Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11990/19.0T8LRS.L1-3
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO NÃO REDUZIDO A ESCRITO
RECONHECIMENTO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) Tendo sido acordado, verbalmente, entre a filha da autora e a filha e genro dos donos do fracção do imóvel arrendado, que seria proporcionado o gozo temporário da mesma fracção, para habitação da autora, mediante contrapartida pecuniária mensal e, bem assim, que a arrendatária pagaria os consumos de eletricidade, água e telefone (cujos contratos de fornecimento permaneceriam na titularidade do dono da fracção), habitação que a autora passou a habitar desde maio de 2015, foi concluída uma relação jurídica de arrendamento urbano para habitação e, não, de comodato.
II) De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do CC (na redacção da Lei n.º 13/2019 de 12/02, aplicável por via do disposto no artigo 14.º, n.º 2, dessa lei), na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses, disposição que se aplica, igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma lei.
III) Celebrado um arrendamento por quem não tem legitimidade para o celebrar, o mesmo não deixa de ser válido entre as partes contratantes, mas poderá ser ineficaz em relação ao proprietário ou aos restantes contitulares do imóvel.
IV) Contudo, o contrato de arrendamento é suscetível de ser realizado - quer na posição do contraente que presta arrendamento quer na do que adquire em arrendamento - em nome de outrem e para produzir efeitos na esfera jurídica dessa pessoa (cfr. artigo 258.º do CC). Isto ocorrerá tanto nas hipóteses da chamada representação legal, suprindo a incapacidade do representado, como no domínio da representação voluntária.
V) Se, todavia, uma pessoa, sem ter recebido do interessado poderes de representação, celebra em nome dele um contrato, procede como simples gestor de negócios, sendo o negócio realizado por alguém que não tenha para ele os necessários poderes é, em princípio, ineficaz em relação ao sujeito indevidamente representado, só se tornando eficaz se for por este ratificado (cfr. artigo 268.º, n.º 1, do CC).
VI) A ratificação é a declaração de vontade pela qual alguém faz seu um acto jurídico celebrado por outrem em seu nome, tendo de obedecer à forma exigida para a procuração (cfr. artigo 268.º, n.º 2, do CC) e, esta revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (cfr. artigo 262.º, n.º 2, do CC), pelo que, devendo o contrato de arrendamento ser celebrado por escrito, a ratificação do contrato deverá obedecer a tal forma.
VII) Tendo a autora passado a residir na fração desde 2015 e, desde então, passando a transferir, mensalmente, para o senhorio, como contrapartida de lhe ser proporcionado o gozo da fração daquele, a quantia de € 325,00 que depositou em conta bancária daquele, tendo também procedido ao pagamento dos consumos de água, eletricidade e telefone inerentes (tendo os respetivos contratos de fornecimento permanecido – até julho de 2019 – na titularidade do mencionado senhorio), tais circunstâncias demonstram, por parte da parte da autora, um investimento de confiança no escrupuloso cumprimento do contrato, sem focos de litígio, assumindo as partes os direitos e obrigações emergentes da contratação, numa execução contratual prolongada – por mais de quatro anos - no tempo, criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, a convicção legítima e fundada de que o senhorio não iria invocar a questão da ineficácia do contrato, em razão da falta de autorização ou de concessão de poderes representativos pelo mencionado senhorio, para a conclusão do contrato de arrendamento celebrado.
VIII) Neste quadro, o regime de invocação da ineficácia do contrato de arrendamento por parte do senhorio deverá ficar paralisado, por abuso de direito, em conformidade com o disposto no artigo 334.º do CC, porque, se assim não fosse, o exercício de tal direito consubstanciaria uma atuação manifestamente abusiva, face ao que um procedimento conforme à boa fé lhe imporia.
IX) A solicitação verbal dos réus à filha da autora pretendendo que a autora desocupasse o imóvel, bem como as solicitações escritas da filha e da neta do senhorio à filha da autora, com igual finalidade e, bem assim, a missiva remetida pelo mandatário da filha do senhorio, por carta registada, mas sem aviso de receção, à arrendatária no sentido de ser devolvida a fração, não constituem meios válidos e eficazes de oposição à renovação do contrato de arrendamento pelo senhorio, atento o constante nas disposições conjugadas dos artigos 1096.º e ss. do CC e 9.º, n.º 1, do NRAU.
X) Apurando-se a existência do contrato de arrendamento, a ocorrência da transmissão do locado para os atuais donos do mesmo não comportou alguma incidência sobre a dita relação jurídica de arrendamento, tendo a posição jurídica do locado, com os direitos e obrigações inerentes, sido transmitida aos adquirentes sucessivos do mesmo, que se encontram vinculados a aceitar o dito arrendamento, em conformidade com o estabelecido no artigo 1057.º do CC.
XI) Não se tendo apurado factos demonstrativos de ter ocorrido abandono do imóvel pela arrendatária, entrega das chaves do locado ou acordo entre arrendatária e senhorio, no sentido de se operar o “contrário consenso”, no sentido da destruição do vínculo do arrendamento, não se pode considerar cessado o contrato de arrendamento, por revogação.
XII) Impondo-se que o senhorio ceda o gozo do imóvel ao inquilino e assegure tal cedência (cfr. artigo 1031.º, al. b) do CC), a privação do uso da fração arrendada ao locatário é suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial indemnizável, consistente na lesão do direito de gozo temporário que, de acordo com o preceituado no artigo 1022.º do CC, lhe era lícito usufruir, mesmo que tal suceda por conduta ilícita do senhorio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
1. CB, identificada nos autos, instaurou ação declarativa de condenação contra JS, AC, JC e MC, também identificados nos autos, pedindo que lhe fosse reconhecida a qualidade de arrendatária da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 2.º andar direito do prédio urbano sito na Rua …, … – … direito, Moscavide, descrita na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º …, daquela freguesia e inscrita na matriz predial com o art.º …; que lhe fosse restituída tal fracção autónoma, abstendo-se os réus da prática de qualquer acto que impeça a sua utilização; e que os réus fossem condenados ao pagamento da indemnização de € 36.178,91- € 12.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 24.178,91 a título de danos patrimoniais, incluindo pela privação do uso do imóvel - acrescida de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em suma, que:
- Em 01-05-2015 celebrou com os então proprietários, JS e mulher, BC, um contrato de arrendamento verbal atinente à fracção autónoma identificada, tendo passado a viver no locado desde essa data;
- Em 15-07-2019, os 2.º, 3.º e 4.º réus entraram violentamente no imóvel e ordenaram à autora que o abandonasse, ameaçando-a de morte e agredindo-a com murros e pontapés, pisadelas e dentadas;
- Nessa ocasião, os réus mudaram a fechadura do imóvel e colocaram a autora na rua, tendo posteriormente arrancado a porta do imóvel, retirado os bens da autora do seu interior e iniciado a realização de obras;
- A autora ficou impedida de ter acesso ao imóvel;
- A situação descrita causou-lhe angústia, sofrimento e trauma;
- Tendo sido desapossada dos seus bens pessoais no valor de 11.843,28€ e tendo tido outras despesas e encargos acrescidos por força dessa situação, que lhe causaram danos patrimoniais.
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2. Foi admitida a ampliação do pedido, no sentido da condenação dos réus no pagamento da quantia diária de 40,00€, pela privação do uso do imóvel, até à sua efectiva entrega à autora, valor este que, à data da instauração da acção, perfazia o montante de 5.880,00€.
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3. Tendo falecido – em 04-12-2019 - o réu JS, ainda antes da sua citação para a acção, foram habilitadas como suas sucessoras, as chamadas MD e AC.
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4. Em 29-07-2019, a ora autora requereu – cfr. apenso A – providência cautelar para restituição provisória da posse da fração referida, pretensão que, por decisão de 31-08-2019, foi deferida e determinada a restituição imediata à requerente da fração autónoma sita na Rua …, n.º …, …, em Moscavide.
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5. Deduzida oposição pelos requeridos da providência após o decretamento desta e, após a produção da prova entretanto requerida, por decisão de 03-11-2020 (cfr. fls. 185 e ss. do apenso A), veio a ser julgada improcedente a oposição deduzida pelos requeridos e mantida a providência decretada.
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6. De tal decisão, os requeridos da providência interpuseram recurso de apelação, vindo a 8.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão sumária de 11-02-2021, a negar provimento à apelação, confirmando integralmente a decisão então recorrida (cfr. fls. 271 a 300 do apenso A).
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7. Deduzida que foi reclamação de tal decisão, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-04-2021, a referida reclamação foi indeferida e confirmado o despacho reclamado (cfr. fls. 431 a 435 do apenso A).
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8. Por acórdão da mesma data – 22-04-2021 – foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a decisão sumária do relator, que negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida (cfr. fls. 401 a 430 do apenso A).
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9. Nos autos principais os réus AC, JC e MC contestaram alegando, em suma, que:
- A autora habitava ilegitimamente a fracção em causa, não dispondo de título válido para o efeito, uma vez que o imóvel pertencia ao 1.º réu e à sua mulher, tendo sido os réus JC e MC que permitiram a sua ocupação;
- Nenhum dos réus celebrou com a autora um contrato de arrendamento, não tendo os seus legítimos proprietários permitido a ocupação do imóvel, nem tiveram a intenção de permitir essa ocupação ou tido conhecimento dos termos dessa ocupação pela autora, pelo que, qualquer relação jurídica que tivesse sido estabelecida padece de nulidade.
- Foi a filha da autora quem interveio em todos os contactos com os réus, pelo que também não lhe assiste qualquer legitimidade para, em nome e representação de sua mãe, celebrar qualquer contrato, pelo que também por esta via o contrato que tenha sido celebrado se encontra ferido de nulidade;
- Admitem que a autora habitava no imóvel, que eram depositadas quantias bancárias em contas da titularidade pelo 1.º réu, mas que tal ocupação sempre foi ilegítima, porquanto a relação jurídica subjacente se encontra ferida de nulidade, tratando-se, no limite, de um contrato de comodato e não de arrendamento;
- Ainda que assim não fosse, entendem os réus que, em Outubro de 2018, o contrato de arrendamento que existisse foi denunciado verbalmente, tendo havido uma insistência para a desocupação do imóvel em 1 de Abril de 2019;
- Embora tenham entrado no imóvel em 15.07.2019, não o fizeram com qualquer violência, tendo sido a autora quem abriu voluntariamente a porta e que os tumultos que possam ter ocorrido se deveram exclusivamente à conduta dos filhos da autora. Alegam ainda que foi a autora quem, nessa data, declarou que pretendia entregar o imóvel aos réus, restituindo-o de livre vontade.
Por fim, impugnam toda a factualidade respeitante a danos e prejuízos alegados pela autora.
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10. MD contestou, alegando ter sido celebrada escritura de partilha na sequência do óbito do réu JS, seu pai, tendo-lhe sido adjudicada a si a fracção autónoma objecto dos autos, por escritura pública celebrada em 30-12-2019, tendo o mesmo imóvel sido transmitido a terceiros, em Fevereiro de 2020, através de negócio de compra e venda. No mais, impugnou toda a factualidade alegada pela autora e reiterou os argumentos de defesa dos demais réus, quanto à inexistência de contrato de arrendamento e quanto à nulidade de uma eventual relação contratual que se tivesse estabelecido.
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11. A autora apresentou resposta, quanto à matéria de excepção arguida pelos réus, pugnando pela validade do contrato, dizendo que os primitivos proprietários, não só, concordaram em arrendar o imóvel à autora, como sempre receberam o valor das rendas na sua conta bancária e que não ocorreu denúncia válida do contrato de arrendamento por parte dos réus, nem entrega livre e espontânea do imóvel, já que se tratou de uma situação de violência física e psicológica que obrigou a autora a sair do imóvel na noite de 15.07.2015.
Concluiu pugnando pela existência de litigância de má-fé dos réus, por entender que estes alteram a verdade dos factos e deduziram oposição cuja falta de fundamento não podem ignorar, devendo ser condenados em indemnização não inferior a 2.000,00€.
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12. Foi admitida a intervenção principal de MNA e de JAA, terceiros adquirentes do imóvel, os quais, em 30-11-2020 apresentaram contestação, alegando que adquiriam a fracção autónoma objecto do processo livre de ónus e encargos, encontrando-se de boa-fé uma vez que nunca foram informados da existência de litigio quanto ao imóvel adquirido, nem sequer de uma eventual situação de arrendamento, tendo concluído pela procedência da exceção de ilegitimidade que invocaram e, caso assim não se entendesse, pela improcedência da ação.
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13. Tendo sido dispensada a realização da audiência prévia, em 07-05-2021 foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente exceção de ilegitimidade passiva, fixado o valor da causa, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
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14. Em 05-07-2021 teve lugar a produção – antecipada – de depoimento de parte da autora.
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15. Teve lugar a realização de audiência de discussão e julgamento, após o que, em 23-12-2021, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu o seguinte:
“1. Declaro a posição jurídica de arrendatária de CB sobre a fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 2.º andar direito do prédio urbano sito na Rua …, … – … direito, Moscavide, descrita na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º …, daquela freguesia e inscrita na matriz predial com o art.º …, por força de contrato de arrendamento celebrado em 01.05.2015;
2. Declaro o direito da autora à restituição do imóvel em causa, e, em consequência, condeno os actuais proprietários do imóvel MNA E JAA, na respectiva restituição à autora;
3. Condeno o réu JC no pagamento à autora da quantia de 6.363,50€ (seis mil trezentos e sessenta e três euros e cinquenta cêntimos);
4. Condeno o réu JS (representado pelas habilitadas AC e MD, na qualidade de herdeiras e em sua representação), no pagamento à autora da indemnização de 1.625,00€ (mil seiscentos e vinte e cinco euros);
5. Condeno réus JS (este representado pelas suas sucessoras habilitadas AC e MD na qualidade de herdeiras), AC, JC E MC, solidariamente, no pagamento à autora da indemnização que se vier a liquidar, ao abrigo do disposto no artigo 609.º n.º 2 do CPC, por força do descaminho dos bens da autora identificados no ponto 24 dos factos assentes; e
6. Absolvo cada um dos réus dos demais pedidos formulados contra si pela autora.
7. Absolvo os réus do pedido de condenação em litigância de má-fé.
(…)
Custas a suportar pelas partes, na proporção do decaimento, que se fixa na proporção 50% para a autora e de 50% para os réus (relação processual entre autora e réus), e 0% para a autora e 100% para os intervenientes principais (relação processual entre autora e intervenientes) – cfr. artigo 527.º n.º 1 do CPC (…)”.
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16. Não se conformando com a referida decisão, dela apelam os réus AC, JC e MC, pugnando pela revogação da mesma e absolvição de todos os réus, tendo formulado as seguintes conclusões:
“a) Concluído o depoimento de parte, em 05.07.2021, foi redigida a assentada, nos termos do art. 463º, nº 1 do C. P. C., que se passa a transcrever:‘’ASSENTADA -A depoente declarou que todos os contactos relativos àquele imóvel e à sua ocupação por si, foram tidos entre a sua filha e a D. Paula, filha do senhor JS e da D. BC, que foram estas que trataram de tudo e que combinaram todas as questões, designadamente a “renda”.
b) Após a produção da restante prova, nomeadamente a prova testemunhal, o Tribunal a quo proferiu decisão com a qual se discorda excpeto no que respeita à llitigancia de má fé.
c) Os elementos fornecidos pelo processo impõem claramente decisão diversa daquela que foi proferida nos autos.
d) A sentença recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova, sendo que, como já se referiu, a prova produzida em audiência impunha claramente decisão diversa da que foi proferida.
e) Nomeadamente, existem elementos bastantes que permitem concluir pela ilegitimidade dos contratantes, facto que inclusivamente se encontra provado.
f) Relativamente ao depoimento da testemunha FA, agente da PSP em Sacavém que prestou depoimento no dia 27.09.2021, entre as 14:43:19 e as 15:01:45, na análise para transcrição daquela prova, constatou-se que a meio da gravação é impossível entender o que a testemunha diz, estando incompreensível por deficiente gravação da prova.Tal consubstancia uma nulidade do julgamento, pelo que deve ser ordenada a sua repetição, por inviabilizar uma apreciação global da prova.
g) auto de notícia junto aos autos não foi colocado em crise por nenhuma das partes, e sendo o relato fidedigno de uma entidade policial tem valor de documento autêntico, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP). Aliás, as testemunhas DR e RD, ambos agentes da PSP que presenciaram a situação dos autos, reiteraram o seu conteúdo e relataram ao Tribunal de forma idónea todos os factos.
h) Os factos 1 e 2 não podem ser considerados provados, pois a convicção do Tribunal decorre de mera cópia não certificada do registo predial ( pág 11linha 8). Dispõe o art. 110.º, n.º 1, do Código de Registo Predial que o registo se prova por meio de certidão. Tal matéria foi já apreciada pelo STJ, tendo sido proferido em 30.05.2013 o Ac. No proc.nº3228/06.6TVLSB.L2.S1. Tal situação influi na decisão da causa, considerando que tais factos não podem ter-se como provados. Facto que deste logo implica a anulação da decisão recorrida, o que se pede.
i) Facto 4 - O que resulta dos autos é que o montante era transferido para uma conta titulada por JS, sendo que tal transferência ocorria à sua revelia. E mais, o Tribunal no âmbito dos seus poderes e para melhor avaliar os factos deveria ter esclarecido a titularidade daquela conta bancaria. Sendo também certo que nesta parte não resulta de banda nenhuma que aquele era o único titular. Discorda-se assim da redacção do facto 4 e das conclusões erróneas que o Tribunal extrai deste factos. Assim, o facto 4 não pode constar dos factos provados. Deve ser eliminado.
j) Facto 8 – a Convicção do tribunal: Resulta do depoimento de parte da Autora (Página 12, linha 8). Relativamente ao depoimento de parte da autora, nem se compreende como é dada tanta (extrema) relevância ao mesmo. Nesta parte temos de considerar que no dia dos factos e perante os agentes da PSP a mesma estava na sua habitação, confortavelmente a conversar com o Sr. JC e a D. AC. Não se apresentava sequer nervosa, não se queixou, nem tinha qualquer ferimento. Apenas se manifestou surpresa com a presença policial. Quando lhe foram explicados os motivos da presença da polícia naquele local a mesma manifestou também total surpresa e desconhecimento, pelo que decidiu, enquanto pessoa válida e capaz, que deveria abandonar o imóvel. Tal situação encontra-se sobejamente refletida no auto de noticia.
Porem, é com total surpresa que durante o depoimento de parte tenha apresentado um depoimento totalmente desprovido da verdade, por não ser sequer coincidente com o auto de notícia que não foi impugnado. Não nos podemos esquecer que foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta.Muito se estranha o facto de o Tribunal não referenciar a comunicação junta aos autos pela própria A. e a ela dirigida cujo teor é o seguinte:‘’Nos termos do mandato que me foi conferido pela Senhora PC (legitima coproprietária do prédio melhor identificado em epigrafe, venho por este meio advertir V.exa da obrigação que sobre si impende de desocupar o supra referido edifício até ao dia 30.06.2019. ‘’
Aquela comunicação foi expedida para a morada do locado e embora a A. no seu isento e verdadeiro depoimento de parte diga que nunca recebeu nenhuma carta, a verdade é que na providencia cautelar junta essa comunicação! Posto isto em evidência, o depoimento de parte tem que ter o valor que efetivamente merece: nenhum! É contrariado pela própria parte nos seus articulados. Só se pode crer que resulta do interesse que a parte tem de facto na causa. Factos que devem ser levados em consideração, real consideração, em tudo quanto tiver por base o depoimento da autora/parte. O facto deve ser eliminado
k) Facto 9 – resulta do depoimento da testemunha HS que supra se transcreveu que foi ela que procedeu às novas contratações.Tal facto não pode constar dos factos provados. Deve ser eliminado.
l) Facto 10 –Da prova testemunhal supra transcrita , resulta que quem estava na casa não era a Ré MC. Aliás, MC nunca é referida. Nem pela filha da D. CB, nem pela D. CB, nem no auto de notícia nesse momento. Pelo que tal facto não pode ser dado como provado devendo ser eliminado.
m) Facto 11, 12 e 13 –O depoimento de parte da autora deve ser completamente desconsiderado por tudo quanto se disse a propósito do facto 8. Além disso, o que consta dos factos provados não é o que consta do Auto de Notícia, nem é dito em nenhum depoimento dos Agentes da PSP supra transcritos. É verdade que num primeiro momento, após abrir a porta, o Sr. JC travou que a mesma a fechasse de imediato, mas logo que reconheceu os Réus, estes, com permissão da A. entraram naquela habitação, sem qualquer empurrão na Autora ou na própria porta. E mais, não resulta de lado nenhum que a mesma foi empurrada, caiu e foi pisada. Se tal tivesse acontecido nem sequer tinha sido encontrada a conversar calmamente com os seu ‘’agressores’’. Não estranhou o tribunal o facto da A. não relatar na presença das autoridade qualquer dor, agressão ou medo? Ressalve-se que ninguém presente naquela ocasião vislumbrou ferimentos! Posto isto, resulta claro que os factos 11,12 e 13 não podem constar do elenco de factos provados.
n) Facto 14 e 15 - Tais factos são falsos e naturalmente não estão provados, tendo inclusivamente sido feita prova em contrário. Do auto de notícia transcrito a propósito dos factos 11,12 e 13 resulta que os filhos da A. se encontravam no exterior do prédio à chegada da PSP, não tendo sido impedidos de entrar na fracção. Na realidade foram até chamados para esclarecer a hipotética incapacidade da progenitora. O que o Tribunal deve querer dizer é que os agentes da PSP não deixaram os filhos falar pela mãe, porquanto essa era perfeitamente válida e capaz de decidir por si. Vejamos, pois depoimentos de DR, agente da PSP em Sacavém e RD, agente da PSP em Sacavém , supra transcritos. Nem sequer é credível o depoimento da filha da A., quem é nosso entender é a verdadeira celebrante de todo e qualquer acordo celebrado entre as partes. Ora, uma filha tão preocupada que ouve a mãe gritar, vê a mãe caída e decide ir para a porta do prédio esperar pelos agentes da PSP? Se a mãe estivesse caída não teria uma filha diligente chamado uma ambulância e ficado junto da sua mãe ou pelo menos junto da porta da fracção?a este propósito também se transcreveu o depoimento de HS. Estes factos estão assim claramente em divergência com a prova produzida pelo que não podem ser dados como provados.
o) Facto 16. - mais uma vez o facto está em divergência com a prova. A esse propósito transcrevemos depoimentos supra, dos quais resulta claramente da prova que os agentes apenas transmitiram à A. a versão da sua própria filha, Sra. HS, e a versão do Sr. JC. Não referiram não existir contrato nem a mandaram sair do imóvel. Considerar tal provado é subverter a prova. Aliás, no seu depoimento, a A. diz que os agentes estavam do lado dela. Tal facto não pode constar do elenco de factos provados.
p) Facto 17, 18, 19 - É verdade que a fechadura foi trocada, porém, para os factos em analise é absolutamente essencial constar do facto 17 que tal troca foi consentida. E mais, a D. CB, Autora nestes autos, abandonou a fracção por sua vontade livre e fez-se acompanhar dos seus bens. Como também resulta dos depoimentos transcritos. Do que acima se transcreve resulta prova bem diversa dos factos considerados provados. Deste modo tais factos não podem constar dos factos provados. Decorre ainda do que aqui se argumenta que os factos 65, 66 e 67 dos factos não provados devem ser considerados provados.
q) Facto 20 – Da prova produzida resulta que a A. se fez acompanhar de diversos bens, quer no próprio dia, quer nos dias seguintes. Tal resulta do depoimento da testemunha DP, agente da PSP de Sacavém, de SC, agente da PSP em Sacavém, de LS e ainda RD, agente da PSP em Sacavém. Do que acima se descreve resulta claro que tal facto não pode ser dado como provado como acima se demonstra. Decorre ainda do que aqui se argumenta que o facto 67 dos factos não provados deve ser considerado provado.
r) Facto 21 - É verdade que a fechadura foi novamente mudada. O que retira deste facto é que não pode levar o tribunal a quo a decidir com decidiu. Na verdade, resulta óbvio que foi autorizada pela D. CB a troca da fechadura como se defendeu em analise dos factos 17, 18 e 19. O mesmo vale por dizer que quem esbulhou, quem agiu com violência violando o direito à propriedade foi a A. Deste modo, deve retirar-se a expressão ‘’ por força do descrito nos pontos 17 e 18 supra’’
s) Facto 22,23, 24, 25 e 26 –Desde logo os factos 22 e 23 estão prejudicados pelo que se referiu nos factos 20 e 21. Quanto aos restantes bens, descritos no facto 24 tal não resulta da prova produzida. Esses bens não foram elencados por nenhuma testemunha, como se referiu nos factos supra. Aliás, os bens da autora foram por esta levados no próprio dia e os restantes foram transportados pela sua filha inclusivamente com o auxílio da Testemunha LS. Mais se dirá que aos agentes viram alguns bens no exterior da habitação, como relata a testemunha LS, para que a filha HS os recolhesse e tudo de acordo com o combinado. Resulta evidente que no dia em que a A. saiu do imóvel pelo seu próprio pé, foi auxiliada pelos familiares a levar os seus pertences. Resulta ainda da prova testemunhal que foram colocados na escada do prédio os restantes bens. E mais não resulta da prova! O mesmo vale por dizer que não se pode sequer concluir que a A. ficou sem algum bem, sendo certo que a mesma admitiu que os móveis, eletrodomésticos e Roupa de cama que encontrou no imóvel, não eram seus! A este propósito deveria o Tribunal ter verificado os documentos juntos aos em 02.09.2020 e 03.09.2020 pela A. O doc. nº2 junto com esse requerimento comporta um conjunto de faturas em nome de HS pelo que nenhuma relevância tem para os autos, considerando que HS não é parte nos autos. Quanto à lista de bens junta nessa fase como doc. Nº 3, convenhamos que até por uma questão de cooperação e boa-fé processual a mesma poderia e deveria ter sido junta com a PI. A lista de bens poderia ser elaborada em qualquer momento, tanto mais que a A. tinha na sua posse fotografias do imóvel. Aliás, fotografias que juntou aos autos com a Petição Inicial.É uma lista de bens, sem qualquer referência a marcas, estado, número ou qualquer elemento identificativo, pelo que que não faz prova nem da existência dos mesmos nem da sua localização e valor. Acresce que a A. não junta faturas dos bens que constam daquela lista. A A. foi assim criando ‘’prova’’ à medida do que ia sendo necessário. Deste modo tais factos não podem ser considerados provados.
t) Facto 30 e 31 – As trocas de fechadura têm a origem supra descrita pelos RR, pelo que não se destinou a impedir um legítimo arrendatário, com contrato em vigor, a aceder à sua habitação. Destinou-se antes a dar cumprimento à vontade dos RR conjugada e consentida pela A. Não podemos deixar de evidenciar que tal aconteceu após a A. de livre e espontânea vontade ter abandonado a habitação, pondo termo a qualquer contrato que pudesse existir. Assim, tal facto carece de ver aditada tal informação sugerindo-se a seguinte redação: facto 30- a fechadura foi novamente mudada com consentimento expresso da A.
u) Facto 32, 33 e 34 – Não se coloca em causa a assistência hospitalar da A.. sendo certo que pelo motivos defendidos nos factos 11,12,13 tal assistência não tem qualquer relação com a atuação dos RR., pelo que deve tal constar do factos. Desde logo no facto 32 deve eliminar-se a expressão’’ em consequência do descrito nos pontos 11 e 12 supra’’. Mas mais se sugere que seja eliminado integralmente o facto 32, passando o facto 33 a ter a seguinte redação: Na madrugada de 16.07.2019, foi assistida no Hospital Beatriz Ângelo, tendo um traumatismo na cabeça e na região lombar, bem como com um hematoma na face posterior da perna direita, sem que a sua origem se possa imputar à atuação dos RR.
v) Facto 35 e 36 - a A. pode ter efectuado tais gastos, porém fê-lo exclusivamente por factos gerados pela sua conduta. Como supra se referenciou. Deste modo tais factos devem ser alterados nessa medida, ou pelo menos serem correctamente apreciados.
w) Facto 37 - O Estado de tristeza da A. foi naturalmente originado pela ‘’confusão’’ provocada essencialmente pela sua Filha HS. Sendo certo que nenhuma implicação pode resultar para os Réus.
x) Facto 39 e 40 – tais factos correspondem à verdade, mas deve ser acrescentada menção a carta recepcionada pela A. e junta por esta aos autos cujo conteúdo novamente se repete: Foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta, cujo teor acima se reproduziu. Deste modo, resulta que o facto deve ser aditado com esta informação por ser impeditiva de prolação da decisão no sentido proferido.
y) Facto 45 - Corresponde à verdade parcialmente, porquanto apenas se podem considerar citados os réus ‘’primários’’.
z) Facto 49 - Não foi feita prova nesse sentido. Antes resulta do depoimento da própria autora que todos os termos resultam de acordo da Testemunha HS. Posto isto, resulta também evidente que tal facto não pode ser considerado provado. Em decorrência directa do que se disse e transcreveu a propósito do ponto 49, por seu turno, deveria o facto 63 e 64 dos factos não provados, constar dos factos provados. Como se refere na sentença, a A. não logrou provar que estes conheciam a negociação nem que tinham dado poderes a alguém para tal. Aliás, resulta da maioria dos depoimentos que todo o assunto foi apenas tratado pela filha da A. e a filha e genro do primário R. JS.
aa) Deve ser aditado aos factos provados que a Filha da autora por si e sem poderes negociou exclusivamente com a R. AC e o Réu JC os termos do ‘’contrato’’ e à revelia do R. JC. Tal resulta directamente do auto de notícia supra transcrito, das versões constantes dos articulados dos réus e ainda dos depoimentos prestados.
bb) Não se pode ainda deixar de duvidar da veracidade dos testemunhos de HS e do próprio depoimento de parte da A. CB. Na verdade, basta uma breve análise para se descortinar que não são coincidentes entre si, mas são completamente dispares do auto de notícia e da prova testemunhas prestada pelo agentes da PSP.
cc) Deste modo, analisada a prova documental conjugada com a prova testemunhal gravada, devem ser alterados os factos provados e não provados como supra se requer e defende. Em consequência, por não se configurar o caso dos autos como atualmente descrito na sentença, devem os RR. Ser absolvidos de todos os pedidos.
dd) Há uma incorreta apreciação da prova e uma fundamentação contrária à prova produzia.
ee) Da prova produzida não resulta qualquer intervenção da ré MC. Posto isto, mais não resta do que a sua absolvição de todos os pedidos sem mais.
ff) Na rubrica C) da sentença, sob a epigrafe ‘’justificação da convicção do Tribunal’’ não podemos deixar de evidenciar que o Tribunal, afastando-se da sua função de fazer justiça e analisar os factos que lhe são trazidos pelas partes de forma imparcial, é levado pela total parcialidade e emotividade. É certo que a A. é uma idosa, mas não é um incapaz vulnerável, desprovido de capacidade jurídica. Fazendo uso das expressões do Tribunal, ‘’é de lamentar’’ a parcialidade que ressalta na decisão. Desde logo porquanto se desvaloriza toda a prova, seja trazida pelos Réus ou não, em favor daquilo que interessa recolher para dar sustentação à versão da A. Nesta parte não podemos deixar de colocar a nu que até os depoimentos dos Agentes da PSP são descredibilizados, dizendo que são alheados da realidade, porém não se abstém de os usar quando isso convém à versão da A. nomeadamente para prova dos factos 22 a 26 (página 15 da decisão).
gg) E mais, logo no depoimento de parte da A. foi gritante a forma sugestiva como foram colocadas as questões por parte da Exma. Sra. Dra. Juiz a quo. Foi através da formulação de questões manifestamente sugestivas, que perturbaram a espontaneidade do depoimento, que foi interrogada a A. As questões eram formuladas de forma que continham as respostas. Salvo o devido respeito, o depoimento de parte não deve ser assim conduzido por sugestionar a parte, para o bem e para o mal, nas suas respostas. Queremos ser de aplicar o disposto no 516º quanto ao regime do depoimento das testemunhas. A realização da justiça no caso concreto deve alcançar-se sem prejuízo dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz. Nesta matéria vejam-se os AC. Do TRP proferido no proc. Nº 2/03.5TAESP-D.P1 em 04.11.2009 e o Ac. Do STJ proferido no proc. Nº 873/10.9T2AVR.P1.S1 em19.01.2017 É obvio que o desrespeito pelos princípios em causa se refletiu na decisão tomada, pelo que tal consubstancia uma nulidade nos termos do art. 198º do CPC e até uma inconstitucionalidade por violação do art. 47º da CRP.
hh) Aferir a legitimidade das partes para a negociação é uma exigência natural. Os presentes autos recaem sobre a existência de um suposto contrato de arrendamento de uma fração propriedade do Réu JS. Acresce que a data da suposta contratação, em 2015, o bem era também pertença de BC, esposa de JS.(facto 1 dos factos provados). Desde 2015, que quem habitou, de forma ilegítima, a fracção foi a A. CB; (facto 3 dos factos provados). Quem procedeu a todas as diligências tendentes a essa ocupação foram, por um lado, a filha da A., por outro a filha e o genro (JC) e do primeiro R. Por outra banda, como resulta dos autos, nunca nenhum dos legítimos proprietários do imóvel à data, ou seja, BC e JS, tiveram qualquer intervenção no processo de autorização de ocupação do imóvel. Por outro lado, da análise dos e-mails trocados entre a filha da requerente e JC, genro do Réu JS, resulta claro que foi o requerido JC que permitiu a ocupação do imóvel e definiu os seus termos.
ii) Também nesta parte, andou bem o Tribunal quando descreve a fundamentação constante da página 26 da linha 1 até final e página 27 da linha 1 até à linha 6 e que acima se transcreveu. O Tribunal fez todo um caminho que se tem de considerar correcto, porém somadas as parcelas não se entende o resultado final (decisão). Do que acima se transcreveu resulta claro que a eventual contratação ocorreu por via de terceiros (AC e JC) desprovidos de instruções para esse efeito. Pelo que tal deveria, como acima já se defendeu constar inclusivamente dos factos provados, não fosse a incorrecta apreciação da prova. A ocupação ocorreu completamente à revelia dos proprietários do imóvel, então JS e BC, que nunca conferiram poderes para tal. Desde logo, se constata a falta de legitimidade de JC e AC para a celebração de contratos respeitantes ao imóvel em causa nos autos. Quanto aos intervenientes na celebração contratual, nem sequer o tribunal a quo teve dúvidas, pois refere na sentença que foi ‘’celebrado verbalmente entre a filha da autora e a filha e genro dos donos do imóvel um acordo típico de arrendamento. (página 23 linha 11 e 12) E mais, também não se pode deixar de frisar que apenas uma das sucessoras do Réu JS teve intervenção na celebração. Pelo que mesmo após o falecimento do R. originário não se pode conferir eficácia ao negócio.
jj) Neste sentido, veja-se o Ac. TRC de 18.11.2003:’’ A legitimidade negocial para dar de arrendamento cabe àquele que puder dispor do uso da fruição da coisa (o proprietário- 1605° C. Civ. ; o fiduciário - 2291º, n° 1, C. Civ.; o enfiteuta - 1501°, al. a); e o usufrutuário - 1446°, C. Civ. ) e bem assim àquele que for administrador do bem a arrendar, neste caso até ao limite de 6 anos - 1204º, n° 1, C. Civ. (entre outros, o cabeça de casal da herança - 2079° e 2087° C. Civ. ; os pais relativamente a bens dos filhos que estejam sob a sua administração - 1878°, n° 1, 1899°, n° 1, e 1897° do C. Civ.; o curador provisório ou definitivo dos bens do ausente - 94°, n° 1, 110° e 1159°, n° 1, C. Civ. ; o tutor- 1935° n° 1, 1878° n° 1, 1889° n° 1, à contrário, e 1897°, C. Civ. ; o mandatário - 1159°, n° 1, C. Civ..’’
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/0/d60e9b519ed839cb80256dfa00438da7?OpenDocument
kk) Facto que faz desde logo que qualquer contrato celebrado seja nulo, por se tratar de um bem alheio. Estamos assim claramente perante uma ilegitimidade passiva que não foi apreciada configurando uma omissão de pronuncia.
ll) E não se queira, como fez o Tribunal a quo, tornar válidos os actos por via do uso do Instituto do Abuso de Direito, nos termos fixados no artigo 334º do CC. Como bem se faz notar na sentença, para se fazer uso deste instituto era desde logo necessário ‘’uma atuação concreta passível de criar na contraparte a expectativa de qua o contrato seria válido e eficaz’’(página 29 linha 26 e 27). Tal expectativa tinha ainda de ser conjugada pelo escrupuloso cumprimento do contrato, sem qualquer animosidade. De acordo ainda com a posição manifestada pelo tribunal a quo, para se equacionar um direito como sendo abusivo é necessário que se exceda ‘’ clamorosamente a boa fé’’ o que ‘’não sucede, manifestamente na presente situação’’(página 31 linha 9)
mm) No caso em apreço, os montantes provinham da conta da D. CB, sendo depositados em conta do Réu JS. Quem os depositava, por que era quem movimentava todas as quantias, era a filha da A. A conta onde tal montante era depositado era de facto titulada pelo senhor JS, desconhecendo-se se este era o seu único titular ou sequer se era o primeiro titular. Sendo certo que quem orientou tal deposito também não foi o R. JS que em vida manifestou ou seu desconhecimento alegando que não usava correntemente aquela conta. Questões que nunca sofreram qualquer prova em contrário. Posto isto, aliado ao desconhecimento dos termos da celebração do contrato, certo é que a A. não pode sequer se tida como celebrante, muito menos celebrante de boa fé. Também nesta parte existe uma ilegitimidade não apreciada pelo Tribunal.
nn) Na verdade, nem sequer se compreende, por ser contrário a própria fundamentação, como o Tribunal a quo reconhece quem foram os celebrantes de facto, reconhece a falta de forma e de ratificação, reconhece a ausência de motivos para qualificar a atuação como abuso de direito, mas não se abstém, em completa contradição, dizendo haver ratificação tacita e abuso de direito (página 31, linha 21, 22 e 23)
oo) Desde logo ratificação tácita não resulta dos factos provados, porquanto apenas a ratificação escrita ou, no limite, uma atuação do R. JS da qual não resultasse dúvida. Porém, tal é impossível de acalçar porquanto sabemos que não foram concedidos poderes para a celebração, não houve ratificação escrita e também não veio o R, JS referir que aceitava a negociação e os seus termos. Aliás, teve oportunidade de manifestar a sua versão reprovando a negociação. Por outras palavras, não pode o julgador tirar uma ilação que não tem suporte no que se encontra provado, na matéria que consta dos autos.
pp) A falta de poderes dita a nulidade do negócio! Devendo o mesmo ser assim declarado nulo e de nenhum efeito. Em suma, os recorrentes põem em causa a validade substancial do contrato de arrendamento, pois os legítimos proprietários à data da celebração não tiveram qualquer intervenção e não o ratificaram.
qq) Nos termos do disposto no art.º 258.º do C.C., o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último. No entanto, se o celebrante não tiver poderes de representação, o negócio é ineficaz se não for pelo mesmo ratificado, nos termos do art.º 268.º, do C.C..A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração a qual, por sua vez, deve revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar, no caso a forma escrita. cfr. art.os 268.º, n.º 2 e 262.º, n.º 2, ambos do C.C..
rr) Tanto mais que não podemos usar do já referido formalismo cego para tapar os olhos à ilegitimidade que provem da Filha da A. que negociou, conhecia a situação e, portanto, a falta de legitimidade, tendo esta beneficiado dessa ilegitimidade. Aliás, nesta parte o Tribunal limita-se a dizer, por outras palavras é certo, que o mesmo vale quanto à relação com a A. Salvo melhor e mais douto entendimento, tal, além de consubstanciar uma falta de fundamentação, deveria ser tratado com mais rigor.
ss) As nulidades não se limitam aos contratantes da família do requerido JS. Resulta igualmente da prova produzida e do teor das mensagens trocadas que quem contratou foi a filha da requerente. Foi igualmente a filha da requerente que sempre pagou todos os montantes, conforme resulta dos autos. Por outro lado, não resulta de nenhuma parte que lhe tenham sido atribuídos poderes pela requerente para tal. Pelo que a filha da requerente contratou por ela e em nome dela sem que lhe tenham sido atribuídos poderes para o efeito, o que se consubstancia numa falta de legitimidade e consequente nulidade contratual; Constata-se assim a falta de legitimidade ativa para contratar, o que leva à nulidade do contrato. Sendo certo que, nem JC nem AC tinham legitimidade para contratar, o contrato seria sempre nulo (e não apenas ineficaz) e, portanto, acarretaria a absolvição dos Réus do pedido, o que se pede.
tt) Prosseguiu-se assim entendendo que as partes deveriam ser consideradas ilegítimas para contratar e em consequência acarretando a nulidade do contrato, o que configura uma excepção perentória, nos termos do artigo 576º do CPC, que acarreta a absolvição do pedido.
uu) No que se reporta a segunda questão sempre se dirá que em decorrência do que acima se expôs, resulta óbvio que quem contratou não foi CB, mas antes a sua filha HS. Tal resulta inclusivamente do auto de noticia que faz prova nos termos dos artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
vv) Resulta assim óbvio que a existir algum contrato foi encetado por HS, por si e para si, sem que desse qualquer conhecimento à progenitora desse facto ou dos factos subsequentes. Deste modo, conclui-se que CB é parte ilegítima nestes autos, configurando uma excepção dilatória, nos termos do artigo 577º do CPP. Sendo a parte A. ilegítima, como resulta da prova, o Tribunal a quo, mesmo que os requeridos não tivessem trazido tal questão à colação como fizeram, haveria de conhecer oficiosamente dessa ilegitimidade, nos termos do artigo 578º do CPC.
ww) Porém, o tribunal a quo não se pronunciou, nem de forma sumária. Estamos assim perante a violação do dever de fundamentação da sentença (artºs 154°, 195.° e 615º/ 1-b), do C.P.C. e 205º/1, da C.R.P.), pelo que se requer a nulidade da sentença proferida.
xx) Não tendo a A. provado os factos que consubstanciam a causa de pedir invocada, provando-se, todavia, uma relação jurídica diversa daquele que conformou a A. na PI, firmada entre a filha da A. e dois, apenas dois, dos réus o efeito teria necessariamente que se distinto do peticionado, pelo que ao Tribunal no exercício das suas plenas competências e não de outras não resta senão julgar a ação improcedente, o que se pede.
yy) Por outras palavras, a A. não é parte de nenhum contrato! Não pode ser parte na Acção! A filha da A. não intentou qualquer acção e ainda que o tivesse feito não tinha firmado um contrato legitimo. Deste modo, mais não restava do que absolver todos os Réus. Todavia caso assim não se entenda:
zz) O simples facto da A habitar aquela fracção não a torna sua possuidora, nem legitima um suposto contrato de arrendamento. Defendendo-se que a R. habitava à fracção apenas a título de comodato. Todavia, ainda que por mera hipótese académica se considere válida a existência de contrato de arrendamento, os efeitos nunca são os requeridos pela A. Defende a A. tratar-se de um contrato de arrendamento com plenitude de efeitos, pelo que deve ser restituída a posse, posição com a qual os réus não se conformam.
aaa) A este respeito deve aplicar-se o artigo 1069.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 13/2019, de 12/02:
“1- O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de titulo por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses,”
Por outro lado, enuncia o artigo 1094.º/3, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14/08, em vigor na data da celebração do contrato: “No silêncio das partes, o contrato considera- se é celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos.''
A sentença refere que ‘’ o contrato em causa trata-se de um contrato com termo, considerando-se celebrado pelo prazo de dois anos, a partir de 01.05.2015, pelo que foi este o contrato de arrendamento concretamente transmitido e oponível aos adquirentes.’’(página 33 linha21,22,23 e 24)
bbb) Facto que nos leva ao disposto no artigo 1096.º/1, de onde se retira que o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos. Assim, e conforme já tinha sido concluído em sede de providencia cautelar ‘’a fração foi objeto de contrato de arrendamento urbano para habitação, válido por força do artigo 1069.º/2, com prazo de dois anos, e início em maio de 2015, renovando-se, automaticamente, e por períodos sucessivos..''
ccc) . Assim, caso se entenda que o contrato é renovável por períodos de dois anos e presumindo que a data da celebração se fixa em Maio de 2015, a primeira renovação ocorria em Maio de 2017 e a segunda em Maio de 2019.
ddd) Conforme resulta dos autos, através das mensagens transcritas é possível verificar que houve oposição à renovação verbalmente, por quem o celebrou o contrato, em data que não é possível precisar, mas que se reporta a Outubro de 2018. Acresce que em 1 de Abril de 2019, houve uma insistência no sentido de o imóvel ser desocupado.cfr. doc. junto com a oposição a providencia cautelar. Em 1 de Abril de 2019 foi enviada mensagem escrita à filha da requerente justamente nesse sentido. Mensagem à qual a filha da A. respondeu. Note-se que em 01.04.2019 já os restantes RR referenciaram que há pelo menos 6 meses haviam solicitado que o imóvel fosse desocupado, facto que não é contrariado em nenhuma parte pela A. Estes factos devem ser analisados à luz do estabelecido no artigo 1097º do Código Civil.
eee) A lei fixa assim que quando o senhorio não quer renovar o contrato deve comunicar esta intenção ao inquilino com uma antecedência mínima 120dias, nos casos em que a duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos. A entender-se que o contrato é bianual, o prazo de 120dias foi respeitado. Pelo que, a entender-se válido o contrato de arrendamento, ter-se-á que entender que a oposição à renovação é igualmente válida, deixando a partir desse momento de existir contrato válido ou posse legitima.
fff) Não se compreende que o Tribunal ultrapasse a questão da exigência da forma escrita para a celebração do contrato de arrendamento, mas já não o faço quando à oposição à renovação do contrato diz respeito. Não pode haver uma dualidade de critérios, tendo que se validar a oposição à renovação.
ggg) Porém, houve comunicações escritas nesse sentido e anteriores à data da entrada em juízo da providencia cautelar. Foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta. Muito se estranha o facto de o Tribunal não referenciar a comunicação junta aos autos pela própria A. e a ela dirigida cujo teor é o seguinte: ‘’Nos termos do mandato que me foi conferido pela Senhora PC( legitima coproprietária do prédio melhor identificado em epigrafe, venho por este meio advertir V.exa da obrigação que sobre si impende de desocupar o supra referido edifício até ao dia 30.06.2019. ‘’ Aquela comunicação foi expedida para a morada do locado e embora a A. no seu isento e verdadeiro depoimento de parte diga que nunca recebeu nenhuma carta, a verdade é que na providencia cautelar junta essa comunicação! Se tal não é a tão exigida oposição à renovação, o que será?
hhh) Posto isto, jamais se pode concluir pela transmissão do contrato de arrendamento quer para MD, quer para os terceiros de boa fé MNA e JAA. Sendo que estes últimos, como resulta do facto 47, adquiriram a fracção em 20.02.2020. E mais, nem existia contrato de arrendamento registado, nem a acção estava registada. Assim, quer a R. MD, quer MNA e JAA, confrontados com uma certidão de registo predial sem ónus registados, poderiam adivinhar a existência do diferendo com a A. ou da acção.
iii) Deste modo, fica sempre inviabilizada a penalização de terceiros que agiram de boa fé, tendo tomado as providencias normais, no caso consulta da certidão permanente que reflete o estado do imóvel, para assegurar que adquiriam um imóvel livre de ónus e encargos como se refletiu na escritura.
jjj) Ficou ainda demonstrado e provado que a A. decidiu de forma livre e espontânea abandonar o imóvel, tendo-se mudado para casa de sua filha acompanhada dos seus pertences. Todas as declarações da A com relevância para a apreciação da presente acção e que foram prestadas antes de existir alguma contenda ou animosidade. Ou seja, a decisão de abandonar o imóvel e aceder à alteração da fechadura aconteceu em ambiente calmo, sem qualquer coação ou violência. Com tal decisão temos que concluir que se verificou a traditio. Por outras palavras, verificou-se a transferência voluntaria da posse entre vivos, havendo entrega efetiva do imóvel aos requeridos. Pelo que dai também se retira que qualquer que tenha sido a situação pré-existente o bem foi desocupado, pelo que qualquer contrato que existisse findou também por vontade da A. A este respeito leia-se o Ac. Do TRE de 31.02.2019.http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a01ac365ce6540b08025839e0036e690?OpenDocument
kkk) Deste modo, andou mal o Tribunal a quo quando, numa rebuscada interpretação dos acontecimentos, entendeu que tal declaração negocial prestada pela requerente não podia eficaz. Na verdade, a requerente prestou uma declaração negocial livre, esclarecida e plenamente eficaz, em respeito do previsto no artigo 236º do Código Civil, pelo que a entrega do imóvel ocorreu de forma válida e irreversível, como de resto resulta da própria prova gravada supra transcrita.
lll) Deste modo, é conclusão necessária a seguinte: O contrato (inexiste) não é oponível às aquisições subsequentes, e ainda que o fosse, a partir das oposições à renovação tinha a A. que abandonar o locado no prazo de 120 dias, sendo certo que tal prazo há muito correu, facto que invalidade qualquer restituição da posse à A. Desde já se esclarecer que a considerar-se, como defendem em primeira instância os RR, que a oposição à renovação ocorreu verbalmente em Outubro de 2018 (contando-se o dia 31.10.2018), o prazo para entrega terminaria 01.03.2018.
mmm) A contar-se da comunicação escrita datada 21.06.2019, o prazo de entrega terminaria em 21.10.2019. Mais se evidencia que à data da entrada da providencia cautelar em juízo já aquela comunicação tinha sido expedida e recebida. Em qualquer caso deveria aquela oposição a renovação ser considerada válida e capaz de produzir efeitos, o que no caso implica a absolvição de todos os réus dos pedidos.
nnn) Nesta parte o Tribunal condenou JC por os danos morais e danos patrimoniais. Salvo melhor e mais douto entendimento, conforme resulta da rubrica relativa à prova produzida, nenhum destes danos pode ser imputado ao R. JC, muito menos a este R. em concreto. Aliás, não existe um único argumento/fundamento por parte do Tribunal para fixar que quem deve efectuar o pagamento é apenas o R. JC. Assim devem também todos os Réus serem absolvido nesta parte
ooo) Acresce que quanto aos bens, o Tribunal entendeu que não resulta provado o valor dos mesmos pelo que remete o ressarcimento para liquidação de sentença. Também nesta parte andou mal o Tribunal!
ppp) Resulta evidente que no dia em que a A. saiu do imóvel pelo seu próprio pé, foi auxiliada pelos familiares a levar os seus pertences. Resulta ainda da prova testemunhal que foram colocados na escada do prédio os restantes bens. E mais não resulta da prova! O mesmo vale por dizer que não se pode sequer concluir que a A. ficou sem algum bem, sendo certo que a mesma admitiu que os moveis, eletrodomésticos e Roupa de cama que encontrou no imóvel, não eram seus! A este propósito deveria o Tribunal ter verificado os documentos juntos aos em 02.09.2020 e 03.09.2020 pela A. onde constam facturas em nome da testemunha HS e um lista de bens que ninguém viu no local e que poderia certamente ter sido junta aos autos com a petição inicial. Quanto à lista de bens junta nessa fase como doc. Nº 3, convenhamos que até por uma questão de cooperação e boa-fé processual a mesma poderia e deveria ter sido junta com a PI. A lista de bens poderia ser elaborada em qualquer momento, tanto mais que a A. tinha na sua posse fotografias do imóvel. É uma lista de bens, sem qualquer referência a marcas, estado, número ou qualquer elemento identificativo, pelo que que não faz prova nem da existência dos mesmos nem da sua localização e valor. Acresce que a A. não junta faturas dos bens que constam daquela lista. Deste modo, nenhum valor deveria ter relegado para liquidação da sentença.
qqq) Também nesta parte não podemos deixar de evidenciar o que vem escrito na sentença: ‘’ Assim sendo, entendemos que, quanto ao valor dos bens descritos no ponto 24 não será de fixar, desde já, o quantum indemnizatório, devendo o mesmo ser remetido para ulterior liquidação, sendo a obrigação de pagamento de tal indemnização de natureza solidária, porquanto foram os réus os responsáveis pelo desaparecimento desses bens, ao terem promovido as obras e a retirada dos bens do imóvel.’’ Sendo certo que tal não resulta de nenhuma prova produzida.
rrr) Por último, quanto ao dano pro privação do uso da fracção, também não se compreende como foram os réus condenados no pagamento de indemnizações. Aliás, não se compreende sequer a fundamentação do Tribunal completamente alheada dos factos que deu como provados e até da fundamentação que encetou noutras rubricas da sentença.Desde logo não pode ser condenado o R. JS por uma atuação que de todo não lhe é imputável. Tanto mais que a provar-se como está provada a oposição à renovação valida, inexiste privação do uso. Aliás, se alguém tinha direito a ver fixada uma quantia similar, são os atuais proprietários do imóvel a pagar naturalmente pela A. assim, defende-se que a este titulo nenhum indemnização deve ser fixada por ser indevida.
sss) Reitera-se tudo quanto foi dito a propósito da celebração do contrato e da oposição à renovação quantos aos actuais proprietários do imóvel. Sendo certo que nesta matéria são terceiros de boa-fé e nunca poderiam ver o seu direito à propriedade atacado. A dar cobertura a essa situação teríamos a legalização de um contrato de arrendamento feito por terceiro sobre um bem alheio e por outro lado o ataque ao direito constitucionalmente consagrado, o direito à propriedade, quer na vertente do seu primário proprietário, quer na vertente dos agora proprietários. Devem também ser absolvidos (…)”.
