 23. Se atentarmos no que referimos, facilmente se concluí que não pratica um crime de ofensa à integridade física grave nem um crime de ofensa à integridade física qualificada, mas antes um crime de homicídio na forma tentada, quem desfere duas facadas com uma faca, com uma lâmina pontiaguda uma primeira na zona do braço e outra segunda quase fatal na zona do tórax de outra pessoa, perfurando-lhe o pulmão o que por si só é revelador da força que se fez para espetar a faca. 24. No caso dos autos, a faca usada pelo arguido é um meio idóneo, pela sua perigosidade, a causar a morte- tanto mais, que no caso em apreço foi usada a parte da lâmina para atingir o Ofendido- as zonas corporais atingidas- alojando órgãos vitais-, eram idóneas a causar a morte e existia o objeto essencial à consumação do aludido crime, pois que, à data dos factos, o Ofendido estava vivo como ainda está. 25. À luz das regras da experiência comum é inequívoco que o arguido conhecia a perigosidade do instrumento com que se muniu e da sua adequabilidade para causar lesões e inclusive tirar a vida; sabia a curta distância que o separava do Ofendido; sabia que os golpes que desferisse a essa distância, pelo comprimento da lâmina, poderiam ter profundidade bastante para perfurar órgãos vitais e sabia que desferindo mais do que um golpe a potencialidade de causar a morte ao Ofendido, por poder acertar num órgão vital, seria maior. 26. Em face das regras de experiência e dos critérios lógicos, não se descortina qual o substrato racional que conduziu a que o Tribunal a quo formulasse a sua convicção quanto à mera intenção do arguido agredir o Ofendido, pois que, a prova produzida, que sustentou a factualidade dada como provada, impunha conclusão diversa, sendo a fundamentação do acórdão insuficiente para sustentar a decisão absolutória do arguido, quanto ao crime de homicídio simples, na forma tentada. 27. No nosso entender, o acórdão recorrido padece dos vícios previsto no art.º 410º nº 2 alíneas b) e c) do C.P.P., impondo-se a sua revogação, pois que, a factualidade dada como provada nos pontos 11 a 18 mostra-se contraditória com a factualidade dada como provada no ponto 19 e, bem assim, com a factualidade dada como não provada na alínea h) dos factos não provados. 28. Perante a factualidade dada como provada nos pontos 11 a 18, impunha-se que o Tribunal a quo, no ponto 19 dos factos provados, viesse a concluir que o arguido ao agir do modo descrito admitiu como possível que com a sua conduta viesse a atingir o Ofendido na sua vida e conformou-se com o resultado da sua atuação, só não logrando a morte ocorrer por motivos alheios à sua vontade. 29. No nosso entender, é inegável que o arguido ao golpear o ofendido da forma como o fez, no tórax, em plena via pública, num confronto físico, claramente que tinha de saber que, pelo menos o último golpe iria com toda a probabilidade atingir o corpo da vítima numa zona vital e que tinha elevada potencialidade para lhe retirar a vida ou coloca-la em sério perigo – pelo que dificilmente se pode afastar o dolo de homicídio na sua actuação, pelo menos na forma de dolo eventual – artº 14º/3 do C.P. 30. Não vislumbramos qualquer elemento fáctico provado capaz de convencer que o arguido agiu (apenas) com intenção de molestar fisicamente a vitima, para, por hipótese, fugir do local, o que até se verifica que não aconteceu porque o arguido andou rua acima rua abaixo com a faca na mão depois de ter cometido os factos (o que inclusivamente negou em julgamento), para além de que se encontravam lá os seus familiares. 31. A (feliz) ausência de consequências particularmente dolorosas ou de um muito prolongado período de doença para a vítima, quando se prova que do evento resultou um perigo para a vida, isto é, o ofendido mesmo com os cuidados médicos instituídos – esteve em risco de morrer, a par do que supra se deixou escrito, não pode afastar a intenção de matar, nem nos convencem que terá havido apenas vontade de molestar fisicamente já que estas circunstâncias são alheias à vontade do arguido!!! 32. Um raciocínio à luz de regras da vivência comum e de critérios de razoabilidade no contexto global dos factos leva necessariamente a concluir que o arguido, ao dirigir o golpe e ao causar a perfuração naquela concreta zona do corpo do ofendido, ainda que sem uma especial violência, sabia desse sério risco e, ainda assim, prosseguindo, se conformou com a possibilidade de daí advir o resultado morte. 33. O Tribunal a quo deveria ter extraído da conduta do arguido AA, que o mesmo agiu com intenção de matar o ofendido DD, ao golpeá-lo por duas vezes com uma faca naquele concreto circunstancialismo de tempo e de lugar, tendo um dos golpes atingido o tórax e o pulmão do ofendido, perfurando-o de um lado ao outro, lesando dessa forma um órgão importante para a vida (o pulmão), assim colocando em perigo a vida do ofendido DD, verificando-se que apenas por mero acaso, esses golpes não atingiram outros órgãos tão ou mais importantes para a vida do ofendido, como o coração. 34. Por último, diga-se ainda, que se o arguido apenas pretendesse agredir corporalmente o ofendido não se teria socorrido de uma arma – faca- para esse efeito, dado ser conhecida de todos, a especial aptidão destes instrumentos para atingir mortalmente os visados. 35. Toda a atuação levada a cabo pelo arguido e dada como provada nos pontos 11 a 18 descreve uma atuação levada a cabo com o intuito de causar a outrem a morte e não apenas lesões na sua integridade física. 