*
17. A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência da questão prévia de nulidade do julgamento, com base na deficiente gravação da prova, por intempestividade e pela improcedência do recurso, com confirmação da sentença recorrida.
*
18. Por despacho de 29-03-2022 foi admitido o requerimento recursório.
*
19. Foram colhidos os vistos legais.
*
2. Questões a decidir:
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
*
I) Questão prévia:
A) Se se verifica nulidade, por impercetibilidade da gravação do depoimento da testemunha FA?
*
II) Nulidades:
B) Se a sentença é nula por violação do dever de fundamentação?
C) Se a sentença é nula por omissão de pronúncia?
D) Se se verifica nulidade nos termos do artigo 198.º do CPC ou inconstitucionalidade por violação do artigo 47.º da CRP, relativamente ao depoimento de parte da autora, que cumpra declarar?
*
III) Impugnação da matéria de facto:
E) Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
F) Se deve ser alterada a matéria de facto nos seguintes termos:
a) A matéria constante dos factos provados n.ºs 1) e 2) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e se existe motivo para a anulação da decisão recorrida?
b) A matéria constante do facto provado n.º 4) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
c) A matéria constante do facto provado n.º 8) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
d) A matéria constante do facto provado n.º 9) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
e) A matéria constante do facto provado n.º 10) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
f) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 11), 12) e 13) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser alterada a redação dos factos n.ºs. 32) e 33)?
g) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 14) e 15) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol?
h) A matéria constante do facto provado n.º. 16) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol?
i) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 17), 18) e 19) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser considerada provada a matéria constante dos factos não provados n.ºs. 65), 66) e 67)?
j) A matéria constante do facto provado n.º 20) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser considerada provada a matéria constante do facto não provado n.º 67)?
k) Deve retirar-se do facto provado n.º 21) a expressão “por força do descrito nos pontos 17 e 18 supra”?
l) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 22), 23), 24), 25) e 26) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol?
m) Deve ser alterada a redação do facto provado n.º 30) para “a fechadura foi novamente mudada com consentimento expresso da A.”?
n) Deve ser alterada a redação dos factos provados n.ºs. 39) e 40)?
o) Deve ser alterada a redação do facto provado n.º 45)?
p) A matéria constante do facto provado n.º 49) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser considerada provada a matéria constante dos factos não provados n.ºs. 63) e 64)?
q) Se deve ser aditado aos factos provados que a filha da autora, por si e sem poderes, negociou exclusivamente com os réus AC e JC os termos do “contrato” e à revelia do réu JS?
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IV) Mérito do recurso:
G) Se foi celebrado um contrato de comodato?
H) Se o contrato celebrado é nulo por falta de legitimidade substantiva dos contraentes?
I) Se o contrato celebrado é ineficaz face aos réus?
J) Se ocorreu válida e eficaz oposição à renovação do contrato?
K) Se o contrato não é oponível às aquisições subsequentes do imóvel arrendado?
L) Se o contrato findou por entrega da fracção?
M) Se devem ser julgados improcedentes os pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais formulados?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Em 09.07.1991 JS adquiriu, no estado de casado com BC, a fracção F do prédio descrito na 2.ª conservatória do registo predial de Loures sob o n.º …/…;
2. Tal fracção autónoma corresponde ao 2.º andar direito do prédio com entrada pela Rua … n.º …, em Moscavide;
3. A autora passou a habitar na aludida fracção autónoma a partir de Maio de 2015;
4. Desde então, transferiu mensalmente para JS, como contrapartida do facto mencionado no ponto 3, a quantia monetária de 325,00€;
5. Tal sucedeu na sequência de negociações e contactos entre a filha da autora, HS, e os réus AC e JC, filha e genro de JS;
6. Foi ajustado verbalmente entre os intervenientes identificados no ponto 5 “supra” que a autora passaria a habitar na aludida fracção autónoma a partir de Maio de 2015, mediante o pagamento da supra aludida quantia pecuniária de 325,00€/ mês;
7. Foi ainda acordado que a autora pagaria os consumos de água, electricidade e telefone, cujos contratos de fornecimento permaneceriam na titularidade do 1.º réu;
8. No início de Julho de 2019, cessou o fornecimento desses serviços no imóvel;
9. Nessa sequência, a autora contratou novos serviços em seu nome;
10. Em 15.07.2019, ao final da tarde, os réus AC, JC e MC bateram à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra”;
11. Quando a autora abriu a porta, foi empurrada pelo réu JC e caiu, batendo com a cabeça;
12. Nessa ocasião, foi ainda pisada pelo réu JC;
13. Dessa forma, os réus entraram no imóvel e referiram que a casa era sua, que a autora não tinha nenhum contrato de arrendamento e que por isso tinha de sair;
14. Tendo tido conhecimento desse facto, os filhos da autora dirigiram-se ao imóvel;
15. A PSP, uma vez no local, não deixou os filhos da autora permanecerem junto desta, impedindo-os de permanecerem no interior da fracção;
16. Tendo ainda informado a autora de que a mesma, não tendo contrato de arrendamento, teria de sair do imóvel;
17. Nessa ocasião, a mando do réu JC, foi trocada a fechadura da porta do imóvel;
18. Nessa noite, a autora saiu da fracção e ficou sem acesso ao imóvel;
19. Sem que lhe tivesse sido dada a nova chave da fracção;
20. Permanecendo os bens da autora no seu interior;
21. Mais tarde, ainda nessa mesma noite, por força do descrito nos pontos 17 e 18 “supra”, a PSP foi chamada ao local e a fechadura do imóvel foi novamente trocada, desta vez a mando da autora;
22. Nos dias seguintes, a mando dos réus, deu-se início à realização de obras na fracção, tendo sido arrancada a porta exterior do imóvel;
23. E tendo sido retirado mobiliário para o exterior da fracção, bem como os bens que a autora tinha no seu interior;
24. A autora tinha no interior da fracção autónoma os seguintes bens: uma bimby, um liquidificar, um serviço de loiça, objectos decorativos, candeeiros de mesa, varinha mágica, molduras, tachos, edredon e roupas de cama, talhas, cortinados em linho e renda, decoração e árvore de natal, toalhas de mesa e guardanapos, termoventilador, sofás, estendal, aparelhagem, carpetes, tostadeira, cafeteira eléctrica, torradeira, carpete de cozinha, tapetes de casa de banho e móvel de casa de banho e diversos objectos pessoais;
25. Os quais, a mando dos réus, foram levados para parte incerta sem serem devolvidos;
26. Foi colocado na entrada do prédio um aviso da realização de obras, datado de 15.07.2019 e assinado pelo réu JC;
27. Em 29.07.2019, a autora instaurou procedimento cautelar de restituição provisória da posse, requerendo a restituição provisória da posse sobre a fracção autónoma em causa;
28. Em 31.08.2019, foram os requeridos JS, AC, JC e MC, condenados na restituição imediata da fracção autónoma;
29. Em 19.09.2019, foi lavrado auto de restituição pelo Tribunal, tendo sido concretizada a decisão judicial e mudada a fechadura da porta do imóvel e entregue a chave da mesma à Il. Mandatária da autora;
30. Após essa entrega feita pelo Tribunal, a fechadura foi novamente mudada de forma a impedir que a autora pudesse voltar ao imóvel;
31. E as obras foram retomadas.
32. Em consequência do descrito nos pontos 11 e 12 “supra”, a autora ficou com um traumatismo na cabeça e na região lombar, bem como com um hematoma na face posterior da perna direita;
33. Na madrugada de 16.07.2019, foi assistida no Hospital Beatriz Ângelo;
34. Apresentando dores à palpação da região occipital associada a um pequeno hematoma subgaleal e dor à palpação paravertebral lombar;
35. A autora despendeu para pagamento das mudanças de fechadura (cfr. factos 21 e 29) e pela deslocação da PSP ao local no dia 15.07.2019, o montante de 345,66€;
36. O valor cobrado à autora pelo fornecimento de energia eléctrica e telecomunicações no imóvel durante o mês de Julho foi de 35,67€;
37. Por força dos factos descritos, autora sentiu-se triste, angustiada e receosa;
38. A autora nasceu em 25.12.1935;
39. Em Outubro de 2018, os réus já haviam comunicado verbalmente à filha da autora que pretendiam que a ré desocupasse o imóvel;
40. E voltaram a insistir através de mensagem escrita em Abril de 2019;
41. BC faleceu em 08.05.2018;
42. Sucederam-lhe o marido, JS, e as filhas AS e MD;
43. JS faleceu em 04.12.2019;
44. Sucederam-lhe as filhas AS e MD;
45. Os requeridos foram citados no âmbito do procedimento cautelar em Outubro de 2019;
46. Em 30.12.2019, foi celebrada escritura de Partilha na qual intervieram como outorgantes AC, MD e JC, através da qual foi adjudicada a MD a fracção autónoma identificada;
47. Em 20.02.2020, MD vendeu a aludida fracção autónoma a MNA e marido JAAndes Andrade;
48. MD declarou nessa escritura que vendia o imóvel em causa “livre de quaisquer ónus ou encargos”;
49. AC e JC não quiserem reduzir a escrito o acordo identificado no ponto 6 “supra” invocando questões de natureza fiscal.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
50. Após entrarem no imóvel, os réus ameaçaram a autora de morte e deram-lhe murros e pontapés e morderam-na para a obrigarem a sair do imóvel;
51. As rés AC e MC empurraram a autora e pisaram-na;
52. A autora tinha na fracção autónoma salvas e molduras de prata;
53. O valor dos bens descritos no ponto 24 “supra” ascende à quantia de 11.843,28€;
54. Os problemas de saúde da autora agravaram-se como consequência dos factos perpetrados pelos réus;
55. A sua pressão arterial aumentou e, em consequência, a mesma teve uma perda significativa de audição e os seus membros incharam, dificultando a locomoção;
56. Em 29.07.2019, a autora foi internada no Hospital de Viseu em virtude de transtornos traumáticos ocorridos como consequência dos factos praticados pelos réus;
57. Por força desse agravamento teve de fazer radiografias e fazer pensos na perna;
58. E ainda de ser submetida a consultas, análises, ecografias e outros exames;
59. Bem como de tomar medicamentos e adquirir um aparelho de audição;
60. A autora ficou impedida de concluir um tratamento dentário em Lisboa;
61. E teve de gastar a quantia de 127,50€ na realização de tratamentos numa clínica em Viseu;
62. A autora transferiu o serviço de telecomunicações para a sua casa de Viseu, suportando um custo de 124,32€;
63. O réu JS e sua mulher BC desconheciam o acordo referido no ponto 7 “supra” e nunca autorizaram a ocupação do imóvel;
64. O réu JS apenas teve conhecimento da ocupação do imóvel pela autora aquando da citação para a providência cautelar;
65. Na ocasião descrita no ponto 15 “supra”, a autora declarou que pretendia entregar o imóvel aos réus e “cessar o contrato de arrendamento”;
66. Tendo abandonado de livre vontade o imóvel e entregando as chaves do mesmo aos réus;
67. Tendo ficado acordado entre autora e os réus que a mesma retiraria de lá os seus pertences, posteriormente, quando solicitasse;
68. A autora acordou com JS e BC a ocupação do imóvel e os termos descritos no ponto 6 “supra”;
69. AC e JS apenas ajudaram a agilizar esse acordo.
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4. Fundamentação de Direito:
Vejamos o recurso apresentado, apreciando as questões supra enunciadas.
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I) Questão prévia:
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A) Se se verifica nulidade, por impercetibilidade da gravação do depoimento da testemunha FA?
Preliminarmente, os recorrentes suscitam uma questão atinente à regularidade da gravação efetuada na audiência de discussão e julgamento relativamente a uma das testemunhas inquiridas.
A questão vem colocada nos seguintes termos:
“A)QUESTÃO PRÉVIA
Relativamente ao depoimento da testemunha FA, agente da PSP em Sacavém que prestou depoimento no dia 27.09.2021, entre as 14:43:19 e as 15:01:45, na análise para transcrição daquela prova, constatou-se que a meio da gravação é impossível entender o que a testemunha diz, estando incompreensível por deficiente gravação da prova.
Perante a invocada nulidade do julgamento com base na deficiente gravação da prova, outra solução não resta que não seja a de declarar inválida a audiência de julgamento, em virtude de a gravação áudio da sessão de julgamento ocorrida no dia 27.09.2021(apenas relativamente a esta testemunha), se mostrar inaudível e imperceptível, relativamente ao depoimento prestados.
Assim, deve ser ordenada a sua repetição com a necessária documentação das declarações ali prestadas, lacuna insuperável que obviamente inviabiliza uma apreciação global da prova”.
E na conclusão f) do presente recurso, terminam os recorrentes dizendo que: “Relativamente ao depoimento da testemunha FA, agente da PSP em Sacavém que prestou depoimento no dia 27.09.2021, entre as 14:43:19 e as 15:01:45, na análise para transcrição daquela prova, constatou-se que a meio da gravação é impossível entender o que a testemunha diz, estando incompreensível por deficiente gravação da prova.Tal consubstancia uma nulidade do julgamento, pelo que deve ser ordenada a sua repetição, por inviabilizar uma apreciação global da prova.facto de ser, parcial mas completamente, imperceptível o depoimento, gravado, de uma das testemunhas arroladas pelo réu, configura uma irregularidade, geradora de nulidade, por influir na decisão da causa;”.
A autora contra-alegou sobre este ponto dizendo que “[o] depoimento da referida testemunha é audível e compreensível na passagem indicada pelos Recorrentes, pelo que o pedido de nulidade do julgamento deve ser totalmente improcedente. Ainda que o depoimento não fosse – ou não seja – percetível, sempre se dirá que, nos termos do artigo 155º n.º 4 do CPC, a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, pelo que o prazo para arguir deficiência ou ausências de gravação há muito que já decorreu (…)”.
Apreciemos:
“O CPC de 1961, na sua última versão, previa a hipótese de ser requerida a gravação da prova nas ações cuja decisão fosse suscetível de recurso ordinário, havendo conexão entre a gravação da prova e a possibilidade de impugnação da decisão proferida em 1.ª instância sobre a matéria de facto (era o que decorria, genericamente, do disposto nos arts. 522.º-B, 522.º-C, 685.º-B e 712.º do CPC de 1961).
(…) Com o atual regime, em resultado de uma opção do legislador, a gravação tem um outro significado e uma maior amplitude: abarca a gravação da audiência final e não apenas da prova oralmente produzida; e reporta-se a todas as audiências finais, ou seja, audiências de acções, de incidentes e de procedimentos cautelares. Ademais, ocorre por imposição legal, sem necessidade de requerimento e independentemente da questão do recurso” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 189).
Com efeito, o vigente artigo 155.º do CPC dispõe que a audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada (n.º 1), sendo efetuada em sistema sonoro - “sem prejuízo de outros meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor” (n.º 2) – devendo ser “disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato” (n.º 3).
Nos termos do artigo 155.º, n.º 4, do CPC, “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”.
Conforme se concretizou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2016 (Pº 104/09.4-B.E1, rel. CANELAS BRÁS): “A nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento poderá ser arguida no prazo de dez dias a contar da sua efectiva disponibilização pela Secretaria do Tribunal”.
O mencionado artigo 155.º, n.º 4, do CPC veio “clarificar um aspeto que vinha sendo controverso na prática forense, estabelece o prazo de 10 dias para a arguição de qualquer falta ou deficiência da gravação, contado a partir do momento em que a gravação é disponibilizada. Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 190).
Mas, arguido que seja, tempestivamente (cfr. artigo 155.º, n.º 4, do CPC), o mencionado vício atinente à irregularidade da gravação de um depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento e verificada alguma deficiência no registo de gravação, isso não significa que a nulidade opere em todas as situações, o que só sucederá, de harmonia com o previsto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, se a irregularidade cometida puder influir no exame ou na decisão da causa.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 190) cabe ao juiz, confrontado que seja com a falta ou deficiência da gravação, “fixar a respetiva consequência, o que tanto pode implicar a repetição integral da audiência (se nada foi gravado ou se toda a gravação apresenta deficiências), como uma repetição parcial (limitada aos atos não gravados ou cuja gravação é deficiente). No limite, se puder entender-se que o ato não gravado ou deficientemente gravado não influi no exame e decisão da causa (art. 195.º, n.º 1, in fine), nada se repetirá (concede-se que assim possa ser se a falha da gravação for limitada às alegações orais dos mandatários – art. 640.º, n.º 3, al. e) ). A impugnação do despacho proferido neste contexto, que não é de mero expediente nem proferido no uso legal de um poder discricionário, submete-se ao disposto no n.º 2 do art. 630.º”.
Vejamos algumas concretizações, a nível jurisprudencial, em torno da aplicação do regime jurídico em questão (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2021 (Pº 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1, rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO): “A previsão do n.º 3 do art. 155.º do CPC segundo a qual a gravação da audiência final deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram. O prazo de dez dias, a contar da referida disponibilização, previsto no n.º 4 do artigo 155.º do CPC, faz recair sobre as partes um dever de diligência em averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância. Na hipótese de a secretaria não disponibilizar a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, a parte tem o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão; caso se confirme o incumprimento do prazo do art. 155.º, n.º 3 do CPC, o prazo do n.º 4 do mesmo artigo só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-05-2021 (Pº 15321/19.0T8SNT.L1-7, rel. CARLOS OLIVEIRA): “A deficiência da gravação, que acarrete, no todo ou em parte, a impercetibilidade ou inaudibilidade dos depoimentos objeto de registo, constitui irregularidade que se traduz em nulidade secundária, a arguir mediante reclamação da parte interessada no seu reconhecimento, no prazo de 10 dias a contar do fim do prazo de 2 dias contados do termo da realização do ato judicial objeto da gravação (Art. 155.º n.º 3 e n.º 4 do C.P.C.), sanando-se o vício se não for respeitado esse prazo perentório. Não se encontrando a gravação em condições de permitir a devida apreciação dos depoimentos relevantes para a apreciação da impugnação da matéria de facto, não poderá o Tribunal da Relação apreciar fundadamente esse fundamento do recurso”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-04-2021 (Pº 35548/15.3T8LSB-A.L1-6, rel. MANUEL AGUIAR PEREIRA): “A deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final só provoca a nulidade do acto se dela resultar a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento e se essa impossibilidade for susceptível de influir no exame e decisão da causa, nos termos do artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil; A deficiente gravação sonora de cerca de dois minutos do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final durante cerca de quarenta e nove minutos não é susceptível de influir no exame e decisão da causa em primeira instância por parte do Juiz de Direito que presidiu à audiência, quando através da expressão da fundamentação da convicção sobre a matéria de facto se indicia que foi tomada em consideração na decisão a totalidade do depoimento prestado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17-12-2020 (Pº 122900/17.2YIPRT-C.E1, rel. FRANCISCO XAVIER): “I. A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma, a qual deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respectivo acto. II. Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes. III. A lei impõe à parte um especial dever de diligência na verificação do conteúdo da cópia da gravação que foi disponibilizada, por forma a poder arguir em tempo eventuais irregularidades e permitir a sua correcção antes de eventual recurso da sentença, obviando-se também os inconvenientes de posterior anulação de decisões”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-10-2019 (Pº 2243/18.1T8STR.E1, rel. ANA MARGARIDA LEITE): “I - Decorrido o prazo fixado no artigo 155.º, n.º 4, do CPC, para a arguição da falta ou deficiência da gravação da audiência final sem que o vício tenha sido arguido, fica precludida a possibilidade de arguição posterior; II - Impondo a lei às partes o ónus de verificar a qualidade da gravação das provas, fixando o prazo para a arguição das deficiências detetadas, de forma a poderem ser supridas em momento prévio à interposição de recurso, não pode o vício da deficiência da gravação ser oficiosamente conhecido pela Relação; III - Tendo a Relação constatado que a gravação do depoimento prestado por determinada testemunha enferma de deficiências que o tornam impercetível e tratando-se de elemento probatório essencial para a apreciação da impugnação da decisão de facto, não dispõe a Relação de todos os elementos probatórios de que dispôs a 1.ª instância, pelo que se encontra impossibilitada de proceder à reapreciação da prova produzida, o que impede o conhecimento da impugnação da decisão de facto;”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-05-2019 (Pº 57308/18.0YIPRT.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES): “I – A omissão ou deficiência da gravação configura uma nulidade processual, porquanto está em causa a omissão duma formalidade prescrita por lei (art. 195º do CPC), que a parte interessada terá de arguir autonomamente, sem prejuízo da iniciativa oficiosa do juiz durante a audiência, ao qual compete tomar as providências para que a lei se cumpra (art. 199º, n.º 2 do CPC). II – A gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias após a realização do ato alvo de gravação e as partes estão sujeitas ao prazo de 10 dias para invocarem a falta ou deficiência da gravação, contado da disponibilização desta. III – Decorrido o prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, sem que seja arguido o vício da sua falta ou deficiência, o mesmo fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida no prazo de interposição de recurso (30 ou 40 dias) e apenas nas próprias alegações de recurso. IV - Nessas situações, a deficiência da gravação da prova, traduzida na impercetibilidade de múltiplos excertos da inquirição da testemunha cujo depoimento é considerado decisivo para alterar a decisão proferida (pelo tribunal a quo) sobre a matéria de facto, compromete a possibilidade da Relação proceder à reapreciação dessa decisão”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-02-2019 (Pº 17579/15.5T8PRT.G1, rel. PAULO REIS): “I - Sendo a lei expressa ao estabelecer o início da contagem do prazo para a arguição da deficiência da gravação dos meios de prova no momento em que é disponibilizada, deve entender-se que tal não envolve a entrega do suporte digital contendo cópia dessa gravação mas a mera colocação do referido registo, pela secretaria judicial, à disposição das partes, a qual deve ocorrer no prazo de 2 dias contados de cada um dos atos sujeitos à gravação;II - O artigo 155.º, n.º 4, do CPC impõe às partes o ónus de invocar o vício da falta ou deficiência da gravação no prazo perentório nele previsto;III - Não o fazendo, o vício fica sanado pelo decurso do prazo, não podendo ser conhecido oficiosamente pela Relação;IV - A deficiência da gravação dos depoimentos produzidos em sede de audiência final é impeditiva da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto sempre que torne inviável a ponderação de tais meios de prova e estes se revelem essenciais para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da matéria de facto, devendo a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou o Tribunal de primeira instância;”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02-10-2018 (Pº 159/16.5T8BJA-A.E1, rel. JOÃO NUNES): “A deficiência/ininteligibilidade da gravação da prova constitui nulidade processual, que tem de ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada (n.º 4 do artigo 155.º do Código de Processo Civil); Essa disponibilização às partes deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do acto/gravação; Contudo, a disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, consistindo na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-09-2018 (Pº 7839/15.0TBLSB-A.C1, rel. FALCÃO DE MAGALHÃES): “Dispõe o 155º, nº 3 do NCPC: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo ato.” E o nº 4 do mesmo artigo estabelece: “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.”. A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma. Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efetiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes. Foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido, com rapidez, no tribunal de primeira instância. Afronta a razão de ser da lei o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final)”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-04-2018 (Pº 1004/16.7T8STR.E1, rel. ALBERTINA PEDROSO): “É entendimento que cremos pacífico após a entrada em vigor do actual artigo 155.º, n.º 4, do CPC, que decorrido o prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, sem que seja arguido o vício da sua falta ou deficiência, o mesmo fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017 (Pº 229/17.2T8VVD.G1, rel. JOSÉ AMARAL): “1) A disponibilização pela Secretaria Judicial, nos termos do artº 155º, nº 3, do CPC, da gravação da audiência final, não precisa de ser requerida. É oficiosa. Consiste, não na entrega, remessa, sequer notificação ou qualquer outra acção equiparada, mas tão só na colocação ao alcance das partes e para uso destas do suporte destinado às mesmas a fim de o procurarem, examinarem e utilizarem. 2) Caso a Secretaria não cumpra pontualmente tal obrigação, a parte que lhe solicite a gravação e, ao pedi-la, seja confrontada com a sua indisponibilidade, pode reclamar para o respectivo juiz com fundamento na omissão, nos termos dos nºs 5 e 6, do artº 157º. 3) Se, porém, aquela se dever à por si constatada falta ou deficiência do registo até aí não notados nem supridos pelo tribunal, tal vício deve ser invocado, no prazo de 10 dias, a contar do momento em que a gravação é (ou devia ser) disponibilizada – nº 4, do artº 155º. 4) Não sendo ele arguido, fica, nos termos gerais do artº 139º, nº 3, precludido o direito de, depois, invocar a correspondente irregularidade. 5) O acto relevante para início da contagem do prazo da Secretaria não é a audiência considerada na sua totalidade. Não é o termo desta que marca o seu início. Tal acto, quando aquela se desdobre e prolongue por múltiplas sessões em outras tantas datas, é o da realização de cada uma delas. É, pois, em relação a cada sessão diária, que a parte deve contabilizar o seu prazo para recolher e verificar a gravação e reclamar pela sua deficiência ou falta”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-10-2017 (Pº 1382/14.2TBLLE-A.E1, rel. SEQUINHO DOS SANTOS):
“A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma. Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes”; e
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-10-2014 (Pº 1926/10.9TASTB.E1, rel. JOÃO GOMES DE SOUSA, ainda que respeitante a recurso penal): “Se mais do que deficiente gravação, o depoimento transcrito revela deficiência de comunicação do arguido, que deixa de se fazer entender, por ter passado a falar mais baixo ou ter dirigido a voz para longe da fonte de captação de som, não existe qualquer nulidade ou irregularidade”.
Ora, cumpre evidenciar que, muito embora a cota elaborada em 20-01-2022, não se mostra documentado nos autos em que data se procedeu ao envio aos recorrentes do CD contendo a gravação dos depoimentos.
Independentemente disso, certo é que, ouvido por este Tribunal da Relação, na sua integralidade o aludido depoimento da testemunha FA (assim como, aliás, os demais depoimentos prestados em audiência de julgamento), se constatou que o mesmo é perfeitamente audível e percetível, muito embora a gravação apresente, pontualmente, algumas sobreposições de vozes e algum ruído “de fundo” ou “eco”, que torna, nalguns pontos, mais difícil a perceção do respetivo depoimento, dificuldade que, contudo, é suprida pela subsequente intervenção dos demais intervenientes processuais, que permitem descortinar os pontos em que a audição de tal depoimento se torna menos audível (desde logo, pela intervenção por parte do Mandatário dos recorrentes) e, bem assim, pela audição repetida (que se efetuou) em torno dos pontos menos claros.
Dessa audição foi possível extrair, com referência ao segmento mencionado pelos recorrentes – reportado aos minutos 14:43 a 15:01 do aludido depoimento – o seguinte segmento:
- Mandatário dos recorrentes: “E havia desentendimentos?”
- Testemunha FA: “Sim. Eu não...nunca fui chamado ao local…nem nunca referenciaram que não havia porta”.
- Mandatário dos recorrentes: “Ninguém [impercetível] que faltava a porta?”
- Testemunha FA: “Não, não, não”.
- Mandatário dos recorrentes: “Ok. O senhor é que por sua iniciativa [impercetível] isso em auto porque viu que a porta não estava lá, não é?”
- Testemunha FA: “Sim. Achei estranho”.
- Mandatário dos recorrentes: “Pronto. Havia obras no local ou sabe se…”
- Testemunha FA: “Não me recordo, não me recordo...Mas possivelmente sim…havia várias coisas no corredor. Eles estavam em processo de mudanças, ou iam fazer obras… assim qualquer coisa assim…”.
- Mandatário dos recorrentes: “Ok. Então e diga-me uma coisa. Disse há pouco que viu que havia bens dentro de casa…”
- Testemunha FA: “Sim…”
- Mandatário dos recorrentes: “E agora acabou de dizer que viu também bens no corredor…”
- Testemunha FA: “Bens não. Havia material de obras no corredor e no hall de entrada do prédio…”
- Mandatário dos recorrentes: “Material de obras?”
- Testemunha FA: “Sim, havia algumas coisas…”.
Mas, mesmo que os recorrentes se pretendam reportar aos restantes segmentos do depoimento da mencionada testemunha, certo é que os mesmos são, igualmente, audíveis e perfeitamente percetíveis, não tendo ocorrido alguma irregularidade da gravação efetuada sobre os mesmos.
Inexiste, na realidade, alguma afirmação da mencionada testemunha que se mostre, de todo, inviabilizada no seu significado, sendo compreensível todo o aludido depoimento.
O acabado de referir permite concluir e evidenciar que a deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento da testemunha FA, em alguns dos momentos do mencionado depoimento (em razão da mencionada sobreposição de vozes ou de algum ruído “de fundo”) não é suscetível de influir no exame e na decisão da causa por parte da Juíza de Direito que, em 1.ª instância, presidiu à audiência de discussão e julgamento, tendo na fundamentação da convicção, expressa na decisão recorrida sido, aliás, tomada especifica posição sobre o depoimento prestado (cfr. página 15 da mesma decisão).
Mas, por outro lado, cumpre evidenciar que os recorrentes, que impugnam em diversos momentos a matéria de facto produzida, em ponto algum da respetiva alegação fazem alusão ao teor do aludido depoimento ou a algum segmento do mesmo, designadamente a algum ponto relevante que tenha sido omitido da sua perceção, que pudesse inculcar pela sua relevância e pertinência, para a procedência da mencionada impugnação, ou para a verificação de alguma irregularidade relevante.
Ao recorrente que impugne matéria de facto “cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 770, nota 4).
Tal não sucede, no que concerne ao depoimento de FA, que, não é, por qualquer modo, colocado em crise em sede de impugnação de facto.
Mostra-se, pois, inconsequente e irrelevante a arguida irregularidade, atinente à gravação do depoimento em questão, que não produz o almejado efeito invalidatório, nem determina alguma nulidade.
Assim, de acordo com o exposto, conclui-se pela improcedência da aludida questão prévia, no sentido de que não ocorre a nulidade arguida.
*
II) Nulidades:
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B) Se a sentença é nula por violação do dever de fundamentação?
Nas conclusões das alegações da apelação apresentada, os recorrentes concluíram, nomeadamente, o seguinte:
“(…)
rr) Tanto mais que não podemos usar do já referido formalismo cego para tapar os olhos à ilegitimidade que provem da Filha da A. que negociou, conhecia a situação e, portanto, a falta de legitimidade, tendo esta beneficiado dessa ilegitimidade. Aliás, nesta parte o Tribunal limita-se a dizer, por outras palavras é certo, que o mesmo vale quanto à relação com a A. Salvo melhor e mais douto entendimento, tal, além de consubstanciar uma falta de fundamentação, deveria ser tratado com mais rigor.
(…)
uu) (…) sempre se dirá que em decorrência do que acima se expôs, resulta óbvio que quem contratou não foi CB, mas antes a sua filha HS. Tal resulta inclusivamente do auto de noticia que faz prova nos termos dos artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
vv) Resulta assim óbvio que a existir algum contrato foi encetado por HS, por si e para si, sem que desse qualquer conhecimento à progenitora desse facto ou dos factos subsequentes. Deste modo, conclui-se que CB é parte ilegítima nestes autos, configurando uma excepção dilatória, nos termos do artigo 577º do CPP. Sendo a parte A. ilegítima, como resulta da prova, o Tribunal a quo, mesmo que os requeridos não tivessem trazido tal questão à colação como fizeram, haveria de conhecer oficiosamente dessa ilegitimidade, nos termos do artigo 578º do CPC.
ww) Porém, o tribunal a quo não se pronunciou, nem de forma sumária. Estamos assim perante a violação do dever de fundamentação da sentença (artºs 154°, 195.° e 615º/ 1-b), do C.P.C. e 205º/1, da C.R.P.), pelo que se requer a nulidade da sentença proferida (…)”.
As referidas conclusões derivam do alegado pelos recorrentes no Capítulo V da sua alegação.
Vem arguido que a sentença recorrida padece da nulidade ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, conforme resulta da expressa referência a essa alínea.
Contudo, no mesmo segmento, os recorrentes consideram que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre a questão da ilegitimidade que mencionam, o que, por seu turno, configuraria a ocorrência da nulidade a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Vejamos cada um destes pontos, começando pela questão da falta de fundamentação.
Estabelece o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Conforme referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, 2020, pp. 61-62) “a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara e coerente e suficiente.
a) Antes de mais, a fundamentação há de ser expressa. Apesar de, em confronto com o artigo 268.º, n.º 3, que trata da fundamentação dos atos administrativos, nada se dizer no artigo 205.º quanto ao carácter expresso da fundamentação, uma opção que deixe ao destinatário a descoberta das razões da decisão não cumpre a exigência constitucional de fundamentação, justamente porque “fundamentar é pôr em comunicação” e “O próprio ato de pôr em comunicação não pode deixar de ser comunicado” (ANTÓNIO CORTÊS, A fundamentação, pág. 301).
b) A fundamentação deve, além disso, ser clara e coerente. Os motivos apresentados pelo órgão decisor não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos, que tornam o raciocínio que lhe está subjacente em algo imprestável para a inteligibilidade da decisão. Como refere VIEIRA DE ANDRADE [O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 2003 (reimp.), pág. 234], uma declaração incongruente “não é uma fundamentação, porque não pode ser um discurso justificativo, faltando-lhe a racionalidade que é uma condição necessária de toda a decisão pública de autoridade num Estado de Direito”.
c) Por fim, a fundamentação há de ser suficiente. Naturalmente, como foi sublinhado nos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 pelo deputado Miguel Macedo, a Constituição não pretende impor “fundamentações densas, particularmente de origem doutrinária”, mas antes uma “fundamentação adequada, obviamente, à importância e circunstância da decisão judicial em causa” (Diário da Assembleia da República, de 26.7.1997, pág. 17 (…)). Mas, para que a fundamentação seja suficiente, dela devem constar os motivos, de facto e de direito, que justificam o sentido da decisão, de modo a que o destinatário a possa compreender e, sobretudo, apreciá-la criticamente. Na medida em que toda a questão jurídica é simultaneamente uma questão de facto e uma questão de direito, a fundamentação da decisão há de refletir essa bidimensionalidade (…)”.
Mas, a fundamentação deverá também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.
A lei processual concretiza no artigo 154.º do CPC o comando constitucional.
Prescreve o n.º 1 do artigo 154.º do CPC que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
O dever de fundamentação apenas é dispensado no caso das decisões de mero expediente.
“Deste modo, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respetiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso. Naturalmente que tal dependerá da complexidade das questões ou da maior ou menor discussão que exista na jurisprudência ou na doutrina acerca das mesmas. Noutros casos a simplicidade da fundamentação é expressamente anunciada por preceitos legais (art. 385.º, n.º 3, a respeito dos alimentos provisórios, ou o art. 664.º, n.º 5, a respeito de certos recursos de apelação). (…).
Não pode medir-se a fundamentação pelo seu “volume” ou “extensão”, antes pelo seu conteúdo substancial.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 188).
Por sua vez e na linha da previsão constitucional, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, será nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Sobre a nulidade por falta de fundamentação, “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).
Na verdade, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artº 615º do CPC. A fundamentação deficiente, medíocre, incompleta ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-04-1975, in BMJ 246.º, p. 131; de 08-10-2020, Pº 5243/18.8T8LSB.L1.S1, rel. NUNO PINTO OLIVEIRA; e de 21-09-2021, Pº 1480/18.3T8LSB-A.L1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-03-1980, in BMJ 300.º, p. 438 e de 08-03-2018, Pº 908/17.4T8FNC-B.L1-8, relatora TERESA PRAZERES PAIS; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08-07-1982, in BMJ 319.º, p. 343 e de 14-03-2016, Processo 171/15.1T8AVR.P1, relatora PAULA MARIA ROBERTO; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2012, P.º 983/11.5TBPBL.C1, rel. JOSÉ AVELINO GONÇALVES e de 26-10-2018, Pº 121/07.0T8FIG.C1, rel. FELIZARDO PAIVA; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2012, P.º 5313/11.3YYLSB-A.E1, rel. PAULO AMARAL; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020, Pº 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA).
Dispõe o n.º 2 do artigo 154.º do CPC que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não se tenha oposto ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se referiu, a propósito desta norma, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020 (Pº 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA): “No artigo 154, nº 2, do C.P.C., o legislador afastou a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência a razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pelas partes, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma. Assim, para que a decisão careça de fundamentação “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente”, sendo também “preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Para além desta previsão normativa, tem-se entendido que a forma de fundamentação – por remissão – é admissível (neste sentido, o Ac. Tribunal Constitucional n.º 147/2000, Proc. nº 56/00, rel. ARTUR MAURÍCIO; o Ac. Tribunal Constitucional n.º 396/2003, de 30-07-2003, proferido no Processo n.º 485/03, rel. PAULO MOTA PINTO, publicado no D.R., II Série, de 04-02-2004; o Ac. Relação de Lisboa 13-10-2004, proferido no Proc. 5558/04-3; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-09-2017, Processo 18/16.1T9MAC-B.G1, rel. ALDA CASIMIRO), não determinando, por si, nulidade por falta de fundamentação, “desde que cumpra com a razão de ser da imposição constitucional e legal da fundamentação: dar a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permita dissentir” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-12-2019, Processo 3689/19.3 T8LRS-F.L1-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO).
De facto, conforme evidencia Rui Pinto (“Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC”, in Julgar Online, maio de 2020, p. 11, disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200525-JULGAR-Os-meios-reclamat%C3%B3rios-comuns-da-decis%C3%A3o-civil-Rui-Pinto-v2.pdf): “(…) o artigo 154.º impõe ao tribunal o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, a qual fundamentação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição da parte. Poderá, porém, consistir numa adesão a outra decisão, em clara economia processual.
Exemplos: é “nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido” (RG 21-5-2015/Proc. 1/08.0TJVNF-EK.G1 (ANA CRISTINA DUARTE)); porém, nada “obsta a que a fundamentação se faça por adesão à fundamentação jurídica de anterior acórdão de tribunal superior” (STA 20-5-2015/Proc. 050/15 (PEDRO DELGADO)) (…)”.
Concretizando a diferença entre falta de fundamentação – geradora da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC – e insuficiente fundamentação, referiu-se – considerações que se subscrevem – no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-09-2020 (Pº 35708/19.8YIPRT.L1-2, rel. INÊS MOURA) que: “A falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e que devem constar da sentença, como expressamente previsto no art.º 607.º n.º 3 do CPC é cominada com a nulidade da sentença no art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC.
Questão diferente da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito na sentença, prevista no n.º 3 do art.º 607.º do CPC, é a falta de fundamentação ou de motivação da decisão de facto, prevista no n.º 4 do mesmo artigo.
Quando está em causa uma deficiente ou insuficiente fundamentação da decisão de facto, na explicação dada pelo tribunal para a formação da sua convicção na decisão que proferiu ao considerar provados e não provados os factos controvertidos em razão dos meios de prova produzidos, tal não determina a nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. b), apenas podendo haver lugar à remessa do processo ao tribunal de 1ª instância, para que fundamente algum facto essencial para o julgamento que não esteja devidamente fundamentado, conforme prevê expressamente o art.º 662.º n.º 2 al. d) do CPC ao dar a possibilidade à Relação de, mesmo oficiosamente, “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.””.
De todo o modo, conforme sublinham Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova”.
No caso, conforme deriva das contestações apresentadas, quer os réus AC, JC e MC, por um lado (cfr. artigos 10.º a 51.º do respetivo articulado), quer a interveniente MD, por outro lado (artigos 40.º a 75.º da contestação que apresentou), quer ainda os intervenientes MNA e JAA (cfr. artigo 20.º e ss. da respetiva contestação) vieram aos autos invocar a exceção de ilegitimidade.
A legitimidade processual constitui um pressuposto processual ou adjectivo através do qual a lei seleciona quais os sujeitos de direito que são admitidos a participar em cada processo que corra perante um Tribunal, sendo “aferida em vista de um critério substantivo – o interesse em demandar e em contradizer” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2021, Pº 22208/18.2T8PRT.S1, rel. OLIVEIRA ABREU).
Em termos gerais, a legitimidade não constitui uma qualidade pessoal das partes, referente aos processos, mas uma posição delas em face do processo concreto - o interesse de cada uma delas em determinado processo (cfr. Antunes Varela, R.L.J., ano 114º, p. 139).
Isto significa que: “É uma posição do autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo” (assim, Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, 2º, p. 153).
E, precisamente no tocante ao conteúdo dessa qualidade ou posição da parte em relação ao objecto do processo, há quem considere que tal objecto é sempre um litígio ou conflito de interesses e, quem o considere como uma relação jurídica, a relação jurídica subjacente, material ou controvertida. Para os primeiros, a legitimidade aferir-se-á da posição das partes perante esse litígio que configuram como objecto do processo; para os segundos, a legitimidade é a posição da parte em face da tal relação jurídica, posição essa que justifica que seja parte dessa mesma relação jurídica/objecto do processo.
A lei processual atual aderiu, precisamente, a esta última corrente, pondo termo a uma querela que durou décadas, enunciando-se o pressuposto processual da legitimidade, no artigo 30.º do CPC, nos termos seguintes:
“1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
A legitimidade processual (pressuposto processual da causa) e a legitimidade substancial (pressuposto da procedência material da causa) não se confundem.
Conforme se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 (Processo 5297/12.0TBMTS.P1.S2, rel. BERNARDO DOMINGOS): “A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa”.
Ou seja: “O critério comum de determinação da legitimidade das partes radica na titularidade da relação material controvertida, designadamente nos termos como é desenhada pelo autor da ação. Não é exigível a efetiva titularidade da relação material controvertida” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-06-2013 (Pº 2145/10.0YXLSB.L2-6, rel. OLINDO GERALDES).
Ainda no mesmo sentido, conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-12-2013 (Pº 2267/05.9TBEVR.E1, rel. FRANCISCO XAVIER): “Constituindo a legitimidade um pressuposto processual de cuja verificação depende a possibilidade de o juiz conhecer do mérito da acção, não pode confundir-se com a denominada “legitimidade substantiva”, que tem a ver com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado e que, ocorrendo, determina a improcedência do pedido”.
Assim, a titularidade do direito de pleitear em juízo e, consequentemente, a legitimidade processual, deverá ser aferida em função das alegações do autor efetuadas na petição inicial, de acordo com a perspetiva unilateral e discricionária com que entende configurar o objeto do processo, sem que na determinação de quais são as partes legítimas, deva incidir a questão da efetiva titularidade da relação material controvertida existente.
Essa diferença – entre a legitimidade processual e a legitimação substantiva - foi sublinhada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-10-2021 (Pº 1910/20.4T8PNF.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA) do seguinte modo: “Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada. A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido” (em semelhante sentido, entre outros, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-09-2021, Pº 561/21.0T8BJA-F.E1, rel. JOSÉ MANUEL BARATA).
A legitimidade processual ativa caberá ao titular da pretensão afirmada na ação e a passiva ao titular do interesse que se opõe na ação.
Em termos de legitimidade passiva, “a parte terá legitimidade, como réu, se for ela a pessoa que juridicamente se pode opor à pretensão, por ser a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2012, Pº 344/07.0TBCPV.P2.S1, rel. GRANJA DA FONSECA).
No despacho saneador proferido, a exceção de ilegitimidade invocada foi julgada improcedente e declarado que ambas as partes tinham legitimidade para a causa.
A questão da legitimidade processual das partes foi, pois, objeto de apreciação e decisão em conformidade com o despacho então proferido,
Contudo, conforme deriva do exposto, apreciada tal questão processual, subsistia a apreciação da questão referente à legitimidade substantiva das partes relativamente à pretensão material deduzida pela autora, da qual se ocupou a decisão recorrida, sem que se mostre ter existido algum vício por omissão da fundamentação exigível.
Apreciada a decisão recorrida, verifica-se que nesta se especificou em que assentou a convicção decisória do Tribunal, de acordo com a seleção factual empreendida e, sequentemente, procedeu-se à subsunção jurídica dos factos apurados, de acordo com o Direito considerado aplicável pelo Tribunal recorrido.
Vê-se, pois, que a decisão recorrida não se mostra desprovida de fundamentação de facto ou de direito.
E, como tal, resta concluir pela improcedência da arguição de nulidade da decisão recorrida, fundada no artº 615º, nº 1, al. b), do CPC, subsistindo inviolados os normativos invocados pelos recorrentes (cfr. alínea ww) das conclusões da alegação de recurso).
Já questão diversa é a discordância com os fundamentos nela enunciados e com a sua suficiência, mas aí, a divergência, não se resolve no plano da nulidade da sentença, antes, no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade.
Em consequência, improcede a nulidade da decisão recorrida por violação do dever de fundamentação.
*
C) Se a sentença é nula por omissão de pronúncia?
Como se disse, paralelamente, os recorrentes invocaram omissão de pronúncia do Tribunal sobre a questão da ilegitimidade da autora, nos termos que concretizaram:
“ii) (…) O Tribunal fez todo um caminho que se tem de considerar correcto, porém somadas as parcelas não se entende o resultado final (decisão). Do que acima se transcreveu resulta claro que a eventual contratação ocorreu por via de terceiros (AC e JC) desprovidos de instruções para esse efeito. Pelo que tal deveria, como acima já se defendeu constar inclusivamente dos factos provados, não fosse a incorrecta apreciação da prova. A ocupação ocorreu completamente à revelia dos proprietários do imóvel, então JS e BC, que nunca conferiram poderes para tal. Desde logo, se constata a falta de legitimidade de JC e AC para a celebração de contratos respeitantes ao imóvel em causa nos autos. Quanto aos intervenientes na celebração contratual, nem sequer o tribunal a quo teve dúvidas, pois refere na sentença que foi ‘’celebrado verbalmente entre a filha da autora e a filha e genro dos donos do imóvel um acordo típico de arrendamento. (página 23 linha 11 e 12) E mais, também não se pode deixar de frisar que apenas uma das sucessoras do Réu JSlio teve intervenção na celebração. Pelo que mesmo após o falecimento do R. originário não se pode conferir eficácia ao negócio.
jj) Neste sentido, veja-se o Ac. TRC de 18.11.2003:’’ A legitimidade negocial para dar de arrendamento cabe àquele que puder dispor do uso da fruição da coisa (o proprietário- 1605° C. Civ. ; o fiduciário - 2291º, n° 1, C. Civ.; o enfiteuta - 1501°, al. a); e o usufrutuário - 1446°, C. Civ. ) e bem assim àquele que for administrador do bem a arrendar, neste caso até ao limite de 6 anos - 1204º, n° 1, C. Civ. (entre outros, o cabeça de casal da herança - 2079° e 2087° C. Civ. ; os pais relativamente a bens dos filhos que estejam sob a sua administração - 1878°, n° 1, 1899°, n° 1, e 1897° do C. Civ.; o curador provisório ou definitivo dos bens do ausente - 94°, n° 1, 110° e 1159°, n° 1, C. Civ. ; o tutor- 1935° n° 1, 1878° n° 1, 1889° n° 1, à contrário, e 1897°, C. Civ. ; o mandatário - 1159°, n° 1, C. Civ..’’
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/0/d60e9b519ed839cb80256dfa00438da7?OpenDocument
kk) Facto que faz desde logo que qualquer contrato celebrado seja nulo, por se tratar de um bem alheio. Estamos assim claramente perante uma ilegitimidade passiva que não foi apreciada configurando uma omissão de pronuncia.
ll) E não se queira, como fez o Tribunal a quo, tornar válidos os actos por via do uso do Instituto do Abuso de Direito, nos termos fixados no artigo 334º do CC. Como bem se faz notar na sentença , para se fazer uso deste instituto era desde logo necessário ‘’uma atuação concreta passível de criar na contraparte a expectativa de qua o contrato seria válido e eficaz’’(página 29 linha 26 e 27). Tal expectativa tinha ainda de ser conjugada pelo escrupuloso cumprimento do contrato, sem qualquer animosidade. De acordo ainda com a posição manifestada pelo tribunal a quo, para se equacionar um direito como sendo abusivo é necessário que se exceda ‘’ clamorosamente a boa fé’’ o que ‘’não sucede, manifestamente na presente situação’’(página 31 linha 9)
mm) No caso em apreço, os montantes provinham da conta da D. CB, sendo depositados em conta do Réu JS. Quem os depositava, por que era quem movimentava todas as quantias, era a filha da A. A conta onde tal montante era depositado era de facto titulada pelo senhor JS, desconhecendo-se se este era o seu único titular ou sequer se era o primeiro titular. Sendo certo que quem orientou tal deposito também não foi o R. JS que em vida manifestou ou seu desconhecimento alegando que não usava correntemente aquela conta. Questões que nunca sofreram qualquer prova em contrário. Posto isto, aliado ao desconhecimento dos termos da celebração do contrato, certo é que a A. não pode sequer se tida como celebrante, muito menos celebrante de boa fé. Também nesta parte existe uma ilegitimidade não apreciada pelo Tribunal”.
Vejamos:
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC), será nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Vejamos se o Tribunal omitiu pronúncia devida relativa a questão de que deveria tomar conhecimento, sabendo-se que, é “frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades” (assim, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, p. 132).
Apenas existirá nulidade da sentença por omissão de pronúncia com referência às questões objeto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento esgrimido pela parte.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, preceito do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão, esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A “questão a decidir” pelo julgador estará diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita, apreciando-a e decidindo-a, segundo a solução de direito que julga correta.
De acordo com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” - pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras - sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção.
“O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA).
A causa de pedir traduz-se no facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido (cfr. Antunes Varela; J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil; 2.ª Ed., Coimbra Editora, p. 245), pelo que, sob pena de ineptidão, não bastará uma indicação vaga ou genérica dos factos com base nos quais a autora sustenta a sua pretensão. Ao autor ou demandante não bastará, assim, formular um pedido, devendo sempre indicar a causa de pedir, traduzida nos concretos factos jurídicos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer, o que passa pela narração de concretos acontecimentos da vida que são suscetíveis de redução a um núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais de direito substantivo (cfr., Lebre de Freitas; Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à luz do Código revisto; Coimbra Editora, 1996, pp. 54 a 57).
O autor encontra-se, pois, obrigado a expôr os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação (cfr. art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC).
A indicação da causa de pedir está perfeitamente conexionada com o princípio do dispositivo, consagrado no n.º 1 do artigo 5.º do CPC, onde se prescreve que, “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.
“Intimamente ligada ao princípio dispositivo, a causa de pedir exerce uma «função individualizadora do pedido e de conformação do objeto do processo»; ao apreciar o pedido, o tribunal não pode basear a sua decisão de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (artºs 608º e 609º), sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia (artº 615º, al. d) )” (assim, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2015, p. 71).
Daí que se possa dizer, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2017 (Pº 330/16.0T8PRT.P1, rel. FERNANDO SAMÕES), que “o princípio do dispositivo ou da controvérsia, consagrado no n.º 1 do art.º 5.º do CPC, impede que o juiz considere, na decisão, factos essenciais não alegados pelas partes nos articulados”.
No caso em apreço, como se viu, o Tribunal recorrido apreciou, em sede de despacho saneador, a questão de ilegitimidade processual invocada, concluindo pela legitimidade das partes.
Não tinha que o fazer, novamente, em sede da sentença recorrida, considerando o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que apenas lhe impunha o conhecimento relativamente a questões submetidas pelas partes à sua apreciação, não prejudicadas pela decisão dada a outras ou a outras de que, oficiosamente, pudesse conhecer.
Mas, os recorrentes invocam uma ilegitimidade substantiva – dizendo que os então proprietários do imóvel (BC e JS) não tiveram qualquer intervenção no processo de autorização de ocupação do imóvel pela autora, negociação em que intervieram, em exclusivo, AC e JC e que autora não é parte contratante, dado que, a negociação foi entabulada com a filha desta.
Assim, ao invés do pretendido pelos recorrentes, não se mostra que o Tribunal recorrido tenha deixado de considerar questão que lhe incumbisse conhecer, tendo apreciado as consequências da intervenção na contratação dos aludidos intervenientes – AC, JC e HS – bem como, o reflexo da mesma intervenção, nas esferas jurídicas da autora e dos mencionados BC e JS. Para tanto, atente-se à forma como se expressou a decisão recorrida:
“Importa começar por apurar se, tendo em conta a factualidade resultante da instrução da causa, poderá considerar-se a existência de um contrato de arrendamento sobre o imóvel.
Quanto a esta primeira questão, importa considerar que não foi a autora quem negociou ou celebrou qualquer acordo com os proprietários da fracção autónoma sobre a respectiva ocupação, uma vez que todos os contactos e o acordo alcançado foi estabelecido entre a filha da autora, uma das filhas dos então proprietários do imóvel e o genro destes.
(…)
Assim, não há dúvida de que foi acordado entre os indicados intervenientes que seria proporcionado à autora o gozo (temporário) da fracção autónoma identificada, mediante pagamento de uma retribuição equivalente ao valor das transferências mensais que a autora passou a fazer para a conta bancária do proprietário do imóvel.
Foi, pois, celebrado verbalmente entre a filha da autora e a filha e genro dos donos do imóvel um acordo típico de arrendamento, não sendo sequer configurável, em termos de qualificação jurídica, outro tipo de contrato que não o contrato típico previsto no código civil sob a denominação de “arrendamento”, sendo logo excluída a qualificação de “comodato”, contrariamente ao que pretenderam os réus em sede de contestação, já que este tipo contratual é de natureza gratuita (cfr. artigo 1129.º do CC) sendo manifesto que, neste caso concreto, o acordo das partes não assumiu essa natureza gratuita, uma vez que foi assumida pela autora a obrigação de pagamento de uma renda mensal pela ocupação do imóvel.
(…) Importa apreciar a validade formal do contrato.
Nos termos do artigo 1069.º do Código Civil (na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02) sob a epígrafe “Forma”, diz-se que: “1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. 2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Ora, não há dúvida de que, por força do nº. 2 do artigo 12.º do CC, as condições de validade substancial ou formal de um contrato se aferem pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado e que, à data da celebração do acordo (Maio de 2015), para a validade ou eficácia do contrato, o artigo 1069.º do CC exigia a forma escrita, não se encontrando ainda previsto o citado n.º 2 aliás, o qual apenas foi introduzido pela Lei 13/2019.
Porém, nos termos do artigo 14.º n.º 2 da lei 13/2019 (norma transitória) “o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma”.
Assim, assistia à autora o direito de fazer a prova da existência do contrato de arrendamento, por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Ora, à luz da matéria apurada, ficou, pois, plenamente provada a existência de um contrato de arrendamento, à luz do disposto no artigo 1069.º n.º 2 do CC, já que, a inexistência de contrato escrito não é imputável à autora e durante muito mais do que seis meses foram pagas rendas mensais sem que os donos do imóvel se tivessem oposto ao contrato, tendo recebido na sua conta bancária, consecutivamente, as transferências mensais acordadas.
Avancemos, então, na análise da questão da alegada nulidade do contrato por ilegitimidade de quem celebrou o contrato e por inexistência de poderes de representação.
Quanto à primeira questão, embora não exista unanimidade doutrinária e jurisprudencial a este propósito, na esteira dos ensinamentos de Henrique Mesquita (RLJ, 125, 100, nota 1), Almeida Costa e Aragão Seia (Arrendamento Urbano, Almedina, 6.ª edição, págs. 78 a 81 e 105), entendemos que, sendo o contrato de arrendamento um contrato de natureza obrigacional, a circunstância de ser celebrado por alguém que não detém legitimidade, segundo a lei substantiva, para dar de arrendamento o arrendado, não determina a invalidade do contrato – neste sentido, por exemplo, acórdão do T.R.L. de 10.10.2019 (in www.dgsi.pt).
Com efeito, a celebração de contrato de arrendamento por quem não tem legitimidade para o celebrar não deixa de ser válido entre as partes contratantes, sendo apenas considerado ineficaz em relação ao proprietário – Neste sentido, por exemplo, Ac. do TRE de 11.07.2019.
Deste modo, não se tratando de um vício de nulidade, apenas deveremos indagar sobre a sua eficácia em relação ao verdadeiro titular do imóvel.
Por outro lado, nos termos do artigo 258.º do CC, “o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.
Por seu turno, o artigo 262.º define como “procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos. E, “salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar”.
Dispõe ainda o artigo 268.º do CC que “o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante”.
Ora, neste caso concreto, a autora sempre alegou que celebrou o contrato de arrendamento com os proprietários do imóvel e que os familiares apenas intervieram “para agilizar os termos do negócio”.
A verdade é que, não ficou provada tal factualidade e, em momento algum das suas peças processuais, a autora alegou factos dos quais se pudesse concluir que AC e JC actuaram em nome de JS e BC dentro dos poderes que JS e BC lhe haviam conferido para esse efeito, ou seja, que o negocio tenha sido celebrado pelos representantes de JS e BC que, para o efeito, lhes tivessem concedido poderes para proceder ao arrendamento do imóvel.
Assim, não foi sequer alegada pela autora a existência de “procuração” ou seja de “acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”, pelo que não fica provado que AC e JC tivessem poderes para representar JS e BC na celebração de um contrato de arrendamento sobre o imóvel.
Saliente-se que, para a prática deste negócio jurídico de arrendamento, sempre seria de exigir uma procuração que revestisse a forma exigida para o próprio contrato de arrendamento, ou seja, a forma escrita, nos termos da conjugação dos artigos 262.º n.º 2 e 1069.º n.º 1 do CC.
Deste modo, ainda que AC e JC tenham celebrado o contrato de arrendamento em nome dos proprietários (facto que não se apurou por não ter sido alegado) e não em nome próprio, tal contrato seria ineficaz em relação a BC e JS, nos termos expressamente previstos no artigo 268.º do CC, pois, à autora cabia alegar e provar a existência de poderes válidos de representação, e, não o tendo feito, importa concluir que o negócio seria, pois, ineficaz.
A questão de os proprietários poderem ter tido conhecimento do negócio realizado por AC e JC e terem tido intenção de arrendar o imóvel, tal como alegado pela autora, apenas poderá ser atendido em termos de enquadramento de um eventual abuso de direito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334.º do CC, de forma a paralisar os efeitos jurídicos que não sejam permitidos nos termos desse preceito legal.
Ora, só não será eficaz o negócio jurídico que, ainda que realizado sem poderes de representação, seja ratificado pelo titular do direito, pelo que este contrato de arrendamento apenas não será ineficaz em relação a JS e BC (proprietários do imóvel à data de Maio de 2015) se se puder considerar a existência de uma ratificação.
Quanto a este aspecto, prevê o artigo 268.º do CC que “a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração”. Assim, pelas razões já expostas acima, eventual ratificação por parte de JS e BC sempre teria ser realizada por escrito.
Deste modo, pelo que acabámos de concluir, estaríamos em face de um contrato verbal de arrendamento ineficaz em relação aos titulares do imóvel, JS e BC, sua mulher.
Porém, deveremos ainda debruçar-nos sobre a circunstância de BC ter falecido em 2018 e no ano seguinte JS, tendo estes deixado a suceder-lhe, precisamente, a ré AC, que celebrou o contrato (apenas não sabemos se em nome próprio se em nome dos prpeitários), sendo permitida a dúvida de saber se, a partir do momento em que esta assumiu a qualidade de herdeira (já após a vigência do contrato), poderá o contrato ter-se tornado plenamente eficaz.
Ora, tal poderia ter sucedido se a ré AC fosse a única herdeira de JS e BC ou se fosse a cabeça-de-casal da herança, o que não sucedeu, porquanto resulta do autos que sucederam aos aludidos proprietários as suas filhas MD e AC, desconhecendo-se, no entanto, quem seja a cabeça-de-casal da herança (embora se saiba que MD se arrogou essa qualidade ao outorgar a escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos).
Na realidade, e apesar de ser herdeira, AC não poderia, desacompanhada da outra herdeira, arrendar um bem da herança ou ratificar esse arrendamento, e, mesmo sendo cabeça-de-casal, apenas poderia celebrar contrato por período igual ou inferior a seis anos, nos termos da interpretação conjugada dos artigos 1024.º n.º 1 e 2091.º do CC.
Neste caso, consideramos que, apenas se tivessem intervindo no contrato de arrendamento ambas as sucessoras, poderia configurar-se uma situação de eficácia imediata do contrato relativamente a ambas, pelo menos a partir do óbito de JS, pelo que, tal não tendo sucedido, o contrato de arrendamento que ficou provado não gozaria, à partida, de eficácia.
Porém, a questão muda de contornos se analisarmos os demais factos apurados à luz do regime jurídico do abuso de direito.
(…) Ora, a verdade é que o réu JS recebeu o pagamento de rendas pelo período de quatro anos, sendo que durante esse tempo a autora teve a disponibilidade do imóvel, nele habitando, como se tivesse celebrado um contrato plenamente eficaz, tendo havido um total investimento de confiança, criado pelo facto de lhe ter sido cedida a disponibilidade total do bem e pelo facto de o seu legítimo proprietário receber mensalmente, durante vários anos, a renda que pagava.
Deste modo, não podia o réu JS invocar licitamente a “invalidade” do contrato (que, conforme vimos, não configura uma situação de invalidade mas de ineficácia), por entendemos que existiria uma manifesto abuso de direito por parte do proprietário que invocasse tal ineficácia após receber rendas mensais durante mais de 4 anos. Esse recebimento de rendas permite ainda ser configurado como uma verdadeira ratificação ou aprovação tácita do negócio celebrado sem poderes, sendo o vício formal de que enferma esta ratificação por si inalegável, porquanto deverá ser paralisada essa invocação nos termos do artigo 334.º do CC.
E não esqueçamos que a posição das rés AC e MD quanto ao imóvel é uma posição de sucessoras habilitadas, sucedendo ao réu no negócio jurídico inicial, pelo que essa paralisação é-lhes igualmente oponível, devendo aceitar a posição jurídico do titular do bem.
Deste modo, entendemos dever ficar paralisado o regime da invocação da ineficácia do contrato de arrendamento em relação ao senhorio, por manifesto abuso de direito, sendo que as rés AC e MD, neste processo e quanto a esta concreta questão, assumem a qualidade de sucessoras do réu JS e, por isso mesmo, não poderão invocar a ineficácia do contrato relativamente a seu titular.
Assim sendo, por força de uma situação de abuso de direito nessa invocação, e porque foram recebidas rendas durante 4 anos, aceitando-se durante esse período prolongado a situação de arredamento, não se julga conforme ao direito a invocação da ineficácia do contrato invocada pelas sucessoras, sendo uma delas quem, precisamente, celebrou o contrato com a autora.
Do mesmo modo e pelas mesmas razões, será ilegítima, por abusiva, a invocação da ineficácia do contrato em relação à autora.(…).”.
Verifica-se, pois, que o Tribunal recorrido não omitiu a apreciação de alguma questão de que lhe cumprisse conhecer.
Saliente-se, por fim, quanto ao invocado pelos recorrentes na conclusão mm) das suas alegações de recurso, que a forma como os depósitos ou transferências ocorreram, se trata de matéria atinente ao desenrolar da relação negocial já estabelecida e, não, ao momento da celebração contratual, sem que, todavia, tais aspetos – invocados pelos recorrentes – determinasse, com pertinência para a apreciação do pedido e da causa de pedir formulados, alguma específica consideração por banda do Tribunal recorrido, na decisão proferida, pelo que, tal matéria não determinava a formulação de algum juízo sobre questão que ao Tribunal competisse conhecer.
Não se mostra, pois, apurada alguma omissão de pronúncia do Tribunal recorrido.
Em face do exposto, improcede a nulidade arguida.
*
D) Se se verifica nulidade nos termos do artigo 198.º do CPC ou inconstitucionalidade por violação do artigo 47.º da CRP, relativamente ao depoimento de parte da autora, que cumpra declarar?
Invocam os recorrentes, igualmente, no Capítulo IV das alegações de recurso, que ocorreu relativamente à prestação de depoimento de parte da autora uma nulidade nos termos do artigo 198.º do CPC e até uma inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 47.º da CRP.
Para tanto alegaram o seguinte:
“IV – JUSTIFICAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL - PRINCIPIOS DO PROCESSO CIVIL
Na rubrica C) da sentença, sob a epigrafe ‘’justificação da convicção do Tribunal’’ não podemos deixar de evidenciar que o Tribunal, afastando-se da sua função de fazer justiça e analisar os factos que lhe são trazidos pelas partes de forma imparcial, é levado pela total parcialidade e emotividade. É certo que a A. é uma idosa, mas não é um incapaz vulnerável, desprovido de capacidade jurídica. Fazendo uso das expressões do Tribunal, ‘’é de lamentar’’ a parcialidade que ressalta na decisão. Desde logo porquanto se desvaloriza toda a prova, seja trazida pelos Réus ou não, em favor daquilo que interessa recolher para dar sustentação à versão da A.
O Tribunal descredibiliza as testemunhas dos RR, dizendo inclusivamente que apresentam discursos ‘’à medida’’ e que por isso não merecem credibilidade. Será que os discursos são ‘’à medida’’ por favorecerem a versão dos RR ou são ‘’à medida’’ da verdade(contraria à A.) Nesta parte não podemos deixar de colocar a nu que até os depoimentos dos Agentes da PSP são descredibilizados, dizendo que são alheados da realidade, porém não se abstém de os usar quando isso convém à versão da A. nomeadamente para prova dos factos 22 a 26 ( página 15 da decisão)
E mais, logo no depoimento de parte da A. foi gritante a forma sugestiva como foram colocadas as questões por parte da Exma. Sra. Dra. Juiz a quo.
Foi através da formulação de questões manifestamente sugestivas, que perturbaram a espontaneidade do depoimento, que foi interrogada a A. A título de exemplo veja-se:
Sra.Dra.juiza:A senhora foi par la viver porque a sua filha tratou de tudo com estes senhores, foi isso?
Parte:A minha filha alugou a casa à Paula. Eu penso que pediu à mãe se a podia alugar
Sra.Dra.Juiza: Pronto…a sua filha tratou deste assunto com a Paula
Parte:Sim,
Sra.Dra.Juiza:Elas eram amigas? Davam-se bem?
Parte:Eram amigas… davam-se bem
Sra.Dra.Juiza:A Paula era a filha do Sr. JS e da mulher, é isso?
Parte:Sim sim
(…)
Sra.Dra.Juiza: Portanto a sua filha morava no terceiro… portanto a sua filha arrendou ou alugou, como a senhora diz, esta casa à sra. Paula para a senhora passar a morar por baixo dela no segundo
Parte:Sim sim
(…)
Sra.Dra.Juiza:Dava-se bem com o sr. JS e com a D. BC?
Parte:Sim…sim…dava muito bem.
Sra.Dra.Juiza:E então há um dado momento em que eles vão viver para outro sitio, é isso? Parte: Pois eu não tinha…a minha filha não me podia la ter… tem o filho…
Sra.Dra.Juiza:Sim…isso não importa. Os outros senhores não estavam la, é isso?
Parte:Não estavam lá não.
Sra.Dra.Juiza:Sabe quem eles são?
Parte:Já há muito tempo estavam na terra.
Sra.Dra.Juiza: (imperceptível)por não estarem bem de saúde.
Parte:Não estavam bem de saúde. Foram para a terra…(imperceptível) não podiam subir as escadas.
(…)
Sra.Dra.Juiza:(imperceptível) tinha móveis do senhor JS?
Parte:Tinha.
Sra.Dra.Juiza: Tinha eletrodomésticos, fogão, frigorifico…
Parte:Tinha…tinha
Sra.dra.Juiza:E tinha roupa de cama que a senhora tirou e arrumou?
Parte:(imperceptível)
Sra.Dra.Juiza: A roupa de cama! Tinha roupa de cama destes senhores que a senhora tirou e arrumou, é isso?
Parte:Eu tirei a roupa da came e
Sra.Dra.Juiza:E pôs a sua é isso?
Parte: Pus da minha.
A este propósito apenas se transcrevem algumas questões que demonstram a forma sugestiva como foram colocadas as questões. De outra forma, a questões eram formuladas de forma que continham as respostas. Salvo o devido respeito, o depoimento de parte não deve ser assim conduzido por sugestionar a parte, para o bem e para o mal, nas suas respostas.
Ainda que o CPC nada disponha em concreto quanto ao modo de inquirição da parte, queremos ser de aplicar o disposto no 516º quanto ao regime do depoimento das testemunhas. Nem poderia ser de outra forma sob pena de se ferirem os mais basilares princípios do direito civil.
A realização da justiça no caso concreto deve alcançar-se sem prejuízo dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz.
Nesta matéria vejam-se os AC. Do TRP proferido no proce. Nº 2/03.5TAESP-D.P1 em 04.11.2009 e o Ac. Do STJ proferido no proc. Nº 873/10.9T2AVR.P1.S1 em19.01.2017
É obvio que o desrespeito pelos princípios em causa se refletiu na decisão tomada, pelo que tal consubstancia uma nulidade nos termos do art. 198º do CPC.”.
A recorrida pronunciou-se sobre esta matéria no ponto II D da respetiva contra-alegação referindo, em síntese, que:
“(…) o Tribunal a quo avaliou correctamente a prova produzida. O Tribunal recorrido avaliou correctamente os depoimentos da Autora e das suas testemunhas, isentos e merecedores de credibilidade, bem como os depoimentos dos agentes da PSP que no dia 15/07/2019 estiveram no local e que não apuraram todas as circunstâncias relevantes para o caso, mantendo no interior da casa a Autora e os Réus, colocando os filhos da Autora à parte.
Contrariamente ao alegado pelos Réus, não existiu qualquer depoimento “à medida” por parte da Autora, ou das suas testemunhas.
Na verdade, o que ressalta é o depoimento “à medida” dos agentes da PSP que tentaram escapar de quaisquer responsabilidades, dizendo por diversas que a Autora saiu por livre e espontânea vontade, sem apurar o porquê, mas depois concluindo como iremos ver infra, que afinal não era uma saída definitiva. Questiona-se: depois daquela situação atemorizadora, de alguém entrar em nossa casa à força, empurrando-nos, trancando a porta por dentro e de ver que a Polícia não faz nada para retirar esse terceiro de dentro da nossa casa, quem é que quer manter-se em casa, sobretudo quando está machucada e tem de ir ao hospital?
Os agentes da PSP foram, no mínimo, ingénuos, para não ir mais além, ao não ter colocado a Autora à parte ou em sítio isolado da casa; antes entenderam interrogar a Autora no sítio onde se encontravam também os seus agressores – ou pelo menos na perspetiva dos agentes que nada viram, as pessoas que não foram convidadas pela Autora a entrar em sua casa, tendo ainda dito que ela tinha de sair de casa a bem ou a mal.
É certo que a Autora está na posse das suas faculdades mentais, mas tem, fruto da idade, algumas limitações a que os agentes da PSP não foram sensíveis. A casa estava arrendada pela Autora, mobilada por ela, e os Policias em vez de retirarem os Réus de casa, mantiveram-nos lá e ainda saíram do local a primeira vez com a Autora e os Réus no interior, deixando os filhos da Autora no exterior da casa da mãe, onde esta vivia e onde tinha o direito de ter quem ela quisesse.
Obviamente que perante esta conduta dos agentes da PSP os seus depoimentos não merecem qualquer credibilidade quanto à intenção ou não da Autora querer sair definitivamente da casa ou de ter saído de “livre e espontânea vontade”. Note-se até que a expressão é sempre a mesma que é utilizada, como se isso significasse desde logo a revogação do contrato de arrendamento e a tomada legal do imóvel por parte dos Réus.
Mais, os agentes da PSP nem sequer apuraram se ela queria sair de casa ou não. Aliás, do depoimento de RD, decorre até que a Autora pensava que ia continuar naquela casa e que não ia sair definitivamente daquela casa, conforme depoimento do referido agente da PSP, na audiência de julgamento do dia 27-09-2019, das 15h:02m:18s às 16h:06m:12s, com a duração de 01h:03m:53s, registado em suporte digital, na aplicação Habilus com a Gravação n.º 20210927150217_5956532_2871228, mais concretamente sob a passagem dos 00h:42m:02s a 00h:42m:26s:
“Juiz - A questão é: a dona CB achava que a partir dessa noite, ainda continuava a ser, entre aspas, inquilina ou por força da mudança da fechadura, então ela tinha que sair?
RD - Não, ficaria ali. Que lhe seria dado uma chave que ela ficaria ali.”
Mais à frente – passagem dos 01h:03m:02s a 01h:03m:41s:
“Juiz - Só resta aí por esclarecer se ela estaria a sair nesse momento para sempre ou se era só naquela noite?
RD - Não, nós até redigimos que teria levado apenas alguns bens de primeira necessidade.
Juiz - Portanto, naquele momento…
RD - Seria naquele momento.
Juiz - Pronto, para aquela noite?
RD - Sim.
Juiz - E não ficou nada estabelecido…
RD - Não houve qualquer tipo de prazo.
Juiz - Pronto. E para futuro, não ficou, pelo menos na vossa intermediação, não ficou definido quando é que iria ser a saída definitiva?
RD - Não nos foi transmitido, nem nós transmitimos qualquer tipo de prazo.
Juiz - Pronto. Vocês só se certificaram e asseguraram se naquela noite a Senhora estaria a sair porque quis e que por isso não havia problema, certo?
RD - Sim sim. Exatamente.”
Incorrem em erro os Recorrentes quando consideram que os depoimentos dos agentes da PSP já foram considerados para prova dos factos 22 a 26, quando os agentes que presenciaram estes factos foram diferentes dos agentes da PSP que foram ao local no dia 15/07/2019 (com excepção do auto de 23/07/2019 elaborado pelo agente DR).
Discorda-se em absoluto das considerações feitas pelos Recorrentes quanto à formulação de perguntas sugestivas à Autora e à alegada imparcialidade do Tribunal, ou até quanto à existência de nulidade ou inconstitucionalidade, que não existem.
Aliás, permita-se desde já dizer que, se eventualmente os Recorrentes não concordavam com o modo como as questões estavam a ser colocadas - o que apenas por mera hipótese se cogita – sempre teria de ter arguido tal nulidade ou suscitado tal incidente em sede de audiência de julgamento ou de produção antecipada da prova.
Mas assim não sucedeu e a verdade é que os Réus têm perfeito conhecimento do que aconteceu no dia 15/07/2019, da sua conduta – no mínimo dos mínimos imprópria – e por isso disparam em todas as direções, designadamente da do Tribunal.
A Autora tem 86 anos de idade e, como o Tribunal bem considerou, tem limitações de audição e dificuldades de comunicação próprias da sua idade, pelo que naturalmente o Tribunal teve em consideração a idade da Autora, questionando de forma mais alta e com menos celeridade do que fosse uma pessoa menos idade. É por demais evidente que o Tribunal ao inquirir quem quer que seja, tem de levar em consideração a idade do inquirido, as suas condições físicas e psicológicas, de modo a que as perguntas sejam percetíveis a quem está a ser interrogado e as resposta sejam naturais e verdadeiras.
Alias, não se pode deixar de dizer que o comportamento digno do Tribunal contrasta flagrantemente com a postura dos agentes da PSP que se deslocaram ao local no dia 15/07/2021 e que consideram a Autora, naquele momento em que se encontrava no imóvel, como uma pessoa suficientemente capaz de decidir por si, com total autonomia, sem terem em conta a idade, a situação ocorrida e que os filhos podem auxiliar os pais em idades mais avançadas da vida dos mesmos.”.
Vejamos:
A nulidade que vem arguida pelos recorrentes respeita à forma como terá sido efetuada pelo Tribunal a inquirição referente ao depoimento de parte da autora, que, na perspetiva dos recorrentes, ocorreu afastando-se o Tribunal “da sua função de fazer justiça e analisar os factos que lhe são trazidos pelas partes de forma imparcial, é levado pela total parcialidade e emotividade”, tendo sido “gritante a forma sugestiva como foram colocadas as questões por parte da Exma. Sra. Dra. Juiz a quo”, que, em seu entender, “perturbaram a espontaneidade do depoimento, que foi interrogada a A.”, concluindo que ocorreu violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz.
O depoimento de parte constitui um dos meios de prova previstos no ordenamento processual civil, encontrando-se regulado nos artigos 452.º e ss. do CPC.
O artigo 452.º do CPC efetua o geral enquadramento deste meio probatório prevendo o seguinte:
“1 - O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
2 - Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair”.
A finalidade do depoimento de parte é a de obtenção de confissão da parte contra quem é requerido, nos termos substantivamente regulados nos artigos 352.º e ss. do CPC (cfr., em particular, o disposto no artigo 356.º do CPC).
De acordo com o previsto no artigo 453.º do CPC, o depoimento de parte pode ser exigido de pessoas que tenham capacidade judiciária e podendo cada uma das partes requerer não só o depoimento da parte contrária, como também o dos seus compartes.
Nos termos do artigo 454.º do CPC, o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, não sendo admissível sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
O artigo 456.º do CPC estabelece sobre o momento e lugar do depoimento dispondo que:
“1 - O depoimento deve, em regra, ser prestado na audiência final, salvo se for urgente ou o depoente estiver impossibilitado de comparecer no tribunal.
2 - O regime de prestação de depoimentos através de teleconferência previsto no artigo 502.º é aplicável às partes residentes fora da comarca, ou da respetiva ilha, no caso das Regiões Autónomas.
3 - Pode ainda o depoimento ser prestado na audiência prévia, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto no número anterior.”.
E nos artigos 457.º e 458.º do CPC estabelecem-se regras sobre a impossibilidade de comparência do depoente em tribunal e sobre a ordem dos depoimentos, quando ambas as partes tenham de depor em tribunal ou mais do que um autor ou mais do que um réu, respetivamente.
Especificamente sobre os termos em que se deverá processar o ato processual de prestação do depoimento, regem os artigos 459.º a 463.º do CPC, onde se estabelece o seguinte:
“Artigo 459.º Prestação do juramento
1 - Antes de começar o depoimento, o tribunal faz sentir ao depoente a importância moral do juramento que vai prestar e o dever de ser fiel à verdade, advertindo-o ainda das sanções aplicáveis às falsas declarações.
2 - Em seguida, o tribunal exige que o depoente preste o seguinte juramento: «Juro pela minha honra que hei de dizer toda a verdade e só a verdade.»
3 - A recusa a prestar o juramento equivale à recusa a depor.
Artigo 460.º Interrogatório
Depois do interrogatório preliminar destinado a identificar o depoente, o juiz interroga-o sobre cada um dos factos que devem ser objeto do depoimento.
Artigo 461.º Respostas do depoente
1 - O depoente responde, com precisão e clareza, às perguntas feitas, podendo a parte contrária requerer as instâncias necessárias para se esclarecerem ou completarem as respostas.
2 - A parte não pode trazer o depoimento escrito, mas pode socorrer-se de documentos ou apontamentos de datas ou de factos para responder às perguntas.
Artigo 462.º Intervenção dos advogados
1 - Os advogados das partes podem pedir esclarecimentos ao depoente.
2 - Se algum dos advogados entender que a pergunta é inadmissível, pela forma ou pela substância, pode deduzir a sua oposição, que é logo julgada definitivamente.
Artigo 463.º Redução a escrito do depoimento de parte
1 - O depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória.
2 - A redação incumbe ao juiz, podendo as partes ou seus advogados fazer as reclamações que entendam.
3 - Concluída a assentada, é lida ao depoente, que a confirma ou faz as retificações necessárias.”.
Verifica-se, em face destes normativos, que se encontram previstas regras específicas sobre o objeto do depoimento de parte e, designadamente, que o interrogatório, levado a efeito pelo juiz, da parte que deponha incidirá sobre cada um dos factos que devem ser objeto do depoimento.
Conforme salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 524), “é ao juiz que cabe dirigir o depoimento de parte, passando do interrogatório inicial para as perguntas que forem pertinentes. Considerando a pré-existência de temas da prova que sintetizam os factos que importam à composição da lide, é natural que a formulação das perguntas varie consoante a matéria em causa. Sendo aconselhadas perguntas objetivas sobre factos concretos, tal não obsta a que se formulem outras questões de âmbito mais genérico”, precisando (ob. cit., p. 525), que “as perguntas mais pertinentes não devem deixar de ser formuladas em termos de permitir respostas precisas e claras (art. 461.º, n.º 1) pois só de respostas dessa natureza pode resultar a emissão de declarações confessórias, segundo o objeto do depoimento enunciado nos termos do art. 452.º, n.º 2”.
Contudo, regula a lei os termos da intervenção dos advogados das partes, prevendo que os advogados de ambas as partes possam pedir esclarecimentos ao depoente, relativamente às afirmações que tenha produzido (cfr. artigo 462.º, n.º 1, do CPC), que os mesmos possam arguir oposição (inadmissibilidade) relativamente a perguntas que sejam formuladas - quer em termos da forma ou da substância da questão – que serão “logo” – ou seja, em face da arguição que se faça aquando da prestação do depoimento - decididas definitivamente (cfr. artigo 462.º, n.º 2, do CPC) e, ainda, que possam reclamar sobre os termos em que se processe a redução a escrito do depoimento (cfr. artigo 463.º, n.º 2, do CPC).
Ora, uma relevante limitação do objeto do recurso resulta da sua própria natureza.
Os recursos ordinários visam permitir que um tribunal hierarquicamente superior àquele que profere a decisão proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem direto reflexo na delimitação das questões que lhe podem ser dirigidas.
O objeto do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinada questão, visando-se apreciar da manutenção, alteração ou revogação da decisão recorrida.
Do recurso distingue-se a arguição de nulidades processuais, que impõe, em princípio, a sua arguição perante o tribunal onde estas são cometidas.
As nulidades processuais (ou nulidade de procedimento, por contraposição à nulidade de julgamento) verificam-se quando existem “desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalidade processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais (…)” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, Reimp., 1993, p. 176).
As nulidades principais – a que se reportam os artigos 186.º, 187.º, 193.º e 194.º do CPC (cfr. artigo 198.º do CPC) – distinguem-se das nulidades secundárias (todas as demais).
As primeiras - respeitando à falta de citação do réu, ineptidão da petição inicial, falta de citação do Ministério Público como parte principal, falta de intervenção do Ministério Público como parte acessória e erro na forma do processo - têm consequências mais graves e um regime mais severo.
As segundas – nulidades secundárias – são “todos os demais casos de desvio na prática (ou omissão) do acto processual (…) desde que relevantes. Serão relevantes, segundo o critério estabelecido, quando a lei especialmente o declare ou quando possam influir no exame ou na decisão da causa” (cfr. Antunes Varela et al.; Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 1985, p. 391), sendo o respetivo regime inspirado, nos vários aspectos em que se desdobra, por um são princípio de economia processual (cfr. Antunes Varela et al.; Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 1985, p. 391): A nulidade de um acto só determinará a inutilização dos termos subsequentes que dele dependam essencialmente; se um acto for nulo apenas numa das suas partes, as partes restantes que dela não dependam, manterão a sua validade; se o vício do acto apenas impedir a produção de determinados efeitos, não serão afectados os restantes efeitos para que o acto seja apto; para a apreciação das nulidades é competente o tribunal onde o processo se encontre ao tempo da reclamação.
A nulidade (e ressalvadas as nulidades principais previstas nos arts. 186º a 194º do CPC) só se verifica quando a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa (art. 195º, nº 1 do CPC), dependendo a sua apreciação e julgamento de invocação por parte do interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto (arts. 196º, 2ª parte e 197º, nº 1 do CPC).
A arguição de nulidade secundária é feita perante o tribunal onde a irregularidade foi cometida, nos prazos previstos no artigo 199º, nº 1 do CPC (cfr. também o art. 149º, nº 1 do CPC), podendo ser arguida perante o tribunal superior no caso de o processo ser expedido em recurso antes de findar o prazo para a parte a invocar (art. 199º, nº 3 do CPC).
Assim, uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, tem de seguir o regime próprio para a sua arguição, não podendo ser atacada através de recurso – sem embargo dos casos em que são de oficioso conhecimento, as nulidades ‘devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz’ e é a ‘decisão que vier a ser proferida que poderá ser impugnada por via recursória’ (ainda que tal faculdade sofra agora da limitação estabelecia no nº 2 do art. 630º do CPC – o recurso das decisões proferidas sobre nulidades previstas no nº 1 do art. 195º do CPC só é admissível se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios) (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 26).
Esta solução deve ser aplicada aos casos em que tenha sido praticada uma nulidade processual que se projecte na sentença, mas que não se reporte a qualquer das als. do nº 1 do art. 615.º do CPC – embora afecte a sentença, deve ser objecto de prévia reclamação que permita ao juiz reparar as consequências extraídas, ainda que com prejuízo da decisão proferida (assim, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 26).
Assim, “as nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no art. 615º, n.º 1, als. b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre arguições oportunamente deduzidas com base na omissão de certo ato, na prática de outro que a lei não admitia ou na prática irregular de ato que a lei previa” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-03-2020, Pº 305/15.6T8MNC-E.G1, rel. ANTÓNIO BARROCA PENHA).
Ou seja, conforme se sintetizou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-09-2019 (Pº 240/16.0T8MAI-B.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “As nulidades processuais secundárias, inominadas ou atípicas, previstas no nº1, do art. 195º, do CPC, têm um regime específico de arguição e devem obedecer a meio próprio: têm de ser arguidas pela parte, dentro do prazo e pelo meio processual reclamação (cfr. art. 196º, parte final do CPC), sob pena de sanação”.
Nos casos de erro de procedimento, que não de erro de julgamento, deve a parte reclamar (arguir a nulidade), possibilitando ao juiz a sua sanação e não já reagir através da interposição de recurso. Situação expressa pela máxima seguinte: “Dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se”.
Conforme salientam Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes (Dos Recursos; Quid Juris, 2009, p. 52): “A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia de reclamação.
Assim, o que pode ser impugnado por via de recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade - e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via de reclamação – caducidade, renúncia, etc. - importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário”.
Tal não sucederá, todavia, “no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – excepções – que seja oficiosamente cognoscíveis. As nulidades e as excepções de conhecimento oficioso constituem sempre objecto implícito do recurso, pelo que podem ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido” (cfr. Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes; Dos Recursos; Quid Juris, 2009, p. 52) e, ainda, nos casos em que o juiz, ao proferir a sentença/decisão, omite formalidade de cumprimento obrigatório, designadamente o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa, afigurando-se nestes casos em que o juiz, ao proferir decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, dever a parte a parte interessada reagir através da interposição de recurso sustentando nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, d) do CPC (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pp. 27-28 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-05-2019, Pº 3669/16.0T8BRG.G1, rel. RAMOS LOPES).
Conforme decorre do referido regime – e resulta expresso do constante no n.º 1 do artigo 199.º do CPC, se a nulidade ocorrer durante a prática de um acto, estando a parte presente, por si ou por mandatário, no momento em que a irregularidade é cometida, esta só pode ser arguida até ao termo do acto. Não estando a parte presente, o prazo da arguição - 10 dias: cfr. artigo 149.º, n.º 1, do CPC - só se conta a partir do momento em que ela tomou, podia ou devia tomar conhecimento da falta, em conformidade com o disposto na parte final do mencionado n.º 1 do artigo 199.º (cfr. Antunes Varela et al.; Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 392).
Ora, no caso dos autos, como bem refere a recorrida – e, uma vez que, a prestação do depoimento de parte decorrido na presença dos Advogados dos ora recorrentes (cfr. acta da diligência de prestação antecipada de prova de 05-07-2021) – se os recorrentes não concordavam com o modo como as questões à autora se encontravam a ser efetuadas, sempre deveria ter reclamado de tal facto, arguido tal nulidade ou requerido algum incidente na referida sessão de produção probatória até à mesma findar, o que, não sucedeu.
Em face do exposto é, pois, de ter como extemporânea a invocação da nulidade apenas arguida em sede de recurso.
Não tendo, assim, os recorrentes arguido a nulidade apontada (perante o Tribunal recorrido), que, por isso, não foi objeto de decisão (daquele tribunal) não pode o recorrente vir, agora, erigi-la em concreto e específico fundamento de recurso de apelação, tudo conduzindo à conclusão de que inexiste motivo para a declaração da invocada nulidade.
No que respeita à inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 47.º do CRP, não se alcança qualquer sustentáculo em que os recorrentes alicercem uma tal invocação, nem se vislumbra que a nulidade arguida possa, de modo plausível, conjugar-se com alguma postergação – inconcretizada – do princípio constitucional referente à liberdade de trabalho, consignado no artigo 47.º do texto constitucional.
É que o conteúdo deste direito constitucional não se mostra, de algum modo, comprimido por qualquer das invocações efetuadas pelo recorrente a respeito da questão em apreço.
Conforme se referiu no Acórdão n.º 129/2020, de 03-03-2020 (Processo n.º 502/2019, rel. JOANA FERNANDES COSTA):
“9. Integrado no catálogo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, o artigo 47.º da Constituição dispõe, no respetivo n.º 1, que «todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade».
Densificando o conteúdo da liberdade de escolha de profissão ou do género de trabalho, tanto a doutrina como a jurisprudência constitucional têm entendido que nela se compreende não apenas a liberdade que a cada um assiste de selecionar a profissão pretendida, como ainda a liberdade de exercer a profissão selecionada, sem outros constrangimentos para além daqueles que se encontram previstos na Constituição (cf., neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos n.ºs 94/2015 e 246/2016).
Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, pág. 967), «não obstante o artigo 47.º, n.º 1, só se referir ao direito de escolha livre da profissão ou do género de trabalho, a escolha, que toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada (realização de substância), pressupõe o exercício, que se refere à questão do como (realização da modalidade), da mesma maneira que a segunda de nada valeria sem a primeira».
Estavelmente consolidada na jurisprudência deste Tribunal, tal ideia foi explicitada no Acórdão n.º 88/2012 em termos recentemente reiterados no Acórdão n.º 319/18, tirado em Plenário:
«Na sua vertente de direito de defesa, a liberdade de escolha de profissão implica que se não possa ser forçado a escolher (e exercer) uma determinada profissão e se não possa ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se possua os necessários requisitos, bem como de obter esses mesmos requisitos.
Por outro lado, a liberdade de escolha de profissão não consiste apenas na faculdade de escolher livremente a profissão desejada, mas garante constitucionalmente os seus diversos níveis de realização, incluindo a obtenção das habilitações académicas e técnicas para o exercício da profissão, o ingresso na profissão e o exercício da profissão, pelo que é de entender que o exercício livre da profissão está igualmente inserido no âmbito normativo de proteção do artigo 47.º, n.º 1.
Acresce que o conceito de profissão ou género de trabalho cobre não apenas as profissões de conteúdo funcional estatutariamente definido, mas também toda e qualquer atividade não ilícita suscetível de constituir ocupação ou modo de vida, pelo que nenhuma razão existe para excluir a garantia constitucional do artigo 47.º, n.º 1, em relação a certa espécie ou tipo de trabalho (sobre todos estes aspetos, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, págs. 653-655)».
Efetivamente, e como afirma JORGE MIRANDA, «[e]mbora a Constituição não defina profissão ou género de trabalho, o conceito constitucional de profissão relevante para efeitos de delimitação do âmbito de proteção do artigo 47.º deve ser recortado com grande amplitude. (…) [N]uma ordem de liberdade assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, que reconhece que a realização de uma pessoa também passa pela escolha e pelo exercício de uma atividade profissional – enquanto “meio para a realização condigna de projetos pessoais de vida, em harmonia, aliás, com o que dispõe o artigo 26.º” (Ac. n.º 155/09) –, qualquer género de profissão ou trabalho, seja típico ou atípico, permanente, temporário ou sazonal, subordinado ou independente, em exclusividade ou em cumulação, está coberto prima facie pela tutela do artigo 47.º» (JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 964 e s.).
Ou, nas palavras de GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA: «O conceito de profissão ou de género de trabalho cobre não apenas as profissões de conteúdo funcional estatutariamente definido, mas também toda e qualquer atividade não ilícita suscetível de constituir ocupação ou modo de vida. (…) O âmbito semântico-constitucional do termo não abrange apenas as profissões cujo “perfil” tradicional está juridicamente fixado; mas, também, as atividades profissionais “novas”, “atípicas” e “não habituais”. Corresponde, assim, ao sentido normativo-material de liberdade de profissão o direito de criação de novas profissões e o direito de caracterização intrínseco da atividade profissional» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 654 e s.).»
É igualmente pacífico na jurisprudência constitucional que a liberdade de escolha de profissão consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição se apresenta como um direito fundamental complexo, que integra, ao lado de direitos de defesa contra a imposição ou impedimento da escolha ou exercício de uma dada profissão, direitos a prestações conexionadas com o direito ao trabalho e com o direito ao ensino, como o direito à obtenção das habilitações necessárias para o exercício da profissão, os direitos ao ingresso e à progressão nela e o direito ao livre exercício da mesma profissão (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 155/2009 e 94/2015, 509/2015 e 319/2018; na doutrina, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anots. I e ss. ao art. 47.º, p. 653 e ss.; e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anots. III e ss. ao art. 47.º, p. 965 e ss.).
Do mesmo modo, é pacífico também que, tal como resulta expressamente da parte final do preceito que a consagra, a liberdade de escolha e de exercício de profissão se encontra sob reserva das restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua [– do respetivo titular –] capacidade. Na formulação seguida no Acórdão n.º 509/2015, trata-se, «portanto, de um dos casos a que se reporta o artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, pelo que tais restrições ou condicionamentos legais, sejam de índole objetiva ou subjetiva, são admissíveis, desde que justificados em função de interesses constitucionalmente relevantes e desde que não sejam excessivos. Na verdade, as limitações em causa podem revestir “natureza e intensidade muito diversas, devendo o crivo da proporcionalidade ser tanto mais exigente quanto mais intrusiva for a restrição legal” (v. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I cit., anot. VII ao art. 47.º, p. 971; sobre a limitação diferenciada da liberdade de conformação do legislador neste domínio, em especial apelando à chamada «teoria dos degraus» desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, v. além destes Autores, ibidem, pp. 969-971; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, cit., anot. V ao art. 47.º, pp. 656-657; e ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, “A Ordem dos Advogados. Uma Corporação Pública” in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124.º, pp. 228-230)»”.
Ora, como se disse, nada disto, sob qualquer das vertentes cogitáveis do aludido preceito constitucional, foi posto em questão pela forma como o Tribunal recorrido procedeu à inquirição da autora.
Conclui-se, pois, pela extemporaneidade da invocação da nulidade, apenas arguida em sede de recurso, improcedendo as conclusões, em contrário, expressas pelos apelantes, bem como, a inconstitucionalidade invocada.
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III) Impugnação da matéria de facto:
Concluem os recorrentes, na alegação de recurso – conclusões h) a cc) – que “analisada a prova documental conjugada com a prova testemunhal gravada, devem ser alterados os factos provados e não provados como supra se requer e defende (…)” (cfr. conclusão cc) ).
Com a alegação produzida, os recorrentes/apelantes pretendem colocar em crise a factualidade apurada pelo Tribunal a quo.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
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E) Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
Concluíram, nomeadamente, os recorrentes nas conclusões v), w) e y) das alegações de recurso, o seguinte:
“v) Facto 35 e 36 - a A. pode ter efectuado tais gastos, porém fê-lo exclusivamente por factos gerados pela sua conduta. Como supra se referenciou. Deste modo tais factos devem ser alterados nessa medida, ou pelo menos serem correctamente apreciados.
w) Facto 37 - O Estado de tristeza da A. foi naturalmente originado pela ‘’confusão’’ provocada essencialmente pela sua Filha HS. Sendo certo que nenhuma implicação pode resultar para os Réus.
(…)
y) Facto 45 - Corresponde à verdade parcialmente, porquanto apenas se podem considerar citados os réus ‘’primários’’.
(…)”.
Por seu turno, no corpo das alegações de recurso consta a seguinte motivação:
“35.A autora despendeu para pagamento das mudanças de fechadura (cfr. factos 21 e 29) e pela deslocação da PSP ao local no dia 15.07.2019, o montante de 345,66€;
36.O valor cobrado à autora pelo fornecimento de energia eléctrica e telecomunicações no imóvel durante o mês de Julho foi de 35,67€;
Convicção do Tribunal: Decorrem da prova documental(recibos)(página 16 linha 20)
Nossa Convicção: a A. pode ter efectuado tais gastos, porém fê-lo exclusivamente por factos gerados pela sua conduta. Como supra se referenciou. Deste modo tais factos devem ser alterados nessa medida.
37.Por força dos factos descritos, autora sentiu-se triste, angustiada e receosa;
Convicção do Tribunal: Decorrem das testemunhas HS e PC (página 16 linha 16 e 17)
Nossa Convicção: o Estado de tristeza da A. foi naturalmente originado pela ‘’confusão’’ provocada essencialmente pela sua Filha HS. Sendo certo que nenhuma implicação pode resultar para os Réus.
38.A autora nasceu em 25.12.1935;
Desconhece-se de onde decorre (…)
45.Os requeridos foram citados no âmbito do procedimento cautelar em Outubro de 2019;
Concvicção do Tribunal: Resultam dos autos de providência cautelar
Nosso entendimento: Correspondem à verdade parcialmente, porquanto apenas se podem considerar citados os réus ‘’primários’’.”.
E, em nenhum ponto da alegação ou das conclusões, os recorrentes efetuou, sobre os aludidos pontos de facto, alguma outra concretização.
Vejamos se existe motivo para a rejeição liminar do recurso, relativamente a estes pontos:
Como resulta do já citado artigo 640.º do CPC, no caso de impugnação sobre a decisão de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, bem como, os concretos meios de prova que impunham diversa decisão, indicando a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre tais questões de facto.
De acordo com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
“1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, Relator JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
Ora, no caso dos autos, a respeito dos aludidos factos n.ºs. 35, 36, 37 e 38 dos factos provados, se bem que os recorrentes indiquem quais os pontos de facto que pretendem impugnar, certo é que não fazem acompanhar tal impugnação da indicação dos concretos meios probatórios constantes do processo que imporiam diversa decisão e, igualmente, não indicam qual seja essa alternativa decisão, não sendo suficiente para tal nenhuma das menções conclusivas – “(…) Como supra se referenciou. Deste modo tais factos devem ser alterados nessa medida, ou pelo menos serem correctamente apreciados (…); O Estado de tristeza da A. foi naturalmente originado pela ‘’confusão’’ provocada essencialmente pela sua Filha HS. Sendo certo que nenhuma implicação pode resultar para os Réus. (…) Corresponde à verdade parcialmente (…). Desconhece-se de onde decorre (…)” - que, a este respeito produziram, quer com referência ao corpo da alegação, quer nas conclusões elencadas, mas demonstrando um inconformismo inconsequente.
Na medida em que os recorrentes não deram, neste conspecto, cumprimento ao preceito legal acima mencionado, quanto à matéria de facto considerada na sentença recorrida como provada e não provada, não cuidando de indicar – quer na motivação, quer nas conclusões do recurso – os concretos meios probatórios que imporiam diversa decisão, nem indicando qual a decisão alternativa que, em seu entender, deveria ser proferida, tal determina a rejeição da impugnação de facto, nesta parte.
De acordo com o exposto, há lugar à rejeição imediata do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, quanto aos factos provados n.ºs. 35), 36), 37) e 38), por inobservância do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
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F) Se deve ser alterada a matéria de facto nos seguintes termos:
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 717).
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2018 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, rel. ROSA TCHING), “[f]actos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma  caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso”.
Ainda na mesma linha, cite-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO) onde se escreveu que: “Sendo certo que a instrução tem por objecto os temas de prova enunciados e que no NCPC estes não se confundem apenas com factos podendo ser conclusões jurídicas ou versões contrárias de factos ou conclusões, é seguro para nós e de acordo com a generalidade da doutrina e da jurisprudência, que a enunciação dos temas de prova não constitui despacho que faça caso julgado formal sobre os factos essenciais, instrumentais ou complementares que interessam à decisão de direito segundo as diferentes soluções possíveis e alegados pelas partes de acordo com as regras dos artº 5º, nºs 1 e 2 e 607º, nº 4, NCPC”.
E conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradicção ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Importa considerar que, em termos substanciais, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância, procurando-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respectivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objecto do recurso.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa actividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 653º, nº 2 do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Mas, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Processo 1426/15.0T8BGC-A.G1, relator ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA).
Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Processo 334/07.3TBASL.E1, relatora MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Aplicando estas considerações à impugnação de facto em questão, cumpre apreciar cada uma das factualidades colocadas em crise:
*
a) A matéria constante dos factos provados n.ºs 1) e 2) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e se existe motivo para a anulação da decisão recorrida?
Nos pontos 1 e 2 dos factos provados consta escrito o seguinte:
“1. Em 09.07.1991 JS adquiriu, no estado de casado com BC, a fracção F do prédio descrito na 2.ª conservatória do registo predial de Loures sob o n.º …/…;
2. Tal fracção autónoma corresponde ao 2.º andar direito do prédio com entrada pela Rua … n.º …, em Moscavide;”.
Consideram os recorrentes que tais factos devem ser dados como não provados, tendo referido na conclusão h) da sua alegação de recurso, o seguinte:
“h) Os factos 1 e 2 não podem ser considerados provados, pois a convicção do Tribunal decorre de mera cópia não certificada do registo predial ( pág 11linha 8). Dispõe o art. 110.º, n.º 1, do Código de Registo Predial que o registo se prova por meio de certidão. Tal matéria foi já apreciada pelo STJ, tendo sido proferido em 30.05.2013 o Ac. No proc.nº3228/06.6TVLSB.L2.S1. Tal situação influi na decisão da causa, considerando que tais factos não podem ter-se como provados. Facto que deste logo implica a anulação da decisão recorrida, o que se pede.”.
A recorrida contrapôs o seguinte:
“H. Bem andou o Tribunal a quo a considerar os factos 1 e 2 como provados, pois decorrem de cópia não certificada do imóvel - Doc. 1 da PI e, como não está em causa nos autos o direito de propriedade ou de outro direito real sobre o imóvel, a cópia não certificada pode ser configurada como um princípio de prova que, conjugada com os demais meios de prova, permite dar estes factos como provados, devendo ser improcedente o pedido de anulação da sentença recorrida.
I. Os RR. alegaram que o imóvel pertencia a JS e BC, pelo que não se compreende a impugnação dos factos 1 e 2 que – por esta ordem de ideias – sempre seriam considerados matéria assente por ter o acordo de ambas as partes.”.
Na motivação de facto da decisão recorrida expressou-se, a este respeito, o seguinte:
“Para a decisão de facto que antecede, o Tribunal apreciou de forma conjugada e crítica toda a prova produzida no processo, tendo sido apreciados todos os documentos juntos, bem como o teor do depoimento de parte da autora e os depoimentos das testemunhas. Os factos descritos no ponto 1 e 2 decorrem da cópia não certificada do registo predial do imóvel, uma vez que nenhum dos réus nega que o imóvel tenha sido adquirido por JS, antes pelo contrário, uma vez que os réus alegam que o imóvel pertencia ao casal JS e BC, sendo certo que, não estando em causa a discussão de qualquer direito real sobre o imóvel, a verdade é que a cópia não certificada permitirá ser configurada como um princípio de prova que, conjugada com os demais meios de prova, permite dar como provado o facto em causa. Por outro lado, importa, desde logo, atender à confissão feita pela ré em sede de depoimento de parte, que confessou que quem negociou e acordou o “arrendamento” do imóvel foi a sua filha e a filha e genro do Sr. JS, AC e JC, donde se conclui que a autora não interveio na concretização do acordo e que tudo foi ajustado entre aqueles (…)”.
Vejamos:
De acordo com o disposto no artigo 1.º do Código do Registo Predial, a função primordial do registo predial é a de dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.