36. Impunha-se que no facto provado 19, o Tribunal a quo concluísse que, em face da distância que separava o Ofendido do arguido- envolvidos em contenda e a menos de meio metro; estando o arguido munido de uma faca - enquanto a vitima estava desarmada; estando o Ofendido posicionado de frente para o arguido; que ao desferir-lhe o segundo e ultimo golpe e que atingiu o ofendido no tórax, perfurando-lhe o pulmão, o arguido admitiu como possível vir a atingir regiões do corpo do Ofendido que alojam órgãos vitais, representando como possível a sua morte, com o que se conformou, resultado que só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade. 37. A conduta típica elencada na factualidade dada como provada nos pontos 11 a 18 integra os elementos objetivos do crime de homicídio simples, na forma tentada, sendo que essa factualidade contradiz a factualidade dada como provada no ponto 19 e não provada na alínea h) no que respeita ao elemento subjetivo típico daquele ilícito penal. 38. Consideramos padecer ainda o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º nº 1 al. c) do C.P.P., porquanto, a prova produzida em audiência, a par dos elementos clínicos juntos aos autos e o exame médico-legal, assim como o vídeo que se mostra junto aos autos que relata os acontecimentos, impunha que o Tribunal a quo concluísse que, ao atuar do modo que deu como provado nos pontos 11 a 18, o arguido admitiu como possível que pudesse vir a causar a morte ao Ofendido, conformando-se com tal resultado, que só não logrou concretizar-se por motivos alheios à sua vontade. 39. O Tribunal errou na apreciação que fez da prova produzida, pois que da mesma resulta a conclusão de que o arguido agiu, prevendo a morte do Ofendido e conformando-se com esse resultado típico, que só não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, e não apenas com a mera intenção de causar ferimentos na integridade física do ofendido. 40. À luz das regras da experiência comum, dificilmente alguém que pretende apenas causar uma lesão na integridade física de outrem utiliza uma faca para esse fim, tanto mais, que momentos antes tinha já estado envolvido em contenda com outros elementos do grupo e nada no circunstancialismo em que os factos ocorreram justificava que o arguido se munisse de um instrumento dotado dessa perigosidade, pois que, não obstante o ofendido lhe ter desferido ‘uma belinha’ no pescoço, o mesmo encontrava-se desarmado; também não reitera a sua atuação desferindo vários golpes, bastando-se habitualmente com apenas um, e ditam essas regras que quem não quer matar direciona esse instrumento para regiões corporais que sabe não alojarem órgãos vitais, escolhendo zonas corporais menos letais. 41. Os elementos clínicos e o exame médico-legal a que o Ofendido foi submetido, permitem concluir que as lesões sofridas pelo Ofendido foram profundas e dolorosas e determinaram uma intervenção cirúrgica urgente, e demandaram no Ofendido um período de 60 (sessenta) dias para a consolidação médico-legal, com 10 (dez) dias de afetação da capacidade de trabalho geral, correspondente ao período de internamento. Assim, até pelos dias de doença e de incapacidade que tais lesões causaram no Ofendido, teremos de concluir não se tratarem de lesões físicas superficiais, sem quaisquer consequências dolorosas, facilmente tratáveis sem assistência médica, mas antes, de lesões que demandaram urgência na assistência médica do Ofendido, de modo a não se consumar a sua morte. 42. Assim, deverá ser corrigida a decisão proferida, de modo a que seja excluída da matéria de facto não provada a alínea h) e incluída na matéria de facto dada como provada, no facto 19 a seguinte redação: “Ao desferir os golpes com a faca, nos moldes dados como provados supra, admitiu o arguido como possível que, estando a cerca de meio metro de distância do ofendido, envolvido em contenda, viesse a atingir o Ofendido DD na região do tórax que aloja órgãos vitais suscetíveis de, uma vez atingidos, vir a causar a morte, e fê-lo através de um instrumento corto-perfurante que sabia ser igualmente adequado a causar a morte daquele Ofendido, resultado com o qual se conformou e que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade resultante da assistência médica prestada ao ofendido.” 43. Ou se quisermos: “O arguido actuou sabendo e querendo atingir aquela concreta zona do corpo do ofendido DD, ao dirigir o golpe para a zona do tórax e causar a perfuração do pulmão, sabia que desse comportamento resultava directamente um risco sério de daí advir como resultado a morte do ofendido e, ainda assim, prosseguindo, conformou-se com essa possibilidade.” 44. Ou ainda: “Ao desferir os golpes acima referidos, admitiu o arguido como possível que viesse a atingir DD na região do tórax e que, dessa forma, viesse a causar a morte deste, resultado com o qual se conformou e que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade resultantes da assistência médica que a este foi de imediato prestada”. 45. Eliminando-se por consequência o ponto h) dos factos não provados. 46. Em face da factualidade dada como provada, resulta que o arguido praticou atos de execução do mencionado crime de homicídio simples pois que levou a cabo atos que preenchem elementos constitutivos deste tipo legal de crime- golpeou o Ofendido em zonas corporais que alojam órgãos vitais passíveis, caso sejam alcançados, de provocar a morte e praticou atos idóneos a produzir o resultado típico morte- pois que se muniu de um instrumento que pela sua perigosidade de lamina era adequado a causar aquele resultado típico; desferiu mais do que um golpe na vítima, aproveitando o facto de a mesma estar de frente para si e a curta distância e admitiu que ao desferir os golpes, nos moldes em que o fez, viesse a atingir regiões corporais, como o tórax que aloja órgãos vitais, suscetíveis, caso alcançados, de provocar a morte. 