A disponibilização do conteúdo dos registos ao público em geral e a cognoscibilidade que, desse modo, se faculta acerca da situação jurídica dos prédios, decorre do denominado princípio da publicidade formal, consignado no artigo 104.º do Código do Registo Predial.
De harmonia com o mencionado artigo 104.º do Código do Registo Predial, “qualquer ssoa pode pedir certidões de actos de registo e dos documentos arquivados, bem como obter informações verbais ou escritas sobre o conteúdo de uns e de outros”.
São, portanto, dois os meios que o ordenamento predispôs em ordem a possibilitar a efectivação do conhecimento público do conteúdo dos registos: as certidões (cujo regime resulta dos arts. 110.º a 113.º do Código do Registo Predial), e as simples informações.
“A (simples) informação sobre o conteúdo dos actos de registo é susceptível de exteriorizar-se de diferentes maneiras.
Na sua mais elementar expressão, ela revestirá carácter verbal. É a vulgaríssima hipótese da pessoa que se desloca à conservatória a fim de que se lhe diga a favor de quem a propriedade deste ou daquele prédio se encontra inscrita.
Mais elaborada é a informação dada por escrito, na medida em que requer do funcionário que a presta a composição dum texto de complexidade variável.
Finalmente, a informação pode ser disponibilizada mediante cópia não certificada (cfr. art. 105.º/2), seja em suporte físico (papel), seja em formato electrónico (ficheiro PDF – cfr. art. 2.º/7 da Portaria n.º 622/2008, de 18-7, modificada pela Portaria n.º 426/2010, de 29-6)” (assim, o Parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e Notariado, n.º CP 66/2010, SJC-CT, de 23-09-2010, disponível em https://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-cp-66-2010-sjc-ct/downloadFile/file/CP66-2010.pdf?nocache=1318252126.26, pp. 3-4).
No mencionado Parecer apreciou-se a questão do valor jurídico da cópia não certificada, nos seguintes termos, que se nos afiguram inteiramente pertinentes:
“Nos termos em que a lei a admite (“com valor de informação”), quer-nos parecer que uma tal cópia não visa ser mais do que simples sucedâneo da informação que de outro modo muito provavelmente se haveria de solicitar por escrito: um meio, prático e económico – tanto para quem o disponibiliza como para quem o obtém – de substituir a declaração de ciência emitida pelo funcionário sobre um estado de coisas ou uma certa realidade que em dado momento se acha verificada nas tábuas.
Este valor substitutivo da informação escrita que, ao menos tendencialmente, divisamos na admissibilidade da cópia não certificada, nada porém tem que ver com a dimensão do valor probatório que a uma tal cópia se haja de reconhecer.
Não pode na verdade esquecer-se que a cópia não certificada de actos de registo (assim como, evidentemente, a que seja extraída de qualquer documento arquivado) constitui ela mesma um documento, pelo que necessariamente incorporará a força probatória própria da categoria documental a que pertence.
Que força é essa?
Para nós é evidente que não pode ser outra que não a que no art. 368.º do CCivil se prevê para as reproduções mecânicas: não sendo impugnada a sua exactidão, a cópia (em papel ou em formato electrónico) fará prova plena do original. E será assim, ao que cremos, quer o “objecto” copiado consista em documento em papel (a “tradicional” ficha de registo, as folhas dos antigos livros de registo) quer consista em documento electrónico (como indiscutivelmente o são as fichas de registo em suporte informático – cfr. art. 2.º/a) do DL n.º 290-D/99)”.
E, nesse mesmo Parecer (p. 5) salienta-se que, “a prova que a cópia não certificada (desprovida, portanto, da atestação, feita pelo funcionário competente, da sua conformidade com o original) é apta a produzir – não se lhe disputando a fidelidade – é somente, como é óbvio, a da verificação ou existência da realidade reproduzida, mas já nada prova nem nada nos diz – precisamente por isso que não é certidão, com os exigentes requisitos a que a sua passagem se encontra adstrita (cfr. art. 112.º do CRP, quanto aos elementos que deve conter) – acerca da “regularidade” (do dever-ser) dessa realidade. Nesta linha, o que a cópia não certificada emitida pelo serviço impetrado em ... de ... demonstra é somente a existência, ao tempo, de uma determinada realidade informática com a configuração nela exibida; mas a partir dela mesma, enquanto pura, simples e material cópia, já não será legítimo querer demonstrar que a realidade registal que à data valia e se achava vigente fosse a que se patenteou.”.
Adverte-se, todavia, nesse mesmo Parecer que, se for exigida, para qualquer efeito legal, prova do registo, essa prova só poderá ser validamente efetuada mediante certidão, nas várias formas que conhece (cfr. artigo 110.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).
Contudo, como bem refere a recorrida não estando em questão ou em discussão nos presentes autos, o direito de propriedade ou qualquer outro direito real sobre o imóvel em questão, não merece qualquer censura a demonstração probatória alcançada pelo Tribunal recorrido, de acordo com os elementos em que se baseou, no modo expresso na motivação de facto, sobre o que ficou a constar dos factos provados n.ºs. 1 e 2.
É que o Tribunal não visou determinar a certeza dos factos reais registados, que apenas se provam pela certidão registral, mas sim, a aquisição da fração em questão por JS, no estado de casado com BC, na data mencionada nos factos apurados.
Ou seja: Os factos em questão reportam-se não à demonstração de qualquer elemento predial do prédio em questão, mas sim, à aquisição da fração autónoma do 2.º andar direito do prédio registado, por JS, no estado de casado com BC, bem como, à data de tal aquisição e tais elementos não foram contraditados ou colocados em causa por qualquer dos réus, não tendo sido impugnado o documento em questão, podendo, pois, dar a conhecer os elementos que foram levados ao registo, sem que os elementos registrais nele vertidos tenham sido – como se disse – colocados em crise.
Assim, poderá o aludido documento – informação não certificada do registo predial junta aos autos – constituir princípio de prova que, em conjugação com os demais meios de prova, permita dar como assente o que ficou a constar dos factos provados n.ºs. 1 e 2.
De acordo com o disposto no artigo 368.º do CPC, “as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão”.
A impugnação terá de processar-se no prazo de 10 dias a contar da apresentação do documento, em conformidade com o prescrito nos artigos 444.º, n.º 1 e 446.º do CPC (cfr., Luís Filipe Pires de Sousa; Direito Probatório Material Comentado; Almedina, 2020, p. 229).
Por seu turno, do n.º 1 do artigo 387.º do CC, decorre que “as cópias fotográficas de documentos arquivados nas repartições notariais ou noutras repartições públicas têm a força probatória das certidões de teor, se a conformidade delas com o original for atestada pela entidade competente para expedir estas últimas; é aplicável, neste caso, o disposto no artigo 385.º”.
Conforme anota Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material Comentado; Almedina, 2020, p. 182), “o valor probatório das fotocópias, que não sejam atestadas nos termos deste artigo, será determinado nos termos do art. 368.º, o qual assume carácter residual face a este art. 387.º”.
Ora, confrontados com a dita informação não certificada, junta pela autora, os réus recorrentes, apesar de alegarem o que expenderam nos artigos 10.º, 11.º, 12.º, 17.º a 20.º da contestação dos recorrentes (tendo a ré MD, sobre tal matéria, alegado, de modo converge com os demais réus, o que consta dos artigos 20.º, 24.º, 40.º, 41.º e 47.º da sua contestação), não impugnaram o documento junto aos autos, nos termos previstos no artigo 444.º, n.º 1, do CPC, pelo que, bem se compreende que, não podendo o aludido documento comprovar o registo – porque não se trata de uma certidão registral – poderá, todavia, determinar a existência dos factos que nele se reproduzem e, nessa medida, servir de meio probatório da realidade que o mesmo retrata, permitindo dar como assente a factualidade constante dos factos provados n.º 1 e 2 – cfr. artigo 368.º do CC.
O resultado alcançado pelo Tribunal recorrido foi, pois, compatível com esta conclusão, não merecendo alguma censura.
Inexiste, pois, motivo para a eliminação de tal matéria dos factos provados e, igualmente, não ocorre alguma circunstância que demande, a tal respeito, a anulação da decisão recorrida.
*
b) A matéria constante do facto provado n.º 4) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
O facto provado n.º 4 tem a seguinte redação:
“4. Desde então, transferiu mensalmente para JS, como contrapartida do facto mencionado no ponto 3, a quantia monetária de 325,00€;”.
Concluem os recorrentes quanto a este facto o seguinte (cfr. conclusão i) das suas alegações de recurso):
“O que resulta dos autos é que o montante era transferido para uma conta titulada por JS, sendo que tal transferência ocorria à sua revelia. E mais, o Tribunal no âmbito dos seus poderes e para melhor avaliar os factos deveria ter esclarecido a titularidade daquela conta bancaria. Sendo também certo que nesta parte não resulta de banda nenhuma que aquele era o único titular. Discorda-se assim da redacção do facto 4 e das conclusões erróneas que o Tribunal extrai deste factos. Assim, o facto 4 não pode constar dos factos provados. Deve ser eliminado”.
Contra-alegando, a autora concluiu, designadamente, que:
“J. O facto 4 deve manter-se provado, pois decorre dos testemunhos de HS, PC e do depoimento de parte da A. - que disseram que a renda era 325,00 € e paga por transferência bancária da conta da A. para a dos proprietários – bem como dos inúmeros comprovativos de transferências bancárias – Docs. 6 e 7 da PI - e até de emails trocados com o R. JC - Docs. 3, 4 e 8 da PI, sendo que tais documentos não foram impugnados pelos Recorrentes.
K. O Tribunal a quo não devia ter esclarecido a titularidade da conta bancária para a qual eram efetuados os pagamentos ou se o 1º Réu era, ou não, o único titular da conta, pois todos os RR. admitiram que as rendas eram depositadas na conta do 1º R. JS, e nenhum dos RR. impugnou os documentos acima mencionados.
L. Em alegações, os RR. voltam a admitir que “o que resulta dos autos é que o montante era transferido para uma conta titulada por JS”, não tendo logrado fazer prova de que se tratava de uma conta bancária que não era de uso corrente do Réu JS.”.
Vejamos:
Na decisão recorrida salientou-se que a convicção do Tribunal quanto aos factos provados n.ºs. 3, 4, 6 e 7 resultou “do teor da prova testemunhal produzida pela autora, sendo certo que, quanto aos mesmos, a ré MD (única ré que impugnou a generalidade dos factos da petição inicial) nem sequer produziu qualquer contraprova”, mais se referindo que, “resulta inequívoco dos depoimentos de HS, HR e PC (filhos e neto da autora) que a autora passou a viver na fracção autónoma em causa desde Maio de 2015, tendo sido explicitado os termos do acordo, quanto aos valores a transferir mensalmente, não sendo, pois, permitida qualquer dúvida sobre a veracidade dos factos em causa, tanto mais que se encontram no processo inúmeros documentos comprovativos de transferências bancárias que suportam, precisamente, essas transferências, de índole mensal”, também se referindo, que “todos os réus admitem nas contestações que as quantias em causa eram transferidas ou depositadas na conta bancária do 1.º réu, tanto mais que até invocam que se tratava de uma conta bancária que não era de uso corrente do réu, usando esse argumento para justificar que, por isso mesmo, o 1.º réu não teria conhecimento desse recebimento”.
Estas considerações de fundamentação, constantes da decisão recorrida, não merecem qualquer censura, pois, de facto, os elementos de prova referenciados, permitem as conclusões alcançadas pelo Tribunal, como resulta dos segmentos dos depoimentos de HS e PC reproduzidos pela recorrida.
Igualmente HR (neto da autora) referenciou, nos termos que mencionou, ter conhecimento de que a sua avó –autora – pagava a “renda”, dizendo, todavia, desconhecer a forma como o fazia.
A autora confirmou, aliás, os pagamentos, por transferência bancária, efectuados mensalmente pela sua filha e ilustrados nos documentos juntos de fls. 17vº-18 dos autos de providência cautelar e de fls. 28 e 28v.º dos presentes autos.
Ora, não obstante as considerações expendidas pelos recorrentes a este respeito, certo é que, não se mostra evidenciada qualquer demonstração probatória no sentido que pugnam: De que as transferências bancárias que tinham lugar para a conta de JS ocorressem “à revelia deste”.
A ausência de prova não poderá, pois, redundar numa alteração ao facto provado n.º 4, para cuja demonstração concorrem, para além dos já referenciados meios de prova, também, por exemplo, dos documentos juntos sob os n.ºs. 3 (onde no email, datado de 27-04-2015, a filha da autora, HS remete a AC e JC, referencia que, quanto à renda, “faço transferência dos 325,00 € para a conta da D. BC…”, sendo que, tal email surge na sequência de comunicação de 26-04-2015, remetida por JC onde se menciona, nomeadamente: “Olá Lena. Conforme prometi aqui vai a informação que precisas. O NIB da BC é: … … … … (…)”), 4 (email de JC, datado de 31-08-2016, remetido a HS e AC, onde se menciona: “Confiram os valores pois como não tenho acesso às facturas baseio-me nos valores debitados ao banco na conta da minha Santa Sogra (…)” e consta um anexo identificado por “Lena Moscavide.xls”, especificado no aludido documento) e 6 (detalhe de movimentos bancários de conta bancária da autora, titulando transferências para o NIB acima referenciado no mencionado valor de € 325,00 mensais), juntos com a petição inicial.
Argumentam, todavia, os recorrentes que “o Tribunal no âmbito dos seus poderes e para melhor avaliar os factos deveria ter esclarecido a titularidade daquela conta bancária”.
Vejamos:
A consagração constitucional do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, nº4 da Constituição da Republica Portuguesa) envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões em que aquele se concretiza.
Como é jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, os Acórdãos do TC n.ºs 86/88, 157/2008 e 530/2008) o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.
O direito à prova significa que as partes em conflito, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal e, ainda, o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como, o direito à contraprova.
Todavia, o direito à prova não é ilimitado.
O direito à prova não pode ser tomado por um direito absoluto na sua essência, e por isso, por vezes, terá de sofrer restrições.
Um dos limites que a lei impõe respeita, precisamente, ao momento da sua apresentação, prevendo-se no ordenamento processual civil português várias normas que estabelecem prazos para o exercício de direitos ou faculdades em matéria de prova, os quais, uma vez decorridos, determinam a preclusão da apresentação de meios de prova.
Prescreve o artigo 411.º do CPC que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Apreciando este princípio – aliás, expresso noutros normativos legais (v.g. arts. 6.º, 7.º, 436.º, 452.º, 467.º, 490.º, 526.º, 590.º, n.º 2, al. c) e 3 e 607.º, nº 1, do CPC) - , refere-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019 (Pº 68/12.7TBCMN-C.G1, rel. CONCEIÇÃO SAMPAIO) que:
“O processo é constituído por uma série de atos dirigidos a um fim - a decisão judicial que resolve o conflito entre as partes -, devendo obedecer a formas e requisitos adequados a esse escopo. Sem regras o processo fica sujeito à indisciplina das partes e cria insegurança, e presta-se a manobras que prejudiquem a obtenção da decisão em tempo razoável e útil.
Tem portanto o processo exigências técnicas, designadamente sujeitando as partes a um tecido de ónus necessários à boa administração da justiça.
Um dos princípios do processo civil é precisamente o da auto-responsabilidade das partes, segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco.
O princípio do inquisitório traduz uma ideia de divisão subordinada de trabalhos, dominante em matéria probatória, entre o juiz e as partes (estas num primeiro plano).
Recebeu consagração legal no art. 411.º ao dispor que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
O princípio do inquisitório exerce atualmente, é certo, um importante papel no processo civil português mas, a nosso ver, funciona subordinado ao princípio do dispositivo, parecendo-nos excessiva a sua configuração como um sistema processual híbrido, que se coaduna em par em torno dos dois princípio).
O nosso sistema processual civil é norteado pelo princípio do dispositivo, competindo-lhe o “monopólio” dos factos e dos meios de prova.
Como escreve Mariana França Gouveia esteirada nos ensinamentos dos mais ilustres processualistas, “O princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exato limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a ação (e de se defender), como delimitam o seu objeto. O princípio dispositivo traduz-se, assim, na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar). No fundo, é um princípio que estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão.”
Compreende-se, assim, por que o princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade”.
Assim, se a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse” (assim, Nuno Lemos Jorge; “Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, in Julgar, nº 3, p. 70).
“Ou seja, o juiz não se encontra obrigado a proceder à inquirição de uma testemunha só porque a parte, que não apresentou oportunamente o rol, invoca a importância daquela inquirição para a descoberta da verdade. (….). Esse uso decorrerá da ponderação feita pelo juiz, em face das circunstâncias concretas que em cada caso se deparem; o que afasta a sua aplicação automática na sequência de simples requerimento, em sede de julgamento, de uma das partes (ou de ambas)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04-03-2013 Processo 293/12.0TBVCT-J.G1, rel. ANA CRISTINA DUARTE).
Não pode, pois, o juiz ao abrigo do princípio do inquisitório suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes.
O disposto no artigo 411.º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio-base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.
Assim, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-03-2018 (Processo 14/15.6T8VRL-C.G1, rel.        JOÃO DIOGO RODRIGUES):
“1- De acordo com o princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade.
2- Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse direto em cumprir.
3- Neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia”.
Ora, no caso, os recorrentes não promoveram - tanto quanto é dada conta nos autos - a junção de qualquer prova no sentido da demonstração da titularidade da conta em questão, nem formularam pretensão de requisição de alguma indagação a este respeito.
Mas, independentemente disso, certo é que, ponderados os termos da causa e a matéria alegada pelas partes, não se afigura que tivesse qualquer pertinência para a apreciação da causa alguma indagação sobre a titularidade efetiva da conta bancária para onde era transferida a renda.
Na realidade, desde logo, cumpre evidenciar que, o que os recorrentes alegaram na contestação que apresentaram foi que a ocupação – e não a transferência para pagamento de valores – pela autora ocorreu à revelia dos proprietários do imóvel (cfr. artigo 26.º), admitindo, todavia, a receção de depósitos em contas de sua titularidade (invocando o que alegaram no artigo 29.º de tal articulado).
Ora, não estando em litígio qualquer questão relacionada com o não pagamento de alguma quantia referente ao arrendamento por banda do locatário – não tendo os réus deduzido alguma pretensão a este respeito – nem suscitado algum questão sobre a forma como ocorreram as transferências – nenhuma questão aduzindo sobre a “repartição” desses montantes na esfera patrimonial dos “proprietários” do imóvel - não teria o Tribunal de efetuar qualquer indagação probatória para “esclarecer a titularidade” da conta bancária onde era depositadas as rendas, o que sempre redundaria na prática de um acto inútil, porque inconsequente e, nessa medida, vedado por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Assim, não procedendo alguma das invocações dos recorrentes a este respeito, inexiste motivo para a eliminação do facto n.º 4) do acervo dos factos provados.
*
c) A matéria constante do facto provado n.º 8) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
O facto provado n.º 8 tem a seguinte redação:
“8. No início de Julho de 2019, cessou o fornecimento desses serviços [aqueles a que se refere o facto provado n.º 7: Água, eletricidade e telefone] no imóvel;”.
Concluíram os recorrentes, na conclusão j) da sua alegação de recurso, quanto a este facto o seguinte:
“j) Facto 8 – a Convicção do tribunal: Resulta do depoimento de parte da Autora (Página 12, linha 8). Relativamente ao depoimento de parte da autora, nem se compreende como é dada tanta (extrema) relevância ao mesmo. Nesta parte temos de considerar que no dia dos factos e perante os agentes da PSP a mesma estava na sua habitação, confortavelmente a conversar com o Sr. JC e a D. AC. Não se apresentava sequer nervosa, não se queixou, nem tinha qualquer ferimento. Apenas se manifestou surpresa com a presença policial. Quando lhe foram explicados os motivos da presença da polícia naquele local a mesma manifestou também total surpresa e desconhecimento, pelo que decidiu, enquanto pessoa válida e capaz, que deveria abandonar o imóvel. Tal situação encontra-se sobejamente refletida no auto de noticia.
Porem, é com total surpresa que durante o depoimento de parte tenha apresentado um depoimento totalmente desprovido da verdade, por não ser sequer coincidente com o auto de notícia que não foi impugnado. Não nos podemos esquecer que foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta.Muito se estranha o facto de o Tribunal não referenciar a comunicação junta aos autos pela própria A. e a ela dirigida cujo teor é o seguinte:‘’Nos termos do mandato que me foi conferido pela Senhora PC (legitima coproprietária do prédio melhor identificado em epigrafe, venho por este meio advertir V.exa da obrigação que sobre si impende de desocupar o supra referido edifício até ao dia 30.06.2019. ‘’
Aquela comunicação foi expedida para a morada do locado e embora a A. no seu isento e verdadeiro depoimento de parte diga que nunca recebeu nenhuma carta, a verdade é que na providencia cautelar junta essa comunicação! Posto isto em evidência, o depoimento de parte tem que ter o valor que efetivamente merece: nenhum! É contrariado pela própria parte nos seus articulados. Só se pode crer que resulta do interesse que a parte tem de facto na causa. Factos que devem ser levados em consideração, real consideração, em tudo quanto tiver por base o depoimento da autora/parte. O facto deve ser eliminado”.
Contrapõe a autora que:
“M. O facto 8, que se deve manter provado, resulta da conjugação do depoimento de parte da A. e dos comprovativos de realização de novos contratos - cfr. Docs. 11, 12 e 13 da PI não impugnados pelos Réus, sendo que a testemunha HS confirmou o corte dos serviços de água, eletricidade e telefone.
N. As alegações ou as transcrições dos Recorrentes relativas ao facto 8 não revestem qualquer relevância para a impugnação deste facto e não o colocam em crise.
O. Face à prova produzida, forçoso é concluir que os cortes de fornecimento de água, electricidade e telecomunicações foram feitos um dia ou dois dias antes da celebração dos novos contratos (o novo contrato de água foi feito a 05/07/2019, o da electricidade a 09/07/2019 e o das telecomunicações a 12/07/2019), ou seja, no início do mês de Julho de 2019, considerando que a A. vivia no imóvel e, como a mesma disse, nunca esteve sem água e luz no imóvel, além de que é ainda facto notório (artigo 412º n.º 1 do CPC) que ninguém podia viver numa casa sem estes serviços.”.
De acordo com a motivação expressa na sentença recorrida, a prova do facto n.º 8 resultou “da conjugação do “depoimento de parte” da autora, livremente valorado pelo Tribunal quanto à matéria de índole não confessória”, meio de prova que, conjugado os comprovativos da realização de novos contratos, no entender do Tribunal permitiu “dar como provada a cessação do fornecimento dos serviços”.
Ora, o Tribunal de 1.ª instância, na motivação da decisão de facto, não tem que descrever, ad nauseam, todos os excertos de cada depoimento prestado na sua integralidade, mas deverá enunciar, singela e sucintamente, o elemento ou elementos decisivos para a formação da convicção alcançada sobre determinado facto.
No caso, e quanto ao facto em apreço, isso foi, de forma suficiente, alcançado na decisão recorrida, ainda para mais, quando os meios de prova pessoais foram objecto de gravação, o que, de algum modo, permite a sua reapreciação por um Tribunal superior e a verificação do cumprimento do aludido dever de enunciação da motivação da convicção probatória do julgador.
Certo é que, ao invés do que invocam os recorrentes, não se vislumbra que o Tribunal recorrido se tenha apenas cingido a considerar o depoimento de parte da autora, relativamente a segmentos não confessórios deste meio de prova.
Mas, diga-se, desde já, também nada obstaria a que o Tribunal o fizesse, sem que isso violasse qualquer normativo.
Na verdade, retirando o efeito confessório – cfr. artigo 358.º do CC - não existe qualquer inibição a que o juiz, se o entender, dê como provado um determinado facto, apenas e só, com base nas declarações prestadas por determinada parte.
É que, a evolução do sistema processual em matéria probatória tem sido feita no sentido de alargar os poderes e a confiança que é depositada no juiz para que atue livremente na valoração da prova produzida, sendo limitados os casos em que há uma imposição legal sobre o sentido de tal apreciação.
Assim, “as declarações de parte que não contenham uma confissão escrita de factos desfavoráveis não têm força probatória plena, sendo apreciadas livremente pelas instâncias” (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-11-2020, Pº 866/18.8T8ALM.L1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES).
Ou seja: É, cada vez mais, tido como meio de prova “tudo quanto se mostre capaz de testemunhar (através da percepção, do raciocínio ou da intuição do observador) a existência de um facto (positivo ou negativo) com interesse para a decisão da causa” (assim, Antunes Varela; J. M. Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, p. 469).
Ora, como afirma Luís Filipe Pires de Sousa (“As Malquistas Declarações de Parte -"Não acredito na parte porque é parte"; Julho de 2015, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel_1_articulados_audiencia_luissousa.pdf): “Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.
Sintetizando, diremos que: (i) as declarações de parte integram um testemunho de parte; (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.
Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.
Mas, independentemente do referido, certo é que, se afigura que o relato expresso no decurso do depoimento de parte pela autora – tendo descrito, com pormenorização e sem qualquer nervosismo ou perturbação (referenciados pelos recorrentes com respeito a circunstâncias que não o do momento de prestação do depoimento da autora), que os fornecimentos de água e eletricidade se encontravam em nome dos senhorios, que a filha da autora combinou pagar a luz, água, gás e renda da fração arrendada, que as contas eram emitidas em nome dos senhorios e que a filha efetuava contas com AC, que se aprestava a receber o dinheiro correspondente e, que, foi cortada a água e a luz em momento anterior ao dia em que referiu que AC e JC lhe tocaram à porta e ingressaram no interior da fração e que foi essa a motivação de terem sido celebrados novos contratos para o fornecimento de tais serviços – se mostra plenamente compatível com a conclusão extraída pelo Tribunal recorrido e, perfeitamente congruente, com os elementos documentais juntos aos autos, nomeadamente, os de fls. 23, 24 v.º a 25 vº, 30, 31 a 37vº, 38, 38vº e 111 dos presentes autos (e de fls. 13 a 15vº e 19 a 27 dos autos de providência cautelar).
Também HS descreveu o corte no fornecimento de água e luz e a realização de novos contratos para o fornecimento de tais serviços, em moldes perfeitamente congruentes com a documentação junta aos autos, situando a contratação de tais serviços na 1.ª quinzena do mês de julho de 2019 (cfr. documentos com datas de: 05-07-2019, contrato de água – doc. 11 junto com a petição inicial; 09-07-2019, contrato de eletricidade – doc. 12 junto com a petição inicial; e de 15-07-2019, contrato de televisão e telefone –doc. 13 junto com a petição inicial).
Assim, não merece qualquer censura, antes compatibilidade com a prova produzida, o resultado probatório alcançado pelo Tribunal recorrido.
De acordo com o exposto, inexiste motivo para a eliminação do facto n.º 8) do rol dos factos provados.
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d) A matéria constante do facto provado n.º 9) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
O facto provado n.º 9 tem a seguinte redação:
“9. Nessa sequência, a autora contratou novos serviços em seu nome;”.
Concluem os recorrentes pela sua eliminação dos factos provados, dizendo o seguinte:
“k) Facto 9 – resulta do depoimento da testemunha HS que supra se transcreveu que foi ela que procedeu às novas contratações. Tal facto não pode constar dos factos provados. Deve ser eliminado.”.
A recorrida contrapôs, sobre este facto, o seguinte:
“P. O facto 9 decorre dos depoimentos acima transcritos relativamente ao facto 8 e dos docs. 11, 12 e 13 da PI, em que consta em todos eles como cliente a A. (e não a filha), sendo que o Doc. 13 se encontra até assinado por esta, pelo que deve manter-se como provado.”.
Ora, muito embora, quer a autora, quer a sua filha – a testemunha HS – tenham salientado a preponderante intervenção desta última, na nova contratação realizada, certo é que, conforme resulta dos documentos de contratação em questão, foram tais serviços contratados em seu nome e, pelo menos, o contrato referente à contratação de serviço de televisão e telefone, mostra-se subscrito pela autora e, não, pela filha desta, em sua representação, pelo que, não poderá afirmar-se que a autora não tenha contratado tais serviços em seu nome.
Assim, em face do referido – e porque também nenhum relevo adviria da especificação de alguma outra realidade a respeito da intervenção de HS nesta contratação de serviços – inexiste motivo para o deferimento do pretendido pelos recorrentes.
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e) A matéria constante do facto provado n.º 10) da decisão recorrida deve ser deve ser eliminada de tal rol?
O facto provado n.º 10 tem a seguinte redação:
“10. Em 15.07.2019, ao final da tarde, os réus AC, JC e MC bateram à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra”;”.
Entendem os recorrentes sobre esta matéria o seguinte:
“l) Facto 10 –Da prova testemunhal supra transcrita , resulta que quem estava na casa não era a Ré MC. Aliás, MC nunca é referida. Nem pela filha da D. CB, nem pela D. CB, nem no auto de notícia nesse momento. Pelo que tal facto não pode ser dado como provado devendo ser eliminado.”.
Os recorrentes contra-alegaram que:
“Q. Relativamente ao facto 10, cumpre dizer que a R. MC também foi a casa da A., contrariamente ao alegado pelos Recorrentes e tal decorre do testemunho do agente da PSP, DR, bem como do testemunho do neto da Autora, HR.
R. Do Auto de 15/07/2019 também consta a presença da R. MC no imóvel, pelo que o facto 10 foi corretamente considerado como provado.”.
Neste ponto, ao invés do enunciado no facto dado como provado e se bem que a ré MC tenha acorrido ao local – sendo a sua presença mencionada, quer por HR, quer no auto de notícia referente à ocorrência do dia 15-07-2019, pelas 17.00 horas – não resultou efetuada, suficiente e cabal demonstração, no sentido de que, no momento em que AC e JC bateram à porta da fração autónoma habitada pela autora, a ré MC aí se encontrasse também.
A presença da ré MC não foi, aliás, referenciada pela autora, a qual, de forma clara e objetiva, descreveu a entrada dos réus AC e JC no apartamento em questão e afirmou – referenciando-se à entrada no apartamento nessa ocasião: “Só foram os dois…”.
De todo o modo, tendo em conta a prova produzida, inexiste motivo para a eliminação factual integral pretendida pelos recorrentes, pois, no mais, a matéria constante do facto provado n.º 10) resultou cabalmente apurada em função da prova produzida e, diga-se, nem é, aliás, questionada, de qualquer modo, a presença e entrada de AC e JC na fração habitada pela autora, nos termos, data e momento a que se refere tal facto provado, pelo que deverá manter-se a inclusão desta correspondente factualidade no aludido facto provado n.º 10).
De acordo com o exposto, determina-se a alteração da redação do facto provado n.º 10) em conformidade e a inclusão da parte não demonstrada, com reporte ao específico momento temporal em questão, num novo facto a integrar no rol dos factos não provados.
Assim, consequentemente, indeferindo-se a eliminação do facto provado n.º 10), determina-se:
- A alteração da redação do facto provado n.º 10), que passa a ser a seguinte: “10. Em 15.07.2019, ao final da tarde, os réus AC e JC bateram à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra””;
- O aditamento de um novo facto – com o n.º 70) – não provado, com a seguinte redação: “Que, aquando do referido em 10), a ré MC tenha batido à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra””.
*
f) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 11), 12) e 13) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser alterada a redação dos factos n.ºs. 32) e 33)?
Os factos provados n.ºs. 11), 12) e 13) têm a seguinte redação:
“11. Quando a autora abriu a porta, foi empurrada pelo réu JC e caiu, batendo com a cabeça;
12. Nessa ocasião, foi ainda pisada pelo réu JC;
13. Dessa forma, os réus entraram no imóvel e referiram que a casa era sua, que a autora não tinha nenhum contrato de arrendamento e que por isso tinha de sair;”
Relativamente a esta factualidade concluíram os recorrentes o seguinte:
“m) Facto 11, 12 e 13 –O depoimento de parte da autora deve ser completamente desconsiderado por tudo quanto se disse a propósito do facto 8. Além disso, o que consta dos factos provados não é o que consta do Auto de Notícia, nem é dito em nenhum depoimento dos Agentes da PSP supra transcritos. É verdade que num primeiro momento, após abrir a porta, o Sr. JC travou que a mesma a fechasse de imediato, mas logo que reconheceu os Réus, estes, com permissão da A. entraram naquela habitação, sem qualquer empurrão na Autora ou na própria porta. E mais, não resulta de lado nenhum que a mesma foi empurrada, caiu e foi pisada. Se tal tivesse acontecido nem sequer tinha sido encontrada a conversar calmamente com os seu ‘’agressores’’. Não estranhou o tribunal o facto da A. não relatar na presença das autoridade qualquer dor, agressão ou medo? Ressalve-se que ninguém presente naquela ocasião vislumbrou ferimentos! Posto isto, resulta claro que os factos 11,12 e 13 não podem constar do elenco de factos provados.”.
Por seu turno, a respeito dos factos provados n.ºs. 32, 33 e 34 dizem os recorrentes não colocar “em causa a assistência hospitalar da A.. sendo certo que pelo motivos defendidos nos factos 11,12,13 tal assistência não tem qualquer relação com a atuação dos RR., pelo que deve tal constar do factos. As lesões descritas no escrito intitulado ‘’avaliações’’ emitido pelo Hospital Beatriz Ângelo podem ter qualquer outra origem, sendo certo que não foram provocadas pela atuação dos requeridos.
Aliás, é evidente que em toda a contenda dos autos a requerente não teve voz ativa, sendo sucessivamente manipulada e induzida pela sua filha. Desconhece-se a origem de tais lesões, porquanto na noite dos factos, 15.07.2020, a requerente não apresentava nenhuma lesão visível, encontrando-se calma e no seu perfeito juízo, facto que declarou aos agentes ali chamados”, tendo concluído o seguinte:
“u) Facto 32, 33 e 34 – Não se coloca em causa a assistência hospitalar da A.. sendo certo que pelo motivos defendidos nos factos 11,12,13 tal assistência não tem qualquer relação com a atuação dos RR., pelo que deve tal constar do factos. Desde logo no facto 32 deve eliminar-se a expressão’’ em consequência do descrito nos pontos 11 e 12 supra’’. Mas mais se sugere que seja eliminado integralmente o facto 32, passando o facto 33 a ter a seguinte redação: Na madrugada de 16.07.2019, foi assistida no Hospital Beatriz Ângelo, tendo um traumatismo na cabeça e na região lombar, bem como com um hematoma na face posterior da perna direita, sem que a sua origem se possa imputar à atuação dos RR.”.
Contra-alegou a recorrida concluindo, sobre esta matéria, o seguinte:
“S. Os factos 11 e 12 decorrem do depoimento de parte da A. que, de forma emocionada, mas verdadeira, referiu que abriu a porta à R. AC, que conhecia de longa data, porque era costume ir levantar correspondência, mas quando abriu a porta foi imediatamente empurrada pelo R. JC, a A. caiu e bateu com a cabeça, tendo sido pisada por este, decorre de prova documental e testemunhal.
T. Este relato é coincidente com o relatório médico de urgência na madrugada de 16/07/2019 (Doc. 14 PI), que revelou uma equimose na região posterior da perna direita e um traumatismo na cabeça e região lombar.
U. Acrescem, ainda, os testemunhos de HS, PC e HR, que viram as lesões, ouviram as queixas da A. (coincidentes com o empurrão e a pisadela do R. JC) e a acompanharam ao hospital, sendo que HS ainda ouviu os gritos da A. e foi tentar socorrê-la, não conseguiu entrar em casa desta, porque os RR. fecharam a porta da casa por dentro.
V. As únicas pessoas que alegadamente não viram as lesões da A. foram os agentes da PSP que colocaram os filhos da A. à margem da situação e os mandaram sair da casa, mesmo depois de PC os ter alertado que a A. tinha sido agredida.
W. Os agentes deviam ter tido em consideração a idade da A. (83 anos), o facto de esta se encontrar sozinha em sua casa com pessoas que não autorizou a entrar e que se mantiveram no local enquanto a A. estava a ser questionada por eles.
X. Os agentes deviam ter apurado o que motivou efectivamente os RR. a deslocarem-se à casa da A. e, sobretudo se esta estava, de facto, bem ou não, mas não disto foi feito, tendo preferido manter a A. e os RR. dentro de casa, em vez de a proteger e chamar os filhos da A. para que a pudessem auxiliar. E também não prestaram atenção ao que o filho da A. lhes transmitiu – que a mãe foi agredida.
Y. Os agentes da PSP não agiram corretamente, pois não consideraram sequer qualquer conversa ou esclarecimento com esses familiares, já que apenas interessava recolher a vontade da Autora.
Z. Esta justificação foi no entendimento do Tribunal descabida, tendo em conta que há alguém que pretende mudar a fechadura de uma casa (habitação) “alheia”, que existe discórdia sobre a ocupação desse imóvel, tendo sido perceção dos agentes que a A. nem sequer estaria informada dessa discórdia entre os RR. e os seus familiares, e tendo ainda em conta que nem sequer são dadas justificações plausíveis das razões para insistir nessa mudança de fechadura.
AA. Os Agentes adotaram uma atitude de “formalismo cego” e de alheamento da realidade, impedindo os filhos da A. de zelar pelos interesses da mãe - ajudando-a a tomar posição sobre a situação – e de se manterem na casa onde a mãe residia há mais de quatro anos.
BB. A tudo isto acresce ainda que a A. disse em Tribunal que a Polícia lhe disse que ela tinha que sair a bem ou a mal, o que denota bem a conduta imprópria dos agentes da PSP que se deslocaram ao local e que não averiguaram todos os factos necessários.
CC. Os depoimentos dos agentes da PSP, bem como o auto de notícia por eles elaborado não merecem qualquer credibilidade, na medida em que como o Tribunal a quo bem apurou, aqueles não agiram corretamente, não tendo aqueles apurado todas as circunstâncias relevantes da situação concreta, nem sequer se a A. ficou com uma chave após a mudança de apartamento, como alegadamente ouviram os RR. prometer.
DD. Os agentes conscientes que da sua conduta podiam advir consequências a nível profissional, elaboraram um auto de notícia à medida (já no dia 16/07/2019, pelas 03h11m), e um depoimento à medida, sendo que o seu comportamento motivou uma queixa ao respetivo Comando (cfr. Docs. 21 e 22 PI), pelo que os seus depoimentos e o auto de ocorrência que elaboraram no dia 16/07/2019, devem ser considerados com cautela.
EE. Tendo em consideração a prova testemunhal transcrita supra, bem como o relatório médico – Doc. 14 PI, devem os factos 11. e 12 manter-se como provados.
FF. Os Recorrentes impugnam o facto 13, mas dos depoimentos transcritos e da prova indicada em sede de alegações não decorre qualquer circunstância que obste à manutenção deste facto como provado.
GG. O facto 13 decorre dos depoimentos conjugados dos agentes da PSP, RD e DR, que estiveram no imóvel dia 15/07/2019, por todos tendo sido declarado que o assunto que era falado no local era o de que os RR. comunicavam que a A. não tinha um arrendamento, que já lhe tinha sido comunicado que tinha de sair do imóvel e que pretendiam a sua desocupação e que até já haveria um processo em tribunal para que a mesma saísse.
HH. Dos testemunhos de HS e PC, também decorre que a A. tinha de sair do imóvel, tendo sido esta a informação que os agentes da PSP lhes comunicaram.
II. Os RR. não produziram qualquer contraprova sobre as razões que levaram os três a irem ao imóvel naquela data e a entrarem dentro do mesmo, permanecendo no seu interior sem serem convidados e mesmo após os agentes de autoridade terem chegado ao local.
JJ. Ora, se os RR. não foram convidados para ir a casa da A., nem tinham qualquer assunto para tratar com esta, forçoso é concluir que a visita dos RR. não teve outro propósito que não o de despejar a A. à força e fazer com a que o imóvel ficasse definitivamente para a Ré MC, como há muito pretendiam.”.
Refere ainda a autora que:
“Os factos 32 e 34 decorreram do relatório médico junto aos autos pela Autora (Doc. 14 da PI) e do depoimento da testemunha HS, PC e HR acima transcritos, devendo manter-se como provados.
Os Recorrentes não indicam qualquer prova susceptível de colocar em causa a prova relativamente a estes factos, limitando-se a tecer comentários e a fazer alegações e conclusões relativamente à autoria das lesões ou a quem teria causado essas lesões, alegações e conclusões que não devem constar da matéria de facto.
Não se pode deixar de dizer, porém, que face aos restantes factos provados, dúvidas não podem existir que foram os Réus que causaram à Autora tais lesões que a levaram a ir ao hospital”.
Vejamos:
Na decisão recorrida apreciou-se, em conjunto, a prova produzida quanto aos factos provados n.ºs. 10 a 21 e não provados n.ºs. 50, 51, 65, 66 e 67, com a motivação de fundamentação que ali foi feita constar.
Conforme assinala a decisão recorrida em face dos elementos de prova produzidos, o depoimento de parte da autora foi, no essencial, convergente e congruente com a prova testemunhal produzida.
Na realidade, ao invés do pugnado pelos recorrentes, não se afigura que exista uma outra versão descaracterizadora do modo como os acontecimentos de 15-07-2019 ocorreram e foram, no essencial, relatados, de forma consistente e concordante pela autora, filhos desta e neto (conforme excertos referenciados nas alegações da recorrida, a este respeito).
As declarações da autora, com 85 anos de idade e com as naturais limitações “de audição e dificuldades de comunicação usuais da sua faixa etária” apresentou umapostura de dignidade de cuja honestidade não nos é possível duvidar”, coincidindo o seu relato, “no essencial, com o relato das testemunhas que, em Tribunal, apresentaram depoimentos objectivos e credíveis”.
Conforme também sublinha a decisão recorrida: “A autora, de forma relembrada quanto aos factos essenciais (havendo apenas imprecisões em questões de pormenor, o que é próprio de quem fala a verdade e não fantasia factos para aparentar saber o que não sabe ou para distorcer a realidade), referiu expressamente que abriu a porta à AC, que conhecia de longa data, porque era costume, mensalmente, irem levantar correspondência. Porém, descreve que, quando abriu a porta, foi imediatamente empurrada pelo JC, que também conhecia, e que por isso caiu e bateu com a cabeça, tendo sido pisada pelo mesmo JC. Não é descrito qualquer comportamento ou contacto físico por parte das rés AC e MC. Acresce que este relato, descrito de forma dolorosa pela autora, mas, ainda assim, credível e espontâneo, colhe inteira verosimilhança por ser sustentado pelo relatório médico da urgência da madrugada de 16.07.2019, que descreve lesões e dores inteiramente compatíveis com o descrito pela autora”.
Importa sublinhar que o auto de notícia (ou qualquer dos respetivos aditamentos) junto aos autos, constitui um documento autêntico – cfr. artigo 363.º, n.º 2, do CC - uma vez que emana de um órgão de polícia criminal a quem é reconhecida competência para a sua elaboração (cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-01-1997, Pº 96P210, rel. SOUSA GUEDES).
E, decorre do artigo 371.º, n.º 1, do CC, que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como, dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. Aqueles factos, referidos no auto, mas que não estejam nessas condições, não são plenamente provados pelo documento, pelo que, podem ser impugnadas, nos termos gerais, as declarações documentadas.
O documento em causa constitui, nas palavras de Vaz Serra (“Provas”, BMJ 111.º, pp. 123 e 133) um documento testemunhal, na medida em que o documentador se limita a atestar um facto, a informar acerca de um acontecimento que ocorreu, limitando-se a força probatória plena desse documento aos factos praticados pelo documentador e por ele atestados. E prova ainda plenamente os factos atestados que se passaram na sua presença. Todavia, a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídica são excluídos do alcance da prova plena do documento, pois disso não podia o documentador aperceber-se (cfr. Vaz Serra; “Provas”, in BMJ 111.º, pp. 135-136).
Se é certo que, determinados elementos constantes do referido auto, como a data, o local da ocorrência, quem a comunicou, as testemunhas e respetiva identificação constituem, sem dúvida, elementos diretamente percecionados pelo agente de autoridade policial que elaborou tal documento, devendo ter-se como plenamente provados, outros há, todavia, que não se mostram demonstrados ou abrangidos por tal prova plena, pela simples razão de que não foram diretamente percecionados pela referida autoridade policial.
Conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-06-2019 (Pº 18561/17.3T8LSB.L1-2, rel. LAURINDA GEMAS): “Uma participação policial ou auto de notícia, ainda que possa revestir a natureza de documento autêntico, não está dotada de força probatória plena nos termos do art. 371.º, n.º 1, do Código Civil, relativamente aos factos nela descritos com base nas declarações do denunciante/queixoso/testemunha”.
Ou dito de outra forma: “Os documentos autênticos fazem prova plena apenas dos factos praticados ou percecionados pela autoridade ou oficial público” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-02-2022, Pº 11127/19.5T8SNT.L1-8, rel. MARIA DO CÉU SILVA).
Assim, conforme sintetiza Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material Comentado; Almedina, 2020, p. 136): “O documento autêntico faz prova plena sobre as seguintes vertentes: a sua proveniência; a identidade dos declarantes se feita com base no conhecimento pessoal do notário (…); as declarações proferidas pelas partes e rececionadas pelo oficial público; os atos realizados pelo documentador ou a que o mesmo assistiu; a data e lugar da outorga. Na sua essência, a força probatória plena reporta-se aos factos ocorridos na presença do oficial público/notário e aos atos que o mesmo declarou praticar, ou seja, aquilo que o mesmo atesta conhecer de visu et de auditu ex propriis sensibus.
No que tange às declarações proferidas pelas partes perante o oficial público, a eficácia probatória da prova plena reporta-se apenas ao conteúdo extrínseco das declarações, ou seja, ao facto histórico que as partes proferiram declarações com aquele teor perante o oficial público documentador. A força probatória não se estende ao conteúdo intrínseco das declarações, isto é, à veracidade, sinceridade e validade do que foi afirmado pelas partes perante o oficial público (…) porquanto a veracidade/sinceridade/validade das declarações está subtraída às perceções do documentador.
Não são abarcadas pela força de prova plena os segmentos do documento autêntico em que ocorram: juízos pessoais ou valorações do oficial público que sejam expressão de um convencimento lógico-dedutivo; a valoração da capacidade natural do declarante (…)”.
Em conformidade com estes aspetos, a aferição fatual do modo como se deu a abertura da porta pela autora, quando os réus ingressaram, bem como o que sucedeu e que determinou a entrada dos réus no local, não tendo sido facto presenciado ou percecionado pela autoridade policial, não se mostra coberto pela força probatória plena, antes, sendo factualidade livremente aferível ou valorável pelo Tribunal, em função das provas que sejam produzidas.
Ora, tendo em conta estes aspetos e não olvidando que, “[a] valoração probatória dos factos deve assentar num raciocínio de tipo problemático, sustentado na razão prática, mediante a análise crítica dos resultados veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas, à luz das regras da experiência comum colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo assim a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se paute pelo princípio da completude racional” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-12-2012, Pº 597/10.7TBTV.L1-7, rel. TOMÉ GOMES), reapreciados, criticamente, os depoimentos de RD e de DR, agentes da PSP que acorreram ao local, bem como, das demais provas produzidas, conclui-se que tais depoimentos dos agentes policiais, não contradizem ou infirmam, a realidade afirmada pela autora e corroborada pelas testemunhas HS, PC e HR.
Como bem se sublinhou na decisão recorrida, “os réus não produziram qualquer contraprova, digna dessa qualificação, sobre as razões que os levaram (…) a irem ao imóvel naquela data e a entrarem dentro do mesmo, permanecendo no seu interior, sem serem convidados e mesmo após os agentes da autoridade chegarem ao local (sendo relatado por um dos agentes que foi o réu JC que lhe abriu a porta do imóvel). Assim, não tendo ficando esclarecido que os réus fossem visitas da autora ou que tivessem um qualquer assunto (lícito e válido) a tratar com a mesma, não se compreende sequer a sua presença no interior de uma habitação onde a autora residia, nas circunstâncias que rodearam essa “visita”. E mal se compreende essa permanência, quando a mesma era, notória e evidentemente, uma fonte de discórdia e desentendimento, que havia motivado a deslocação dos agentes da autoridade ao local. Deste modo, assume total credibilidade as declarações da autora e dos seus familiares que se deslocaram ao imóvel, ou seja, fica inteiramente provada a intenção dos réus e o teor da conversa que mantiveram com a autora (…)”.
Os mencionados agentes da PSP reportaram – em linha com o que foi escrito no auto de notícia - que, da primeira chamada a que acorreram, presenciaram a autora a conversar com a senhora AC, de forma que caracterizaram de “calma” ou “tranquila”, mas, claramente, acorreram ao local num momento diverso daquele que mediou entre a entrada de AC e JC, o chamamento das autoridades e a comparência destas no local, não permitindo inferir, o “estado” da autora, no momento de comparência das autoridades policiais, qualquer conclusão positiva sobre a forma como os réus entraram (anteriormente a esse momento) na fração e sobre a agressão –lesão da integridade física- sofrida pela autora (também em momento anterior à da comparência das mencionadas testemunhas RD e DR).
O mesmo se diga em face do relato – diga-se, no mínimo, “desconcertante” – dos mencionados RD e DR, que, apesar de tudo, não permite retirar alguma conclusão para colocar em causa o relato objetivo, preciso, detalhado e claro da autora (ainda que, prestado com a emotividade própria de quem se sentiu comprimida na sua pessoa).
Assim, RD referenciou que o Sr. JC lhe transmitiu, nessa ocasião, que já havia processo em Tribunal, mas a testemunha, ao mesmo tempo, mencionou que não solicitou qualquer comprovativo desse facto, muito embora lhe tenha sido confirmado que a autora era arrendatária de um contrato de arrendamento verbalmente celebrado. Referiu o mesmo RD que a autora “não estava a par” e que a autora “não percebia porque é que a Senhora AC e o Senhor JC estavam ali” e, também, que a autora “não entendia bem o que nós – PSP – ali estaríamos a fazer”. Referiu que, não se colocou então qualquer questão de a autora abandonar a casa em questão, mas que apenas era pretendido pela Senhora AC e pelo Senhor JC que fosse mudada a fechadura da porta de entrada da fração e que, perante essa solicitação, a autora, questionada para o efeito, “não se opôs”, muito embora também tenha transmitido que “os filhos da autora não queriam que se fizesse a mudança…mas a autora estava bem a falar connosco e disse que não havia inconveniente”.
Referiu a mesma testemunha que, da 2.ª vez em que a autoridade policial acorreu nesse dia 15 à habitação, a autora já se encontrava mais nervosa, mas que, apesar disso, a autora transmitiu que a fechadura poderia ser mudada, mas que seria facultada uma chave à autora (facto que, contudo, a PSP não veio a certificar ou assegurar).
Por seu turno, DR, que acompanhou a mencionada testemunha RD, referiu que em 03-07-2019 tinha sido chamado pelo Sr. JC, referindo que o mesmo transmitiu, então, “que ia buscar a correspondência” do senhorio, mas que “não conseguia aceder à correspondência”, sendo que, “por causa do cancelamento dos contratos, a D. HS não lhe deu a chave”, referindo que a chave trocada seria “a do prédio”. Descreveu os factos do dia 15 de forma compatível com o referido pelo seu colega de trabalho e como descrito no auto de notícia elaborado, reiterando o desconhecimento da autora sobre a razão pela qual a PSP tinha sido chamada, nem o que se passava com o arrendamento, mas que a autora não se opôs à mudança da fechadura, ficando acordado que lhe seria fornecida cópia da nova chave. Segundo precisou, “não havia um motivo para a fechadura ser trocada, mas a inquilina não se opôs…”, mencionando que, segundo opinou, a autora se estava a sentir “um entrave” entre “a sua filha e os senhores JC e PC”.
Ora, como bem se evidenciou na página 20 da decisão recorrida, “não (…) se compreende a urgente necessidade de mudança de uma fechadura da casa onde a autora habitava, como o comportamento do réu JC é sobejamente revelador de uma situação de superioridade e intimidatória, criada com vista [a] conseguir, fosse por que meio fosse, que a autora naquela noite saísse do imóvel”, facto que o referido RD não conseguiu explicar, a que acresce a ausência de demonstração documental de qualquer tentativa de resolução da questão por intermédio do Tribunal.
Se tudo estava bem ou em caminho de ser resolvido (com processo já em vias de resolução em Tribunal, conforme referenciado no auto de notícia), porque é que existia a necessidade urgente de mudança da fechadura da casa onde a autora habitava e porque razão, no mesmo dia, a PSP foi chamada a ocorrer por 3 ocasiões ao local em razão de contenda entre as partes?