47. No caso em apreço, a morte não ocorreu e, portanto, não se verificou o resultado típico admitido pelo arguido. Todavia, esse resultado não foi alcançado, por o meio adotado pelo agente não ser idóneo a provocá-lo; porque o objeto da consumação do ilícito fosse inexistente ou porque o arguido praticou atos tendentes a evitar a consumação, mas antes, por motivos alheios à vontade do arguido e resultantes da assistência médica urgente prestada ao Ofendido. 48. Tendo o arguido representado a possibilidade de atingir o Ofendido na sua vida com os golpes que lhe desferiu e que apenas lhe causaram lesões físicas, pela pronta assistência que o ofendido recebeu e não a morte, e tendo-se conformado com as consequências (o resultado produzido), porque se não absteve de agir, apesar da representação das consequências possíveis, forçosamente teremos de concluir que o arguido agiu, nas descritas circunstâncias dadas como provadas, com dolo eventual. 49. Em face dos factos provados é forçoso concluir que os mesmos permitem integrar a conduta do arguido no mencionado crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual, e não apenas um mero crime de ofensa à integridade física grave, porquanto o propósito do arguido não se limitou a atingir o Ofendido na sua integridade física, mas antes, agiu com dolo eventual relativamente à possível morte que viesse a ocorrer e que só não se verificou, por circunstâncias externas à sua vontade, pugnando-se pela condenação do arguido em conformidade com esta subsunção jurídica dos factos ao direito. 50. A entender-se desta forma e a ser procedente o recurso, deverá o arguido ser condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo arts. 22º, 23º e 131º do Código Penal. 51. O grau de culpa do arguido mostra-se elevado, pois que, embora não lograsse consumar o crime de homicídio, o arguido violou o bem jurídico mais importante do elenco dos direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto - o direito à vida. 52. As exigências de prevenção geral são elevadas considerando que o crime de homicídio, na forma tentada, atenta contra um dos bens jurídicos primordiais do nosso ordenamento jurídico, sendo altamente gerador de grande intranquilidade e insegurança públicas e alarme social, sobretudo, junto de bairros pequenos como aqueles onde os factos ocorreram. 53. O acentuado acréscimo do cometimento de crimes que atentam contra bens jurídicos iminentemente pessoais, como foi o caso, sobretudo em contexto de relações de ‘grupos’, impõe que os tribunais adotem uma intervenção vigorosa no sentido da sua punição, por constituírem um dos crimes mais graves do nosso ordenamento jurídico-penal, sobretudo quando cometidos com recurso a instrumentos perigosos, como foi o caso do uso de uma faca - pelos efeitos devastadores que poderão ter muitas vezes na vida e integridade física de terceiros. 54. As exigências de prevenção especial mostram-se atenuadas considerando a ausência de antecedentes criminais do arguido; o, ainda que ténue, arrependimento demonstrado pelo arguido. 55. Por fim, ponderando as circunstâncias previstas no art.º 71º nº 2 do Código Penal não podemos esquecer o elevado grau de ilicitude com que o arguido pautou a sua atuação, considerando o meio empregue no seu cometimento- pois que, o arguido muniu-se de um instrumento particularmente perigoso como uma faca para atentar contra a vida do Ofendido; o número de golpes que lhe desferiu-dois; o desequilíbrio de meios- pois que, o ofendido estava totalmente desarmado quando foi atingido pelo arguido; as concretas lesões físicas e psicológicas que da conduta do arguido advieram para o ofendido- considerando a necessidade de ser submetido a rápida intervenção cirúrgica e assim evitar a sua morte e o período de doença e de incapacidade para o trabalho. 56. Ainda como circunstâncias a ponderar, temos o dolo com que atuou, na modalidade mais leve de dolo eventual e a conduta do arguido posteriormente à prática do mencionado ilícito, que se nos afigura ser reveladora da interiorização do mal causado, considerando a postura de algum arrependimento revelado em julgamento e a sua inserção familiar e social. 57. Considerando a moldura penal do crime de homicídio simples na forma tentada- pena de prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses de prisão; o elevado grau de culpa do arguido; as fortes exigências de prevenção geral; as circunstâncias enunciadas pelo art.º 71º do Código Penal; mas sem esquecer também as atenuadas exigências de prevenção especial, motivadas pela postura de algum arrependimento demonstrado em julgamento pelo arguido, pela ausência de antecedentes criminais e pela sua boa inserção familiar e social, afigura-se-nos ser de aplicar ao arguido uma pena de prisão não inferior a 4 anos e 6 meses de prisão. 58. Em face dessa pena, que entendemos por justa, adequada e necessária à satisfação das exigências da culpa e das necessidades de prevenção geral e especial, entendemos que deverá ser ponderada a suspensão da sua execução, por igual período, sujeitando-se o arguido ao cumprimento de um regime de prova e ao pagamento de uma quantia indemnizatória ao ofendido, nos termos do art.º 50º do Código Penal. » [numeração nossa] - da resposta - Notificado para tanto, respondeu o Arguido concluindo nos seguintes termos: « I O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura de facto ou de direito. II O Ministério público deve ser convidado a aperfeiçoar o seu Recurso porquanto, sempre com o devido respeito por opinião diversa, aquilo que apelidou de Conclusões mais não são do que a repetição da Motivação do Recurso. III Considera o Ministério Público, erroneamente, que entre os pontos: 18. DD, mesmo com os cuidados médicos a que foi sujeito, esteve em risco de morrer. 