A perplexidade aferida pelo Tribunal recorrido em face da intervenção policial ocorrida no dia 15-07-2019, merece a integral adesão deste Tribunal de recurso:
“(…) resultando inequívoco que, na noite de dia 15.07.2019, a fechadura do imóvel foi trocada a mando dos réus e que a autora ficou fora do imóvel, sem sequer ter uma chave do mesmo.
Este facto foi confirmado pelas mesmas testemunhas HS, PC e HR, bem como pelos agentes da autoridade que depois disso foram ao local, sendo factos inequívocos.
RD, que esteve no local na data da ocorrência, confirmou que os “proprietários” iam mudar a fechadura e que “a D. CB já tinha sido contactada para sair do imóvel” e que “já havia uma acção em Tribunal”.
Já DR, que também esteve no local, referiu que o Sr. JC pretendia trocar a fechadura. Porém, bem avaliado e muitas vezes indagado sobre as razões, resultou que esta testemunha não conseguiu encontrar justificação para esta vontade dos réus. Porém, foi ainda relatado pela testemunha que os agentes não ficaram no local, que a troca da fechadura foi feita após terem saído e que, só depois de terem sido novamente chamados, “voltou ao local e viu que a D. CB estava no exterior”, acompanhada pela filha e pela Advogada.
Resulta inequívoco que não foi fornecida à autora uma nova chave para que a mesma tivesse acesso ao imóvel, Aliás, se a autora dispusesse de chave não haveria sequer razão para voltar a mudar a fechadura nessa mesma noite, o que resulta confirmado, conforme se verá.
(…)
E a verdade é que, ainda que a autora tivesse saído e possa ter declarado pretender sair do imóvel, a verdade é que, após ser trocada por terceiros uma fechadura da qual não lhe foi entregue uma chave, é inteiramente justificado o facto de a autora ter pretendido não permanecer no imóvel naquela noite, não podendo, porém, interpretar-se essa atitude da autora como tendo pretendido abandonar definitivamente a casa onde habitada (deixando todos os seus bens no seu interior) para não mais regressar, nem sendo crível que essa atitude da autora pudesse ser interpretada pelos réus como uma vontade de cessar, de imediato, o vínculo que a legitimasse a viver naquela casa.
E esta interpretação do Tribunal é a única possível, à luz de juízos lógicos e de experiência comum, sobretudo se tivermos em conta que, naquela noite, privada da chave do imóvel, a autora trocou novamente a fechadura a expensas suas.
Quanto ao Agente DR, o mesmo referiu ter-se apercebido de que a D. CB não sabia de nada, ou seja, não sabia daquela confusão e de que o Sr. JC queria que ela abandonasse o imóvel. No, entanto, refere esta testemunha que “a D. CB não se opôs à mudança de fechadura”, tendo também sido referido pela testemunha que o Sr. JC ia mudar a fechadura porque esta teria sido trocada e queria uma chave para acesso ao prédio (razão sem a mínima sustentação ou justificação).
Acresce que é referido pela testemunha que toda a família da D. CB estava a tentar impedir a mudança da fechadura, mas que não foi sequer considerada qualquer conversa ou esclarecimento com esses familiares, já que apenas interessava recolher a vontade da D. CB.
Não podemos deixar de considerar esta justificação totalmente descabida, tendo em conta que há alguém que pretende mudar a fechadura de uma casa que é uma habitação “alheia”, que existe discórdia e discordância sobre a ocupação desse imóvel, tendo sido percepção dos agentes que a autora nem sequer estaria informada dessa discórdia mantida entre os réus e os seus familiares, e tendo ainda em conta que nem sequer são dadas justificações plausíveis das razões para insistir nessa mudança de fechadura.
É razão para dizer que os Senhores Agentes adoptaram uma atitude de “formalismo cego” e de total alheamento da realidade, impedindo, na prática, os filhos da autora, sobretudo a filha que era quem contactava com os réus, de zelar pelos interesses da mãe, ajudando-a a tomar posição sobre a sua situação na medida que mais lhe conviesse e ajustasse aos seus interesses, impedindo que os filhos da autora se mantivessem na casa onde a mãe residia há mais de quatro anos, tendo sido olvidado pelos Senhores Agentes da PSP que o direito não se opõe ao auxílio e aconselhamento de terceiros, designadamente por parte filhos, a quem compete, seguramente, zelar pelos interesses dos progenitores numa fase da vida em situações da vida em que isso se possa justificar, não porque a D. CB fosse “incapaz”, mas porque estaria a ser confrontada com uma situação inédita, sendo confrontada com informações que desconhecia sobre um alegado dever de desocupar o imóvel, sobre ter sido notificada para sair, sobre a inexistência de contrato e por até sobre a existência de uma fuma acção judicial que nunca foi instaurada pelos réus.
Por tudo isto, o comportamento dos agentes da autoridade é de lamentar e teve por efeito que, dada a sua inércia e alheamento da realidade fundado num formalismo desmedido, naquela noite, a autora, que apagava rendas há quatro aos, saísse do imóvel. Segundo cremos, é totalmente impossível extrair destes meios de prova, que a autora tivesse abandonado de livre vontade o móvel, sendo evidente que a autora não entregou as chaves do mesmo, nem que tivesse pretendido fazer cessar “o contrato”. Não foi nada disto o que foi ouvido e presenciado pelos agentes da autoridade. Aliás, isso mesmo acabou por ser confirmado pelo Agente Ramos, quando admitiu não saber se ela saiu apenas por aquela noite ou se saiu para abandonar o imóvel para sempre, porque isso não foi referido nem esclarecido. Já quanto aos factos n.ºs 68 e 69, factos cujo ónus de prova competia à autora, a verdade é que não ficou provado que se tenha tratado unicamente de uma intermediação por parte dos réus e que tenham sido quer a autora, quer JS ou BC a celebrarem o negócio, pois, resulta de toda a prova produzida, designadamente pela autora, que o acordo foi na sua integralidade estabelecido entre HS e AC e JC (…)”.
Na realidade, perante o quadro factual encontrado, aquando da primeira solicitação no dia 15-07-2019, pelos agentes de autoridade – em que a autora se encontrava na sua habitação com os réus JC e AC; que a entrada na habitação tinha sido forçada pelos réus; que a autoridade tinha sido convocada porque havia “notícia de distúrbios entre inquilino e proprietário” – impunha-se uma indagação objetiva sobre as circunstâncias do chamamento e, bem assim, sobre as concretas razões da presença daqueles réus na habitação da autora e, ainda, sobre as concretas motivações para a pretendida mudança de fechadura por aqueles, indagação que se mostrasse adequada à pessoa, idade, estado emocional dos intervenientes e demais circunstâncias da situação.
Ao invés e em detrimento de tal indagação, foram colhidas pela autoridade policial, num quadro de inflexível formalismo e de incapacidade de relacionamento das circunstâncias relatadas pelos vários intervenientes, declarações nos termos mencionados no auto de notícia, que, se encontram enquadradas relativamente à autora, num quadro de medo (que a autora refere que o réu JC lhe causava) e de receio que a presença da autoridade policial não permitiu debelar (vejam-se as declarações da autora sobre o que autoridade policial percecionou sobre as suas declarações, dizendo que, num primeiro momento, a polícia “estava a seu favor”, mas que, depois, tal não sucedeu), tendo sido desvalorizado o declarado pela participante (HS), em detrimento da posição – que a autoridade policial entendeu como válida, não obstante o aludido circunstancialismo – expressa pela autora e “pelos senhorios”, mas, todavia, sem assegurar que a aludida posição da autora era devidamente acautelada (por exemplo, pelo efetivo recebimento de uma nova chave resultante da mudança de fechadura que os réus procuravam empreender) e, bem assim, que a mesma – que, num primeiro momento, não se encontrava “a par” da situação (como referenciado pelos agentes RD e DR) – tivesse percebido e ficado ciente do que a autoridade policial lhe transmitia.
Em face das considerações expressas na aludida motivação decisória, tendo por base as provas assinaladas encontra-se, cabal e circunstanciadamente, evidenciado o processo de formação da convicção do Tribunal sobre o modo como os factos ocorreram no dia 15-07-2019, assinalando-se a preponderância de probabilidade de ocorrência dos factos como assumido pelo Tribunal recorrido, sem que tenha existido qualquer demonstração probatória para que, tal conclusão, seja postergada ou colocada em crise.
Aliás, no que concerne aos factos 11) e 12), assinalados na descrição fatual levada a efeito pela autora – direta interveniente nos acontecimentos em questão (sendo que, pelos demais intervenientes não foi, como se disse, apresentada outra prova da respetiva ocorrência) - , constantes do rol de factos provados, os mesmos mostram-se compatíveis com a documentação clínica elaborada na sequência da assistência hospitalar ministrada à autora (cfr. doc. n.º 2, junto com a petição inicial), na sequência de ter acorrido ao serviço de urgência, por “agressão por parte dos senhorios da casa onde morava, após terem arrombado a porta (…) refere que lhe pisaram a perna direita e com traumatismo na cabeça e na região lombar”, tendo sido então constatada, no exame objetivo, “dor à palpação da região occipital associada a pequeno hematoma subgateal…dor à palpação paravertebral lombar…equimose na região posterior da perna direita”, concluindo-se: “Admite-se traumatismo por agressão…”, tudo de forma credível, compatível e coerente, com a descrição factual que a autora efetuou quanto aos factos ocorridos em 15-07-2019.
Ora, estes aspetos, permitem, com a necessária e suficiente consistência, formar a convicção positiva sobre a realidade do que ficou consignado nos factos provados n.º 32), 33) e 34), onde têm correspondência e verosimilhança com o relato efetuado pela autora e pelos seus filhos e neto.
Mas, como se disse, a própria documentação clínica admite a ocorrência de traumatismo por agressão, sendo as consequências verificadas na pessoa da autora, aquando da assistência hospitalar, coerentes com a descrição factual que a autora efetuou e com o motivo – consignado na documentação clínica – do recurso a tal assistência, não sendo, por isso, viável a afirmação de que é desconhecida a origem das lesões na autora ou que as mesmas não têm relação com a entrada dos réus na casa habitada pela autora.
Por outro lado, conforme decorre das declarações da autora, mas, de forma mais impressiva, das declarações dos seus filhos, a deslocação dos réus AC e JC à habitação onde residia a autora consistiu num pretexto para reaver a casa, forçando a autora a sair.
Isso mesmo foi, aliás, com maior evidência, afirmado nos autos de providência cautelar, na decisão sumária proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 11-02-2021: “Os Requeridos ludibriaram – nessa ocasião – a Polícia, ao mencionarem aos agentes policiais um suposto problema na correspondência, uma alegada mudança indevida de fechadura pela Requerente sem o consentimento deles ou ainda um pretenso processo judicial (que, na realidade, nunca foi por eles instaurado) para justificarem a presença deles no imóvel e a substituição da fechadura” (p. 24).
Repare-se que, no auto de notícia é mencionado ter “JC informado que o intuito dele era…mudar a fechadura para de alguma forma poder ter acesso à correspondência dos familiares”, quando o que, inexplicavelmente, foi mudado, a mando de tal réu, foi a fechadura da porta da habitação da autora e, não, qualquer fechadura da caixa onde o correio era depositado.
Certo é que, conforme descrito no próprio auto, como reportado aos réus, os mesmos descreveram “ter tocado à campainha da residência cuja porta lhe foi aberta pela locatária CB. Esta ao reconhece-los de imediato tentou fechar a porta, momento em que JC colocou o pé de forma a impedir, empurrando a porta acedendo assim ao interior da fracção, juntamente com a esposa…”, assim se comprovando, no essencial, a factualidade que foi vertida no facto provado n.º 13), em conjugação com os demais meios de prova que, sobre essa matéria, incidiram.
Inexiste, pois, em face de tudo o exposto, motivo para a eliminação do que consta dos factos provados nos n.ºs. 11), 12) e 13), ou, para a alteração gizada pelos recorrentes quanto aos factos 32) e 33).
*
g) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 14) e 15) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol?
Os factos provados n.ºs. 14) e 15) têm a seguinte redação:
“14. Tendo tido conhecimento desse facto, os filhos da autora dirigiram-se ao imóvel.
15. A PSP, uma vez no local, não deixou os filhos da autora permanecerem junto desta, impedindo-os de permanecerem no interior da fracção”.
Sobre estes, referem os recorrentes o seguinte:
“Convicção do tribunal: Decorrem dos depoimentos de HS, PC, HR, agente RD (Página 13, linha 27, 28, 29)
Nosso entendimento: Tais factos são falsos e naturalmente não estão provados, tendo inclusivamente sido feita prova em contrário.
Do auto de notícia transcrito a propósito dos factos 11,12 e 13 resulta que os filhos da A. se encontravam no exterior do prédio à chegada da PSP, não tendo sido impedidos de entrar na fracção. Na realidade foram até chamados para esclarecer a hipotética incapacidade da progenitora. O que o Tribunal deve querer dizer é que os agentes da PSP não deixaram os filhos falar pela mãe, porquanto essa era perfeitamente válida e capaz de decidir por si. Vejamos, pois, a prova:
Testemunha DR, agente da PSP em Sacavém, que prestou o seu depoimento no dia 05.11.2021, com inicio às 14:11:30 e fim às 15:13:27
Exma.Sra. Dra. Juíza: Pronto então explique melhor….Explique melhor.
Testemunha :A senhora HS…a senhora HS, cá em baixo, quando contactou connosco estava assim meio alterada…e…com a respiração um bocadinho ofegante e por ai fora. E disse:’’entraram duas pessoas estranhas à força na casa da minha mãe!’’. Ou seja, ela sabia de quem se tratava, mas para mim e para o meu camarada…o meu camarada que estava comigo, o agente Domingues, deu-nos a entender que não sabia de quem é que se tratava.
Exma.Sra. Dra. Juíza: Certo.
Testemunha:Ah..pronto e havia naquele momento, após entramos, já tendo contactado com o senhor JC e me aperceber então, efectivamente, o que é que tinha acontecido.
Exma.Sra. Dra. Juíza: Ver se eu percebo…o senhor então subiu ao apartamento, entrou dentro do apartamento e falou com as pessoas, foi isso?
Testemunha:Exactamente.
(…)Advogada da A.: Porque é que a senhora, mediante a sua explicação, disse-lhe que das portas para dentro era ela que mandava, perante essa explicação, a senhora disse: ‘’Eu só não saio já porque não tenho para onde ir’’?
Testemunha: O que ela nos deu a entender é que ela não queria criar problemas a ninguém. Quem estava a liderar o processo era a filha e ela desconhecia a situação dai para trás e ela sentiu-se como um entrave que estava ali no meio.
Advogada da Autora: Espere…. espere… senhor agente se ela desconhecia a situação pedia à filha para explicar a situação e devia de ter explicado à mãe o que se estava a passar. Os senhores permitiram isso?
Testemunha: A filha, a filha a única situação em que ela quis intervir- e acho eu está mencionado no auto... Ela e o filho quando perguntamos à Senhora CB se se opunha à situação e se se opunha a que eles estivessem dentro da residência, ela não se opôs a nada. E a filha e o filho cortaram-lhe a palavra… tentaram cortar a palavra à mãe e a dizer’’ tens de dizer que eles tem que sair. Que não os queres aqui.’’
(…)
Testemunha: Eu nesse momento até chamei a senhor HS à parte: ‘’senhora HS a sua mãe é inimputável ou tem alguma alteração, algum termo, que lhe diga que ela não pode exercer as coisas que foram assinadas por ela?’’. Não foi mostrado qualquer documento, ou seja, a D. CB para todos os efeitos é lucida e ela é que exerce a vontade dela.
RD, agente da PSP em Sacavém que prestou depoimento no dia 27.09.2021 das 15:02:19 à 16:06:12
Testemunha: No 15 de julho, sensivelmente pelas 17horas, eu era motorista da carro de patrulha de Sacavém. Fui chamado ao local da ocorrência que estaria…havia notícia de um desentendimento entre o proprietário de uma casa e a pessoa que estava na respectiva casa a arrendar. Chegados ao local contactámos com a senhora HS que se encontrava no exterior e disse que a sua mãe era a pessoa que arrendava a casa, que morava naquela casa, que estariam duas pessoas, um casal dentro da casa, ela desconhecia quem fosse. Nos deslocámos-mos de imediato à residência, tocamos à porta. A porta foi-nos aberta pelo senhor JC que nos disse que era o proprietário da casa, genro do proprietário, que tinha uma procuração, que ele tinha direitos sobre a casa, que se encontrava no interior a sua esposa e a Sra. CB - que seria quem estava a arrendar a casa. Solicitamos que queríamos contactar com a Sra. CB para ver se estava tudo bem, a senhora CB compareceu perante nós , depois nós entramos dentro da residência, com autorização dos intervenientes. Perguntamos à senhora CB se estava tudo bem e ela disse que sim. Se conhecia os intervenientes, ela disse que sim, que eram os proprietários da casa. Dissemos à filha que estava tudo bem. A filha, D. HS, depois compareceu, posteriormente, o filho da D. CB, o Sr. PC, se não estou em erro. Queriam contactar com a mãe. Ela contactou com eles e disse que estava tudo bem.
(…)
Exma.Sra. Dra. Juíza: Os filhos também estavam dentro da casa nessa altura, é isso?
Testemunha: os filhos estavam primeiramente no exterior. Depois entraram dentro da casa, porque pediram para contactar com a mãe para ver se ela estava bem. A senhora CB que como era ela que estava dentro da casa disse que poderiam entrar. Eles entraram dentro da casa. Tiveram… nesse momento estávamos todos a dialogar dentro da residência.
Exma.Sra. Dra. Juíza: E é ai que o senhor diz que estava tudo pacifico.
(…)
Advogado dos Réus: Essa questão do pé na porta…pelo que eu entendi, o sr. JC terá colocado o pé na porta por forma a ela não fechar e possibilitar dizer alguma coisa(…) após o que a senhora CB terá autorizado a entrada. Foi isto que disse ou não foi isto que disse?
Testemunha: Sim. Exactamente.
Advogado dos Réus: Houve ou não houve…pergunta objectiva: houve ou não houve entrada forçada que tenha sido transmitida pela d. CB?
Testemunha: Não.
Advogado dos Réus: Estava mais alguém, ou foi-lhe transmitido que mais alguém estivesse em casa com a dona CB nesse momento?
Testemunha: Não.
Advogado dos réus: Portanto, a única pessoa que poderia dizer alguma coisa a esse respeito era a D. CB ou o sr. JC e a D. AC?
Testemunha: Sim.
Advogado dos Réus: E a senhora CB disse-lhe em alguma parte que a entrada tinha sido forçada?
Testemunha:Não.
Advogado dos Réus: A senhora CB queixou-se de alguns maus tratos da parte do sr. JC ou da dona AC.
Testemunha: Não.
Advogado dos réus: Ou da parte do sr. LS?
Testemunha: Não.
Nem sequer é credível o depoimento da filha da A., quem é nosso entender é a verdadeira celebrante de todo e qualquer acordo celebrado entre as partes. Ora, uma filha tão preocupada que ouve a mãe gritar, vê a mãe caída e decide ir para a porta do prédio esperar pelos agentes da PSP? Se a mãe estivesse caída não teria uma filha diligente chamado uma ambulância e ficado junto da sua mãe ou pelo menos junto da porta da fracção?
Transcrevendo o que apenas interessa nesta parte:
Testemunho de HS, do dia 27.09.2021 entre as 10:25:35 e as 12:00:57.
Testemunha:Depois cortaram a água, cortaram a luz. Cortaram a agua e cortaram a luz …depois eu fiz o contrato da agua e contrato da luz. Depois cortaram a tv cabo e eu fiz o contrato da tv cabo. Entretanto no dia 15 de julho(…) o que é que aconteceu….a Sra. AC toca a campainha da minha ame com a desculpa de ir la buscar a correspondência, a minha mãe abre a porta e quando abre a porta a AC e o sr. JC empurram a porta e a minha mãe começa a grita. Eu estava em minha casa e ouvi os gritos da minha mãe. Venho a correr e quando venho a correr vejo já a minha mãe caída no chão.(…)
Advogada da A: então e a senhora perante essa situação o que é que fez?
Testemunha: Chamei a polícia.
Advogada da A:Chamou a polícia …
Testemunha: Chamei a polícia logo. Chamei a polícia e entretanto a policia vem…veio…vieram dois policias…um um…entraram...eu quis entrar porque eu só ouvia a minha mãe a gritar e chorar e tudo. E entretanto enquanto a policia chegava o sr,. JC gritar com a minha mãe. Parecia um lobo!
Estes factos estão assim claramente em divergência com a prova produzida pelo que não podem ser dados como provados”.
E, sobre esta impugnação concluem:
“n) Facto 14 e 15 - Tais factos são falsos e naturalmente não estão provados, tendo inclusivamente sido feita prova em contrário. Do auto de notícia transcrito a propósito dos factos 11,12 e 13 resulta que os filhos da A. se encontravam no exterior do prédio à chegada da PSP, não tendo sido impedidos de entrar na fracção. Na realidade foram até chamados para esclarecer a hipotética incapacidade da progenitora. O que o Tribunal deve querer dizer é que os agentes da PSP não deixaram os filhos falar pela mãe, porquanto essa era perfeitamente válida e capaz de decidir por si. Vejamos, pois depoimentos de DR, agente da PSP em Sacavém e RD, agente da PSP em Sacavém , supra transcritos. Nem sequer é credível o depoimento da filha da A., quem é nosso entender é a verdadeira celebrante de todo e qualquer acordo celebrado entre as partes. Ora, uma filha tão preocupada que ouve a mãe gritar, vê a mãe caída e decide ir para a porta do prédio esperar pelos agentes da PSP? Se a mãe estivesse caída não teria uma filha diligente chamado uma ambulância e ficado junto da sua mãe ou pelo menos junto da porta da fracção?a este propósito também se transcreveu o depoimento de HS. Estes factos estão assim claramente em divergência com a prova produzida pelo que não podem ser dados como provados”.
Ora, ao invés do pugnado pelos recorrentes não se patenteia qualquer divergência entre os factos em questão e a prova produzida.
Na realidade, que os filhos da autora - sabendo que os réus AC e JC tinham forçadamente acedido ao interior da fração habitada pela autora - se deslocaram ao imóvel dos autos, nenhuma dúvida subsiste, tendo sido esse – e, como será lógico, certamente, a prestação de ajuda ao respetivo familiar - o motivo de tal deslocação.
A autora referiu que chamou a polícia e que, depois, compareceu no local a filha e os netos. Situou também, no local, mas mais tarde, a presença do filho (depois entrou o filho “…acabei por ir ao hospital”).
HS, de forma compatível, referiu ter-se apercebido da entrada dos réus na casa habitada por sua mãe (momento em que a mencionada testemunha se encontraria em sua casa, que fica por cima da fração que a autora habitava), mas que já não conseguiu entrar.
PC referiu que, na sequência de telefonema da sua irmã – HS – se deslocou ao prédio, mas não conseguiu entrar na casa habitada por sua mãe, dado que a porta estava fechada. Referiu que, nessa altura, a PSP estava a falar com as pessoas que estavam no seu interior. Referiu que a PSP disse que o iria pôr na rua.
Também o auto de notícia e os depoimentos de RD e DR corroboram a presença no imóvel dos autos, na ocasião, dos filhos da autora.
Mas, também no que respeita à prova do facto n.º 15), os elementos de prova produzidos permitiram, com a necessária e suficiente consistência, concluir que a PSP, na primeira ocasião em que foi chamada, no dia 15-07-2019, não deixou os filhos da autora permanecerem junto desta, sendo que, aliás, quando terminou a intervenção policial, nessa ocasião, os réus permaneceram no interior da casa com a autora, tendo os filhos da autora ficado no exterior.
É o que decorre, inequivocamente, dos depoimentos de PC, HR e RD, nos termos que se assinalam:
- PC:
“Advogada da A. - Disse que entraram na casa da sua mãe, e entraram como já agora?
PC - Usando, ou seja, tocaram à campainha, a minha mãe abriu a porta e eu não estava presente, não vi, mas, que eu lembro-me perfeitamente bem que estava no Samouco, a minha irmã ligou-me aflitíssima, a gritar, que a mãe estava dentro de casa com os proprietários e eu desloquei-me de imediato do Samouco. E aquilo que eu sei, e aquilo que a minha mãe me contou é que assim que a minha mãe abriu a porta, um senhor fez o favor de a empurrar contra a parede e foi à mala dela porque eu vi a chave quando cheguei mais tarde.
Advogada da A. - então vamos recapitular, o senhor vem do Samouco e dirige-se ao prédio, pronto quando chega, o que é que vê?
PC - quando eu chego eu não vejo porque a porta estava fechada e não me deixaram entrar, porque a minha irmã já tinha chamado.
Advogada da A. - Não entrou no prédio, não chegou a entrar no prédio?
PC - Entrei no prédio, mas não entrei dentro de casa.
Advogada da A. - Sim e não entrou dentro de casa porquê?
PC - Porque a porta estava fechada e não, não deixavam entrar, apesar de bater-nos à porta.
Advogada da A. - E quem é que não lhe deixava entrar? Se a casa estava arrendada à sua mãe.
PC - Aqueles que diriam que eram os presumíveis proprietários, as pessoas que se apresentavam ali como proprietários da casa.
Advogada da A. - E, entretanto, o que é que aconteceu? Tentou entrar, não conseguiu entrar.
PC - Nós chamamos a polícia, a polícia veio mais tarde, ouvimos ao fundo da escada, eu acompanhei a polícia lá acima, ouviu as pessoas e nessa altura, entrei na casa e eu vi a chave da casa na mão do senhor que lá estava dentro e perguntei depois à minha mãe, “então mas o que é que se passa aqui?” a minha mãe contou-me os pormenores daquilo que tinha acontecido, tinha sido empurrada contra a parede, que eles disseram que a tocar a campainha, que vinha buscar a correspondência
Advogada da A. - Olhe, diga-me, mas isso quando a sua mãe tava a relatar o que se passou, o polícia ouviu?
PC - O polícia nessa altura estaria a falar com as pessoas que lá estavam, que eram os senhores que diziam que eram proprietários.
Advogada da A. - sim, a sua mãe relatou-lhe? então está a dizer que viu as chaves da sua mãe?
PC - Vi a chave da minha mãe na mão do senhor que lá estava
Advogada da A. - E quem é esse senhor, sabe?
PC - Esse senhor penso que seria o marido da dona Paula, que se apresentava lá como proprietário da casa.
Advogada da A. - Ele tinha as chaves da sua mãe na mão dele, é isso?
PC - Sim, e eu perguntei à minha mãe o é que tinha acontecido, que como é que ele tinha a chave e a minha mãe contou-me que ele, quando entrou em empurrou-a contra a parede e que foi à mala dela e que lhe retirou a chave da mala.
Advogada da A. - Retirou as chaves da mala da sua mãe, pronto e depois, o que é que vocês transmitiram à polícia, aquilo ficou sereno, ficaram ali calmos?
PC - Não, as coisas eram muito difíceis de ficarem calmas perante o cenário que tinha acontecido, eu à polícia, procurei saber o que que eles iriam fazer perante aquilo que estava a acontecer, visto que a minha mãe estava sentada, estava a fazer crochê no sofá e que se levantou para abrir a porta e que acabou por a casa ficar invadida e com a porta fechada e que não deixaram entrar a minha irmã, que foi a primeira pessoa que se aproxima da casa e que esteve a tentar entrar e foi impedida e a polícia, não consigo ainda hoje perceber porquê, dizia que os senhores tinham uma ordem de despejo e eu perguntei se eles tinham visto alguma ordem de despejo, e não que não tinham visto nada e eu expliquei-lhes, procurei explicar ao polícia que aquilo que estava a acontecer não podia acontecer de maneira nenhuma, porque não podiam chegar ali umas pessoas irem despejar por iniciativa própria, outra pessoa sem apresentarem provas concretas, sem serem acompanhados por um oficial de justiça, sem serem acompanhados pela polícia, estavam ali a procurar fazer justiça pelas próprias mãos, de uma coisa que eles achavam que era a justiça deles.
Advogada da A. - E o que é que a polícia lhe transmitiu?
PC - A polícia a mim disse que eu tinha que me pôr na rua e que se continuasse com o meu comportamento, que era só de lhes fazer perguntas e tentar perceber aquilo que ali se estava a passar, apesar de se saber que eu estava enervado porque era a minha irmã, a minha mãe que ali estava a ser sequestrada, que era aquilo que eu achava que estava a acontecer, a polícia disse-me para eu sair e para eu falar de outra forma, porque não, eu não era da justiça e que se fosse preciso que me mandavam prender, foi isso que a polícia me disse a mim, a polícia disse que se eu continuasse…
Advogada da A. - Recorda-se qual foi o agente que lhe disse isso?
PC - Eu lembro-me do agente, mas se não, eu não sei o nome dele.
Advogada da A. - não sabe o nome do agente?
PC - Não sei o nome
Advogada da A. - Não sabe descrever ao menos fisicamente.
PC - É era uma pessoa com olhos claros, mas isto tem a ver um bocado com o meu feitio pessoal, há certas e determinadas coisas que eu procuro esquecê-las por serem tão más, e aquele agente eu próprio pensei que se calhar não estava talhado para aquela
Advogada da A. - Pronto, depois, o que é aconteceu? O senhor saiu da casa e depois?
PC - Eu fui obrigado a sair da casa, a minha mãe continuou, continuou lá dentro com os planos, ou seja, nós que éramos filhos numa casa que estava arrendada pela minha mãe com renda paga pela minha mãe não podíamos estar presentes dentro da habitação, mas as outras pessoas puderam- se lá manter, continuo ainda hoje a não perceber porquê.
Advogada da A. - Mas disse à sua mãe, saia connosco, fique, qual foi o diálogo com a sua mãe?
PC - Aquilo que eu procurei saber primeiro era, como é que a minha mãe estava, porque uma pessoa com a idade que ela tinha, com alguns quadros clínicos não muito favoráveis, a passar por uma situação daquelas? A minha preocupação principal era com a saúde da minha mãe. Perguntei-lhe o que é que, os contornos e se ela estava bem e a minha mãe estava sentada no sofá, pronto, eu vi que ela estava muito, muito enervada, não estava a perceber bem aquilo que se estava ali a passar, até porque ela pensava que as pessoas eram pessoas de bem, que ela conhecia desde miúda e nunca pensou que, passar por uma coisa destas, ela estava, estava muito, muito enervado, eu procurava acalmá-la, mas eu próprio também não estava calmo o suficiente para poder acalmar mais.
Advogada da A. - Olhe e depois, o que é que aconteceu? Estas pessoas foram-se embora e deixaram a sua mãe?
PC - Não, não.
Advogada da A. - então?
PC - Entretanto, aquilo que acontece mais tarde, eu estou ao fundo da escada, visto que não podia estar junto da minha mãe, vejo entrar uma pessoa, com uma mala e 2 chaves de fendas assim empunhadas em risco.
Advogada da A. - Mas, entretanto, a polícia já tinha saído quando essa pessoa entra, a polícia ainda está dentro de casa?
PC - Não, não, a polícia já tinha saído.
Advogada da A. - A polícia já tinha saído.
PC - A polícia já tinha saído.
Advogada da A. - E deixou permanecer a sua mãe no interior da casa com aquelas pessoas?
PC - deixou permanecer a minha mãe dentro da casa com aquelas pessoas, impossibilitando os filhos, com a porta fechada dos filhos de entrarem.”
- HR:
“Advogada da A. - Olhe, entretanto chega a polícia.
HR - Certo.
Advogada da A. - E o que é que acontece?
HR - Depois com a polícia mais uma confusão. Fomos identificados…depois a polícia à medida que nos identificava, mandou-nos sair de casa, mandou-nos ir saindo de casa
Advogada da A. - Saíram todos? Ficou só a sua avó sozinha lá dentro?
HR - Não me recordo. Sei que a minha avó ficou…
Advogada da A. - Sim?
HR - Dentro de casa e creio que as pessoas que estavam lá, portanto, também ficaram, pelo menos ficaram mais tempo do que eu porque eu depois saí porque a polícia indicou-me que
Advogada da A. - A polícia disse a vocês para saírem de casa? Para o neto, a sua mãe, o seu tio saírem todos de casa?
HR - Sim, que eu me recorde sim. é como eu lhe digo: eu fui identificado e quando fui identificado, pediram para sair.
Advogada da A. - E o Sr. respeitou a ordem?
HR - Sim.
Advogada da A. – E a sua mãe e o seu tio aconteceu a mesma coisa?
HR - Salvo erro sim. Porque eu recordo de os ver lá em baixo”.
- RD:
 “Advogada da A. - Olhe, e já agora, da primeira vez que lá esteve, em que os filhos estavam lá dentro. Quando os senhores saíram, os filhos ficaram, é isso?
RD - Não, os filhos ficaram no exterior. Dentro da casa ficou…
Advogada da A. - Mas porque é que, se a casa era da mãe, porque eles não estavam no interior da casa?
RD - Eles pediram para aceder à casa, e na nossa presença acederam. Depois, quando nós abandonamos o local, eles ficaram no exterior. Não foi dado à nossa ordem para ficarem no exterior nem para ir para ficarem dentro da casa.
Advogada da A. - Então quem é que é que disse aos filhos para saírem de casa? Se a mãe estava lá dentro, pediram o vosso auxílio para saber como é que estava a mãe…?
RD - Sim, eles, na altura contactaram com a Senhora CB…
Advogada da A. - Estão com a mãe, a casa da mãe, está ocupada pela mãe. Qual é a necessidade de eles estarem, de eles saírem outra vez e deixarem a mãe lá dentro nesta situação toda?
RD - Sim, isso não não consegui dizer porque eles saíram ou não. Não foi dada a nossa ordem para sair ou não. Eles ficaram no exterior da residência. Ficou acordado que seria feita a mudança da fechadura. Nós, como eu disse, abandonámos depois o local, não…
Juiz - Mas quando… Mas desculpe, não percebi. Quando abandonaram o local, os filhos já estavam fora?
RD - Sim, estavam no exterior da residência, sim.
Juiz - Então, significa que quando os filhos saíram de casa, o senhor agente estava no interior da casa?
RD - Nós falámos com as partes dentro da casa, depois saímos…
Juiz - Pronto, mas então…
RD - Contactámos com os filhos e abandonámos o local…
Juiz - os filhos quiseram ir lá para fora, porque quiseram? Ou porque…
RD - Sim, eles contactaram connosco no exterior e nós abandonámos o local. Quando nós saímos, foi o que nós redigimos no auto notícia, eles estavam no exterior da residência, tanto o filho como a filha.
Juiz - Mas sabe, mas é isso que quero que concretize, se ele já estavam no exterior, quando o senhor agente saiu…
RD - Sim…
Juiz - Significa que eles saíram antes do senhor agente.
RD - Eles saíram connosco, contactaram connosco no exterior da casa…
Juiz - Ah, eles acompanharam o Senhor agente à porta? Foi isso?
RD - Porque nós falamos com uma das partes dentro da residência e não é nosso, não é hábito, é procedimento. Não falamos com uma das partes e com outra parte frente a frente. Falámos, contámos com a parte, com Senhor JC e com a Senhora AC e com a Senhora CB, que se encontrava no interior. Os filhos entraram no interior da residência. Queriam saber se mãe estava bem, contactaram com ela e depois contactaram connosco no exterior. Quando nós abandonámos o local da ocorrência, os filhos estavam connosco no exterior, ficaram no exterior.
Juiz - Então se eu bem percebi, e durante a conversa que o senhor agente teve com a D. CB e com os outros senhores dentro da casa, os filhos da Senhora não estavam?
RD - Inicialmente não estavam, nós entrámos com a Senhora CB… com o Senhor JC, que nos abriu a porta, e depois os filhos solicitaram para entrar dentro da residência…
Juiz - Solicitaram a quem? Ao senhor agente?
RD - Nós estávamos lá, perguntaram…
Juiz - Pronto…. (…)”.
Assim, em face do exposto, improcede a impugnação de facto com referência aos factos provados n.ºs. 14) e 15), que devem subsistir no rol em que se encontram.
*
h) A matéria constante do facto provado n.º 16) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol?
Consideram os recorrentes que o facto n.º 16) – onde se mencionou que “Tendo ainda sido informado a autora de que a mesma, não tendo contrato de arrendamento, teria de sair do imóvel” - se encontra “em divergência com a prova”, mencionando, nesse sentido, os depoimentos de DR e de RD e o contrastante depoimento da autora.
Concluíram os recorrentes que:
“o) Facto 16. - mais uma vez o facto está em divergência com a prova. A esse propósito transcrevemos depoimentos supra, dos quais resulta claramente da prova que os agentes apenas transmitiram à A. a versão da sua própria filha, Sra. HS, e a versão do Sr. JC. Não referiram não existir contrato nem a mandaram sair do imóvel. Considerar tal provado é subverter a prova. Aliás, no seu depoimento, a A. diz que os agentes estavam do lado dela. Tal facto não pode constar do elenco de factos provados”.
Neste ponto, o Tribunal recorrido fundou a sua convicção nos seguintes termos:
“O facto n.º 16 decorre do teor dos depoimentos dos vários Agentes: RD refere que “explicou à D. CB que os proprietários queriam a casa e queriam que ela saísse”; DR diz que informou a D. CB, “que não sabia de nada, ou seja, que não sabia que o Sr. JC queria que ela fosse embora da casa” e que “foi transmitido à D. CB que o Sr. JC já a tinha notificado para ela sair”, disse que “o Sr. JC já tinha notificado a filha e que a filha já tinha dito que ela sairia quando arranjasse outro local”.”.
Esta factualidade resulta, efetivamente, comprovada em face do relato expendido pelos referidos agentes policiais, nos termos transcritos na contra-alegação da recorrida, para onde se remete, expressando a posição transmitida pelos réus presentes no local, a qual foi dada a conhecer à autora.
Mas, para além disso, a própria autora, com clareza e objetividade referiu que, quando chamou a polícia, num primeiro momento, “esta estava a meu favor” (tendo transmitido que sempre tinha pago a renda), mas que, depois, lhe foi dito que “eles diziam que precisavam da casa para a filha…” e que “a Polícia disse que a senhora não tem contrato nenhum, tem que sair a bem ou a mal”.
Inexiste, pois, em face da prova produzida, motivo para considerar indemonstrada a aludida factualidade, improcedendo a impugnação correspondente relativamente ao consignado no facto provado n.º 16).
*
i) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 17), 18) e 19) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser considerada provada a matéria constante dos factos não provados n.ºs. 65), 66) e 67)?
Os factos provados n.ºs. 17), 18) e 19) têm a seguinte redação:
“17. Nessa ocasião, a mando do réu JC, foi trocada a fechadura da porta do imóvel;
18. Nessa noite, a autora saiu da fracção e ficou sem acesso ao imóvel;
19. Sem que lhe tivesse sido dada a nova chave da fracção;”.
Por seu turno, nos factos não provados n.ºs. 65), 66) e 67) ficou a constar o seguinte:
“65. Na ocasião descrita no ponto 15 “supra”, a autora declarou que pretendia entregar o imóvel aos réus e “cessar o contrato de arrendamento”;
66. Tendo abandonado de livre vontade o imóvel e entregando as chaves do mesmo aos réus;
67. Tendo ficado acordado entre autora e os réus que a mesma retiraria de lá os seus pertences, posteriormente, quando solicitasse;”.
Entendem os recorrentes o seguinte:
“Nossa Convicção: É verdade que a fechadura foi trocada, porém, para os factos em analise é absolutamente essencial constar do facto 17 que tal troca foi consentida. E mais, a D. CB, Autora nestes autos, abandonou a fracção por sua vontade livre e fez-se acompanhar dos seus bens. Como adiante se verá:
Testemunha DR, agente da PSP em Sacavém, que prestou o seu depoimento no dia 05.11.2021, com inicio às 14:11:30 e fim às 15:13:27
Exma.Sra. Dra. Juíza: Portanto, vocês agentes da PSP informaram então a senhora, que era a dona CB, de que o sr. JC queria trocar a fechadura da porta de entrada na casa, é isso?
Testemunha: Sim,sim, sim. Ela foi informada e não se opôs. E ficou acordado que seria fornecida uma cópia dessa chave.
(…) Advogada da Autora: (…) A senhora percebeu a razão pela qual ia ser mudada a fechadura?
Testemunha: Quando eu lhe informei ela percebeu porque, disse não ter conhecimento e que até se tivesse hipótese abandonava a residência, mas não conseguia fazê-lo em tempo útil, para tal precisava de tempo e ajuda. Ela ficou inteirada e percebeu quando foi explicado por nós.
(…) Testemunha: Depois contactamos com a senhora CB e ela afirmou que saiu por livre vontade e que a sua filha até retirou alguns bens de primeira necessidade.
(…) Advogado dos Réus: A filha é que queria que ela estivesse ali, mas ela assim já não queria estar ali, é isso?
Testemunha: Exactemanete. Foi o que ela nos deu a entender foi isso.
(…)Advogado dos Réus: Então e perante essa surpresa ao fim e ao cabo ela terá dito qualquer coisa do tipo:’’ah então nessa caso eu não quero estar aqui mais, não quero problemas e vou-me embora’’ ou saiu porque tinha medo que os senhores a pusessem na rua ou que alguém a pusesse na rua?
Testemunha: Ela não disse eventualmente por essas palavras, mas deu-nos a entender que não era ali bem vinda por que havia ali um entrave. Ela é que seria ali o entrave.
Advogado dos Réus: Deu-vos a entender que nessa situação ela própria já não queria estar ali, é isso?
Testemunha: Exactamente.(…)
RD, agente da PSP em Sacavém
Exma.Sra. Dra. Juíza: que não havia problema em mudar a fechadura, é isso?
Testemunha: Sim sim…exactamente. E que…nessa altura…até escrevemos no auto de noticia, explicamos a situação dela ter sido notificada, se assim posso dizer, para sair da residência, e ela disse que não teria qualquer problema em sair da residência.
Luís Manuel Ramos Sanchez que prestou o seu depoimento no dia 05.11.2021 das 11:35:28 e as 12:09:24:
Testemunha:A senhora estava calma. A senhora estava calma. Aliás, eu estava sentado na cozinha(imperceptivel) levantei em conversa com a autoridade e dava para perceber que estava lá calma. Ah. Estava la no sofá. Depois até agora num saquito e disse , depois de falar com a policia, ‘’vou-me embora! Não sabia nada disto’’…com calma...sim senhora…’’as pessoas precisam da casa.’’ E ele seguiu a vida dela com um saco. E pronto foi isso que eu na altura vi.
(…)
Advogado dos Réus:Tem a certeza que lhe deu uma chave?
Testemunha:Tenho a certeza que lhe dei uma chave. Fui eu que lha dei mesmo com a minha mão.
Do que acima se transcreve resulta prova bem diversa dos factos considerados provados. Deste modo tais factos não podem constar dos factos provados.
Decorre ainda do que aqui se argumenta que os factos 65, 66 e 67 dos factos não provados devem ser considerados provados”.
Concluíram os recorrentes, sobre esta matéria, nos seguintes termos:
“p) Facto 17, 18, 19 - É verdade que a fechadura foi trocada, porém, para os factos em analise é absolutamente essencial constar do facto 17 que tal troca foi consentida. E mais, a D. CB, Autora nestes autos, abandonou a fracção por sua vontade livre e fez-se acompanhar dos seus bens. Como também resulta dos depoimentos transcritos. Do que acima se transcreve resulta prova bem diversa dos factos considerados provados. Deste modo tais factos não podem constar dos factos provados. Decorre ainda do que aqui se argumenta que os factos 65, 66 e 67 dos factos não provados devem ser considerados provados”.
Relativamente a estes pontos, a recorrida contrapôs que se deverá manter a seleção factual efetuada pelo Tribunal recorrido, em face da prova testemunhal produzida.
Reapreciando a factualidade impugnada, verifica-se que, conforme os próprios recorrentes admitem (nas alegações de recurso e conforme decorre do invocado no artigo 109.º da contestação que apresentaram), é inequívoco que a fechadura da porta da casa que a autora habitava em 15-07-2019 foi trocada e tal sucedeu por determinação de JC.
Tal intenção de mudança ficou a constar no próprio auto de notícia elaborado pelas autoridades policiais e, a mesma, foi confirmada pelos agentes RD e DR.
Todavia, ao invés do pugnado pelos réus, inexiste, em face das provas produzidas, motivo que justifique a alteração de redação do facto provado n.º 17), nem é possível concluir que a autora tenha abandonado a referida fração ou que dela tenha retirado os seus bens.
Repare-se que, de acordo com os próprios agentes policiais, RD e DR, a autora não estava “a par” do “enquadramento” de relações que, então, em julho de 2019, havia entre HS e AC e JC, sobre o arrendado: HS, conforme referiu, que num primeiro momento, perante a solicitação de saída, por AC e JC, relativamente à sua mãe (a ora autora) da habitação (porque precisariam da casa para habitação da filha) lhes terá transmitido que precisava de tempo para arranjar outra habitação para a mãe, também referiu que, perante a insistência e após ter falado com um advogado, num segundo momento, foi referindo que achou por bem “então, cumprir os formalismos legais” e que, “assim sendo, a minha mãe vai ficar”. Mencionou que, perante tal situação, “eles cortaram a água e a luz” (e Tv Cabo), o que levou a efetuar novos contratos de água e luz (e de Tv Cabo). Esse panorama relacional que antecedeu os factos de 15-07-2019 está, aliás, bem expresso nos documentos constantes de fls. 138vº (troca de mensagens de telemóvel entre HS e MC em Abril de 2019) e 190 (email de AC de junho de 2019, dirigido a HS, dando conta, nomeadamente, de que: “Continuas a não querer falar comigo e a evitar que eu passe aí em casa…”; “Nunca quis ser injusta contigo mas desde o primeiro dia que abordámos o assunto que estás diferente e a achar que não tenho esse direito e já lá vão quase 9 meses, bem mais que 120 dias”; e “O prazo está a chegar ao fim, e espero que tenhas conseguido arranjar a melhor solução possível, pois não te desejo mal nem a ti nem à tua mãe. Se não passar aí antes do fim do mês, no dia 1 de Julho aí estarei, para receber as chaves e tratar da mobília”) dos autos.
Foi neste quadro que ocorre a factualidade que teve lugar em 15-07-2019: Pretendendo os réus AC e JC a entrega da casa pela autora; e esta, não a tendo, até então, entregue.
E, dado que, não o conseguiram voluntariamente, os réus forçaram a entrega, mudando a fechadura da porta. Esta mudança, que veio a ser concretizada, após a segunda ida da PSP ao local, no dia 15-07-2019, foi combinada entre JC e LS, mencionando este último, que JC tinha urgência na mudança, sendo que, combinou com aquele que este lhe forneceria o modelo da fechadura existente – para poder adquirir a nova fechadura – através de foto que lhe enviou.
HS, HR e PC, de forma concordante e objetiva, demonstrando credibilidade, disseram que a autora não deu autorização para mudar a fechadura da porta, o que, no referido quadro, anteriormente mencionado, se mostra plenamente compatível.
A própria autora, nas declarações de parte que prestou, não evidenciou ter autorizado a mudança de fechadura, mas sim, que lhe foi transmitido que teria que sair da habitação (isto, depois de, segundo as suas palavras, num primeiro momento, “a Polícia estar a meu favor…”):
“CB - A polícia disse que eu tinha de sair.
Juiz – E a polícia disse que a senhora tinha de sair?
CB - Sim
Juiz –E explicou-lhe porquê?
CB - Metiam-me em tribunal…
Juiz – Oh Sra. CB. Explique-me lá uma coisa: a polícia foi ter consigo dizer que a Sra. tinha de sair. Explicou-lhe porquê a polícia?
CB - A polícia disse-me: “então a senhora tem de sair, que eu não tinha contrato nenhum”. Eu pagava as rendas…
Juiz – Mas essas coisas… A polícia não lhe explicou que era o tribunal que decidia isso, foi isso?
CB - Foi isso (…)
Juiz – Pronto. E a polícia disse que a Sra. tinha de sair?
CB - O polícia depois foi falar com eles, disse que eu tinha de sair… ou a bem ou a mal
Juiz –A bem ou a mal?
CB - Sim.
Juiz – Quem é que lhe disse isso, que tinha de sair a bem ou a mal?
CB - O polícia. O polícia disse-me isso.
Juiz – E a Sra. nessa altura não estava acompanhada da sua filha ou…?
CB - De ninguém. Estava sozinha com eles.
Juiz – E a polícia disse que a senhora tinha de sair a bem ou a mal?
CB - O polícia disse-me isso.
Juiz – E a senhora como é que ficou?
CB - Então eu estava sempre a chorar. Eu estava sempre a chorar (…).
Juiz – “… Mas houve um momento em que a Sra. diz que a Polícia estava contra si e foi ter consigo a dizer que a Sra. tinha que sair?
CB -Tinha que sair….
Juiz – Depois eu perguntei…
CB – A bem ou a mal…
Juiz – Pronto, mas eu depois perguntei: então, mas a polícia explicou-lhe porque é que a Sra. tinha de sair?
CB – Não. Disse que ela precisava da casa para a filha.
Juiz – Como?
CB - Precisava da casa para a filha.
Juiz – Portanto a Polícia disse que a Sra. tinha de sair a bem ou a mal? É isso?
CB – Sim.
Juiz – Então e o que é a Sra. fez?
CB – Oh Sra. Dra. Então saí. O que é que eu havia de fazer? (…).
Juiz – No meio dessa confusão toda, depois de terem entrado na sua casa, o que é que estas duas pessoas, a Sra. D. Paula e o marido, o que é que elas diziam… a si?
CB – Diziam-me que precisavam da casa para a filha.
Juiz - Precisavam da casa para a sua filha. E o que é que a Sra. respondia?
CB - Eu fiquei calada e só chorava. Só chorava pelo mal que me fizeram…
Juiz – Quando a Sra. diz “mal que me fizeram” tem a ver com essa… essa… com o facto de ter batido na parede e ter ficado magoada, é isso?
CB - Fiquei magoada, fiquei muito magoada porque ele deu-me cabo da cabeça e pisadas nas pernas (…).
Juiz – A Sra. alguma vez disse que queria sair daquela casa? Que queria entregar aquela casa?
CB – Não, eu nunca disse que queria sair. Nunca disse que saía (…).
Juiz – Portanto, a Sra. nunca disse que entregava ou nunca entregou por sua vontade a casa aos outros Senhores? Ou entregou? A Sra. disse alguma vez: “olhe, eu já não quero viver mais aqui, tomem a casa que eu vou sair e não quero saber”?
CB – Não, nunca disse nada. Nunca disse nada que queria sair. (…)
Juiz – Mas eles disseram disse que a Sra. tinha de sair a bem ou a mal. O que é que a Sra. respondeu?
CB – Eu não respondi nada.”
Este relato factual foi reiterado por HS e PC, nos termos que concretizaram, referenciado que não foi dada qualquer nova chave à autora.
Aliás, de acordo com o que consta do auto de notícia, aquando da segunda ida ao local da PSP, no mencionado dia, terá ficado “acordado que seria efetuada a troca da fechadura, sendo fornecida uma cópia da chave à locatária CB”, ocasião em que ficaram no interior da residência os seguintes intervenientes: “CB, PC, HS, JC, AC, MC e ainda LS a efetuar o referido trabalho”, mas, logo consta que, foi efetuada nova chamada da autoridade policial, pelas 22 horas e 20 minutos, por “a locatária havia sido colocada na rua e que os denunciados até já tinham abandonado o local”. De forma contraditória com tal afirmação ficou a constar do auto que: “Indagada posteriormente CB, esta afirmou ter saído da residência por livre e espontânea vontade, e que a sua filha até tinha retirado alguns bens de primeira necessidade”, mas que “por lapso não foi esclarecido com esta senhora se efetivamente lhe tinham ou não entregue cópia da nova chave”.
Ao invés do que LS mencionou – de que entregou uma chave à autora, dizendo depois não saber se entregou à autora ou à filha desta – não se logrou demonstrar tal entrega, o que, aliás, num quadro de alta conflitualidade, sempre não seria um aspeto que pudesse geral algum equívoco sobre a pessoa destinatária de tal entrega. Mas, independentemente disso, certo é que, conforme o Tribunal recorrido não deixou de apreciar, não se louvou positivamente em tal depoimento para a convicção sobre os factos n.ºs 65, 66 e 67. Efetivamente, lê-se, a este propósito, na decisão recorrida, o seguinte, considerações que, pela sua clareza e congruência com a prova produzida, nos merecem integral adesão:
“(…) quanto aos factos n.ºs 65, 66 e 67, a prova produzida, à luz de juízos lógicos e de experiência comum, não permite sustentar tal factualidade.