19. O arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física, sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou. Da matéria de facto dada como provada, e o ponto h. Sem prejuízo do concretamente apurado, o arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD. Da matéria de facto dada como não provada, existe contradição insanável. IV No caso sub Júdice o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo não padece do referido vício previsto na alínea b), do n.º2, do Artigo 410º do CPP, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. V Afirmar-se que o Ofendido correu risco de vida não é contraditório com a afirmação de que o Arguido não pretendeu tirar-lhe a vida. VI O Tribunal a quo efetuou uma análise de todos os elementos objetivos e subjetivos, não tendo dúvida em concluir que a intenção do Arguido não era tirar a vida ao ofendido. VII Defende, igualmente, o Ministério Público o vício de erro notório na apreciação da prova, mais uma vez sem razão. VIII Como é entendimento jurisprudencial e doutrinal teríamos que estar perante uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. IX Ora, no caso Sub Judice, não se vislumbra no Acórdão proferido qualquer erro na apreciação da prova e muito menos notório. Não se verifica, portanto, no caso sub judice o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do C.P.P. X Não podemos desde logo deixar de lamentar a forma como o próprio Ministério Público pretende atenuar a conduta do Ofendido DD, apelidando essas agressões: “… palmada na parte detrás do pescoço do arguido”, por ‘belinha’… Uma forma carinhosa de se referir a uma agressão gratuita! XI Apurou-se que o Ofendido DD, individuo de mais de 40 anos de idade, agride o Arguido de forma gratuita e de seguida agarra-o, e o Arguido desfere-lhe os golpes em direção ao braço que o estava a agarrar, atingindo-o nos locais descritos no relatório médico legal. XII A Senhora Procuradora não apresenta, com fundamento em concretas provas, qualquer erro de julgamento. Pretende apenas e tão só impor a sua interpretação muito especial dos factos, descurando aquela que foi a prova produzida em audiência de discussão e julgamento. XIII A pena aplicada ao Arguido mostra-se adequada, o tribunal a quo ponderou todas as circunstâncias a que alude o artigo 71º do C.P. XIV O Ministério Público não coloca em causa a suspensão da pena aplicada ao Arguido, pelo que, quanto a esta matéria o Arguido aceita a posição quer do Tribunal a quo quer da Senhora Procuradora da República. Termos em que deve o Recurso apresentado pelo Ministério público improceder totalmente, » Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da concordância com a formulação do recurso. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995] Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: - contradição insanável na resposta à matéria de facto (art.º 410.º/2, al. b) do Código de Processo Penal); - erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º/2, al. c) do Código de Processo Penal); - erro na qualificação jurídica dos factos. DO ACORDÃO RECORRIDO Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria de facto provada e não provada: « A) Factos provados Da acusação 1. No dia 18 de fevereiro de 2023, cerca das 01h00, na ... o arguido AA envolveu-se numa discussão com EE. 2. Ao tomar conhecimento de tal discussão, CC, pai do arguido AA, dirigiu-se momentos depois ao indicado local para confrontar EE. 3. Uma vez no local, e logo que localizou EE, CC desferiu-lhe uma cotovelada na face. 4. Em consequência da conduta de CC, EE sofreu dores e uma ferida abrasiva na mucosa interna do lábio superior, com 0,5 cm de diâmetro. 5. Posteriormente ao sucedido, cerca 03h00 desse mesmo dia, DD, juntamente com EE, FF, GG, HH, II e um outro indivíduo conhecido como JJ” dirigiram-se à ..., local onde sabiam que poderiam encontrar CC e o arguido AA. 6. Uma vez no local, onde se encontravam os arguidos AA e KK, assim como CC e LL, sendo esta namorada do arguido AA, EE questionou CC por que razão o agredira. 7. Nessa ocasião, como CC se sentisse confrontado pela presença de EE e daqueles que o acompanhava, pediu a LL que fosse buscar a pistola e a faca. 8. LL ausentou-se do local, descendo pela ..., que depois subiu e ainda novamente desceu, tudo num período de menos de um minuto. 9. Temendo pelo que se viesse a suceder, EE, FF e HH abandonaram o local, no sentido descendente da referida ..., em direção à .... 10. Após, CC igualmente desceu a mesma .... 11. Logo a seguir o arguido AA também desceu essa rua, sendo seguido por DD, que a dado momento desferiu nesse mesmo arguido uma palmada por detrás na zona do pescoço. 12. Depois disso, o arguido AA virou-se de frente para DD, envolvendo-se ambos em confrontos físicos. 13. A dado momento, empunhando uma faca, de caraterísticas não concretamente apuradas, o arguido AA desferiu com a mesma dois golpes no corpo de DD, um na região escapular e outro no braço direito. 14. Depois disso, DD caminhou uns metros no sentido descendente da referida ... e já próximo da ..., acabou por cair por terra inanimado. 15. DD foi transportado ao ..., onde foi submetido a intervenção cirúrgica e ali se manteve internado até ao dia 23 de fevereiro de 2023, data em que foi transferido para o ..., ambos em Lisboa, onde permaneceu internado até ao dia 27 de fevereiro de 2023. 16. Em consequência da conduta empreendida pelo arguido AA, DD sofreu uma ferida na região interna do terço proximal do antebraço direito e uma ferida penetrante transfixiva do lobo interior esquerdo, desde a parede torácica posterior no limite inferior da omoplata, até ao corpo vertebral, com colapso do pulmão. 17. Tais lesões demandaram um período de 60 (sessenta) dias para a consolidação médico-legal, com 10 (dez) dias de afetação da capacidade de trabalho geral, correspondente ao período de internamento. 18. DD, mesmo com os cuidados médicos a que foi sujeito, esteve em risco de morrer. 19. O arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física, sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou. 20. O arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Do pedido de indemnização civil 21. Em consequência da conduta empreendida pelo arguido AA, o “...” prestou, no exercício da sua atividade, assistência hospitalar a DD: - em episódio de urgência no dia 18.02.2023, permanecendo o mesmo em internamento até 27.02.2022, no custo total de 3.727,52 €; e, - em consultas médicas a isso subsequentes, em 08.03.2023 e em 12.04.2023, e em exame ao tórax realizado nesta segunda data, um custo nos valores de 31,00 € quanto a cada consulta e 9,00 € no caso do exame. Provou-se, ainda, que: 22. Em consequência da atuação do arguido AA e das lesões que lhe foram causadas pelo mesmo, DD: - tem pesadelos e medo pelo sucedido; - sente cansaço fácil após pequenos esforços; - sente incómodo pela cicatriz que ostenta na zona das costas. 23.DD é pensionista, auferindo uma pensão de cerca de 425,00 €/mês. 24. Ao arguido AA não são conhecidos antecedentes criminais. 25. O arguido KK foi já julgado e condenado por: i) sentença de 23.06.2021, transitada em julgado em 08.09.2021, proferida no processo nº 104/20.3PALSB, Juiz 12, do Juízo Local Criminal de Lisboa, pela prática, em 20.02.2020, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova por igual período; ii) sentença de 06.10.2022, transitada em julgado em 07.11.2022, proferida no processo nº 639/22.3PCLSB, Juiz 2, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, pela prática, em 08.05.2022, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de um ano e seis meses de prisão, substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade. Condições sócio-económicas do arguido AA 26. Contando atualmente 22 anos de idade, o arguido é o único filho de um casal que se separou na sua infância, após o que ficou entregue aos cuidados da mãe, mantendo contactos frequentes com o pai. 27. Após a conclusão do 9.º ano de escolaridade integrou em regime noturno um curso técnico-profissional de …, de equivalência ao 12.º ano de escolaridade, que abandonou, ao que reportado por dificuldades de conciliação com a atividade profissional. 28. Trabalhou como empregado de … numa empresa da especialidade, da avó paterna, no que auferia mensalmente cerca de 700,00 €, atividade que cessou após a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação no âmbito do presente processo. 29. A nível afetivo, o arguido estabeleceu uma relação de namoro que perdura há cerca de quatro anos, sua atual companheira. 30. Continua a residir com a mãe, em habitação por esta arrendada, com uma renda mensal de 400,00 €, sendo o agregado atualmente composto ainda pela companheira do arguido, numa ligação reputada como estruturada e harmoniosa. 31. A mãe do arguido é empregada da …e a companheira do arguido empregada numa …, no que auferem mensalmente, em conjunto, cerca de 1.800,00 € a 2.000,00 €. 32. No âmbito da medida de coação a que se encontra sujeito, o arguido beneficia de visitas do pai, das avós e da prima. 33. Uma vez restituído à liberdade, o arguido perspetiva trabalhar como …, ou alternativamente emigrar para junto da avó paterna em ... e aí inserir-se laboralmente, contando com o apoio da companheira para o acompanhar. Condições sócio-económicas do arguido KK 34. Contando atualmente 23 anos de idade, o arguido é filho único da relação de ambos os progenitores, embora conte com um irmão consanguíneo e uma irmã uterina, ambos mais velhos. 35. Cresceu junto dos progenitores, sendo a mãe … e o pai trabalhador da …, cuja dinâmica foi condicionada pelos consumos alcoólicos do pai e pelo falecimento da mãe aos 11 anos de idade do arguido, situação que provocou neste impacto emocional muito significativo, com acompanhamento psicológico e no âmbito do qual foi diagnosticado com Défice de Atenção e Perturbação de Hiperatividade e com prescrição de medicação psiquiátrica (ritalina e risperidona). 36. Após o falecimento da mãe, o arguido e a irmã passaram a residir com os tios maternos, figuras vinculativas e normativas, sendo o padrão relacional com o pai ocasional e desinvestido. 37. Aos 15 anos de idade iniciou consumos de canábis, em contexto de grupo de pares e de forma que reputa de recreativa e atualmente diminuta. 38. Frequentou a escola até aos 19 anos de idade, depois de ter concluído o 10º ano de escolaridade, num percurso marcado por repetidas reprovações associadas e absentismo. 39. Ao nível laboral, iniciou com essa mesma idade atividade na área da …, de forma precária e temporária, tendo transitado por vários postos de trabalho até aos 21 anos de idade, altura em que ficou desempregado. 40. Ao nível afetivo, mantém um relacionamento de namoro desde os 21 anos de idade. 41. Atualmente, bem como à data da factualidade apurada, o arguido residia com os tidos maternos, em habitação arrendada, de tipologia T3, juntamente com estes. 