A este propósito, comecemos por analisar o único depoimento do qual poderia, eventualmente, decorrer tal factualidade.
Trata-se do depoimento de LS, que esteve no imóvel em 15.07.2020 para proceder à mudança da fechadura, cuja presença foi confirmada pelas demais testemunhas. Porém, este foi um depoimento “à medida”, tendo esta testemunha pretendido confirmar a matéria alegada pelos réus sem, no entanto, merecer qualquer credibilidade, não só pela versão contraditória e incoerente, como pela postura notoriamente jocosa que tomou, ao defender com notória parcialidade e falta de isenção, a versão dos réus.
Refere que a Senhora CB estava “sentadinha e calminha”, e que referiu que “ia abandonar a casa sem problema”, “que se queriam a casa não haveria problema nenhum e saía” e que “por isso mudou a fechadura e entregou uma chave à Senhora”.
Ora, não só não foi dada à autora qualquer chave (tanto mais que a autora voltou a mudar a fechadura naquela mesma noite), como a autora não estaria “calminha” nem referia, de ânimo leve, como pretende a testemunha fazer crer, que “sairia do imóvel sem problema nenhum”.
Este facto é totalmente infirmado pelo depoimento objectivo, preciso e verosimilhante do filho da autora, PC. Além disso, diga-se que alguém que cai e bate com a cabeça, na sequência do empurrão de uma porta, e é pisado por um dos réus, momentos antes quanto entram de rompante na casa onde vive, não faz qualquer sentido que se apresente “calminho”, quer tenha 10, 20, 30 ou 80 anos de idade.
Acresce que se tivesse sido entregue uma chave à autora, como diz a testemunha, não faz sentido que as obras começassem logo de seguida, ou que esta testemunha tenha logo ficado com a disponibilidade do imóvel para a realização de obras, para tirar medidas e para apresentar um orçamento, como refere. É que esta testemunha, logo no dia seguinte, como diz, ia ao imóvel para dar um orçamento para a realização das obras, obras essas que acabou concretizar.
Depois, refere a testemunha, à revelia de toda a prova, que ajudou a autora a retirar os seus bens, e que não havia no local os bens que são descritos no processo, tudo descrito em tom de voz ridicularizador e jocoso, a que o Tribunal não pode ser alheio, sobretudo se confrontado com a postura digna e isenta das testemunhas PC e HS.
Saliente-se que esta testemunha acaba por referir que antes de dia 15.07.2019 já havia falado com o Sr. JC (de quem é amigo) sobre obras, o que é bastante revelador, já que até essa data havia um terceiro (autora) a viver no imóvel, pelo que, só fazendo uso de um grande poder de premonição é que, quer o réu, quer a testemunha, poderiam adivinhar que no dia 15.07.2019 a autora iria livremente sair do imóvel, referindo “não haver problema nenhum em sair”, e que “se eles queriam então saía do imóvel”.
Depois, esta testemunha constrói igualmente a versão fantasiosa de que no dia seguinte abriu a porta do imóvel à autora, quando, momentos antes tinha referido que lhe tinha entregue uma chave. Nem sequer sabendo que, nessa mesma noite, a autora havia promovido outra mudança de fechadura, pelo que, muito certamente, no dia seguinte esta testemunha só poderia ter entrado no imóvel arrombando a porta ou arracando-a.
Acresce que, não pode também deixar de ser revelador o facto de referir que às 19 horas o Sr. JC pediu que se deslocasse ao local com urgência para mudar uma fechadura. Nem sequer se conseguindo descortinar, em face da prova produzia, razões válidas para que a fechadura daquele imóvel tivesse de ser trocada com urgência àquela hora.
Por outro lado, diz que a mudança de fechadura foi feita na presença das autoridades, quando o agente da autoridade que se deslocou ao local expressamente referiu que saíram ainda antes de a fechadura ser mudada. (…)”.
Não merece, em face do referido, algum reparo a conclusão probatória vertida nos factos 11 a 13 – devidamente articulados com o que também ficou a constar dos factos provados n.º 20 e seguintes da decisão recorrida - e 65 a 67, nos termos que, respetivamente, ali ficaram a constar, tendo inexistido algum “abandono voluntário” da autora do locado.
Assim, tudo visto, inexiste motivo para o deferimento da impugnação pretendida pelos réus recorrentes.
*
j) A matéria constante do facto provado n.º 20) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser considerada provada a matéria constante do facto não provado n.º 67)?
No facto provado n.º 20) ficou a constar o seguinte:
“20. Permanecendo os bens da autora no seu interior”.
Por seu turno, o facto não provado n.º 67) tem a seguinte redação:
“Tendo ficado acordado entre autora e os réus que a mesma retiraria de lá os seus pertences, posteriormente, quando solicitasse”.
Extratando os depoimentos que mencionam, concluem os recorrentes a este respeito o seguinte:
“q) Facto 20 – Da prova produzida resulta que a A. se fez acompanhar de diversos bens, quer no próprio dia, quer nos dias seguintes. Tal resulta do depoimento da testemunha DP, agente da PSP de Sacavém, de SC, agente da PSP em Sacavém, de LS e ainda RD, agente da PSP em Sacavém. Do que acima se descreve resulta claro que tal facto não pode ser dado como provado como acima se demonstra. Decorre ainda do que aqui se argumenta que o facto 67 dos factos não provados deve ser considerado provado”.
Neste ponto, a autora reportou que, no mencionado dia 15-07-2019, a sua filha “na altura” retirou alguma roupa.
HS confirmou ter retirado roupa que estava para passar a ferro e medicamentos, mas que os demais bens de sua mãe ficaram, na ocasião, no interior da habitação onde a autora vivia.
A retirada de produtos de primeira necessidade pela filha da autora foi reportada no auto de notícia e, de forma congruente, por RD e DR.
Nenhuma prova teve, contudo, lugar no sentido de que entre a autora e os réus tenha sido acordado que a autora retirava da habitação, quando solicitasse, os seus pertences.
Mas, mesmo a retirada de bens (roupa para passar a ferro e medicamentos) pela filha da autora, não se apurou que tenha ocorrido nesse momento (ou seja, na sequência da mudança de fechadura pelos réus, o que, aliás, não seria congruente com o impedimento de acesso ao interior da habitação, por falta de chave), não justificando alguma alteração ao consignado no facto provado n.º 20), sendo certo que, na sequência da mudança da fechadura pelos réus, a autora ficou privada do acesso aos bens que se encontravam no seu interior.
Assim, de acordo com o exposto, deverá improceder a impugnação de facto correspondente.
*
k) Deve retirar-se do facto provado n.º 21) a expressão “por força do descrito nos pontos 17 e 18 supra”?
No facto provado n.º 21) ficou a constar o seguinte:
“21.Mais tarde, ainda nessa mesma noite, por força do descrito nos pontos 17 e 18 “supra”, a PSP foi chamada ao local e a fechadura do imóvel foi novamente trocada, desta vez a mando da autora;”.
Sobre este ponto os recorrentes discorreram o seguinte:
“Convicção do Tribunal: Decorre da prova documental (nota de visita a fls 80) e depoimento de HS (página 15 linha 9 e 10)
Nosso entendimento: É verdade que a fechadura foi novamente mudada. O que retira deste facto é que não pode levar o tribunal a quo a decidir com decidiu. Na verdade, resulta obvio que foi autorizada pela D. CB a troca da fechadura como se defendeu em analise dos factos 17, 18 e 19. O mesmo vale por dizer que quem esbulho, quem agiu com violência violando o direito à propriedade foi a A.”
Ora, conforme assinalado circunstanciadamente por HS e PC, a troca da fechadura encetada pela autora – comprovada documentalmente e a que se refere o documento de fls. 80 (documento n.º 7 junto com a petição inicial) emitido em nome da autora - apenas teve lugar na sequência da troca da fechadura antes efetuada, nesse mesmo dia 15-07-2019, pelos réus, o que, necessariamente tem conexão com a ausência de fornecimento de chaves por estes à autora, aquando da primeira mudança de fechadura, demonstrando que foi a ausência de acesso ao imóvel que determinou tal subsequente mudança de fechadura.
Justifica-se, pois, a manutenção da redação do facto n.º 20), que conexiona o referenciado em tal facto, com o descrito nos factos provados n.ºs. 17) e 18).
De acordo com o exposto, improcederá a impugnação de facto pretendida pelos recorrentes.
*
l) A matéria constante dos factos provados n.ºs. 22), 23), 24), 25) e 26) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol?
Nos factos provados n.ºs. 22) a 26) ficou a constar o seguinte:
“22.Nos dias seguintes, a mando dos réus, deu-se início à realização de obras na fracção, tendo sido arrancada a porta exterior do imóvel;
23.E tendo sido retirado mobiliário para o exterior da fracção, bem como os bens que a autora tinha no seu interior;
24.A autora tinha no interior da fracção autónoma os seguintes bens: uma bimby, um liquidificar, um serviço de loiça, objectos decorativos, candeeiros de mesa, varinha mágica, molduras, tachos, edredon e roupas de cama, talhas, cortinados em linho e renda, decoração e árvore de natal, toalhas de mesa e guardanapos, termoventilador, sofás, estendal, aparelhagem, carpetes, tostadeira, cafeteira eléctrica, torradeira, carpete de cozinha, tapetes de casa de banho e móvel de casa de banho e diversos objectos pessoais;
25.Os quais, a mando dos réus, foram levados para parte incerta sem serem devolvidos;
26.Foi colocado na entrada do prédio um aviso da realização de obras, datado de 15.07.2019 e assinado pelo réu JC;”
Consideram os recorrentes que, “[d]esde logo os factos 22 e 23 estão prejudicados pelo que se referiu nos factos 20 e 21. Quanto aos restantes bens, descritos no facto 24 tal não resulta da prova produzida. Esses bens não foram elencados por nenhuma testemunha, como se referiu nos factos supra. Aliás, os bens da autora foram por esta levados no próprio dia e os restantes foram transportados pela sua filha inclusivamente com o auxílio da Testemunha LS. Mais se dirá que aos agentes viram alguns bens no exterior da habitação, como relata a testemunha LS, para que a filha HS os recolhesse e tudo de acordo com o combinado.
Resulta evidente que no dia em que a A. saiu do imóvel pelo seu próprio pé, foi auxiliada pelos familiares a levar os seus pertences. Resulta ainda da prova testemunhal que foram colocados na escada do prédio os restantes bens.
E mais não resulta da prova! O mesmo vale por dizer que não se pode sequer concluir que a A. ficou sem algum bem, sendo certo que a mesma admitiu que os moveis, eletrodomésticos e Roupa de cama que encontrou no imóvel, não eram seus!”
Referem os recorrentes que, deste modo, tais factos não podem ser considerados provados, tendo concluído o seguinte:
“s) Facto 22,23, 24, 25 e 26 –os factos 22 e 23 estão prejudicados pelo que se referiu nos factos 20 e 21. Quanto aos restantes bens, descritos no facto 24 tal não resulta da prova produzida. Esses bens não foram elencados por nenhuma testemunha, como se referiu nos factos supra. Aliás, os bens da autora foram por esta levados no próprio dia e os restantes foram transportados pela sua filha inclusivamente com o auxílio da Testemunha LS. Mais se dirá que aos agentes viram alguns bens no exterior da habitação, como relata a testemunha LS, para que a filha HS os recolhesse e tudo de acordo com o combinado. Resulta evidente que no dia em que a A. saiu do imóvel pelo seu próprio pé, foi auxiliada pelos familiares a levar os seus pertences. Resulta ainda da prova testemunhal que foram colocados na escada do prédio os restantes bens. E mais não resulta da prova! O mesmo vale por dizer que não se pode sequer concluir que a A. ficou sem algum bem, sendo certo que a mesma admitiu que os móveis, eletrodomésticos e Roupa de cama que encontrou no imóvel, não eram seus! A este propósito deveria o Tribunal ter verificado os documentos juntos aos em 02.09.2020 e 03.09.2020 pela A. O doc. nº2 junto com esse requerimento comporta um conjunto de faturas em nome de HS pelo que nenhuma relevância tem para os autos, considerando que HS não é parte nos autos. Quanto à lista de bens junta nessa fase como doc. Nº 3, convenhamos que até por uma questão de cooperação e boa-fé processual a mesma poderia e deveria ter sido junta com a PI. A lista de bens poderia ser elaborada em qualquer momento, tanto mais que a A. tinha na sua posse fotografias do imóvel. Aliás, fotografias que juntou aos autos com a Petição Inicial.É uma lista de bens, sem qualquer referência a marcas, estado, número ou qualquer elemento identificativo, pelo que que não faz prova nem da existência dos mesmos nem da sua localização e valor. Acresce que a A. não junta faturas dos bens que constam daquela lista. A A. foi assim criando ‘’prova’’ à medida do que ia sendo necessário. Deste modo tais factos não podem ser considerados provados”.
A recorrida, por seu turno, referiu, de forma justificada – e extratando os segmentos dos depoimentos pertinentes para a demonstração de tais factos – que, em face dos autos de ocorrência (aditamentos n.ºs. 3, 4, 6, 7 e 8), em face da fotografia do aviso aviso afixado no prédio assinado pelo Recorrente JC referente às obras (Doc. 19 da PI) e de acordo com os depoimentos da autora, de HS e de PC, “é concluir que a Autora tinha no interior do imóvel os bens identificados sob o ponto 24 dos factos provados.
A Autora nunca negou, nem as suas testemunhas, que a casa foi arrendada com alguns móveis dos proprietários, mas tal não obsta a que a mesma tenha no interior do imóvel as suas próprias coisas, objectos pessoais, o seu próprio mobiliário, tudo como foi descrito supra pelas testemunhas.
Quanto ao alegado pelos Recorrentes em relação aos documentos juntos pela Autora, cumpre dizer que é totalmente irrelevante, pois como consta da sentença recorrida, o facto 24 foi provado com base no alegado na PI e na prova documental transcrita, e não em virtude de tais documentos.
Acresce que sobre tais documentos, já decorreu o prazo para os RR se pronunciar, sendo que a Autora não pode deixar de dizer que nos termos da lei, os documentos que se destinam a fazer prova dos factos alegados nos articulados podem ser juntos pela parte até 20 dias antes da data designada para julgamento, sem que daí decorra qualquer falta de cooperação ou boa-fé processual.
Assim, face ao exposto, devem os factos 22 a 26 manterem-se como factos provados”.
Reapreciando as provas carreadas para os autos, ponderada a prova pessoal e documental produzida, verifica-se que inexiste motivo para a alteração pretendida pelos recorrentes.
Na realidade, não se afigura que os factos 22 e 23 se encontrem prejudicados, antes, tendo congruente e adequada conexão com a factualidade provada constante dos pontos precedentemente referenciados, sendo certo que, em face do depoimento da autora e dos filhos desta, bem como, dos testemunhos de FA, SC, DP e da apreciação crítica do referenciado por LS (admitindo a colocação de alguns bens nos espaços comuns do prédio, mas não se referindo, de qualquer modo, à colocação de todos os bens da autora nesses espaços), tal factualidade se encontra cabalmente demonstrada.
Relativamente aos bens que a autora tinha no interior da fração, o apuramento factual correspondente assentou na apreciação levada a efeito sobre os depoimentos de HS e PC que foram confirmando, cada um à sua maneira, mas de forma unívoca, a presença dos bens ali enunciados, sem que, tenha existido alguma contraprova convincente sobre tais pontos.
E, igualmente, em face dos meios de prova produzidos, não merece qualquer censura a conclusão probatória alcançada pelo Tribunal sobre os factos n.ºs. 25) e 26), relativamente aos quais a motivação expressa na decisão recorrida merece total adesão.
Improcede, em consequência, a impugnação de facto correspondentemente efetuada.
*
m) Deve ser alterada a redação do facto provado n.º 30) para “a fechadura foi novamente mudada com consentimento expresso da A.”?
Nos factos n.ºs. 30) e 31) foi dado como provado pelo Tribunal recorrido o seguinte:
“30. Após essa entrega feita pelo Tribunal, a fechadura foi novamente mudada de forma a impedir que a autora pudesse voltar ao imóvel;
31.E as obras foram retomadas.”.
Entendem os recorrentes que, “as trocas de fechadura têm a origem supra descrita pelos RR, pelo que não se destinou a impedir um legitimo arrendatário, com contrato em vigor, a aceder à sua habitação. Destinou-se antes a dar cumprimento à vontade dos RR conjugada e consentida pela A. Não podemos deixar de evidenciar que tal aconteceu após a A. de livre e espontânea vontade ter abandonado a habitação pondo termo a qualquer contrato que pudesse existir. Assim, tal facto carece de ver aditada tal informação”, concluindo do modo afirmado na alínea t) das suas alegações de recurso:
“t) Facto 30 e 31 – As trocas de fechadura têm a origem supra descrita pelos RR, pelo que não se destinou a impedir um legítimo arrendatário, com contrato em vigor, a aceder à sua habitação. Destinou-se antes a dar cumprimento à vontade dos RR conjugada e consentida pela A. Não podemos deixar de evidenciar que tal aconteceu após a A. de livre e espontânea vontade ter abandonado a habitação, pondo termo a qualquer contrato que pudesse existir. Assim, tal facto carece de ver aditada tal informação sugerindo-se a seguinte redação: facto 30- a fechadura foi novamente mudada com consentimento expresso da A.”.
Ora, cumpre salientar que o que consta enunciado no facto n.º 30 e no facto n.º 31 traduz factualidade temporalmente delimitada: Está em questão a mudança de fechadura pelos réus após a entrega determinada no âmbito da decisão proferida na providência cautelar apensa e, bem assim, à retoma das obras pelos réus em tal fração, nessa sequência.
E, que tal mudança de fechadura tenha sido consentida pela autora, certo é que, disso nenhuma prova foi efetuada.
Quanto ao mais, os depoimentos de HS e de PC inculcam, claramente, que a nova mudança de fechadura desencadeada pelos réus ocorreu e que, nessa sequência, os réus prosseguiram com as obras no locado:
- Testemunho de HS:
“Advogada da A. - Olhe, entretanto o Tribunal determinou a entrega da casa à sua mãe, e a minha pergunta é se a sua mãe alguma vez voltou para aquela casa?
HS - Não, não. Não voltou. Porque quando o tribunal deu ordem… Deu ordem de posse, a casa estava em obras…
Advogada da A. - Sim, mas mudou-se a fechadura nessa data?
HS - Sim, mudou-se a fechadura.
Advogada da A. - E depois o que é que aconteceu?
HS - Passado uns dias eles voltaram lá e tiraram a fechadura. E voltaram a continuar com as obras.”
- Testemunho de PC:
“Advogada da A. - …é mudada a fechadura da porta, por ordem judicial e o que é que acontece a seguir?
PC - Aquilo que acontece é que as pessoas voltaram lá e a gente aqui faz o que quer e tomaram outra vez posse do imóvel e pronto.
Advogada da A. - E os senhores chamaram a polícia?
PC - Nós chamámos a polícia
Advogada da A. - e o que é que aconteceu?
PC - a polícia foi lá, entretanto já lá não estava ninguém e pronto e aqui e a partir daí tivemos que esperar que todo este processo, se tivesse, ou seja, nós aquilo que procurámos, foi cumprir aquilo que a justiça diz, é fazer as coisas debaixo da alçada da justiça e nós tivemos que nos lim2itar e ainda hoje estamos à espera, quando as outras pessoas fazem aquilo que lhes apetece no dia que lhes apetece quando lhes apetece, para que elas é que fazem a justiça”.
Finalmente, no auto de notícia, aditamento n.º 9, junto a fls. 148 dos autos é referido, com clareza que, na sequência de, no dia 19 de setembro de 2019 ter-se “procedido à troca da fechadura, ficando o denunciante na posse das respectivas chaves”, todavia, no dia 23-09-2019, ocorreu nova mudança de fechadura pelos réus: “Esta manhã, os denunciados dirigiram-se novamente ao local em causa, acompanhados de profissional do ramos de chaves que procedeu a nova mudança de fechadura, estando novamente o denunciante e sua mãe sem acesso à morada em causa”.
Inexiste, pois, motivo para a alteração pretendida pelos recorrentes.
*
n) Deve ser alterada a redação dos factos provados n.ºs. 39) e 40)?
Nos factos provados n.ºs. 39) e 40) ficou a constar que:
“39.Em Outubro de 2018, os réus já haviam comunicado verbalmente à filha da autora que pretendiam que a ré desocupasse o imóvel;
40.E voltaram a insistir através de mensagem escrita em Abril de 2019;”.
Nas suas alegações de recurso, consideram os recorrentes que tais factos são verdadeiros, mas que, todavia, “falta mencionar a carta recepcionada pela A. e junta por esta aos autos cujo conteúdo novamente se repete: Foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta, cujo teor é o seguinte: ‘’Nos termos do mandato que me foi conferido pela Senhora PC( legitima coproprietária do prédio melhor identificado em epigrafe, venho por este meio advertir V.exa da obrigação que sobre si impende de desocupar o supra referido edifício até ao dia 30.06.2019. ‘’
Concluem que estes factos devem ser aditados com esta informação:
“x) Facto 39 e 40 – tais factos correspondem à verdade, mas deve ser acrescentada menção a carta recepcionada pela A. e junta por esta aos autos cujo conteúdo novamente se repete: Foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta, cujo teor acima se reproduziu. Deste modo, resulta que o facto deve ser aditado com esta informação por ser impeditiva de prolação da decisão no sentido proferido”.
Conforme é jurisprudência dos tribunais superiores, não se justifica proceder a reapreciação da matéria de facto, se a factualidade pretendida incluir se mostra irrelevante para a decisão a proferir (cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05-02-2020, P.º 4821/16.4T8LSB.L1.S2, rel. NUNO PINTO OLIVEIRA - “I - O princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. II - Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada” – de 28-01-2020, Pº º 287/11.3TYVNG-G.P1.S1, rel. PINTO DE ALMEIDA – “Decorre do princípio da limitação dos actos (art. 130.º do CPC), que, no processo, apenas devem ser praticados os actos que se revelem úteis para a resolução do litígio. Este princípio, previsto para os actos processuais em geral, deve ser também observado no âmbito da apreciação da impugnação da decisão de facto, se se verificar que daí não advirá qualquer elemento com relevo para a decisão de mérito”) – e 13-07-2017, Pº 442/15.7T8PVZ.P1.S1, rel. FONSECA RAMOS – “I - Nos termos do art. 5.º, n.º 1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas. II - Factos não alegados pelas partes podem, no entanto, ser considerados pelo juiz. Esses factos, são os factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (n.º 2 al. a) do art. 5.º), e os que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar – al. b). III - Os factos que resultam da discussão da causa, como decorre da formulação do n.º 2 do art. 5.º do CPC – “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz” – são factos, passe a expressão, que só foram descobertos, que só chegaram ao conhecimento do tribunal na fase instrutória da causa. IV - Os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes, podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa. Não se nos afigura rigorosa a afirmação de que os factos sindicados pelos recorrentes – que foram por eles alegados na petição inicial e foram levados a debate em sede de instrução e julgamento - não devem ser objecto de julgamento em 2.ª instância, em sede de impugnação da matéria de facto, por serem instrumentais e o julgamento na 2.ª instância constituir um acto inútil. V - A consideração da inutilidade da reapreciação do julgamento da matéria de facto, quando a parte que recorre cumpriu o ónus de que depende a apreciação da sua pretensão, só pode/deve ser recusada em casos de patente desnecessidade.”).
Ora, muito embora a factualidade pretendida incluir pelos recorrentes tenha sido enunciada no âmbito da providência cautelar apensa – cfr. facto n.º. 7 – a mesma não foi objeto de correspondente alegação nos presentes autos, não se alcançando alguma pertinência na consignação de tal factualidade – que se limita a especificar diligência desencadeada pelos réus no sentido de lhes ser desocupada pela autora a fração em questão - , assim como da resposta subsequente, enunciada no factos n.º 8 dos autos de providência cautelar - para a apreciação do objeto do litígio em apreço nos autos, considerado o pedido e a causa de pedir relevantes, nem a mesma é, aliás, evidenciada pelos recorrentes que, aliás, de acordo com que alegaram em sede de contestação, apenas reportaram que teve lugar “oposição à renovação verbalmente, por quem celebrou o contrato, em data que não é possível precisar, mas que se reporta a Outubro de 2018” e que “em 1 de Abril de 2019, houve uma insistência no sentido de o imóvel ser desocupado” (cfr. artigos 85.º e 86.º da contestação dos recorrentes).
Inexiste, pois, motivo para a procedência da impugnação de facto gizada pelos recorrentes.
Verifica-se, não obstante, manifesto e corrigível – cfr. artigo 614.º, n.º 1, do CPC - lapso de escrita no facto n.º 39), quando menciona “a ré” como sujeito que os réus pretendiam que desocupasse o imóvel, quando, como é claro e notório, a referência deveria efetuar-se quanto à autora.
Nesta medida conclui-se:
- Inexistir motivo para a procedência da impugnação de facto a respeito da aludida factualidade; e
- Determina-se a retificação de redação do facto n.º 39), que passa a ser a seguinte: “39.Em Outubro de 2018, os réus já haviam comunicado verbalmente à filha da autora que pretendiam que a autora desocupasse o imóvel;”.
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o) Deve ser alterada a redação do facto provado n.º 45)?
Consta do facto provado n.º 45 o seguinte:
“45.Os requeridos foram citados no âmbito do procedimento cautelar em Outubro de 2019;”.
Os recorrentes dão a sua concordância parcial ao ali consignado, mas referem que apenas se podem considerar citados os réus “primários”.
A recorrida aceita a alteração pretendida.
Ora, conforme resulta documentalmente da própria tramitação que teve lugar na providência cautelar em apenso, apenas figuraram como requeridos citados em outubro de 2019, nesses autos, os ora recorrentes e JS, pelo que, o facto em questão deverá ser especificado e concretizado como pretendido pelos recorrentes.
De acordo com o exposto, deverá a redação do facto provado n.º 45) ser alterada, passando a ser a seguinte: “Os requeridos JS, AC, JC foram citados no âmbito do procedimento cautelar em Outubro de 2019;”.
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p) A matéria constante do facto provado n.º 49) da decisão recorrida deve ser eliminada de tal rol e ser considerada provada a matéria constante dos factos não provados n.ºs. 63) e 64)?
No facto n.º 49) consta o seguinte:
“49.AC e JC não quiserem reduzir a escrito o acordo identificado no ponto 6 “supra” invocando questões de natureza fiscal”.
Consideram os recorrentes que não foi efetuada prova desta factualidade.
E, igualmente, pretendem que, em consequência, a matéria constante dos factos n.ºs. 63) e 64) transite, do rol dos factos não provados, para o rol dos provados.
Concluíram os recorrentes alinhando a conclusão z) constante das alegações de recurso, do seguinte teor:
“z) Facto 49 - Não foi feita prova nesse sentido. Antes resulta do depoimento da própria autora que todos os termos resultam de acordo da Testemunha HS. Posto isto, resulta também evidente que tal facto não pode ser considerado provado. Em decorrência directa do que se disse e transcreveu a propósito do ponto 49, por seu turno, deveria o facto 63 e 64 dos factos não provados, constar dos factos provados. Como se refere na sentença, a A. não logrou provar que estes conheciam a negociação nem que tinham dado poderes a alguém para tal. Aliás, resulta da maioria dos depoimentos que todo o assunto foi apenas tratado pela filha da A. e a filha e genro do primário R. JS.”.
Contudo, não lhes assiste razão, não permitindo qualquer dos excertos dos depoimentos que transcreveram, viabilizar a conclusão por si pugnada.
Ao invés, de forma fundada e objetiva os depoimentos prestados pelos filhos da autora, permitem aferir, com a necessária e suficiente consistência, qual a motivação para não ter sido reduzido a escrito o acordo identificado no facto provado n.º 6, relacionada com questões de natureza fiscal, não se afigurando que a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido a respeito do que ficou consignado no ponto 49) dos factos provados, mereça alguma censura:
- Testemunho de HS:
“(…) Olha, estamos a pensar em 325€”, e assim foi. Concordámos com o valor, eu na altura falei com ela e perguntei-lhe se havia forma de podermos de fazer um contrato de arrendamento, e isso até com o objetivo de poder (…). E o que eu disse à AC foi o seguinte: Se havia possibilidade de declarar, por causa do IRS da minha mãe. E a AC disse o seguinte, na altura: “Olha, ó Lena, se vamos declarar às finanças o IRS dos meus pais vai ser penalizado e isso é chato. E eu assim, a intenção era ficas aqui sem data, mas com, sem declararmos às Finanças”. E assim foi, como nós sempre tivemos uma relação, eu conheci a D. BC e o Sr. JS, que Deus o tenha em descanso, desde sempre, eu nasci naquele prédio, conheci a PC e a MD desde sempre também, desde que eu nasci, que elas são mais velhas, nunca houve nenhuma, nada! Antes pelo contrário, são pessoas trabalhadoras, honestas, no prédio sempre nos demos bem, conhecíamos as pessoas e não houve qualquer questão. E pronto, a minha mãe ficou, pagávamos a renda e foi este processo que a casa foi alugada.”
- Testemunho de PC:
“(…) Então, surgiu a oportunidade de se alugar uma casa no mesmo prédio onde a minha irmã morava e foi isso que que que aconteceu. Essa casa foi alugada, o contrato de arrendamento não foi reduzido a escrito, porque as partes interessadas, neste caso, quem arrendava a casa, não tinha interesse em fazer um contrato por escrito devido aos impostos que daí adviriam e para nós estava salvaguardado o cuidado que podíamos ter com a nossa mãe, visto de proximidade que tínhamos dela.”
Relativamente aos factos não provados n.ºs. 63 e 64 deles consta o seguinte:
“63. O réu JS e sua mulher BC desconheciam o acordo referido no ponto 7 “supra” e nunca autorizaram a ocupação do imóvel;
64. O réu JS apenas teve conhecimento da ocupação do imóvel pela autora aquando da citação para a providência cautelar”.
Ora, em face dos meios de prova produzidos não resultou apurado que JS e sua mulher BC desconhecessem o acordo sobre a fração dos autos, nem, igualmente, que o réu JS apenas tivesse tomado conhecimento da ocupação do imóvel, aquando da sua citação para a providência cautelar.
Mas, certo é que, a prova produzida inculca, apesar disso, no sentido de que tal conhecimento existiu.
Veja-se que todos os meses, de 2015 até 2019, eram efetuadas transferências – do valor da renda acordada - para a conta de JS (sendo que, no email de 26-04-2015, o réu JC forneceu a HS, o “NIB” (acrónimo vulgarizado da expressão “Número de Identificação Bancária”- cfr. International Bank Account Number, Banco de Portugal, p. 2, consultado em: https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/documentos-relacionados/international_bank_account_number_vfinal_dpg_vr_20180226.pdf) “da BC”.
Mas, para além disso, a ré AC, na comunicação que enviou à filha da autora em 07-06-2019 – cfr. fls. 190 dos autos – não deixou de referenciar a esta que: “(…) Quando me pediste para te alugar a casa, sabes bem que a minha mãe não queria porque poderia vir a precisar dela, eu consegui convencê-la…”.
O mesmo se infere do que consta escrito da comunicação remetida pela autora a JS, datada de 07-08-2019 (cfr. fls. 202v.º), onde, sem qualquer prólogo ou explicação sobre o contrato de arrendamento, a autora alude a este e explicita o motivo da missiva remetida.
Improcede, pois, a impugnação de facto correspondente.
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q) Se deve ser aditado aos factos provados que a filha da autora, por si e sem poderes, negociou exclusivamente com os réus AC e JC os termos do “contrato” e à revelia do réu JS?
Pugnam ainda os recorrentes no sentido de ser aditado aos factos provados “que a Filha da autora por si e sem poderes negociou exclusivamente com a R. AC e o Réu JC os termos do ‘’contrato’’ e à revelia do R. JS”, o que referem resultar “directamente do auto de notícia supra transcrito, das versões constantes dos articulados dos réus e ainda dos depoimentos prestados” (cfr. conclusão aa) das alegações de recurso).
Vejamos:
De acordo com o que constava dos artigos 508.º-A, n.º 1, al. e) e 511.º do CPC de 1961, na redação ultimamente vigente, a base instrutória deveria conter a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias situações plausíveis da questão de direito e sobre a qual incidiriam as diligências instrutórias de prova e de julgamento. Estas normas harmonizavam-se com a disposição contida no artigo 513.º do mesmo Código (com a epígrafe “Objecto da prova”), no qual se consagrava que a instrução tinha por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devessem considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
No novo e vigente Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos enunciados de facto controvertidos, mas apenas a enunciação das questões essenciais de facto, em que assenta a controvérsia entre as partes, deixando-se para a decisão sobre a matéria de facto - a ter lugar, em regra, no momento de prolação da sentença - a descrição dos factos que, relativamente a cada tema da prova, tenham sido provados ou não provados.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “[r]elativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual”.
Ora, conforme se evidencia no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “Será, pois, admissível que a enunciação dos temas da prova, actualmente prevista no n.º 1 do artigo 596.º do nCPC, assuma um carácter genérico e até, por vezes, aparentemente conclusivo, apenas devendo ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique.
Todavia, no que concerne à decisão da matéria de facto, a mesma já não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, ali se exigindo que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão a decidir.
Não obstante a redacção dada ao artigo 410º do nCPC, nos termos do qual a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os factos constante dos articulados apresentados pelas partes que a produção de prova e respectivos meios incidirão, como se infere dos artigos 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, do nCPC, e não sobre os respectivos temas de prova enunciados.
São de igual modo os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º do nCPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença.
Acresce que decorre do artigo 413.º do nCPC, que reproduziu sem alteração o artigo 515.º do aCPC, que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, mantendo-se, assim, intocável o princípio da aquisição processual.
Nos termos do aludido princípio, as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, pouco importando saber por via de quem foram trazidas para os autos (…)”.
Ou seja: “A enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstração ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio (…).
Haverá ações em que os temas da prova surgirão com maior concretização, embora não seja necessário (nem sequer aconselhável, na maior parte dos casos) que cada tema corresponda a um facto puro e simples, e haverá ações em que os temas da prova se apresentarão numa formulação de pendor mais genérico ou até mesmo conclusivo (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 699-700).
De todo o modo, como sublinham estes mesmos Autores (ob. cit., p. 701), “a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”.
Assim, não obstante o artigo 646.º, n.º 4, do anterior CPC (onde se dispunha que: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”) não se encontrar no CPC em vigor, certo é que, da fundamentação da sentença devem constar factos, o que, desde logo, deriva da previsão do artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
De facto, ao invés dos factos essenciais (os que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas) que devem ser alegados pelas partes, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do CPC e, além dos factos que sejam considerados pelo juiz, de harmonia com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, há determinada alegação que comporta a invocação de factos irrelevantes ou conclusivos, ou conter matéria de direito, aspetos que não devem ser transpostos para a seleção factual realizada pelo Tribunal em sede de sentença: “A matéria conclusiva (que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito é contrária à matéria estritamente factual que, como decorre do art. 607º nº4 do CPC, deve ser seleccionada para a fundamentação de facto da sentença” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-02-2021, Pº 701/19.0T8PFR.P1, rel. MENDES COELHO). De tal sorte que, “a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO).
Contudo, nem sempre, na prática, se torna evidente se estamos perante absoluta matéria conclusiva ou de direito ou ainda em face de matéria de facto.
Conforme se escreveu – ainda no âmbito do precedente CPC - no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2003 (Pº 8271/03, rel. MARIA JOSÉ MOURO, CJ, 2003, t. I, pp. 79-87): “A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.
Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 206-207 referia: «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.”
Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.
Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.
As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei”.
Na mesma linha e também no âmbito do CPC de 1961, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-1992 (Pº 003400, rel. DIAS SIMÃO) que: “Nem sempre é fácil a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, podendo mesmo afirmar-se que a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida da estrutura da norma aplicável e dos termos da causa (…). Como critério geral de distinção pode dizer-se que é de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, se o apuramento dessas realidades se realiza à margem da aplicação directa da lei, ou seja, tratando-se de averiguar factos cuja existência não dependa da interpretação a dar a qualquer norma jurídica. Acontecendo, porém, que o conceito normativo mencionado na lei seja igual ao conceito empiríco, utilizando aquela expressão de uso corrente na linguagem comum, nesse caso, poder-se-à quesitar empregando-se as palavras da lei, na medida em que, tomando-se esse conceito no seu sentido vulgar para este reservado”.
Em termos gerais, com referência aquilo que se verteu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009 (Pº 08S3441, rel. VASQUES DINIS) pode considerar-se que: “Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”.
Assim, como princípio, não devem enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir.
Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.
Isso mesmo tem sido assinalado, em diversos arestos, pela jurisprudência, exemplificativamente se citando os seguintes (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021 (Pº 2999/08.0TBLLE.E2.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES): “Em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação, mas pode conter pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2020 (Pº 2124/17.6T8VCT.G1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “Factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (Pº 3789/15.9T8VFR.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-11-2019 (Pº 3875/18.3T8MTS.P1, rel. RITA ROMEIRA): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 109/17.1T8ACB.C1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES): “Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Pº 338/17.8YRPRT, rel. FILIPE CAROÇO): “O desaparecimento da previsão do nº 4 do art.º 646º do antigo Código de Processo Civil não significa que a fundamentação de facto da sentença, tal como delineada na primeira parte do n° 3 e no n° 4 do artigo 607º do atual Código de Processo Civil tenha passado a poder incidir também sobre matéria conclusiva e de direito. Em termos gerais, o facto corresponde a um estado ou acontecimento que se configura como uma realidade passível de constatação e apreensão, seja ele um facto do mundo exterior (facto externo) ou um facto da vida psíquica (facto interno: o dolo, o conhecimento de determinadas circunstâncias, uma determinada intenção)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 (Pº 3499/11.6TJVNF.G1.S2, rel. ROSA TCHING): “No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO): “Face ao Novo Código de Processo Civil é na sentença que o juiz declara quais os factos que julga provados e os que julga não provados. A selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017 (Pº 809/10.7TBLMG.C1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA): “A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado. Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2015 (Pº 819/11.7TBPRD.P1.S1, rel. JOÃO TRINDADE): “Em face do NCPC (2013), haverá que considerar, de uma forma inovadora, que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista. É possível agora ao juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “É hoje admissível que a enunciação dos Temas da Prova prevista no nº 1 do artigo 596º do nCPC assuma um carácter genérico e por vezes aparentemente conclusivo - ao invés do que sucedia com a Base Instrutória elaborada, nos termos do artigo 511º do aCPC – encontrando-se apenas balizada pelos limites decorrentes da causa de pedir e das excepções invocadas na lide. A decisão da matéria de facto não deverá, todavia, conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, impondo o artigo 607º do nCPC, no seu nº 4, que na sentença o julgador declare provados ou não provados os factos e não os temas da prova”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2013 (Pº 400/09.0PAOVR.C1.P1, rel. EDUARDA LOBO): “Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-04-2004 (Pº 04B652, rel. FERREIRA GIRÃO): “O vocábulo janela pertence ao mundo dos vocábulos ou expressões, que, traduzindo embora determinado conceito técnico-jurídico, têm também um significado de uso corrente, fácil e inequivocamente identificável; Consequentemente, não se deve dar como não escrito, ao abrigo do nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, o vocábulo janela, quando incluído na decisão da matéria de facto sem qualquer discriminação das suas características - tal como, aliás, foi alegado”.
Revertendo estas considerações e aplicando-as ao caso dos autos, vemos que a matéria pretendida aditar pelos recorrentes é de pendor manifestamente conclusivo, dado que alude aos conceitos que não se mostram imediatamente apreensíveis, de “poderes”, de “negociação” exclusiva e de “revelia” que baseiam tal juízo conclusivo e, que, nessa medida, sempre conduziriam à improcedência da pretensão impugnatória dos recorrentes.
De todo o modo, sempre se diga que, ao invés do invocado, o auto de notícia - elaborado em 2019 – não pode constituir adequada fonte probatória para a demonstração positiva da celebração de um contrato de arrendamento entabulado vários anos antes (em 2015). As declarações aí mencionadas fazem prova da sua ocorrência perante a autoridade policial, mas não, como é claro, provam plenamente a sua veracidade, nos termos que já supra se detalharam.
E, quanto ao mais, não resultou apurado – não tendo sido produzido qualquer meio probatório que o demonstrasse - que, embora tenha a celebração do acordo tido a participação de HS e dos réus AC e JC, esse acordo tenha sido, de algum modo, concluído à margem ou com o desconhecimento do réu JS.
Improcede, pois, o aditamento factual pretendido pelos recorrentes.
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
1. Em 09.07.1991 JS adquiriu, no estado de casado com BC, a fracção F do prédio descrito na 2.ª conservatória do registo predial de Loures sob o n.º …/…;
2. Tal fracção autónoma corresponde ao 2.º andar direito do prédio com entrada pela Rua … n.º …, em Moscavide;
3. A autora passou a habitar na aludida fracção autónoma a partir de Maio de 2015;
4. Desde então, transferiu mensalmente para JS, como contrapartida do facto mencionado no ponto 3, a quantia monetária de 325,00€;
5. Tal sucedeu na sequência de negociações e contactos entre a filha da autora, HS, e os réus AC e JC, filha e genro de JS;
6. Foi ajustado verbalmente entre os intervenientes identificados no ponto 5 “supra” que a autora passaria a habitar na aludida fracção autónoma a partir de Maio de 2015, mediante o pagamento da supra aludida quantia pecuniária de 325,00€/ mês;
7. Foi ainda acordado que a autora pagaria os consumos de água, electricidade e telefone, cujos contratos de fornecimento permaneceriam na titularidade do 1.º réu;
8. No início de Julho de 2019, cessou o fornecimento desses serviços no imóvel;
9. Nessa sequência, a autora contratou novos serviços em seu nome;
10. Em 15.07.2019, ao final da tarde, os réus AC e JC bateram à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra”;
11. Quando a autora abriu a porta, foi empurrada pelo réu JC e caiu, batendo com a cabeça;
12. Nessa ocasião, foi ainda pisada pelo réu JC;
13. Dessa forma, os réus entraram no imóvel e referiram que a casa era sua, que a autora não tinha nenhum contrato de arrendamento e que por isso tinha de sair;
14. Tendo tido conhecimento desse facto, os filhos da autora dirigiram-se ao imóvel;
15. A PSP, uma vez no local, não deixou os filhos da autora permanecerem junto desta, impedindo-os de permanecerem no interior da fracção;
16. Tendo ainda informado a autora de que a mesma, não tendo contrato de arrendamento, teria de sair do imóvel;
17. Nessa ocasião, a mando do réu JC, foi trocada a fechadura da porta do imóvel;
18. Nessa noite, a autora saiu da fracção e ficou sem acesso ao imóvel;
19. Sem que lhe tivesse sido dada a nova chave da fracção;
20. Permanecendo os bens da autora no seu interior;
21. Mais tarde, ainda nessa mesma noite, por força do descrito nos pontos 17 e 18 “supra”, a PSP foi chamada ao local e a fechadura do imóvel foi novamente trocada, desta vez a mando da autora;
22. Nos dias seguintes, a mando dos réus, deu-se início à realização de obras na fracção, tendo sido arrancada a porta exterior do imóvel;
23. E tendo sido retirado mobiliário para o exterior da fracção, bem como os bens que a autora tinha no seu interior;
24. A autora tinha no interior da fracção autónoma os seguintes bens: uma bimby, um liquidificar, um serviço de loiça, objectos decorativos, candeeiros de mesa, varinha mágica, molduras, tachos, edredon e roupas de cama, talhas, cortinados em linho e renda, decoração e árvore de natal, toalhas de mesa e guardanapos, termoventilador, sofás, estendal, aparelhagem, carpetes, tostadeira, cafeteira eléctrica, torradeira, carpete de cozinha, tapetes de casa de banho e móvel de casa de banho e diversos objectos pessoais;
25. Os quais, a mando dos réus, foram levados para parte incerta sem serem devolvidos;
26. Foi colocado na entrada do prédio um aviso da realização de obras, datado de 15.07.2019 e assinado pelo réu JC;
27. Em 29.07.2019, a autora instaurou procedimento cautelar de restituição provisória da posse, requerendo a restituição provisória da posse sobre a fracção autónoma em causa;
28. Em 31.08.2019, foram os requeridos JS, AC, JC e MC, condenados na restituição imediata da fracção autónoma;
29. Em 19.09.2019, foi lavrado auto de restituição pelo Tribunal, tendo sido concretizada a decisão judicial e mudada a fechadura da porta do imóvel e entregue a chave da mesma à Il. Mandatária da autora;
30. Após essa entrega feita pelo Tribunal, a fechadura foi novamente mudada de forma a impedir que a autora pudesse voltar ao imóvel;
31. E as obras foram retomadas.
32. Em consequência do descrito nos pontos 11 e 12 “supra”, a autora ficou com um traumatismo na cabeça e na região lombar, bem como com um hematoma na face posterior da perna direita;
33. Na madrugada de 16.07.2019, foi assistida no Hospital Beatriz Ângelo;
34. Apresentando dores à palpação da região occipital associada a um pequeno hematoma subgaleal e dor à palpação paravertebral lombar;
35. A autora despendeu para pagamento das mudanças de fechadura (cfr. factos 21 e 29) e pela deslocação da PSP ao local no dia 15.07.2019, o montante de 345,66€;
36. O valor cobrado à autora pelo fornecimento de energia eléctrica e telecomunicações no imóvel durante o mês de Julho foi de 35,67€;
37. Por força dos factos descritos, autora sentiu-se triste, angustiada e receosa;
38. A autora nasceu em 25.12.1935;
39. Em Outubro de 2018, os réus já haviam comunicado verbalmente à filha da autora que pretendiam que a autora desocupasse o imóvel;
40. E voltaram a insistir através de mensagem escrita em Abril de 2019;
41. BC faleceu em 08.05.2018;
42. Sucederam-lhe o marido, JS, e as filhas AC e MD;
43. JS faleceu em 04.12.2019;
44. Sucederam-lhe as filhas AC e MD;
45. Os requeridos JS, AC, JC MC foram citados no âmbito do procedimento cautelar em Outubro de 2019;
46. Em 30.12.2019, foi celebrada escritura de Partilha na qual intervieram como outorgantes AC, MD e JC, através da qual foi adjudicada a MD a fracção autónoma identificada;
47. Em 20.02.2020, MD vendeu a aludida fracção autónoma a MNA e marido JAA;
48. MD declarou nessa escritura que vendia o imóvel em causa “livre de quaisquer ónus ou encargos”;
49. AC não quiserem reduzir a escrito o acordo identificado no ponto 6 “supra” invocando questões de natureza fiscal.
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NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
50. Após entrarem no imóvel, os réus ameaçaram a autora de morte e deram-lhe murros e pontapés e morderam-na para a obrigarem a sair do imóvel;
51. As rés AC e MC empurraram a autora e pisaram-na;
52. A autora tinha na fracção autónoma salvas e molduras de prata;
53. O valor dos bens descritos no ponto 24 “supra” ascende à quantia de 11.843,28€;
54. Os problemas de saúde da autora agravaram-se como consequência dos factos perpetrados pelos réus;
55. A sua pressão arterial aumentou e, em consequência, a mesma teve uma perda significativa de audição e os seus membros incharam, dificultando a locomoção;
56. Em 29.07.2019, a autora foi internada no Hospital de Viseu em virtude de transtornos traumáticos ocorridos como consequência dos factos praticados pelos réus;
57. Por força desse agravamento teve de fazer radiografias e fazer pensos na perna;
58. E ainda de ser submetida a consultas, análises, ecografias e outros exames;
59. Bem como de tomar medicamentos e adquirir um aparelho de audição;
60. A autora ficou impedida de concluir um tratamento dentário em Lisboa;
61. E teve de gastar a quantia de 127,50€ na realização de tratamentos numa clínica em Viseu;
62. A autora transferiu o serviço de telecomunicações para a sua casa de Viseu, suportando um custo de 124,32€;
63. O réu JS e sua mulher BC desconheciam o acordo referido no ponto 7 “supra” e nunca autorizaram a ocupação do imóvel;
64. O réu JS apenas teve conhecimento da ocupação do imóvel pela autora aquando da citação para a providência cautelar;
65. Na ocasião descrita no ponto 15 “supra”, a autora declarou que pretendia entregar o imóvel aos réus e “cessar o contrato de arrendamento”;
66. Tendo abandonado de livre vontade o imóvel e entregando as chaves do mesmo aos réus;
67. Tendo ficado acordado entre autora e os réus que a mesma retiraria de lá os seus pertences, posteriormente, quando solicitasse;
68. A autora acordou com JS e BC a ocupação do imóvel e os termos descritos no ponto 6 “supra”;
69. AC e JS apenas ajudaram a agilizar esse acordo.
70. Que, aquando do referido em 10), a ré MC tenha batido à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra”.
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IV) Mérito do recurso:
Em termos substantivos, pretendem os recorrentes a revogação da decisão recorrida, com sua substituição por outra que os absolva dos pedidos formulados pela contraparte.
Considerando as alegações formuladas, a aludida pretensão convoca a resolução das seguintes questões:
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G) Se foi celebrado um contrato de comodato?
No capítulo V das suas alegações os recorrentes reportam-se – para além da questão da invocada nulidade por omissão de pronúncia (já supra apreciada) - ao “Enquadramento Jurídico” da decisão recorrida.
De acordo com as conclusões que apresentaram, os recorrentes consideram, nomeadamente, que a ré habitava a fração a título de comodato.
Vejamos:
Resulta dos factos provados – n.ºs. 2), 3), 4), 5), 6) e 7) – que, relativamente à fracção autónoma correspondente ao 2.º andar direito do prédio com entrada pela Rua … n.º …, em Moscavide, a autora ali passou a habitar a partir de Maio de 2015, tendo passado, desde então, a transferir mensalmente para JS, como contrapartida de lhe ter sido facultado o direito de aí habitar, a quantia monetária de 325,00€. Tal sucedeu na sequência de negociações e contactos entre a filha da autora, HS, e os réus AC e JC, filha e genro de JS, tendo sido, entre estes, ajustado verbalmente que a autora passaria a habitar na aludida fracção autónoma a partir de Maio de 2015, mediante o pagamento da supra aludida quantia pecuniária de 325,00€/mês. Mais foi acordado que a autora pagaria os consumos de água, electricidade e telefone, cujos contratos de fornecimento permaneceriam na titularidade do mencionado JS.
O Tribunal recorrido concluiu – e, a nosso ver, bem – que a aludida factualidade configurou a existência de uma relação jurídica de arrendamento.
E, na realidade, o artigo 1022.º do CC consigna que, “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”, a qual, quanto respeita a coisa imóvel, tem a denominação de arrendamento (cfr. artigo 1023.º do CC).
Os elementos característicos que integram o conceito de locação são:
“a) A relação contratual;
b) A obrigação de proporcionar a outrem o gozo de uma coisa;
c) A temporariedade desse gozo;
d) A obrigação de retribuição por esse gozo” (assim, Soares Machado e Regina Santos Pereira; Arrendamento Urbano (NRAU), 3. ª ed., Petrony, 2014, p. 24).
O locador obriga-se a entregar ao locatário a coisa locada e a assegurar o gozo desta para os fins resultantes do contrato (artigo 1031.º do CC). O locatário, além de outras obrigações instrumentais, fica obrigado a pagar o montante da retribuição e a restituir a coisa locada findo o contrato (artigos 1038.º, als. a) e f), 1039.º e ss. e 1043.º e ss. do CC).
Por seu turno, de harmonia com o disposto no artigo 1129.º do CC, “comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
“A jurisprudência tem repetidamente afirmado como traços característicos do comodato a gratuitidade, a temporalidade e a obrigação de restituir.
O objeto do comodato é coisa infungível corpórea (…), móvel ou imóvel, una, plural ou parcial (por exemplo, uma parte de imóvel urbano que não coincida com uma fração autónoma).