42. Desde maio de 2023 que o arguido trabalha na área da restauração, com contrato escrito, auferindo 760,00 €/mês. 43. O tio beneficia de reforma no valor de 760,00 €/mês e a tia, proprietária de estabelecimento comercial, aufere de 650,00 €/mês, sendo as despesas fixas mensais da renda (650,00 €) e as da água (60,00 €), eletricidade (70,00 €), gás (64,00 €) e internet (48,00 €), nas quais o arguido comparticipa. B) Factos não provados a. Sem prejuízo do concretamente apurado em 3., CC desferiu inúmeros murros e cotovelas na face de EE. b. Que nas circunstâncias apuradas em 6. se encontrasse também presente MM, mãe o arguido AA, e um indivíduo de nome “NN”. c. Sem prejuízo do concretamente apurado em 7., que CC tivesse dito a LL para ir a casa buscar “aquilo”. d. Que nas circunstâncias referidas em 8., LL dirigiu-se ao imóvel localizado na .... e. Que CC e os arguidos AA e KK seguiram no encalce de DD e daqueles que o acompanhavam. f. Que nessas circunstâncias o arguido KK entregou uma faca de cozinha, de caraterísticas não concretamente apuradas, ao arguido AA. g. Sem prejuízo do concretamente apurado, que nas circunstâncias referidas em 13. tenha sido desferido um terceiro golpe, na zona do peito. h. Sem prejuízo do concretamente apurado, o arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD. i. Ao entregar a faca ao arguido AA, o arguido KK agiu com o propósito de determinar que aquele arguido a utilizasse para atingir o corpo de DD, bem sabendo que o mesmo assim o faria.» FUNDAMENTAÇÃO - contradição insanável na resposta à matéria de facto; Recorre o Ministério Público invocando a existência de uma contradição insanável entre a matéria de facto provada nos números 1 a 18 e o facto provado 19, relativamente ao facto não provado h). Em defesa do seu entendimento, sustenta o Recorrente que não se pode dar como provado que o arguido agiu apenas com intenção de causar ferimentos no corpo da vítima DD quando se dá como provado que, em contexto de contenda, o Arguido se muniu de uma faca e com a mesma desferiu naquele duas facadas, sendo que uma foi no braço mas a segunda foi direcionada e atingiu o tórax de tal modo que atingiu e perfurou o pulmão de um lado a outro. Aponta ainda como consequência, provada, de tais facadas a ferida na região interna do terço proximal do antebraço direito e a ferida penetrante transfixiva do lobo interior esquerdo, desde a parede torácica posterior no limite inferior da omoplata, até ao corpo vertebral, com colapso do pulmão e que mesmo com os cuidados médicos a que foi sujeito, esteve em risco de morrer. No fundo, está em causa a decisão dos factos relativos ao elemento subjectivo da acção. Quanto aos vícios da decisão de facto (impugnação em sentido estrito – art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova -, sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do Tribunal de recurso à sua verificação na sentença e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426.º, n.º 1 do C. Processo Penal). Ou seja, neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e, constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre-lhe corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso esta não esteja ao seu alcance. Atentemos, pois, aos factos provados e vejamos se, como defende o Recorrente, o facto provado 19 e o não provado h) traduzem uma conclusão incompatível com a realidade descrita nos demais factos provados que os precedem. Em primeiro lugar, cumpre referir que estes dois factos, entre si, não são incompatíveis. No facto provado 19. «O arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física, sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou» descreve-se que o Arguido quis dar a facada em DD, pelo que o quis magoar. Descreve-se igualmente que, considerando a região atingida e o objecto utilizado, concebeu a criação do perigo para a vida daquele, conformando-se com o mesmo. Ao dar como não provado que «Sem prejuízo do concretamente apurado, o arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD.», foi afastada a intenção directa de tirar a vida a DD. São realidades distintas e, por isso, nada impede a inclusão de uma nos factos provados e a outra nos não provados. Porém, a questão suscitada pelo Recorrente vai mais longe. No seu entender, os factos precedentes impedem a resposta desta forma, ou seja, o afastamento da directa intenção de matar. Vejamos os factos. Provou o Tribunal que o Arguido «empunhando uma faca, de caraterísticas não concretamente apuradas (…) desferiu com a mesma dois golpes no corpo de DD, um na região escapular e outro no braço direito». Deixamos já aqui uma consideração sobre a reserva do Recorrente quanto à prova de que a facada atingiu a região escapular, pretendendo que seja definida como o tórax. A região escapular é aquela que, externamente, corresponde ao espaço ocupado pelas escápulas, ossos gémeos, lateralizados, situados na parte posterior e superior ao tórax e que são parte integrante da articulação do ombro. Contudo, pela sua estrutura e dimensão, estendem-se pela altura das sete primeiras costelas sobrepondo-se assim ao espaço igualmente ocupado pelos pulmões1. Não existe, por isso, qualquer incompatibilidade entre a prova de ter sido a região escapular a atingida e a circunstância das lesões se terem verificado ao nível de um dos pulmões. Apurada a zona atingida, temos como relevante a demonstração, igualmente provada, das lesões causadas que são «uma ferida penetrante transfixiva do lobo interior esquerdo, desde a parede torácica posterior no limite inferior da omoplata, até ao corpo vertebral, com colapso do pulmão». Deste facto retiramos que, não obstante a faca utilizada nunca ter sido encontrada ou descrita, teria que ter uma lâmina suficientemente perfurante e comprida para provocar ferida tão funda. De igual modo resulta claramente desta lesão que a faca foi utilizada num golpe perfurante, e não cortante, profundo, exigindo, pois, uma acção forte, impactante. Entendemos assim que se deve concluir que o Arguido agiu intencionalmente nesse golpe quer quanto à intensidade da acção quer quanto à sua localização. Deu como provado o Tribunal que o «arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física, sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou». Sem dúvida que, actuando desta forma, queria lesar a integridade física da vítima. Quer com o primeiro corte, no braço, quer com a estocada perfurante que atingiu o pulmão. Na leitura do Tribunal a quo não ficou demonstrada a directa intenção de matar. Tendemos a concordar. Nomeadamente no que toca à utilização de armas brancas, tal intenção não se revela com um único golpe, excepto quando a “qualidade” do mesmo é inequívoca quanto ao resultado provocado. Nas situações mais comuns, o agente acaba por desferir mais que um golpe, animado que está da intenção de tirar a vida. No caso concreto tivemos um primeiro golpe, no braço, inócuo em termos de risco para a vida. E o segundo, isolado, que atingiu o pulmão e foi suficiente para pôr em perigo a vida de DD que, mesmo com os cuidados médicos aos quais foi sujeito, esteve em risco de morrer. Porém, não caiu inanimado logo que sofreu o golpe, antes caindo inanimado apenas depois de caminhar uns metros no sentido descendente da ... e já próximo da .... Como tal, se animado pela intenção de matar, seguramente o Arguido não se quedaria por apenas aquele segundo golpe. Provou o Tribunal que, tendo em conta a zona atingida e o meio utilizado sabia que colocava em perigo a vida da vítima. Já acima o mencionámos. A zona atingida cobre órgãos vitais, os pulmões. Pela ferida causada sabemos que estamos perante uma faca com lâmina comprida, perfurante e resistente, capaz de infligir uma estocada que penetrou fundo na vítima, lhe perfurou o pulmão até às vértebras e assim causou perigo para a sua vida. Ciente desse perigo, o Arguido não se coibiu de agir como o fez. Adiante abordaremos as consequências jurídicas deste facto tal como se encontra redigido, mas agora, que apenas avaliamos da existência de uma contradição entre factos provados, ou entre estes e um facto não provado, diremos que tal contradição não existe. O Arguido quis dar a facada, o que não é questionado. Quis magoar a sua vítima. Quis causar-lhe lesões com tal facada e teve a percepção que tais lesões lhe poderiam provocar perigo para a vida, com o qual se conformou. O Arguido não agiu motivado pelo desejo de matar o seu oponente. Sem dúvida que admitir a criação do risco para a vida é diferente da admissão da criação do dano morte. Não há, por isso, a apontada contradição insanável. - erro notório na apreciação da prova; Do mesmo modo, e sujeito ao mesmo tipo de análise como acima apontado, não se alcança existir um erro notório na apreciação da prova. Lida a fundamentação da decisão de facto, esta vai ao encontro daquilo que restou provado e não provado. O desenvolvimento da acção que culminou com as duas facadas desferidas pelo Arguido, revelam um crescendo de conflitualidade compatível com a motivação provada, em nada contraditória com a decisão de deixar cair para os factos não provados a intenção directa de matar. A argumentação da fundamentação de facto é sólida e coerente, não se vislumbrando nenhum vício de raciocínio que a inquine. Não tendo o Recorrente apelado à impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, nenhuma correcção se mostra pertinente na resposta à matéria de facto. - erro na qualificação jurídica dos factos Com os factos provados, tal como os formulou o Tribunal a quo, qual foi o crime praticado? A decisão recorrida concluiu pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144º, alínea d), do Código Penal. O Recorrente apela à condenação do Arguido pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada. Cremos que tal decisão depende, antes de mais, de saber se o facto provado 19 traduz alguma modalidade de dolo de homicídio. Nos termos do artigo 14.º do Código Penal: «1. Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2. Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformado com aquela realidade.» Ou seja, estão previstas três formas de dolo: directo, necessário e eventual. O dolo directo traduz a intenção criminosa de realização do tipo criminal, ou seja, ocorre quando o agente prevê um resultado e pretende alcançá-lo, sendo o mesmo correspondente à realização do facto criminoso. O dolo necessário encontra-se nos casos em que o agente sabe que, como consequência da conduta pretende praticar, irá ocorrer um facto que, por si, preenche um tipo legal de crime e, não obstante, não se abstém praticar tal conduta. Por fim, o dolo eventual corresponde aos casos nos quais o agente prevê o resultado como consequência possível da sua conduta, mas não se abstém de a praticar, conformando-se com a produção do resultado. Será esta a modalidade de dolo que nos interessa, atento o teor do facto provado 19. Com efeito, correspondendo o dolo ao elemento volitivo da acção, traduzindo a intenção do agente, é matéria de facto e deve constar dos factos provados. Por seu turno, nos termos do art.º 15.