(…) O comodato confere ao comodatário o direito de uso do objeto e eventualmente o direito de perceber os seus frutos naturais ou civis (artigo 1132.º), em conformidade com o fim e os limites estipulados no contrato ou em preceitos legais supletivos. Este direito de uso não tem natureza real, porque não é oponível erga omnes (assim se distinguindo do usufruto), mas também não é um direito de crédito em sentido próprio, porque prescinde de qualquer prestação, não estando o comodante obrigado a assegurar o uso (artigo 1133.º, n.º 1, e 1134.º). Pertence à categoria dos direitos pessoais de gozo, que, apesar do seu perfil relativo, permitem o exercício imediato sobre uma coisa.
O direito do comodatário tem conteúdo mais fraco do que o direito do locatário. Mas o seu limiar mínimo há de colocar-se no âmbito da juridicidade, acima da simples tolerância ou da obsequiosidade.
Do lado passivo, a posição do comodatário desdobra-se em várias obrigações, cujo elenco consta do artigo 1135.º (próximo do artigo 1038.º sobre as obrigações do locatário, salvo o pagamento da renda)” (assim, Carlos Ferreira de Almeida; Contratos III, Almedina, 2012, p. 53 e pp. 55-56).
Ora, decorre dos factos apurados que à autora foi proporcionado o gozo – temporário - da fração acima mencionada, mediante o pagamento de uma contrapartida, elementos que são atinentes à relação jurídica de arrendamento e, não, à de comodato.
Não merece, pois, qualquer censura, antes adesão, a conclusão da decisão recorrida, no sentido de que “foi, pois, celebrado verbalmente entre a filha da autora e a filha e genro dos donos do imóvel um acordo típico de arrendamento” e que não é configurável uma situação de comodato, “já que este tipo contratual é de natureza gratuita (cfr. artigo 1129.º do CC) sendo manifesto que, neste caso concreto, o acordo das partes não assumiu essa natureza gratuita, uma vez que foi assumida pela autora a obrigação de pagamento de uma renda mensal pela ocupação do imóvel”.
A questão suscitada merece, em conformidade, resposta negativa.
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H) Se o contrato celebrado é nulo por falta de legitimidade substantiva dos contraentes?
Nas conclusões hh) a yy) da sua alegação de recurso, os recorrentes invocam, em suma, que a contratação ocorreu “por via de terceiros (AC e JC) desprovidos de instruções para esse efeito”, tendo a ocupação ocorrido “completamente à revelia dos proprietários do imóvel, então JS e BC, que nunca conferiram poderes para tal”, sendo que, a falta de poderes dita a nulidade do negócio, não tendo os legítimos proprietários à data da celebração tido qualquer intervenção e não o ratificaram, não sendo também a autora parte no aludido contrato.
Sobre esta questão a recorrida, em contra-alegações contrapôs o seguinte:
“(…) HHHHH. Não decorre dos factos provados que os proprietários do imóvel não tivessem conhecimento do contrato de arrendamento ou que o Réu JS só tivesse tomado conhecimento do arrendamento, quando foi citado da providência cautelar.
IIIII. Os proprietários recebiam na conta bancária as rendas mensais pagas pela Autora, sendo absolutamente irrelevante se as contas tinham mais titulares ou se eram, ou não, contas de uso corrente - factos que também os Réus não lograram provar – pelo que evidentemente os proprietários tinham acesso aos valores.
JJJJJ. O R. JS tinha conhecimento desse arrendamento daí que tenha cortado os fornecimentos do imóvel em Julho/2019 (facto 8), para tentar obrigar a Autora a sair do imóvel.
KKKKK. Não é pelo facto de terem existido contactos e negociações entre a filha da Autora, HS, e os Réus AC e JC relativamente ao arrendamento do imóvel que leva a concluir ou até a supor que o proprietário não sabia do arrendamento ou não o autorizou, sobretudo quando ele recebia o valor das rendas por transferência bancária e podia verificar a existência de consumos de água, electricidade e comunicações no imóvel (os contratos estiveram em nome dele até ao corte dos fornecimentos no início de Julho).
LLLLL. O facto dos electrodomésticos ou algumas mobílias serem alegadamente dos proprietários ou pelas facturas dos serviços essenciais serem emitidas em nome deles, não leva a concluir que estes não tinham conhecimento do contrato de arrendamento ou não o celebraram.
MMMMM. Os Documentos n.ºs 3, 4, 8, 9 e 10 da Petição Inicial, verifica-se que os contratos de serviços essenciais estavam em nome do proprietário falecido e a Autora pagava a este, os valores relativos ao consumo que efetuava no locado.
NNNNN. A alegada nulidade substancial do contrato de arrendamento já tinha sido apreciada e decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de acórdão transitado em julgado no âmbito do recurso da providência cautelar apenso aos presentes autos (Processo n.º 11990/19.0T8LRS-A.L1).
OOOOO. Irreleva que as negociações tendentes à celebração deste contrato de arrendamento tenham, eventualmente, sido levadas a cabo, por banda do senhorio, pelo seu genro JC, sem a participação directa dos donos do imóvel arrendado nessas negociações, já que o recebimento das rendas pagas mensalmente pela arrendatária ora Requerente / Apelada, durante quatro anos seguidos, através duma transferência regularmente efectuada para uma conta bancária de que eram titulares os proprietários do imóvel ocupado pela Requerente, significa que estes ratificaram o contrato de arrendamento porventura celebrado pelo seu genro, sem poderes de representação, em nome dos sogros (art. 2680-1 do Código Civil).”
PPPPP. Da mesma forma que irreleva que, por banda da arrendatária, tenha sido a sua filha HS quem, eventualmente, negociou com o referido genro dos então proprietários do imóvel (o Requerido JC) a celebração do contrato de arrendamento sobre o imóvel em questão e quem curou de efectuar o pagamento da renda e dos valores correspondentes aos consumos de água, luz e telefone registados na fração autónoma em questão, dado que mesmo que a filha da ora Requerente não dispusesse de poderes de representação para tanto, o facto de a Requerente ter habitado o imóvel em questão, entre Maio de 2015 e Julho de 2019, evidencia que o contrato de arrendamento ainda que celebrado pela sua filha, sem poderes de representação, teria sido por ela ratificado (cit. art. 268 0 , no 1, do Código Civil).
QQQQQ. Não existe nulidade substancial do contrato de arrendamento celebrado entre a Requerente e os proprietários do imóvel, decorrente da putativa falta de legitimidade dos respectivos outorgantes.
RRRRR. E ainda não fosse esse o entendimento do Tribunal, sempre se dirá que, relativamente à alegada falta de legitimidade dos RR, sendo o contrato de arrendamento um contrato de natureza obrigacional, o facto de ser celebrado por alguém que não detém legitimidade, segundo a lei substantiva, para dar de arrendamento o locado, não determina a invalidade do contrato, podendo considerar-se eventualmente uma questão de ineficácia em relação ao proprietário.”.
Vejamos:
Conforme decorre das precedentes considerações, o contrato celebrado reconduz-se ao tipo legal do contrato de arrendamento.
O contrato em questão foi negociado entre a filha da autora e a filha e genro dos então proprietários do imóvel e o negócio visava a habitação da autora no locado, mediante o pagamento de uma contrapartida pecuniária mensal, nos termos acordados, contrapartida essa que, desde que começo a habitar na fração – desde maio de 2015 – a autora satisfez ao proprietário do imóvel.
Tratam-se de factos incontroversos e que resultam dos elementos factuais apurados nos presentes autos (cfr. factos provados n.ºs. 3, 4, 5 e 6).
Em conformidade com o disposto no artigo 1094.º do CC, vigente à data de 2015 – resultante da redação conferida a este preceito pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto – o contrato de arrendamento para habitação celebrado com duração indeterminada, considera-se celebrado, no silêncio das partes, pelo prazo de 2 anos.
O contrato celebrado não foi submetido a forma escrita, mas foi apenas sujeito a um acordo verbal.
O Tribunal recorrido apreciou a questão da validade formal do contrato verbal assim celebrado, mencionando, nomeadamente, o seguinte:
“Nos termos do artigo 1069.º do Código Civil (na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02) sob a epígrafe “Forma”, diz-se que: “1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. 2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Ora, não há dúvida de que, por força do nº. 2 do artigo 12.º do CC, as condições de validade substancial ou formal de um contrato se aferem pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado e que, à data da celebração do acordo (Maio de 2015), para a validade ou eficácia do contrato, o artigo 1069.º do CC exigia a forma escrita, não se encontrando ainda previsto o citado n.º 2 aliás, o qual apenas foi introduzido pela Lei 13/2019.
Porém, nos termos do artigo 14.º n.º 2 da lei 13/2019 (norma transitória) “o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma”.
Assim, assistia à autora o direito de fazer a prova da existência do contrato de arrendamento, por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Ora, à luz da matéria apurada, ficou, pois, plenamente provada a existência de um contrato de arrendamento, à luz do disposto no artigo 1069.º n.º 2 do CC, já que, a inexistência de contrato escrito não é imputável à autora e durante muito mais do que seis meses foram pagas rendas mensais sem que os donos do imóvel se tivessem oposto ao contrato, tendo recebido na sua conta bancária, consecutivamente, as transferências mensais acordadas.”.
De facto, dispõe o artigo 1069.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que:
“1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.”.
E, de acordo com o disposto no n.º 2, do artigo 14.º da referida Lei n.º 13/2019, “o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma”.
É assim claro que, “o disposto no artigo 1069º, nº2, do Código Civil, com as alterações introduzidas pela Lei nº 13/2019, de 12/12, aplica-se igualmente aos arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma, abrangendo os casos apreciados em acções pendentes, pelo que está facultado à Ré socorrer-se da prova da existência do contrato de arrendamento através dos elementos indicados na redacção actual do Preceito” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-11-2021 (Pº 27666/18.2LSB.L1-7, rel. ISABEL SALGADO).
Ou seja: “Determina-se no n.º 2 do artigo 1069.º do CC, tal como alterado pela Lei n.º 13/2019, de 12.02, que, não sendo a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento imputável ao arrendatário, este possa provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses. Sendo certo que (resulta agora claramente da lei) a redução a escrito é mero requisito ad probationem (…)” (cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2022, Pº 4268/20.8T8PRT.P1.S1, rel. CATARINA SERRA e o Acórdão do mesmo Tribunal e data, Pº 9715/19.9T8LRS.L1.S1, rel. JOÃO CURA MARIANO).
Ora, em face dos factos apurados, foi demonstrada a existência do contrato de arrendamento, verbalmente celebrado, com os contornos acima referenciados.
E, por outro lado, não se logrou demonstrar que a contratação do acordo entabulado entre HS e AC e JC fosse desconhecida da parte de JS e de BC e que nunca estes tenham autorizado a ocupação do imóvel pela autora, assim como não se apurou que o conhecimento da ocupação do locado pela autora tenha ocorrido relativamente ao réu JS apenas aquando da citação para a providência cautelar (cfr. factos não provados n.ºs. 63 e 64).
De todo o modo, o Tribunal recorrido não deixou de apreciar a suscitada questão da nulidade do contrato por ilegitimidade de quem o celebrou e por inexistência de poderes de representação.
Conforme ensina Inocêncio Galvão Telles (Manual dos Contratos em Geral; Coimbra Editora, 4.ª ed., 2002, pp. 420-421), “o normal é que o sujeito do negócio jurídico, a parte em sentido formal, coincida com o sujeito do interesse, a parte em sentido substancial. Se essa coincidência pudesse em qualquer caso faltar, se todos nós e em todas as circunstâncias fôssemos livres de nos substituirmos aos outros na disciplina dos seus interesses, o negócio jurídico deixaria de ser corolário da autonomia da vontade para se tornar instrumento odioso e perturbador de intromissão na órbita jurídica alheia. Por isso o substituto deve estar assistido do poder jurídico – o poder representativo – que lhe permite interferir legitimamente na esfera do substituído. O substituto, numa palavra, precisa de legitimidade, a legitimidade indirecta que lhe advém daquele poder (…)”.
Relativamente à questão da ilegitimidade substantiva para a celebração do contrato, entendeu o Tribunal recorrido que, mesmo que tal ilegitimidade se verifique, a mesma, não determinaria a nulidade do contrato.
Invocou, para tanto, o entendimento formulado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-10-2019 (Pº 616/19.1YLPRT.L1-2, rel. VAZ GOMES).
No sumário deste aresto considerou-se que, “[e]mbora não exista unanimidade doutrinária e jurisprudencial a este propósito, na esteira dos ensinamentos de Henrique Mesquita (RLJ, 125, 100, nota 1), Almeida Costa e Aragão Seia (Arrendamento Urbano, Almedina, 6.ª edição, págs. 78 a 81 e 105), entendemos que dada a natureza meramente obrigacional do contrato de arrendamento, a circunstância do senhorio não deter legitimidade, segundo a lei substantiva, para dar de arrendamento o arrendado, não determina a invalidade do contrato, pelo que o contrato de arrendamento de coisa alheia é válido. “Senhorio” é aquele que, segundo o contrato de arrendamento celebrado e cuja resolução se pretende obter, ocupa essa posição, isto é, será aquele que nos termos do contrato de arrendamento outorgado se obrigou a proporcionar (e que proporcionou) ao outro contraente (o arrendatário) o gozo temporário do imóvel, mediante a obrigação deste de lhe pagar a renda convencionada e, bem assim aquele que, entretanto, por ato intervivos ou mortis causa, lhe sucedeu nessa sua posição contratual”.
Neste sentido, refere Manuel Januário da Costa Gomes (Constituição da relação de arrendamento urbano: sua projecção na pendência e extinção da relação contratual; Almedina, 1980, p. 287) que, “assumindo o contrato de arrendamento uma natureza de contrato consensual, para cuja formação se torna necessária a entrega do prédio, e assumindo também a natureza de um contrato obrigacional, a disposição de coisa alheia através da locação não é nula nem sequer anulável: é antes perfeitamente válida”.
Também Henrique Mesquita (RLJ ano 125.º, pág.100, nota 1) considera ser legítimo o arrendamento de coisa alheia, com base em dois tópicos argumentativos: a natureza obrigacional do contrato e o regime inscrito no art. 1034.º, nº1, al. a), do CC, referindo que, “(…) se o contrato de locação de coisa alheia pode originar a sujeição do locador aos efeitos do não cumprimento, isso significa inquestionavelmente que se considera válido o contrato. O locador não pode eximir-se ao cumprimento da obrigação de entrega da coisa locada com fundamento em que esta lhe não pertence e responderá pelos danos que causar ao locatário se culposamente a não cumprir”.
No mesmo sentido Menezes Leitão (Arrendamento Urbano, Almedina, 2017, 8.ª Edição, p. 67) escreve que: “No caso de ser celebrado um arrendamento por quem não tem legitimidade para o celebrar, o mesmo não deve, porém, ser considerado inválido mas apenas ineficaz em relação ao proprietário ou aos restantes contitulares do imóvel. Efectivamente, e apesar do que refere o art.º 1024.º/2 do C. Civil, a questão da validade do contrato coloca-se apenas no plano das relações internas, sendo que em relação aos verdadeiros titulares do imóvel o contrato é ineficaz, podendo estes facilmente obter a restituição do imóvel com este fundamento, através de uma acção de reivindicação. Se tal acontecer, naturalmente que quem arrendou o imóvel responderá por incumprimento perante o arrendatário, como expressamente resulta dos artigos 1034.º, n.º1, al. a) e 1032.º.”
Como reporta Jorge Henrique Pinto Furtado (Manual do Arrendamento Urbano; Vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2007, p. 367), “a regra geral da legitimidade negocial para prestar arrendamento é, naturalmente, a de que estará para tal legitimado o titular do gozo do imóvel que, pelo contrário, como parte, se obriga a proporcionar à contraparte: presta-se aquilo que se tem.
Assim, deterão elementarmente legitimidade negocial para prestar arrendamento o proprietário (art. 1305 CC), o usufrutuário (art. 1446 CC), ou o fiduciário (art. 2290-1 CC), entre outros”.
E, conforme sublinha o referido Autor (ob. e loc. cit.), em face do disposto no artigo 1024.º, n.º 1, do CC, deterá legitimidade para prestar arrendamento, antes de mais e enquanto acto de administração ordinária, quem for administrador do imóvel a arrendar. Entre outros: o cabeça de casal da herança; os pais relativamente a bens dos filhos sob sua administração; o curador provisório ou definitivo dos bens dos ausentes; o tutor; o administrador da insolvência; o depositário judicial de bens penhorados; o mandatário; o consignatário (em semelhante linha, vd. Soares Machado e Regina Santos Pereira; Arrendamento Urbano (NRAU), 3. ª ed., Petrony, 2014, p. 27).
Contudo, “o contrato de arrendamento é susceptível de ser realizado em nome de outrem e para produzir efeitos na esfera jurídica dessa pessoa (art. 258 CC).
Isto ocorrerá tanto nas hipóteses da chamada representação legal, suprindo a incapacidade do representado, como no domínio da representação voluntária, e esteja o representado quer na posição do contraente que presta arrendamento quer na do que adquire em arrendamento.
(…) A representação voluntária de um dos sujeitos do contrato de arrendamento urbano constitui-se através de procuração (art. 262 CC).
Esta é instituto distinto do mandato (arts 1159 ss. CC), que constitui um contrato, enquanto a procuração, no sentido substancial fixado no art. 262-1 CC (“acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”), é um negócio jurídico unilateral.
Pode haver representação voluntária sem mandato: quanto tenha unicamente por base a procuração. Pode, por outro lado, haver um contrato de mandato sem representação (arts. 1180-1184 CC) e até um mandato representativo a que falte a procuração, por ter sido constituído contratualmente, nos termos do art. 1157 CC” (cfr. Jorge Henrique Pinto Furtado (Manual do Arrendamento Urbano; Vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2007, p. 365).
Conforme decorre do exposto, celebrado que seja um arrendamento por quem não tem legitimidade substantiva para o celebrar, o mesmo não deixa de ser válido entre as partes contratantes, mas poderá ser ineficaz em relação ao proprietário ou aos restantes contitulares do imóvel (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-07-2019, Pº 96085/17.4YIPRT.E1, rel. TOMÉ RAMIÃO).
A intervenção na celebração do contrato de arrendamento dos autos de AC e JC (assim como, também a de HS) reportando-se, embora, a uma intervenção sobre imóvel alheio (pertencente, à data de 2019, a JS e BC), não afeta a validade do aludido contrato que permanece válido na ordem jurídica, designadamente, relativamente à autora, arrendatária.
Improcede, pois, a invocada nulidade do contrato.
*
I) Se o contrato celebrado é ineficaz face aos réus?
Considerando o referido, cumprirá apreciar se o contrato em questão era eficaz relativamente aos donos da fração objeto de arrendamento (que, à data da celebração, eram, como se viu, JS e BC) ou se o mesmo é de ter por ineficaz face aos réus.
É que, “por vezes uma pessoa, sem ter recebido do interessado poderes de representação, celebra em nome dele um contrato. Verdadeiramente, procede como simples gestor de negócios, quer invoque esta qualidade, quer a qualidade que não possui, de representante.
(…) O negócio realizado em tais condições, ou seja, por alguém que não tem para ele os necessários poderes é, em princípio, ineficaz em relação ao sujeito indevidamente representado; só se torna eficaz se for por este ratificado (Cód. Civil, art. 268.º, n.º 1)” (assim, Inocêncio Galvão Telles; Manual dos Contratos em Geral; Coimbra Editora, 4.ª ed., 2002, p. 435).
Na decisão recorrida, para onde se remete (cfr. páginas 25 e 26), referiu-se não ter a autora demonstrado que a intervenção de AC e JC tenha sido apenas “para agilizar os termos do negócio”, não tendo também a autora alegado factualidade de onde se pudesse concluir que aqueles atuaram em nome de JS e BC, no âmbito dos poderes que estes lhe tivessem conferido, concluindo que, “não foi sequer alegada pela autora a existência de “procuração” ou seja de “acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”, pelo que não ficou demonstrado que AC e JC se encontrassem dotados de poderes de representação de JS e de BC para a celebração de um contrato de arrendamento sobre a fracção autónoma em questão.
E, mais se concluiu na decisão recorrida, no sentido de que:
“(…) ainda que AC e JC tenham celebrado o contrato de arrendamento em nome dos proprietários (facto que não se apurou por não ter sido alegado) e não em nome próprio, tal contrato seria ineficaz em relação a BC e JS, nos termos expressamente previstos no artigo 268.º do CC, pois, à autora cabia alegar e provar a existência de poderes válidos de representação, e, não o tendo feito, importa concluir que o negócio seria, pois, ineficaz.
A questão de os proprietários poderem ter tido conhecimento do negócio realizado por AC e JC e terem tido intenção de arrendar o imóvel, tal como alegado pela autora, apenas poderá ser atendido em termos de enquadramento de um eventual abuso de direito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334.º do CC, de forma a paralisar os efeitos jurídicos que não sejam permitidos nos termos desse preceito legal.
Ora, só não será eficaz o negócio jurídico que, ainda que realizado sem poderes de representação, seja ratificado pelo titular do direito, pelo que este contrato de arrendamento apenas não será ineficaz em relação a JS e BC (proprietários do imóvel à data de Maio de 2015) se se puder considerar a existência de uma ratificação”.
Estas considerações merecem total adesão, uma vez que, resultam da aplicação ao caso dos autos da plena aderência do regime jurídico ali referenciado.
“A ratificação é a declaração de vontade pela qual alguém faz seu um acto jurídico celebrado por outrem em seu nome” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2006, Pº 1963/06-1, rel. ROSA TCHING).
A ratificação terá que obedecer à forma exigida para a procuração (cfr. artigo 268.º, n.º 2, do CC).
Por sua vez, conforme decorre do n.º 2 do artigo 262.º do CC, “salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar”.
E, conforme resulta do disposto no artigo 1069.º do CC, na redação conferida a tal preceito, pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em vigor à data da celebração do contrato (sendo que, conforme salientam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., p. 61) “as condições de validade de um contrato (capacidade, vícios de consentimento, forma, etc)…têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado” - cfr. artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do CC, a contrario sensu), o arrendamento deveria ser celebrado por escrito, pelo que, a ratificação do contrato deveria ter tido lugar por tal forma.
De todo o modo, considerando a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do CC, na redacção dada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, a contratos de arrendamentos celebrados após a data da sua entrada em vigor, mas também, a contratos em curso (cfr. artigo 14.º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro), passou-se a admitir que se efetue a prova do contrato de arrendamento, por qualquer meio, o que releva que a forma do contrato tem, agora, inequivocamente, uma natureza ad probationem. Assim, “os arrendatários que celebraram contratos verbais, mas que demonstrem (por exemplo, através de transferência bancária) que já pagam rendas há mais de seis meses (ainda que sem recibo de quitação) podem fazer valer o contrato (desde que a falta de redução a escrito não lhe seja imputável)” (cfr., neste sentido, Maria Olinda Garcia; “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, in Julgar on line, março de 2019, p. 8).
Conforme se referiu, neste sentido, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30-06-2021 (Pº 769/19.9T8OLH.E1, rel. MÁRIO COELHO): “O artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil, aditado pela Lei 13/2019, de 12 de Fevereiro – e que se aplica a arrendamentos existentes à data da entrada em vigor desta Lei – permite ao arrendatário a prova da existência de um contrato de arrendamento urbano verbal, mas este deverá demonstrar que a falta de redução a escrito não lhe é imputável e provar a existência do título por qualquer forma admitida em direito, através da utilização do locado sem oposição do senhorio e do pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses”.
Deste modo, de harmonia, com o referido n.º 2 do artigo 1069.º do CC, admite-se a prova do arrendamento, se a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não for imputável ao arrendatário e ainda que se demonstre a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio, assim como o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2021, Pº 11189/18.2T8LSB.L1.S1, rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO; e também, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-10-2021, Pº 24466/18.3T8PRT.P1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
Ou seja: “(…) querendo o arrendatário fazer a prova da existência do contrato nos termos da citada norma tem de alegar e provar duas coisas: a)- que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não lhe é imputável e b)- demonstrar a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-2021, Pº 4268/20.8T8PRT.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES).
Ora, no caso, não se apurou que a falta de redução a escrito do contrato seja imputável à autora e, para além disso, demonstrou-se que a autora utilizava o arrendado, procedendo ao pagamento da renda acordada, desde 2015, ou seja, com reporte a 2019, há bem mais de seis meses.
Não obstante o referido, não nos merece algum reparo que o Tribunal recorrido tenha, em face dos elementos apurados nos presentes autos concluído que o contrato não gozaria, à partida, de eficácia, ficando escrito que:
“Deste modo, pelo que acabámos de concluir, estaríamos em face de um contrato verbal de arrendamento ineficaz em relação aos titulares do imóvel, JS e BC, sua mulher.
Porém, deveremos ainda debruçar-nos sobre a circunstância de BC ter falecido em 2018 e no ano seguinte JS, tendo estes deixado a suceder-lhe, precisamente, a ré AC, que celebrou o contrato (apenas não sabemos se em nome próprio se em nome dos pr[oprie]tários), sendo permitida a dúvida de saber se, a partir do momento em que esta assumiu a qualidade de herdeira (já após a vigência do contrato), poderá o contrato ter-se tornado plenamente eficaz.
Ora, tal poderia ter sucedido se a ré AC fosse a única herdeira de JS e BC ou se fosse a cabeça-de-casal da herança, o que não sucedeu, porquanto resulta do autos que sucederam aos aludidos proprietários as suas filhas MD e AC, desconhecendo-se, no entanto, quem seja a cabeça-de-casal da herança (embora se saiba que MD se arrogou essa qualidade ao outorgar a escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos).
Na realidade, e apesar de ser herdeira, AC não poderia, desacompanhada da outra herdeira, arrendar um bem da herança ou ratificar esse arrendamento, e, mesmo sendo cabeça-de-casal, apenas poderia celebrar contrato por período igual ou inferior a seis anos, nos termos da interpretação conjugada dos artigos 1024.º n.º 1 e 2091.º do CC.
Neste caso, consideramos que, apenas se tivessem intervindo no contrato de arrendamento ambas as sucessoras, poderia configurar-se uma situação de eficácia imediata do contrato relativamente a ambas, pelo menos a partir do óbito de JS, pelo que, tal não tendo sucedido, o contrato de arrendamento que ficou provado não gozaria, à partida, de eficácia (…)”.
É que, conforme se assinalou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2010 (Pº 167-F/2000.P1.S1, rel. SOUSA LEITE): “À assunção, por uma pessoa, da direcção de negócio alheio, no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal se encontrar autorizada, é aplicável, no que respeita aos negócios jurídicos celebrados pelo gestor em nome daquele, o regime jurídico da representação sem poderes, constante do art. 268.º do CC – arts. 464.º e 471.º da mesma codificação substantiva. O negócio efectuado por quem, sem poderes de representação, o celebre em nome de outrem, é cominado com a sanção da sua ineficácia relativamente a este último se não for objecto de ratificação por parte do mesmo, ratificação essa que se encontra sujeita à observância da forma exigida para a procuração, a qual é análoga à que deve ser observada no negócio jurídico a realizar pelo procurador – arts. 262.º, n.º 2, e 268.º, n.ºs 1 e 2, do CC”.
De todo o modo, apreciando a questão da (in)eficácia contratual, na perspetiva da sua invocação em contrário ao instituto do abuso de direito, concluiu o Tribunal recorrido, depois de longa exposição (cfr. pp. 27 a 31 da decisão recorrida), “dever ficar paralisado o regime da invocação da ineficácia do contrato de arrendamento em relação ao senhorio, por manifesto abuso de direito, sendo que as rés AC e MD, neste processo e quanto a esta concreta questão, assumem a qualidade de sucessores do réu JS e, por isso mesmo, não podendo invocar a ineficácia do contrato relativamente a seu titular”.
Ora - adiante-se, desde já - o aludido juízo formulado não merece qualquer censura, em particular, a que lhe vem assacada pelos recorrentes.
Antes, porém, importa alinhar, ainda que, em termos breves, algumas considerações sobre o instituto do abuso de direito.
Dispõe o artigo 334º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Comentando o referido preceito legal refere Almeida Costa (Direito das Obrigações; 5ª Ed., 1991, p. 65) que, “o nosso legislador aceitou a concepção objectiva do abuso de direito. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário. Exige-se, todavia, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. A lei refere-se ao exercício de direitos - o caso paradigmático de actuação do instituto. A sua letra, portanto, não abrange imediatamente quaisquer hipóteses de inércia ou omissão de exercício que possam também considerar-se abusivas. Mas parece que isso não deve constituir obstáculo insuperável, contanto que se encontrem soluções do segundo tipo clamorosamente ofensivas da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito (...)”.
Menezes Cordeiro (Da Boa-Fé no Direito Civil, 1997, pp. 717-718) sustenta que o artigo 334º do CC é o resultado codificado de uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, apreciados pela doutrina germânica.
Abordando de forma detalhada e completa o instituto do abuso de direito o mesmo Autor (no Tratado de Direito Civil Português; Vol. I, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 199 a 213) enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito», a saber:
- A “exceptio doli” (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa);
- O “venire contra factum proprium” (ablação do brocardo latino “venire contra factum proprium nulli concidetur”, significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios);
- As “inalegabilidades formais” (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de invalidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios);
- A “supressio” (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a “surrectio” (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria);
- O “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partida do violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e
- O “desequilíbrio no exercício” (ou seja, aquelas situações em que ocorre desequilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desequilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurus est; e a desproporcionalidade).
O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto onde ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, Questão de Facto, Questão de Direito, I-513 e sgs.; Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, 1973-451 e sgs.; A. Varela, Abuso do Direito, Rio de Janeiro, 1982 e Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., anot. ao art. 334 CC; e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., p. 6).
O abuso do direito exige a alegação e prova de circunstâncias excepcionais relativas ao seu exercício, cujo ónus cabe ao demandado (arts. 334.º e 342.º CC).
O abuso de direito tem todas as consequências de um acto ilegítimo: Pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade nos termos gerais do art. 294.º do C.C., à legitimidade de oposição, ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (cfr. Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, p. 25).
Antunes Varela sublinha que a condenação por abuso de direito “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado de aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, de direitos de certo tipo”, acrescentando que, a solução do art. 334º do Código Civil só aponta para os casos de contradição manifesta (in R.L.J., Ano 128º, pág. 241).
Por seu turno, Castanheira Neves configura o abuso de direito como um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados (Questão-de-facto-questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade: ensaio de uma reposição crítica, Coimbra, 1968, p. 526, nota 46).
Segundo Coutinho de Abreu, “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1999, p. 43).
Para Baptista Machado, o juiz tem de decidir primeiro a questão de saber se o direito invocado existe ou não e só no caso de concluir pela sua existência (não o caso inverso) lhe é lícito apreciar o exercício abusivo do mesmo direito (in Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, t. 2, p. 17).
Entendem os recorrentes que não se verificou abuso de direito, porque “o facto de o dinheiro ser depositado na conta titulada pelo R. JS jamais poderá comportar uma ratificação do negócio, pelos motivos supra aduzidos quanto a forma dessa ratificação”.
Sucede que, conforme bem resulta da sentença recorrida, não foi isso que o Tribunal recorrido afirmou. Pelo contrário. O que se expressou na decisão recorrida foi que, em primeira linha, o contrato de arrendamento celebrado seria ineficaz face aos senhorios, não fosse a circunstância de se terem comprovado circunstâncias que impõem a paralisação dos efeitos de uma tal consideração, ou seja, com relevo, da invocação da falta de ratificação para com isso ser conseguida a almejada ineficácia negocial. A invocação da falta de ratificação configuraria uma inalegabilidade formal.
De facto, lê-se na decisão recorrida, a este respeito e com toda a clareza que:
“Ora, a verdade é que o réu JS recebeu o pagamento de rendas pelo período de quatro anos, sendo que durante esse tempo a autora teve a disponibilidade do imóvel, nele habitando, como se tivesse celebrado um contrato plenamente eficaz, tendo havido um total investimento de confiança, criado pelo facto de lhe ter sido cedida a disponibilidade total do bem e pelo facto de o seu legítimo proprietário receber mensalmente, durante vários anos, a renda que pagava.
Deste modo, não podia o réu JS invocar licitamente a “invalidade” do contrato (que, conforme vimos, não configura uma situação de invalidade mas de ineficácia), por entendemos que existiria uma manifesto abuso de direito por parte do proprietário que invocasse tal ineficácia após receber rendas mensais durante mais de 4 anos. Esse recebimento de rendas permite ainda ser configurado como uma verdadeira ratificação ou aprovação tácita do negócio celebrado sem poderes, sendo o vício formal de que enferma esta ratificação por si inalegável, porquanto deverá ser paralisada essa invocação nos termos do artigo 334.º do CC.”.
Conforme salienta Fernando de Gravato Morais (Contrato-promessa em geral; contrato-promessa em especial; Almedina, Coimbra, 2009, p. 280) “tem-se discutido, na nossa ordem jurídica, esta problemática, ou seja, se a invocação da invalidade é possível ou se, ao invés, se pode figurar uma situação de abuso do direito de arguir a nulidade”, concluindo que, é de admitir a orientação segundo a qual é admissível a invocação de abuso de direito por via da ocorrência de um vício formal.
Todavia:
“- não se exige que o titular do direito de arguir a nulidade tenha consciência de que a sua actuação é abusiva, e portanto de que está em concreto a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, basta que em termos objectivos tais limites tenham sido excedidos;
- impõe-se no entanto que o excesso mencionado seja manifesto e gravemente atentatório dos valores assinalados” (cfr., Fernando de Gravato Morais; Contrato-promessa em geral; contrato-promessa em especial; Almedina, Coimbra, 2009, p. 281).
Exemplificando uma situação em que ocorre uma situação de inalegabilidade formal, referiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2016 (Pº 2234/11.3TBFAF.G1.S1, rel. LOPES DO REGO) que: “Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto : porém , esta solução -conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia- carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto. Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium , quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito pelas regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto”.
Por outro lado, conforme assinala (Manuel Carneiro da Frada; Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil; Almedina, 2007, p. 467), é indiscutível que “nas exigências de probidade, lisura e correcção de condutas que a boa fé traduz cabe a de não criar ou acalentar indevidamente exceptactivas de otrem, bem como prevenir a formação ou manutenção de representações falsas, temerárias ou infundadas em outrem (ou o respectivo risco). Nesta veste, a regra da boa fé credibiliza a formação e perduração das expectativas. Promove ou assegura espaços de confiança, pois determina precaver o sujeito do que não de ou não é curial esperar. (…).
A responsabilidade por violação desta vertente da boa fé não se traduz, em rigor, numa responsabilidade pela frustração de expectativas. Aquilo que se censura ao sujeito é apenas, propriamente, a criação ou manutenção indevida de uma confiança alheia (…)”.
Ora, no caso dos autos, apurou-se que a autora, na sequência da contratação entabulada, passou a residir na fração em questão desde 2015. E, também, desde 2015, passou a transferir, mensalmente, para JS, como contrapartida de lhe ser proporcionado o gozo da fração daquele, a quantia de € 325,00, tendo-se protraído no tempo, tal pagamento, por mais de quatro anos. E, também, desde então, a autora procedeu ao pagamento dos consumos de água, eletricidade e telefone, sendo que os contratos correspondentes permaneceram – até julho de 2019 – na titularidade do mencionado JS.
Estas circunstâncias demonstram, da parte da autora, um investimento de confiança - por lhe ter sido proporcionada a disponibilidade da fração, por transferir todos os meses o valor da contrapartida pecuniária acordada com a filha e genro de JS e, por, também satisfazer o pagamento dos consumos que efetuava relativamente aos serviços que utilizava da fração, que se encontravam, contratualmente, na titularidade de JS – no sentido de que o senhorio não iria suscitar a questão da ineficácia do contrato, em razão da falta de autorização ou de concessão de poderes representativos pelo mencionado JS aos réus AC e JC, para a conclusão do contrato de arrendamento celebrado.
E, nessa medida, não poderá a invocação da ineficácia do contrato – contrária ao que deu a entender a precedente e prolongada no tempo conduta de JS, que nenhuma questão suscitou, ao longo de mais de 4 anos, de execução contratual, assim como, posteriormente, as respetivas sucessoras - rés AC e MD - produzir algum efeito, porque, se assim não fosse, isso corresponderia a um exercício manifestamente ilegítimo do respetivo direito, consubstanciando uma atuação manifestamente abusiva, face ao que um procedimento conforme à boa fé lhe imporia.
Em consequência, a invocação da ineficácia contratual – não só no que respeita à intervenção de AC e de JC na celebração do contrato face ao réu JS, mas também, relativamente à de HS, quanto à autora - encontra-se vedada aos recorrentes, por via do instituto do abuso de direito, não sendo a mesma oponível à autora, por ser manifestamente abusiva e, como tal, ilícita a exercitação do direito de arguição correspondente (cfr., o acórdão do S.T.J. de 07-10-2004, Pº 04B2910, rel. FERREIRA DE ALMEIDA).
Dito de outro modo e sintetizando:
- Tendo a autora passado a residir na fração desde 2015 e, desde então, passando a transferir, mensalmente, para o senhorio, como contrapartida de lhe ser proporcionado o gozo da fração daquele, a quantia de € 325,00 que depositou em conta bancária daquele, tendo também procedido ao pagamento dos consumos de água, eletricidade e telefone inerentes (tendo os respetivos contratos de fornecimento permanecido – até julho de 2019 – na titularidade do mencionado senhorio), tais circunstâncias demonstram, por parte da parte da autora, um investimento de confiança no escrupuloso cumprimento do contrato, sem focos de litígio, assumindo as partes os direitos e obrigações emergentes da contratação, numa execução contratual prolongada – por mais de quatro anos - no tempo, criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, a convicção legítima e fundada de que o senhorio não iria invocar a questão da ineficácia do contrato, em razão da falta de autorização ou de concessão de poderes representativos pelo mencionado senhorio, para a conclusão do contrato de arrendamento celebrado;
- Neste quadro, o regime de invocação da ineficácia do contrato de arrendamento por parte do senhorio deverá ficar paralisado, por abuso de direito, em conformidade com o disposto no artigo 334.º do CC, porque, se assim não fosse, o exercício de tal direito consubstanciaria uma atuação manifestamente abusiva, face ao que um procedimento conforme à boa fé lhe imporia.
*
J) Se ocorreu válida e eficaz oposição à renovação do contrato?
Os recorrentes, na respetiva alegação de recurso, concluíram ainda o seguinte:
“(…) zz) (…) Todavia, ainda que por mera hipótese académica se considere válida a existência de contrato de arrendamento, os efeitos nunca são os requeridos pela A. Defende a A. tratar-se de um contrato de arrendamento com plenitude de efeitos, pelo que deve ser restituída a posse, posição com a qual os réus não se conformam.
aaa) A este respeito deve aplicar-se o artigo 1069.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 13/2019, de 12/02:
“1- O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de titulo por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses,”
Por outro lado, enuncia o artigo 1094.º/3, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14/08, em vigor na data da celebração do contrato: “No silêncio das partes, o contrato considera- se é celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos.''
A sentença refere que ‘’ o contrato em causa trata-se de um contrato com termo, considerando-se celebrado pelo prazo de dois anos, a partir de 01.05.2015, pelo que foi este o contrato de arrendamento concretamente transmitido e oponível aos adquirentes.’’(página 33 linha 21,22,23 e 24)
bbb) Facto que nos leva ao disposto no artigo 1096.º/1, de onde se retira que o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos. Assim, e conforme já tinha sido concluído em sede de providencia cautelar ‘’a fração foi objeto de contrato de arrendamento urbano para habitação, válido por força do artigo 1069.º/2, com prazo de dois anos, e início em maio de 2015, renovando-se, automaticamente, e por períodos sucessivos..''
ccc) Assim, caso se entenda que o contrato é renovável por períodos de dois anos e presumindo que a data da celebração se fixa em Maio de 2015, a primeira renovação ocorria em Maio de 2017 e a segunda em Maio de 2019.
ddd) Conforme resulta dos autos, através das mensagens transcritas é possível verificar que houve oposição à renovação verbalmente, por quem o celebrou o contrato, em data que não é possível precisar, mas que se reporta a Outubro de 2018. Acresce que em 1 de Abril de 2019, houve uma insistência no sentido de o imóvel ser desocupado.cfr. doc. junto com a oposição a providencia cautelar. Em 1 de Abril de 2019 foi enviada mensagem escrita à filha da requerente justamente nesse sentido. Mensagem à qual a filha da A. respondeu. Note-se que em 01.04.2019 já os restantes RR referenciaram que há pelo menos 6 meses haviam solicitado que o imóvel fosse desocupado, facto que não é contrariado em nenhuma parte pela A. Estes factos devem ser analisados à luz do estabelecido no artigo 1097º do Código Civil.
eee) A lei fixa assim que quando o senhorio não quer renovar o contrato deve comunicar esta intenção ao inquilino com uma antecedência mínima 120dias, nos casos em que a duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos. A entender-se que o contrato é bianual, o prazo de 120dias foi respeitado. Pelo que, a entender-se válido o contrato de arrendamento, ter-se-á que entender que a oposição à renovação é igualmente válida, deixando a partir desse momento de existir contrato válido ou posse legitima.
fff) Não se compreende que o Tribunal ultrapasse a questão da exigência da forma escrita para a celebração do contrato de arrendamento, mas já não o faço quando à oposição à renovação do contrato diz respeito. Não pode haver uma dualidade de critérios, tendo que se validar a oposição à renovação.
ggg) Porém, houve comunicações escritas nesse sentido e anteriores à data da entrada em juízo da providencia cautelar. Foi expedida uma carta registada em 21.06.2019, dirigida à A. e para a morada desta. Muito se estranha o facto de o Tribunal não referenciar a comunicação junta aos autos pela própria A. e a ela dirigida cujo teor é o seguinte: ‘’Nos termos do mandato que me foi conferido pela Senhora PC( legitima coproprietária do prédio melhor identificado em epigrafe, venho por este meio advertir V.exa da obrigação que sobre si impende de desocupar o supra referido edifício até ao dia 30.06.2019. ‘’ Aquela comunicação foi expedida para a morada do locado e embora a A. no seu isento e verdadeiro depoimento de parte diga que nunca recebeu nenhuma carta, a verdade é que na providencia cautelar junta essa comunicação! Se tal não é a tão exigida oposição à renovação, o que será?
(…) lll) (…) é conclusão necessária a seguinte: O contrato (inexiste) não é oponível às aquisições subsequentes, e ainda que o fosse, a partir das oposições à renovação tinha a A. que abandonar o locado no prazo de 120 dias, sendo certo que tal prazo há muito correu, facto que invalidade qualquer restituição da posse à A. Desde já se esclarecer que a considerar-se, como defendem em primeira instância os RR, que a oposição à renovação ocorreu verbalmente em Outubro de 2018 (contando-se o dia 31.10.2018), o prazo para entrega terminaria 01.03.2018.
mmm) A contar-se da comunicação escrita datada 21.06.2019, o prazo de entrega terminaria em 21.10.2019. Mais se evidencia que à data da entrada da providencia cautelar em juízo já aquela comunicação tinha sido expedida e recebida. Em qualquer caso deveria aquela oposição a renovação ser considerada válida e capaz de produzir efeitos, o que no caso implica a absolvição de todos os réus dos pedidos (…)”.
A autora contra-alegou, sobre este ponto, concluindo que:
“KKKKKK. Não é legalmente admissível, nem válida uma oposição à renovação verbal, nos termos do artigo 1097º do CC na versão vigente à data da celebração do contrato, e do artigo 9º do NRAU.
LLLLLL. No que respeita à alegada insistência em 1/04/2019, tal documento não foi enviado à Autora e não é apto a provar qualquer denúncia ou oposição à renovação do contrato por parte do Senhorio, sendo que até mesmo a data do documento não é certa.
MMMMMM. Os pedidos e insistências feitos pelos Réus junto da filha da Autora ou da Autora para que esta última abandonasse o local não produziram qualquer efeito jurídico, uma vez que não foi cumprida a normal legal que impõe para a validade de comunicação que a mesma seja feita por escrito, assinado e remetido para a morada do locado.
NNNNNN. A carta referida pelos Recorrentes, datada de 21/06/2019, não foi assinada por todos os senhorios e confere à arrendatária o prazo de 9 dias (de 21/06/2019 a 30/06/2019) para deixar o imóvel, violando os prazos previstos na lei, pelo que a aludida carta não produz qualquer efeito.
OOOOOO. Não existiu qualquer oposição à renovação válida e eficaz, feita pelo proprietário do imóvel, ou por seu representante, à Autora, pelo que o contrato de arrendamento foi renovado em 1 de Maio de 2019”.
A decisão recorrida apreciou a questão da oposição à renovação, nos seguintes termos:
“Conforme previsto no artigo 1097.º do CC, na versão vigente à data da celebração deste contrato, “1 - O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte: a) 240 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos; b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos; c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano; d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses”.
Porém, nos termos do artigo 9.º do NRAU, sob a epígrafe “forma da comunicação”, “as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção. As cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação por escrito deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado”.
Deste modo, os pedidos e insistências feitos juntos da autora ou da filha desta para que o locado fosse abandonado não produziram qualquer efeito jurídico, já que não foi obedecida a aludida regra legal que impõe, para a validade da comunicação, que a mesma seja feita por escrito assinado remetido para a morada do locado.
Por último, contrariamente ao alegado pelos réus, inexistiu qualquer revogação por parte da autora, consubstanciada pela entrega voluntária do locado, já que os factos apurados são por si só elucidativos, não podendo interpretar-se a saída da autora do imóvel na noite de 15.07.2019 como uma entrega voluntária e definitiva do imóvel, com a intenção e vontade de abandonar o locado como forma de cessar a relação locatícia.
Conclui-se, assim, que existe um contrato de arrendamento que subsiste e que é inteiramente oponível, conforme já analisado “supra” (…)”.
Vejamos:
Conforme decorre do n.º 1 do artigo 1054.º do CC, o contrato de arrendamento, findo o prazo da sua duração, “renova-se por períodos sucessivos se nenhuma das partes se tiver oposto à renovação no tempo e pela forma convencionados ou designados na lei”.
E, conforme se salientou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-04-2021 (Pº 795/20.5T8VNF.G1, rel. ROSÁLIA CUNHA), “dispondo a nova redação do art. 1096º, do CC, introduzida pela Lei 13/2019, de 12.2, sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, e abstraindo a mesma do facto que lhe deu origem, é de concluir que a situação se enquadra na 2ª parte do art. 12º do CC, sendo a nova redação aplicável às relações já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Importa, assim ter presente, de harmonia com o disposto nos n.ºs. 1 e 2 do artigo 1097.º do CC, que:
“1 - O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte:
a) 240 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos;
b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;
c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano;
d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses.
2 - A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação.”.
“A oposição à renovação do contrato de arrendamento não é uma causa autónoma de extinção do contrato, é apenas uma das causas conducentes à caducidade. Assim, a norma do art. 1097º, do CC, que regula a forma de oposição à renovação deduzida pelo senhorio é uma norma sobre a caducidade do contrato de arrendamento, na medida em que disciplina o modo como essa causa de extinção do contrato pode vir a ocorrer na sequência de uma manifestação de vontade nesse sentido por parte do senhorio, e tem natureza imperativa visto estar abrangida nas matérias referidas no art. 1080º, do CC” (assim, o referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-04-2021, Pº 795/20.5T8VNF.G1, rel. ROSÁLIA CUNHA).
De todo o modo a oposição à renovação encontra-se sujeita a forma legalmente prevista.
De facto, “a oposição à renovação do prazo do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio deve ser comunicada ao inquilino pela forma prevista nos artigos 9º e 10º do NRAU” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-12-2016, Pº 83-16.1YLPRT.L1-6, rel. MARIA TERESA PARDAL; vd., também neste sentido, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge; Arrendamento Urbano, 3.ª ed., Quid Juris, 2009, p. 459 e Jorge Henrique Pinto Furtado; Manual do Arrendamento Urbano; Almedina, 5.ª ed., 2011, p. 935).
O mencionado artigo 9.º do NRAU prescreve que:
“1 - Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção.
2 - As cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação por escrito deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado.
3 - As cartas dirigidas ao senhorio devem ser remetidas para o endereço constante do contrato de arrendamento ou da sua comunicação imediatamente anterior.
4 - Não existindo contrato escrito nem comunicação anterior do senhorio, as cartas dirigidas a este devem ser remetidas para o seu domicílio ou sede.
5 - Qualquer comunicação deve conter o endereço completo da parte que a subscreve, devendo as partes comunicar mutuamente a alteração daquele.
6 - O escrito assinado pelo declarante pode, ainda, ser entregue em mão, devendo o destinatário apor em cópia a sua assinatura, com nota de receção.
7 - A comunicação pelo senhorio destinada à cessação do contrato por resolução, nos termos do n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, é efetuada mediante:
a) Notificação avulsa;
b) Contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução, comprovadamente mandatado para o efeito, sendo feita na pessoa do notificando, com entrega de duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original;
c) Escrito assinado e remetido pelo senhorio nos termos do n.º 1, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, caso em que é inoponível ao senhorio qualquer alteração do local, salvo se este tiver autorizado a modificação.”.
Ora, as solicitações efetuadas junto da autora ou da sua filha para que o locado fosse abandonado, não produzem o efeito jurídico de oposição à renovação, não tendo sido observada a forma prescrita no mencionado preceito legal.
Tal sucede no que respeita à solicitação verbal mencionada no facto 39), bem como, à solicitação escrita (mas sem remessa de carta registada com aviso de receção) a que se reporta o facto provado n.º 40) (aliás, remetida à filha da autora e, não, à autora, arrendatária) e, bem assim, a própria missiva, datada de 21-06-2019, que foi apresentada no âmbito dos autos de providência cautelar (cfr. fls. 56 desses autos) e invocada pelos recorrentes, que, igualmente, não observou as prescrições a que se reporta o mencionado artigo 9.º do NRAU (não tendo sido remetida com aviso de receção).
Em síntese: A solicitação verbal dos réus à filha da autora pretendendo que a autora desocupasse o imóvel, bem como as solicitações escritas da filha e da neta do senhorio à filha da autora, com igual finalidade e, bem assim, a missiva remetida pelo mandatário da filha do senhorio, por carta registada, mas sem aviso de receção, à arrendatária no sentido de ser devolvida a fração, não constituem meios válidos e eficazes de oposição à renovação do contrato de arrendamento pelo senhorio, atento o constante nas disposições conjugadas dos artigos 1096.º e ss. do CC e 9.º, n.º 1, do NRAU.
Em face do que se vem referindo, tem de concluir-se que, tal como o reconheceu a decisão recorrida, não ocorreu uma válida e eficaz oposição à renovação do contrato de arrendamento por banda do senhorio, não tendo caducado o contrato.
*
K) Se o contrato não é oponível às aquisições subsequentes do imóvel arrendado?
Consideram ainda os recorrentes que o contrato em questão não é, de todo o modo, oponível às subsequentes adquirentes do imóvel, concluindo nas alegações de recurso o seguinte:
“hhh) Posto isto, jamais se pode concluir pela transmissão do contrato de arrendamento quer para MD, quer para os terceiros de boa fé MNA e JAA. Sendo que estes últimos, como resulta do facto 47, adquiriram a fracção em 20.02.2020. E mais, nem existia contrato de arrendamento registado, nem a acção estava registada. Assim, quer a R. MD, quer MNA e JAA, confrontados com uma certidão de registo predial sem ónus registados, poderiam adivinhar a existência do diferendo com a A. ou da acção.
iii) Deste modo, fica sempre inviabilizada a penalização de terceiros que agiram de boa fé, tendo tomado as providencias normais, no caso consulta da certidão permanente que reflete o estado do imóvel, para assegurar que adquiriam um imóvel livre de ónus e encargos como se refletiu na escritura”.
A autora contra-alegou sobre esta invocação dizendo, em suma, que, “tendo a R. MD adquirido o direito de propriedade sobre o imóvel por força da escritura de partilha, sucedeu na posição jurídica de locadora e do mesmo, essa posição jurídica foi igualmente transmitida aos adquirentes do imóvel, intervenientes principais, por força do mesmo normativo legal”, devendo “os intervenientes principais (…) aceitar a manutenção da relação de arrendamento de que o imóvel é objecto”, sendo que, “o contrato de arrendamento não é objecto de registo, salvo se for mais de seis anos (artigo 2º n.º 1 al. m) do Código de Registo Predial). Sucede que o contrato em causa se considera celebrado pelo período de dois anos, a partir de 01/05/2015, pelo que foi este o contrato celebrado concretamente transmitido e oponível aos adquirentes”, mais alegando que, em conformidade com o disposto no “artigo 263.º do CPC, no caso de transmissão da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa e a sentença produz efeitos em relação ao adquirente ainda que este não intervenha no processo (n.ºs 1 e 3)” (cfr. conclusões PPPPPP a SSSSSS da mencionada contra-alegação).