º do Código Penal age com negligência «quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto». Aquilo que distingue o dolo eventual da negligência consciente é, pois, a conformação com a verificação do resultado que se concebeu como possível da acção que se pretende praticar. Num caso com os contornos que agora abordamos temos que ter presente que o dolo versará ora sobre o perigo, ora sobre o dano. Para podermos imputar a prática de um crime de homicídio teremos que ter sempre provado uma das indicadas formas de dolo quanto ao resultado. O homicídio é um crime de resultado, exigindo-se a verificação do conhecimento e da vontade do resultado morte. Ponderando a redação do facto 19, questionaremos se a previsão do perigo para a vida é bastante para a imputação do crime de homicídio. Recordemos que o mesmo tem a seguinte redacção: «O arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física, sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou». Ou seja, a conformação do Arguido não foi com o resultado morte, mas sim com a criação de perigo para a vida. Aquilo que se provou quanto ao dolo tem que ser visto enquanto limite da imputação, pois ao Arguido não pode ser imputada a prática de um crime se esta for para além do facto que versa sobre o dolo. E, no caso do dolo eventual, aquela conformação com o resultado não pode ir além do resultado que efectivamente se veio a concretizar «A conformação com um facto que preenche um tipo legal de crime (nos crimes de resultado, conformação como o resultado, que só é resultado se ocorrer, quando ocorrer e como ocorre) constitui o núcleo da construção dogmática do dolo eventual. O resultado só tem, porém, consistência como realidade pela sua efectiva ocorrência, e, por isso, se o agente representou como possível um resultado a que ia associada a conformação com esse mesmo resultado, a mera actuação não tem relevância nos quadros do dolo eventual para levar à punibilidade fora da efectiva ocorrência do resultado, ou de um dos resultados possíveis, e com os quais o agente se conformou segundo as regras da experiência» - Supremo Tribunal de Justiça, 13/07/2005, Conselheiro Henriques Gaspar, ECLI:PT:STJ:2005:05P2122.5ª No caso que nos ocupa não está provado o dolo de morte, em qualquer das suas modalidades. O Arguido conformou-se com a criação do perigo para a vida, mas não com o resultado morte. O resultado “perigo para a vida” consumou-se e está factualmente provado. Porém, como a conformação do Arguido não abrange o resultado morte, ao contrário de navegarmos nas águas do homicídio tentado (em que o resultado típico é a morte), deparamo-nos com a prática de ofensas à integridade física que merecem a agravação devida pela criação, dolosa, ainda que a título eventual, do perigo para a vida. O crime do art.º 144.º al. d) do Código Penal é igualmente um tipo doloso, exigindo que o agente tenha dolo de criação do perigo para a vida. É o caso dos autos. Caso tal perigo emergisse de uma imputação negligente, já estaríamos perante uma agravação pelo resultado, criado mas não desejado, tal como previsto no art.º 147.º/2 do mesmo código. Concluindo, quem quer criar o perigo, quem age com dolo de criação de perigo para a vida, não tem, necessariamente, que se conformar com a produção do resultado morte. Há uma margem de distinção entre as duas realidades. E no caso concreto, a decisão de facto definiu os termos da imputação, concluindo-se que o acórdão recorrido seguiu o entendimento que se impõe. Nessa medida, justifica-se a decisão do Tribunal a quo, de afastar a prática do crime de homicídio tentado e imputar a prática do crime de ofensa à integridade física grave, atento o resultado, concluindo-se pela improcedência do recurso. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça. Lisboa, 11.Julho.2024 Rui Coelho Maria José Machado Paulo Barreto (Vencido nos termos do voto que segue) VOTO DE VENCIDO "Ficou provado que: «13. A dado momento, empunhando uma faca, de caraterísticas não concretamente apuradas, o arguido AA desferiu com a mesma dois golpes no corpo de DD, um na região escapular e outro no braço direito. 14. Depois disso, DD caminhou uns metros no sentido descendente da referida ... e já próximo da ..., acabou por cair por terra inanimado. 15. DD foi transportado ao ..., onde foi submetido a intervenção cirúrgica e ali se manteve internado até ao dia 23 de fevereiro de 2023, data em que foi transferido para o ..., ambos em Lisboa, onde permaneceu internado até ao dia 27 de fevereiro de 2023. 16. Em consequência da conduta empreendida pelo arguido AA, DD sofreu uma ferida na região interna do terço proximal do antebraço direito e uma ferida penetrante transfixiva do lobo interior esquerdo, desde a parede torácica posterior no limite inferior da omoplata, até ao corpo vertebral, com colapso do pulmão. 17. Tais lesões demandaram um período de 60 (sessenta) dias para a consolidação médico-legal, com 10 (dez) dias de afetação da capacidade de trabalho geral, correspondente ao período de internamento. 18. DD, mesmo com os cuidados médicos a que foi sujeito, esteve em risco de morrer. 19. O arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física, sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou». E não provado que: «h. Sem prejuízo do concretamente apurado, o arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD.» Dos factos provados sob os números 13 a 18 e a segunda parte do facto 19 (sabendo que com a sua conduta colocava em perigo a vida do mesmo, tendo em conta o objeto utilizado e a região escapular atingida, com o que se conformou), resulta a intenção de matar a título de dolo eventual, daí que considere que há contradição insanável entre a primeira parte do facto 19 (O arguido AA agiu com o propósito de molestar DD na sua saúde e integridade física) e a al. h) dos factos não provados. Em sequência, entendo que o Tribunal da Relação devia suprir a contradição, considerando demonstrada a intenção de matar. Sendo o arguido condenado pelo crime de homicídio, sob a forma tentada”. 1. https://www.zygotebody.com/#nav=4.91,133.24,59.44,0,0,0,0&sel=p:;h:;s:1046;c:-0.6;o:-0.75&layers=0,1,7500 |