Neste ponto, a disposição fundamental em matéria de sucessão da posição do locador encontra-se vertida no artigo 1057.º do CC, onde se estatui que: “O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.”.
O contrato de arrendamento não é, em princípio, objecto de registo, salvo se tiver duração superior a seis anos (artigo 2º n.º 1 al. m) do Código de Registo Predial).
“O artigo 1057.º do CC consagra o princípio emptio non tollit locatum, ou seja, a locação não caduca com a venda, corolário da natureza real do instituto do arrendamento, uma vez que lhe confere uma característica de que só os direitos reais beneficiam – o direito de sequela: o arrendamento acompanha o bem independentemente de quem seja o titular do direito real de base, propriedade” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-12-2020 (Pº 1940/17.3T8EVR-H.E1, rel. JOSÉ MANUEL BARATA).
Estatuindo a referida norma que o adquirente “sucede nos direitos e obrigações do locador”, o preceito “sugere fortemente que ele ficará encabeçado nos direitos e obrigações existentes à data da transmissão – e este é, ainda, o normal sentido do conceito de sucessão a título particular, e o alcance que também se atribui à cessão da posição contratual no art. 426 CC” (assim, Jorge Henrique Pinto Furtado; Manual do Arrendamento Urbano, Almedina, 5.ª ed., 2011, p. 615).
Assim, conforme se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-2012 (Pº 159/2006.3TCFUN.L1.S1, rel. NUNO CAMEIRA), resulta do artigo 1057.º do CC “que a venda do locado não faz cessar o arrendamento, pois em tal caso o adquirente sucede ex lege na posição do senhorio (sub-rogação legal no contrato) e a situação jurídica de que o locatário é titular subsiste intocada”.
Ou seja: “Do estabelecido no artigo 1057º do Código Civil retira-se que, a venda do estabelecimento/imóvel não faz cessar o arrendamento, pois a adquirente sucedeu exlege na posição do senhorio (sub-rogação legal no contrato) e, a situação jurídica de que o locatário é titular subsiste” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-11-2021 (Pº 27666/18.2LSB.L1-7, rel. ISABEL SALGADO).
Deste modo, apurando-se a existência do contrato de arrendamento, a ocorrência da transmissão do locado para os actuais donos do mesmo não comportou alguma incidência sobre a dita relação jurídica de arrendamento, tendo a posição jurídica do locado, com os direitos e obrigações inerentes, sido transmitida aos adquirentes sucessivos (cfr. factos provados n.ºs. 42, 44, 46 e 47) do mesmo, que se encontram vinculados a aceitar o dito arrendamento.
Tal sucede, mesmo no que concerne aos intervenientes MNA e JAA.
É que relativamente aos casos de transmissão entre vivos da relação substantiva em litígio – sendo que a aquisição que aqueles MNA e JAA teve lugar já na pendência dos presentes autos, ou seja, existindo o litígio sobre a existência do arrendamento com os primitivos réus – operará o dispositivo do artigo 263.º do CPC.
Nos n.ºs. 1 e 2 deste preceito estatui-se sobre a substituição, na pendência da causa, da posição do transmitente pelo adquirente, nos termos seguintes:
“1 - No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
2 - A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária”.
Conforme salienta Paula Costa e Silva (A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio – Contributo para o Estudo da Substituição Processual; Coimbra Editora, 1992, p. 71) “será litigioso o direito (real ou obrigacional) relativamente ao qual tenha eclodido um conflito de interesses, conflito que se traduzirá na afirmação feita em juízo pelo autor, de que a sua posição jurídica é tutelada pelo direito”.
Contudo, ao contrário do que sucede no caso do falecimento de pessoas físicas, em que a sucessão comporta uma modificação subjetiva obrigatória, determinante para o prosseguimento dos autos, a transmissão por acto entre vivos da coisa ou direito litigioso comporta uma modificação subjetiva facultativa, não sendo condição necessária do prosseguimento da causa (cfr., neste sentido, entre outros, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 1980, p. 604; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-04-2019, Pº 4490/16.1T8GMR-A.G1, rel. JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-11-2021, Pº 13775/18.1T8PRT-B.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-12-2021, Pº 134/10.3TBCTX-D.L1-7, rel. MICAELA SOUSA).
E daí que o n.º 3 do artigo 263.º do CPC estabeleça que: “A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação”.
Ora, considerando o que vem referido, não merece censura alguma que se tenha concluído na decisão recorrida, no sentido de que:
“(…) o arrendamento celebrado referente ao imóvel, ainda que não registado, é oponível não só à adquirente MD, como aos adquirentes MNA e JAA, com o limite do período de seis anos, findos os quais sempre será inoponível por não ter sido registado.
Porém, não poderá ser olvidado que, conforme já referido, o contrato em causa trata-se de um contrato com termo, considerando-se celebrado pelo prazo de dois anos, a partir de 01.05.2015, pelo que foi este o contrato de arrendamento concretamente transmitido e oponível aos adquirentes”.
Em consequência, sendo o contrato de arrendamento oponível nas sucessivas aquisições da fracção a que o mesmo se referia, improcede a questão invocada pelos recorrentes.
*
L) Se o contrato findou por entrega da fracção?
Concluem ainda os recorrentes que:
“jjj) Ficou ainda demonstrado e provado que a A. decidiu de forma livre e espontânea abandonar o imóvel, tendo-se mudado para casa de sua filha acompanhada dos seus pertences. Todas as declarações da A com relevância para a apreciação da presente acção e que foram prestadas antes de existir alguma contenda ou animosidade. Ou seja, a decisão de abandonar o imóvel e aceder à alteração da fechadura aconteceu em ambiente calmo, sem qualquer coação ou violência. Com tal decisão temos que concluir que se verificou a traditio. Por outras palavras, verificou-se a transferência voluntaria da posse entre vivos, havendo entrega efetiva do imóvel aos requeridos. Pelo que dai também se retira que qualquer que tenha sido a situação pré-existente o bem foi desocupado, pelo que qualquer contrato que existisse findou também por vontade da A. A este respeito leia-se o Ac. Do TRE de 31.02.2019.
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a01ac365ce6540b08025839e0036e690?OpenDocument
kkk) Deste modo, andou mal o Tribunal a quo quando, numa rebuscada interpretação dos acontecimentos, entendeu que tal declaração negocial prestada pela requerente não podia eficaz. Na verdade, a requerente prestou uma declaração negocial livre, esclarecida e plenamente eficaz, em respeito do previsto no artigo 236º do Código Civil, pelo que a entrega do imóvel ocorreu de forma válida e irreversível, como de resto resulta da própria prova gravada supra transcrita (…)”.
A recorrida contrapôs, de acordo com as conclusões formuladas na respetiva contra-alegação de recurso, o seguinte:
“(…) TTTTTT. Não existiu qualquer entrega voluntária do imóvel no dia 15/07/2019 pela Autora, esta não decidiu de forma livre e espontânea deixar o imóvel, como pretendem fazer crer os Recorrentes.
UUUUUU. Como bem salienta o Tribunal a quo, o Sr. LS que fez a mudança da chave referiu até que antes do dia 15/07/2019 já tinha falado com o R. JC sobre obras, pelo que se encontrando a Autora a viver no imóvel, é bastante revelador da intenção dos RR. Na verdade, só fazendo uso de um grande poder de premonição é que o Réu, e até a testemunha, podiam adivinhar que a Autora no dia 15/07/2019 sairia livremente do imóvel.
VVVVVV. A finalidade que os Réus tinham em mente quando foram ao locado era retirar a Autora do imóvel, fazê-la entregar as chaves, forçaram-na a abrir, trancaram-se com ela dentro de casa, disseram-lhe que precisavam da casa, tentaram que esta entregasse a chave, aproveitando-se da idade da senhora e da sua surpresa perante esta situação inesperada, exercendo sobre a mesma coação e agredindo-a.
WWWWWW. Os filhos da Autora, entretanto, intervieram para proteger a mãe, chamando as autoridades policiais ao local, todavia foram negligentes, no mínimo inexperientes perante a situação, quando falaram com a Autora na casa onde estavam os Réus que a tinham agredido, tendo-lhe até transmitido que ela tinha de sair a bem ou a mal.
XXXXXX. De igual modo, os agentes de autoridade deviam ter chamado os filhos da Autora para perto da Autora para a auxiliar, mas não aconteceu.
YYYYYY. Estamos a falar de uma senhora com quase 84 anos, que vive sozinha, que se viu surpreendida com a chegada dos Réus, que inclusivamente os tentou impedir de entrar e não conseguiu, foi agredida e que se viu paralisada por toda esta situação.
ZZZZZZ. As lesões, os traumatismos não podem ser colocados em causa, dado que a Autora e os seus filhos deram entrada no Hospital com agressões, conforme relatórios médicos que se juntaram ao Doc. 14, 15 e 16 do requerimento inicial.
AAAAAAA. Perante este contexto intimidatório, de agressões, a passividade das autoridades policiais, ou o sentimento de que estas autoridades estavam do lado dos Réus, a Autora saiu do imóvel a fim de terminar com as discussões e agressões, dado que ela pretendia era livrar-se daquelas contendas, ir ao hospital e, de forma mais calma e tranquila, voltar a casa.
BBBBBBB. A Autora não levou todos os seus pertences.
CCCCCCC. Os próprios agentes disseram que ela tinha saído por aquela noite.
DDDDDDD. O facto de ter saído do imóvel naquele momento, não significa que tenha havido entrega voluntária do imóvel, em si mesma impeditiva de uma situação de esbulho e que para além disso tenha ocorrido cessação do contrato de arrendamento, nunca houve entrega voluntária do imóvel.
EEEEEEE. Nessa mesma noite 15/07/2020, tentou regressar a sua casa, chamando as Chaves Glamour para a substituição da fechadura, tendo tido a intervenção da PSP de Sacavém para o efeito.
FFFFFFF. No dia 17/07/2019, porém, o Réu JC voltou ao imóvel e informou as autoridades que “iria entrar no imóvel, com autorização do proprietário para efectuar obras na mesma, com ou sem consentimento do locatário”, tendo arrombado a porta do imóvel quando a Polícia já aí não se encontrava.
GGGGGGG. A revogação de uma relação de arrendamento não poderá decorrer de um comportamento da Autora que, à noite depois de ser agredida, aceita sair do imóvel para ir para o hospital e dormir a casa da filha, não podendo ser esta a interpretação a retirar da matéria de facto apurada à luz do disposto no artigo 236.º do CC.
HHHHHHH. Além disso, sempre seria de considerar abusivo o exercício do direito dos Réus mudarem a fechadura de imediato, atentas as circunstâncias expostas, o que foi manifestamente exercido em abuso de direito, o que configura uma conduta ilegítima ao abrigo do disposto no artigo 334.º do CC, porque em confronto com limites impostos pela boa-fé.
IIIIIII. Inexistiam razões para mudar a fechadura do imóvel à noite, o que só pode ser interpretado no sentido de impedir a Autora de voltar ao locado e, de fazer perpetrar o esbulho que perpetraram sem que a questão definitiva se encontrasse resolvida, sendo que consta do auto de notícia que seria fornecida à Autora uma cópia, cópia essa que não foi fornecida, pois o objetivo era colocar a Autora na rua.
JJJJJJJ. Nunca houve entrega voluntária do imóvel, nem uma declaração inequívoca no sentido de revogação do contrato de arrendamento pela Autora.
KKKKKKK. Não há qualquer posse legitima dos RR após 15/07/2019, sendo que nos dias seguintes iniciaram as obras e chegaram até a arrombar a porta, deixando o imóvel sem porta, iniciando obras e colocando os bens da Autora na rua.
LLLLLLL. Mesmo após o decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse e a entrega do imóvel à Autora, voltaram em incumprimento da decisão judicial proferida, a mudar a fechadura, impedindo a Autora de ter a posse da casa.”.
Conforme é jurisprudência pacífica, “a entrega, pelo arrendatário, da chave do locado ao senhorio, que a aceita, materializando a entrega do próprio locado, traduz a revogação real do contrato de arrendamento, desde que não sejam estabelecidas cláusulas compensatórias ou quaisquer cláusulas acessórias” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-10-2016, Pº 28/14.3T8STR.E1, rel. ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO).
Trata-se da cessação do contrato por acordo, o que consiste na sua revogação, ou seja, na destruição voluntária da relação contratual pelos próprios autores do contrato (assim, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., p. 279).
De todo o modo, a revogação do contrato, que corresponde à destruição voluntária da relação contratual pelas próprias partes, no caso do arrendamento exige “o acordo das partes em pôr termo ao contrato seguindo-se a desocupação material do prédio” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 145/18.0T8SRP.E1, rel. ELISABETE VALENTE).
Um negócio abolitivo ou extintivo do contrato de arrendamento pode ser celebrado de modo tácito ou implícito (cfr., neste sentido, Henrique Mesquita; in RLJ 125.º, p. 96).
Verificando-se a desocupação do local arrendado e a sua entrega ao senhorio, estando as partes de acordo no sentido de pôr imediato termo ao contrato, e sem recurso a cláusulas compensatórias ou acessórias, ocorre a denominada revogação real do contrato (cfr., neste sentido, os acórdãos, do TRP de 23-05-1998, in CJ, t. 3, p. 204, do TRE de 17-09-1992, in CJ, t. 4, p. 302, do TRE de 01-02-1996, in CJ, t. 1, p. 281; e do STJ de 06-12-2006, Pº 06B4309, rel. SALVADOR DA COSTA).
A tradição do locado opera-se, pois, com a entrega das chaves (assim, o Acórdão do STJ de 13-12-2007, Pº 07A2766, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
Ora, apreciando a situação dos autos, em boa verdade, certo é que, os factos apurados não sustentam as conclusões dos recorrentes.
Com efeito, o inconformismo dos recorrentes assentava na procedência da impugnação da matéria de facto correspondente, que, nestes aspetos, não logrou, todavia, obter procedência.
De facto, nenhuma factualidade foi apurada no sentido de ter ocorrido algum “abandono” do imóvel por banda da autora, nem qualquer “entrega efetiva do imóvel aos requeridos”, ou ainda, alguma entrega das chaves do locado aos senhorios que pudesse representar uma traditio relativamente ao gozo inerente ao mesmo, ou, ainda, algum acordo no sentido de se operar o “contrário consenso” no sentido da destruição do vínculo do arrendamento.
A factualidade apurada não inculca qualquer abandono voluntário por banda da autora, nem alguma revogação real, por entrega do locado, entrega esta que não teve lugar.
O que ocorreu foi, antes, o esbulho da posição que a autora detinha pelos réus, que lhe inviabilizaram que continuasse a aceder ao locado, mercê das sucessivas mudanças de fechadura da porta do locado, ocorridas desde 15-07-2019.
E, mesmo a objetiva saída do locado da autora ou a retirada de alguns bens desta, no dia 15-07-2019, não reveste os caracteres necessários para que se possa considerar que ocorreu o abandono ou a entrega do locado pela autora aos réus.
Conforme se concluiu em momento anterior – cfr. decisão sumária de 11-02-2021 (nos autos de providência cautelar em apenso) – em termos perfeitamente transponíveis para os presentes autos: “(…) tudo aponta no sentido de que, naquela ocasião [15-07-2019], ao ver-se confrontada com as discussões verbais e as confrontações físicas havias entre os seus próprios filhos e os [réus AC e JC] e perante a presença da autoridade policial chamada ao local, a [autora] saiu do imóvel para evitar a continuação das discussões e agressões, porque queria sair dali o mais rápido possível e acabar com aquela situação, dado que se sentia constrangida e à beira dum ataque de choro.
A [autora] (uma anciã à beira dos 84 anos de idade) viu-se inicialmente sozinha com os [referidos réus], apercebeu-se de que a sua filha tentava em vão entrar na fracção, presenciou a chegada das autoridades policiais, testemunhou o alvoroço de toda a situação criada, foi ela própria agredida e viu os seus filhos serem agredidos, pelo que apenas queria sair dali rapidamente a fim de que terminassem os confrontos, para depois regressar novamente a sua casa.
Se não tivesse existido a pressão e a violência exercida pelos [referidos réus], que se deslocaram a casa da [autora], forçaram a entrada e criaram toda a situação de alvoroço que culminou com a vinda da autoridade policial ao local para pôr termo aos confrontos entre os [referidos réus] e os filhos da [autora], a [autora] não teria, com toda a probabilidade, saído do imóvel.
Por outro lado, os agentes da PSP nem sequer se preocuparam em assegurar-se de que a ora Recorrida tinha ficado com uma cópia das novas chaves do imóvel (…).
No próprio dia 15.07.2019, a [autora] contactou as Chaves Glamour e alterou a fechadura da fracção arrendada, acompanhada pela PSP (…).
O que tudo comprova que nunca houve uma entrega efectiva do imóvel, pela arrendatária (…) aos proprietários do local arrendado, dado que a [autora] pretendia regressar a sua casa e tinha lá os seus bens, tendo trocado logo a seguir a fechadura, quando ficou na rua, sem acesso à sua casa, por acto imputável aos [referidos réus] (a mudança da fechadura operada no dia 15.07.2019, durante a ausência temporária da [autora]).”.
Conclui-se, pois, por uma resposta negativa à questão colocada, devendo manter-se a decisão recorrida, relativamente a este ponto.
*
M) Se devem ser julgados improcedentes os pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais formulados?
Pugnam os réus no sentido da absolvição da ré MC dizendo que “[o] nome desta Ré é apenas referido no facto 10 dos factos dados como provados” e “não consta em ponto nenhum dos autos qualquer atuação por parte desta ré que mais não é do que neta do primeiro Réu JS”, concluindo que, “ainda que se comprovasse a sua presença dentro do imóvel no tempo e circunstâncias descritas, a verdade é que não resulta desta sua presença qualquer facto capaz de interferir na demais matéria. Por outras palavras, a sua presença foi completamente inócua não provocando dano ou discussão. Da prova produzida não resulta qualquer intervenção desta ré. Posto isto, mais não resta do que a sua absolvição de todos os pedidos sem mais”.
A recorrida contrapôs, sobre este ponto, “que a Ré MC esteve no imóvel no dia mencionado. Entrou na casa, esteve lá juntamente com os seus pais, agrediu os filhos da Autora – embora isto esteja a ser discutido na instância criminal -  a competente para o efeito – sendo certo que decorre da prova testemunhal que a casa era para ela” e, nessa medida, entende que, bem andou o Tribunal ao condenar a referida ré quanto ao pedido de indemnização que se viera a liquidar por força do descaminho dos bens da autora.
Vejamos:
A autora peticionou, para além da pretensão de reconhecimento da sua qualidade de arrendatária, a condenação dos réus a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia global de € 36.178,91 (€ 12.000,00, a título de danos não patrimoniais e € 24.178,91, a título de danos patrimoniais), acrescida de juros legais desde a citação, até efetivo e integral pagamento, pretensão que, posteriormente, veio a ser objeto de ampliação quantitativa.
Imputou, para o efeito, aos réus a verificação de todos os pressupostos de responsabilidade civil, previstos no artigo 483.º do CC (cfr. artigo 116.º e ss. da petição inicial).
Como é sabido, para o apuramento de uma situação jurídica de responsabilidade civil, mostra-se necessário o preenchimento de determinados pressupostos para a aplicação de tal instituto jurídico.
Tal resulta, desde logo, do que se dispõe no artigo 483º do Código Civil – preceito basilar do instituto da responsabilidade civil, no vigente direito português:
“1 - Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2 – Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
O preceito legal referido constitui o normativo base do instituto da responsabilidade civil, cuja “questão fulcral é (…) a de saber quando e em que termos alguém deve indemnizar um dano sofrido por outrem” (assim, Manuel Carneiro da Frada; Direito Civil – Responsabilidade Civil – O método do caso; Almedina, Coimbra, 2006, p. 61).
Com efeito, na responsabilidade civil extracontratual - a que não supõe a consideração de um vínculo obrigacional preexistente - os pressupostos de que esta depende variam consoante o seu facto constitutivo seja um facto ilícito, um facto gerador de risco, ou até uma actividade lícita que provoque danos.
Tais pressupostos, são, no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos conhecidos e não merecem controvérsia jurisprudencial:
a) Um facto (comportamento ou forma de conduta humana, que se pode traduzir numa acção ou omissão);
b) A ilicitude desse facto (ou sua antijuridicidade, sob a forma de violação de um direito subjectivo de outrem ou de violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios, sem que existam causas exclusão ou de justificação para tal);
c) A imputação culposa do facto ao lesante (censurabilidade da conduta do agente pelo direito, que pode assumir a forma de dolo ou de negligência);
d) O dano ou prejuízo (que consiste em “toda a ofensa de bens ou interesses protegidos pela ordem jurídica” - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., 1991, p. 477); e,
e) O nexo de causalidade entre o facto e o dano (sendo indemnizáveis todos os danos - mas só esses - causados pela acção ou omissão do agente).
Assim, para a condenação da referida ré MC seria necessário, pelo menos, a demonstração do título ou da fonte em que assentaria a sua responsabilidade.
Conforme referia Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. I, 10ª edição, p. 695 e ss.): “A causa de pedir, nas acções de indemnização, não consistirá na culpa do agente (mesmo tratando-se de responsabilidade fundada na prática de factos ilícitos), mas também não se limita ao dano sofrido pelo autor. Como facto jurídico donde procede o pedido (artº 498, nº 4, do Cód. Proc. Civ.) [hoje correspondente ao artigo 581.º, n.º 4, do CPC em vigor], a causa de pedir neste tipo de acção especial abrange todos os pressupostos da acção de indemnizar.”
Atento o núcleo da pretensão deduzida pela autora, fazia parte do objeto do processo a dilucidação da questão atinente ao fundamento ou fonte de responsabilidade da ré.
Ora, no caso, dos factos apurados – tendo também em conta a alteração efetuada acerca do facto provado n.º 10) – não resulta alguma circunstância factual que determine a imputação à ré MC de responsabilidade pelos danos sofridos pela autora.
A referida ré deverá, em consequência, ser absolvida dos pedidos contra si formulados.
Para além de tal invocação, concluíram os réus, nas suas alegações, a respeito das pretensões referentes à condenação dos réus em valores indemnizatórios, nomeadamente, o seguinte:
“(…) nnn) (…) o Tribunal condenou JC por os danos morais e danos patrimoniais. Salvo melhor e mais douto entendimento, conforme resulta da rubrica relativa à prova produzida, nenhum destes danos pode ser imputado ao R. JC,  muito menos a este R. em concreto. Aliás, não existe um único argumento/fundamento por parte do Tribunal para fixar que quem deve efectuar o pagamento é apenas o R. JC. Assim devem também todos os Réus serem absolvido nesta parte
ooo) Acresce que quanto aos bens, o Tribunal entendeu que não resulta provado o valor dos mesmos pelo que remete o ressarcimento para liquidação de sentença. Também nesta parte andou mal o Tribunal!
ppp) Resulta evidente que no dia em que a A. saiu do imóvel pelo seu próprio pé, foi auxiliada pelos familiares a levar os seus pertences. Resulta ainda da prova testemunhal que foram colocados na escada do prédio os restantes bens. E mais não resulta da prova! O mesmo vale por dizer que não se pode sequer concluir que a A. ficou sem algum bem, sendo certo que a mesma admitiu que os moveis, eletrodomésticos e Roupa de cama que encontrou no imóvel, não eram seus! A este propósito deveria o Tribunal ter verificado os documentos juntos aos em 02.09.2020 e 03.09.2020 pela A. onde constam facturas em nome da testemunha HC e um lista de bens que ninguém viu no local e que poderia certamente ter sido junta aos autos com a petição inicial. Quanto à lista de bens junta nessa fase como doc. Nº 3, convenhamos que até por uma questão de cooperação e boa-fé processual a mesma poderia e deveria ter sido junta com a PI. A lista de bens poderia ser elaborada em qualquer momento, tanto mais que a A. tinha na sua posse fotografias do imóvel. É uma lista de bens, sem qualquer referência a marcas, estado, número ou qualquer elemento identificativo, pelo que que não faz prova nem da existência dos mesmos nem da sua localização e valor. Acresce que a A. não junta faturas dos bens que constam daquela lista. Deste modo, nenhum valor deveria ter relegado para liquidação da sentença.
qqq) Também nesta parte não podemos deixar de evidenciar o que vem escrito na sentença: ‘’ Assim sendo, entendemos que, quanto ao valor dos bens descritos no ponto 24 não será de fixar, desde já, o quantum indemnizatório, devendo o mesmo ser remetido para ulterior liquidação, sendo a obrigação de pagamento de tal indemnização de natureza solidária, porquanto foram os réus os responsáveis pelo desaparecimento desses bens, ao terem promovido as obras e a retirada dos bens do imóvel.’’ Sendo certo que tal não resulta de nenhuma prova produzida.
rrr) Por último, quanto ao dano pro privação do uso da fracção, também não se compreende como foram os réus condenados no pagamento de indemnizações. Aliás, não se compreende sequer a fundamentação do Tribunal completamente alheada dos factos que deu como provados e até da fundamentação que encetou noutras rubricas da sentença.Desde logo não pode ser condenado o R. JS por uma atuação que de todo não lhe é imputável. Tanto mais que a provar-se como está provada a oposição à renovação valida, inexiste privação do uso. Aliás, se alguém tinha direito a ver fixada uma quantia similar, são os atuais proprietários do imóvel a pagar naturalmente pela A. assim, defende-se que a este titulo nenhum indemnização deve ser fixada por ser indevida.
sss) Reitera-se tudo quanto foi dito a propósito da celebração do contrato e da oposição à renovação quantos aos actuais proprietários do imóvel. Sendo certo que nesta matéria são terceiros de boa-fé e nunca poderiam ver o seu direito à propriedade atacado. A dar cobertura a essa situação teríamos a legalização de um contrato de arrendamento feito por terceiro sobre um bem alheio e por outro lado o ataque ao direito constitucionalmente consagrado, o direito à propriedade, quer na vertente do seu primário proprietário, quer na vertente dos agora proprietários. Devem também ser absolvidos (…)”.
A recorrida contra-alegou, sobre esta matéria, tendo concluído o seguinte:
“MMMMMMM. Preceitua o artigo 483.º do CC que, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
NNNNNNN. Tendo em conta a factualidade apurada, ficou provada a prática pelo Réu JC da agressão física descrita no ponto 11 e 12, sendo esta agressão, um facto ilícito que origina a obrigação de indemnizar, na medida dos danos materiais ou morais daí decorrentes.
OOOOOOO. Em face da matéria provada sob os pontos 31, 32, 34 e 36, não existem dúvidas de que se trata de factos que permitem concluir pelo direito da Autora a uma indemnização que o Tribunal a quo fixou em 6.000,00 € (seis mil euros), sendo ainda imputável ao Réu JC a responsabilidade pelas despesas provadas sob o facto 35 e 36, já que são directamente decorrentes da sua atuação, pois foi o Réu JC que mandou trocar a fechadura da porta (facto 17), sem autorização da Autora e que fez com que esta tivesse de a voltar a trocar e ter gastos com a mudança da fechadura.
PPPPPPP. Por outro lado, os gastos com as telecomunicações do mês de Julho que a Autora teve foram calculados proporcionalmente (pela metade), na medida em que a Autora ficou sem acesso à casa desde 15/07/2019, portanto a metade do mês, sendo que tal é directamente imputável à conduta do Réu JC que mandou fechar a fechadura (facto 17).
QQQQQQQ. Quanto aos restantes bens da Autora que ficaram no interior da fração, o Tribunal a quo remeteu para liquidação de sentença, dado que a Autora deixou todos os bens no interior da casa, tendo saído apenas com alguns medicamentos e um cesto de roupa, tudo o resto que lhe pertencia ficou no imóvel.
RRRRRRR. Em relação ao dano da privação do uso do imóvel, reitera-se a posição do Tribunal recorrido, por conseguinte, impõe-se que o senhorio ceda o gozo do imóvel ao inquilino e assegure tal cedência.
SSSSSSS. No caso concreto, o 1.º Réu, senhorio, não cumpriu essa sua obrigação, sendo que apenas ao senhorio poderá ser, neste caso concreto, assacada a responsabilidade civil decorrente do incumprimento dessa obrigação decorrente do contrato de arrendamento.
TTTTTTT. É o 1º Réu responsável pelo pagamento à Autora do valor mensal de 325,00 € (trezentos e vinte e cinco euros), correspondente à renda mensal acordada entre as partes, e correspondendo ao valor locativo de 10,83 € (dez euros e oitenta e três cêntimos) / dia, sendo que o valor da indemnização tem como fundamento a privação do uso ou do gozo das utilidades deste imóvel.
UUUUUUU. Em face dos factos apurados, a responsabilidade da privação do uso do imóvel só poderá recair sobre o 1.º réu até 31/12/2019 (data da partilha), pelo que a Autora tem direito a indemnização equivalente a cinco rendas mensais (1.625,00 € - mil seiscentos e vinte e cinco euros), sendo que o douto Tribunal cometeu um erro de mero cálculo, dado que não contabilizou o valor dos 15 dias de Julho de 2019, data efectiva em que a Autora ficou logo impedida de usar o imóvel.
VVVVVVV. Isto é, a Autora ficou impedido na realidade 5 meses e 15 dias de usar o imóvel, devendo ser contabilizado o valor de € 162,45 – cento e sessenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos – o que significa que a sentença deveria ter procedido à condenação do valor total de € 1.787,45, ao invés de € 1.625,00, mantendo-se decisão preferida, mas corrigindo-se o valor final apurado, em sede de contabilização da indemnização diária pela privação.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve:
i) a questão prévia de nulidade do julgamento com base na deficiente gravação da prova ser julgada totalmente improcedente por intempestividade;”.
A decisão recorrida, a respeito da pretensão indemnizatória formulada pela autora, julgou-a parcialmente procedente, tendo aduzido, para além de considerações gerais de enquadramento jurídico do instituto da responsabilidade civil, a seguinte fundamentação:
“Ora, analisada a factualidade apurada, ficou provada a prática pelo réu JC da agressão física descrita nos pontos 11 e 12, tratando-se obviamente de um facto ilícito que origina a obrigação de indemnizar, na medida em que daí tenham decorrido danos materiais ou morais. Na verdade, em face da matéria provada sob os pontos 32, 33, 34 e 37, não restam dúvidas de que se trata de factos que permitem concluir pelo direito da autora a uma reparação a título de danos não patrimoniais, pois, deve ter-se em conta que “na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito” – cfr. artigo 496.º n.º 1 do CC.
Por outro lado, é também a este réu, JC, imputável a responsabilidade pelos sofrimento e angústia causados à autora por força do “esbulho” de que foi vítima, ao ter-lhe sido impedido o acesso ao imóvel, acesso este que lhe foi vedado pela mudança de fechadura perpetrada a mando desse réu, entendendo-se ajustado, por todos os danos morais apurados no processo o pagamento à autora, a este título, da quantia indemnizatória de 6.000,00€.
Para além disso, é imputável ao réu a responsabilidade pelas despesas provadas sob o n.º 35, já que directamente decorrentes da sua actuação, no valor de 345,66€.
Por outro lado, à excepção do valor apurado no ponto 36, não se provou qualquer outro prejuízo patrimonial passível de indemnização, devendo o valor pago pelas facturas referentes ao mês de Julho serem reduzidas proporcionalmente, já que a autora apenas habitou no imóvel até dia 15.07.2019, pelo que o réu deverá ser responsável pelo prejuízo equivalente a 17,84€.
Acresce que o valor pedido a título de bens comprados (artigo 77 da PI) não poderá ser considerado um prejuízo patrimonial, pois apenas poderá ser considerado haver prejuízo quanto aos bens que a autora deixou no interior da fracção e que foi impedida de usar (peticionado no âmbito do artigo 74 da PI). O facto de ter adquirido novos bens para seu uso, não configura, segundo entendemos, um prejuízo patrimonial.
Quanto aos bens que desapareceram do interior da fracção, e se é certo que ficou assente que a autora ficou privada desses bens porque os mesmos foram levados a mando dos réus, que deram início à realização de obras no imóvel, a verdade é que não se apurou o valor exacto dos mesmos.
Segundo o artigo 566.º n.º 3 do CC, existe a possibilidade de o Tribunal julgar equitativamente dentro dos limites do que tiver por provado nas circunstâncias em que não puder ser averiguado o valor exacto dos danos.
Porém, neste caso, não estamos em face da circunstância de haver impossibilidade de apuramento do valor exacto dos danos, interpretando-se aquele preceito legal, no sentido de permitir a atribuição de uma indemnização equitativa, apenas nas circunstâncias em que o valor dos danos não possa ser apurado.
No entanto, pese embora a autora não tenha logrado provar o valor desses mesmos danos, entendemos, ainda assim, que não é de improceder a presente acção, em face do disposto do artigo 609.º n.º 2 do CPC: “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o Tribunal condena no que vier a ser liquidado (…)”.
Vejamos.
Um entendimento mais restritivo e outrora dominante na jurisprudência considerou que: "O artigo 661, n. 2, do Código de Processo Civil apenas permite remeter a condenação para execução de sentença quando não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, entendendo-se, porém, essa falta de elementos não como a consequência do fracasso da prova na ação declarativa, mas apenas como consequência de ainda se não conhecerem, com exatidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda se não terem revelado ou estarem em evolução algumas ou todas as consequências do facto ilícito no momento da propositura da ação declarativa" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1995, processo n° 085801).
Para este entendimento a fase executiva destina-se a uma mera quantificação, não possível anteriormente, seja porque ao autor apenas era possível a dedução de um pedido genérico, nos termos do disposto no artigo 471° do Código de Processo Civil, ou, podendo formular um pedido específico, não era, ainda assim, possível, no momento da decisão, fixar a quantidade da condenação, quer por se desconhecerem todas ou algumas das consequências do facto ilícito, por estas ainda não se terem produzido, quer por não se terem produzido ainda todos os factos capazes de determinar o montante a fixar.
Porém, tal linha jurisprudencial tem vindo a ser substituída por entendimento mais permissivo que, entretanto, se tornou maioritário: Com efeito, a jurisprudência mais recente e maioritária sustenta que: "I - Sempre que o tribunal verificar o dano, mas não tiver elementos para fixar o seu valor, quer se tenha pedido um montante determinado ou formulado um pedido genérico, cumpre-lhe relegar a fixação do montante indemnizatório para liquidação em execução de sentença. II - Mesmo que se possa afirmar que se está a conceder uma nova oportunidade ao autor do deduzido pedido líquido de provar o quantitativo dos danos, não se vislumbra qualquer ofensa do caso julgado, material ou formal. III- É que a existência de danos já está provada e apenas não está determinado o seu exato valor. IV- Só no caso de se não ter provado a existência de danos é que se forma caso julgado material sobre tal objeto, impedindo nova prova do facto no posterior incidente de liquidação." (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Maio de 2009, no processo n° 2684/04.1TBTVD.S1).
Subjacente a esta jurisprudência encontra-se a ideia de que razões de justiça e de equidade impedem que se absolva a demandada uma vez demonstrada a sua obrigação — apenas tendo ficado indemonstrado o valor de tal dever de indemnizar (cfr. Acórdão do TRL de 13.10.2013, in www.dgsi.pt).
Assim sendo, entendemos que, quanto ao valor dos bens descritos no ponto 24 não será de fixar, desde já, o quantum indemnizatório, devendo o mesmo ser remetido para ulterior liquidação, sendo a obrigação de pagamento de tal indemnização de natureza solidária, porquanto foram os réus os responsáveis pelo desaparecimento desses bens, ao terem promovido as obras e a retirada dos bens do imóvel.
(…)
Por último, importa apreciar o invocado dano decorrente da privação do uso da fracção autónoma.
A natureza sinalagmática do arrendamento implica a sujeição a obrigações recíprocas, consistindo a obrigação do senhorio em proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa - artigo 1031.º, alínea b) do Código Civil, correspondente à obrigação de este lhe pagar a renda ou aluguer - artigo 1038º, alínea a) do Código Civil.
Por conseguinte, impõe-se que o senhorio ceda o gozo do imóvel ao inquilino e assegure tal cedência, para que o mesmo possa ser plenamente fruído, em ordem à satisfação da finalidade a que se destina o arrendado.
Ora, neste caso, o 1.º réu, senhorio, não cumpriu essa sua obrigação, sendo que apenas ao senhorio poderá ser, neste caso concreto, assacada a responsabilidade civil decorrente do incumprimento dessa obrigação decorrente do contrato de arrendamento.
Esta situação de privação do uso tem vindo a ser desdobrada em duas posições: Uma, que entende que na privação do uso em si mesma, isto é, em termos abstractos, produz automaticamente um dano; Outra, pelo contrário, que entende que se deverá exigir a prova de factos que mostrem ter ocorrido em concreto um dano.
A respeito do ressarcimento da privação do uso de um bem, como dano autónomo de natureza patrimonial, podem ver-se diferentes concepções na doutrina e na jurisprudência.
A favor da tese, de que a mera privação do uso do veículo gera sempre um dano, pode ver-se o acórdão do S.T.J., de 5/07/2007 (Santos Bernardino), publicado na C.J. (Supremo Tribunal de Justiça), ano XV, tomo 2, pág. 153, onde se ponderou que «…a privação de uso de um veículo automóvel durante certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável (…).
O dono do veículo, ao ser-lhe tornada impossível a utilização desse veículo durante o período em causa, sofre uma lesão no seu património, uma vez que deste faz parte o direito de utilização das coisas próprias. E essa lesão é avaliável em dinheiro, uma vez que a utilização de um veículo automóvel no comércio implica o dispêndio de uma quantia em dinheiro. A medida do dano é, assim, definida, pelo valor que tem no comércio a utilização desse veículo durante o período em que o dono está dele privado.
O dano produzido atinge, neste caso, a propriedade - direito que tem como manifestações, entre outras, a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela; possibilidade e capacidade que são retiradas ao proprietário durante o tempo em que, por via do dano produzido, está privado do veículo. E a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado».
No mesmo sentido, considerou-se no acórdão do S.T.J., de 17/04/2008 (Serra Batista), C.J. (Supremo Tribunal de Justiça), ano XVI, tomo II, pág. 31, que «O dano de privação do uso de veículo automóvel, impedindo o seu uso pelo proprietário, é um dano autónomo, específico, passível de reparação, devendo recorrer-se à equidade na falta de prova dos danos efectivos causados pela privação. O simples uso de veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária pelo que a sua privação constitui um dano ressarcível».
A exigir a prova de factos de onde resulte um dano efectivo, patrimonial ou não patrimonial, sublinha-se a declaração de voto de vencido de Salvador da Costa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/11/2005, C.J. (Supremo Tribunal de Justiça), ano XIII, tomo III, pág. 154, onde se sustenta que «…a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil também depende de danos, pressupõe como é natural a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu (art. 563.º do Cód. Civil). Isto significa que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado do facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respectivo valor em dinheiro».
Na doutrina, Menezes Leitão sustenta que «Entre os danos patrimoniais inclui-se naturalmente a privação do uso das coisas ou prestações, como sucede no caso de alguém ser privado da utilização de um veículo seu ou ser impedido de realizar uma viagem turística que tinha contratado. Efectivamente, o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano» [Direito das Obrigações, Vol. I, pág.348, 9.ª edição. Almedina, 2010.1].
Por sua vez, Abrantes Geraldes defende que «…não custa compreender que a simples privação do uso seja causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização. E mesmo que se considere que a situação não atinge a gravidade susceptível de merecer a sua inclusão nos danos na categoria dos danos morais, nos termos do art.º 496.º, n.º 1, do CC, é incontornável a percepção de que entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, ou seja, mediante a atribuição de uma quantia adequada» [Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág. 39. Almedina, 2001.2].
A resposta que tem sido dada pela doutrina e jurisprudência parte da teoria da diferença consagrada no art.º 562º.
À luz de uma concepção naturalística da indemnização, tem de entender-se que a privação do uso de uma coisa, inibindo o seu proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à indagação do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.
Segundo entendemos, a perda temporária dos poderes de fruição do imóvel configura, pois, um dano indemnizável, segundo as regras da responsabilidade civil, pelo que o dano de privação do uso será, em si mesmo, indemnizável, por incumprimento contratual.
Ora, no caso em apreço, o quantum indemnizatório deve ser calculado com recurso à equidade, tendo em conta que sabemos que o valor locativo do imóvel era, neste caso concreto, o valor de 325,00€, correspondente à renda mensal acordada entre as partes, inexistindo fundamento para atribuir à autora um valor superior àquele que havia correspondido ao valor da renda mensal acordada.
Assim, será o réu JS responsável pelo pagamento à autora do valor mensal de 325,00€, correspondente ao valor diário de 10,83€, sendo desajustado o valor peticionado pela autora por ser substancialmente superior ao valor locativo que as próprias partes deram ao imóvel, sendo que o valor desta indemnização tem como fundamento a privação do uso ou do gozo das utilidades deste imóvel em concreto e não eventuais danos decorrentes dos gastos tidos com o pagamento de outra habitação equivalente e que pudesse ser mais cara.
Saliente-se também que, segundo entendemos, a responsabilidade pelo dano da privação do uso só poderá recair sobre quem disponibilidade do imóvel e possa assumir a qualidade de senhorio, pois não pode ser responsabilizado um terceiro pelo incumprimento contratual.
Neste caso, em face dos factos apurados, a responsabilidade da privação do uso do imóvel só poderá recair sobre o 1.º réu e, após o óbito, sobre a respectiva herança indivisa, aqui representada pelas suas sucessoras AC e MD.
Porém, depois da partilha, e porque por força da mesma a propriedade do imóvel foi transmitida à herdeira MD, esta poderia responder pessoalmente pela privação do uso do imóvel até à venda. No entanto, não só não foi formulado nenhum pedido contra esta herdeira a título pessoal (a mesma apenas intervém nos autos na qualidade de herdeira e em representação do réu falecido), como a sua responsabilidade sempre teria ser fundada numa situação de ilicitude, que careceria da alegação e prova de factos que pudessem, uma vez provados, fundar a responsabilidade civil desta.
Daqui resulta que, obviamente, o 1.º réu, representado pelas herdeiras AC e MD, apenas poderá ser responsabilizado pela privação do uso do imóvel até 30.12.2019 (data da partilha) e não pelo período tempo que lhe sucedeu, carecendo de fundamento, a este título, o pedido de condenação em todos os valores peticionados pela autora, pelo que a este título a autora apenas terá direito ao pagamento de indemnização equivalente a cinco rendas mensais (1.625,00€).”.
Conforme decorre da factualidade apurada – cfr. factos provados n.ºs. 11), 12), 32), 33), 34) e 37) – é de imputar ao réu JC a responsabilidade civil pelos danos originados na pessoa da autora, aferindo-se a prática, por si, de factos ilícitos e culposos (interferindo na autonomia e liberdade da personalidade física da autora, empurrando-a e pisando-a) que, de forma causalmente adequada, produziram os assinalados danos, mostrando-se ser o referido réu responsável pelo ressarcimento de danos morais na pessoa da autora e, bem assim, das despesas que tiveram motivação pela conduta ilícita perpetrada pelo referido réu – cfr. facto provado n.º 35).
Isso mesmo foi, aliás, consignado pelo Tribunal recorrido, nos termos sobreditos (cfr. último parágrafo da página 37 da sentença recorrida e primeiros e segundo parágrafos da página 38 da mesma decisão).
Trata-se de uma conduta altamente censurável, não justificável – porque não é admissível, ainda que, com a finalidade de uma putativa recuperação do bem locado, interferir na integridade física alheia, não sobrelevando a proteção de interesses patrimoniais sobre a salvaguarda e a proteção da integridade pessoal – e, porque, desconforme ao Direito e às mais elementares regras de convivência em sociedade, altamente censurável, ainda para mais quando o objeto da agressão, se traduziu na pessoa de uma anciã de provecta idade.
Não procede, pois, a aduzida isenção de responsabilidade expressa - designadamente, na conclusão nnn) – mas sem qualquer justificação, pelos recorrentes.
No que respeita, por seu turno, à pretensão indemnizatória pelo descaminho dos bens da autora, remetida pelo Tribunal para liquidação ulterior, não se afigura que o decidido mereça alguma censura.
A invocação dos recorrentes nas alíneas ooo), ppp) e qqq) das conclusões das suas alegações de recurso reporta-se a factualidade que não foi considerada como provada pelo Tribunal recorrido e que, também, permanece indemonstrada, após a impugnação de facto conhecida por este Tribunal de recurso.
Na realidade, o acervo factual apurado permite, claramente, concluir por uma conduta ilícita dos réus, geradora de responsabilidade civil, relativamente ao descaminho dos bens que eram pertença da autora. Militam, nesse sentido, os factos apurados nos pontos 22), 23), 24), 25), 26), 28), 29), 30), 31), 43), 44), 45) e 46), pelo que, nenhum reparo merece a apreciação jurídica efetuada pelo Tribunal a este propósito (sendo que, para além da imputabilidade direta do aludido descaminho aos réus AC e JC, não deixa de existir a inobservância pelo senhorio – em elevado grau após a notificação aos réus do deferimento da providência cautelar - do dever de garantir o gozo do imóvel por banda do locatário que lhe determina a responsabilização pelos prejuízos – incluindo a responsabilização decorrente do descaminho de bens, pelo acesso viabilizado ao imóvel, de que detinha as utilidades inerentes - causados – cfr. artigos 1031.º, al. b), 1037.º, n.º 2, 1284.º e 1305.º do CC).
Ora, sucede que, como assinalou a decisão recorrida, não se logrou apurar o valor dos bens objeto de descaminho, o que, por aplicação da orientação jurisprudencial fundada no Acórdão do STJ de 19-05-2009 (Pº 2684/04.1TBTVD.S1), levou o Tribunal recorrido a remeter a fixação do valor indemnizatório para ulterior liquidação, não merecendo tal conteúdo decisório, algum reparo.
Relativamente ao dano por privação do uso da fracção, o Tribunal recorrido considerou que “a perda temporária dos poderes de fruição do imóvel configura (…) um dano indemnizável, segundo as regras da responsabilidade civil, pelo que o dano de privação do uso será, em si mesmo, indemnizável, por incumprimento contratual” e, em conformidade, condenou os réus JS – este, representado pelas suas sucessoras habilitadas AC e MC - , AC, JC e MC.
Cumpre, preliminarmente, salientar que não foram condenados os actuais proprietários do imóvel na satisfação deste conteúdo indemnizatório, ao contrário do que parece resultar das conclusões expendidas pelos recorrentes na sua alegação (cfr. conclusão sss) ), pelo que, nenhum aspeto há a referir, adicionalmente, a este respeito.
Por outro lado, na decorrência do que antes se referiu a respeito da ré MC, não poderá subsistir a condenação desta na satisfação da indemnização pelo descaminho de bens da autora, pois, como se viu, não resultou apurada alguma conduta danosa da sua parte, geradora de tais danos.
Todavia, questionam os recorrentes a subsistência da condenação do réu JS na indemnização em questão, dizendo que a atuação “não lhe é imputável”.
Na decisão recorrida salientou-se, a respeito, o seguinte:
“(…) segundo entendemos, a responsabilidade pelo dano da privação do uso só poderá recair sobre quem [tem] disponibilidade do imóvel e possa assumir a qualidade de senhorio, pois não pode ser responsabilizado um terceiro pelo incumprimento contratual.
Neste caso, em face dos factos apurados, a responsabilidade da privação do uso do imóvel só poderá recair sobre o 1.º réu e, após o óbito, sobre a respectiva herança indivisa, aqui representada pelas suas sucessoras AC e MD.
Porém, depois da partilha, e porque por força da mesma a propriedade do imóvel foi transmitida à herdeira MD, esta poderia responder pessoalmente pela privação do uso do imóvel até à venda. No entanto, não só não foi formulado nenhum pedido contra esta herdeira a título pessoal (a mesma apenas intervém nos autos na qualidade de herdeira e em representação do réu falecido), como a sua responsabilidade sempre teria ser fundada numa situação de ilicitude, que careceria da alegação e prova de factos que pudessem, uma vez provados, fundar a responsabilidade civil desta.
Daqui resulta que, obviamente, o 1.º réu, representado pelas herdeiras AC e MD, apenas poderá ser responsabilizado pela privação do uso do imóvel até 30.12.2019 (data da partilha) e não pelo período tempo que lhe sucedeu, carecendo de fundamento, a este título, o pedido de condenação em todos os valores peticionados pela autora, pelo que a este título a autora apenas terá direito ao pagamento de indemnização equivalente a cinco rendas mensais (1.625,00€).”.
António dos Santos Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso; Almedina, Coimbra, 2ª Ed., 2005, p. 27 e ss.) aborda exaustivamente a questão do dano da privação do uso, enunciando as diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais que sobre a temática têm sido consideradas:
1) A orientação que nega a autonomia do dano decorrente da privação do uso (integrando-o no âmbito dos danos de natureza não patrimonial – vd., v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2000, in BMJ 494.º, p. 396);
2) A orientação que reconhece a autonomia do dano da privação do uso, mas que exige a prova efectiva da existência de prejuízos de ordem patrimonial (vd., neste sentido, o Acórdão do STJ de 18.11.2008, Pº 08B2732, relator PEREIRA DA SILVA; o Acórdão do STJ de 16-03-2011, Pº 3922/07.2TBVCT.G1.S1, relator MOREIRA ALVES; o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 03-05-2011, Pº 2618/08.6TBOVR.P1; o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2012, Processo 132/04.6TBRMR.L1-6, relatora ANABELA CALAFATE; o Ac. do TRP de 25-02-2014, relator RUI MOREIRA; o Ac. do TRP de 19-12-2012, relator IGREJA MATOS; o Acórdão do STJ de 12-01-2012, relator FERNANDO BENTO; o Acórdão do STJ de 04-05-2010, relator SEBASTIÃO PÓVOAS; o Acórdão do TRC de 02-02-2010, relator GONÇALVES FERREIRA; o Acórdão do STJ de 19-11-2009, relator HÉLDER ROQUE; o Acórdão do TRC de 08-09-2009, relator ARTUR DIAS; e o Acórdão do STJ de 06-11-2008, relator SALVADOR DA COSTA); e
3) A orientação que reconhece o direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem.
Efectivamente, não custa compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o património de que dispõe.
Em igual sentido, Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, p. 317) refere que “o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”.
Entende-se, na realidade, que a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, um dano patrimonial.
Visto tal dano na perspetiva do locatário, o mesmo traduz uma lesão do direito de gozo temporário que, de acordo com o preceituado no artigo 1022.º do CC, lhe era lícito usufruir, na decorrência do contrato de arrendamento que dispõe sobre o locado e cuja relação jurídica não se mostra, como se viu, cessada.
A supressão dessa faculdade constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação, de harmonia com o que foi decidido na sentença recorrida, juízo que, não merece, neste conspecto, qualquer reparo.
Em consequência, com exceção do já referido relativamente à ré MC – de onde resulta a sua absolvição relativamente aos pedidos formulados - cumprirá, quanto ao mais, (e para além do decidido nos pontos 1, 2, 6 e 7) manter o decidido nos pontos 3, 4 e 5 do dispositivo da sentença recorrida.
*
A apelação procederá parcialmente, com revogação da decisão recorrida na parte respeitante à condenação da ré MC que, em conformidade com o exposto, deverá ser absolvida dos pedidos contra si formulados, mantendo-se, quanto ao mais, a decisão recorrida.
*
De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, procedendo parcialmente a apelação – não relevando, para este efeito, a parcial procedência da impugnação da matéria de facto suscitada - , a responsabilidade tributária nesta instância recursória incidirá, sobre a apelada/autora e sobre os apelantes/réus, na proporção do decaimento que se fixa em 1/10 e 9/10, respetivamente – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível em:
a) Julgar não verificada invocada nulidade por impercetibilidade de gravação do depoimento da testemunha FA;
b) Julgar improcedentes as invocadas nulidades da sentença recorrida, por violação do dever de fundamentação e por omissão de pronúncia;
c) Julgar extemporânea a invocação de nulidade nos termos do artigo 198.º do CPC, relativamente ao depoimento de parte da autora e improcedente a inconstitucionalidade invocada;
d) Rejeitar o recurso, no que respeita à impugnação da matéria de facto, quanto aos factos provados n.ºs. 35), 36), 37) e 38), por inobservância do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC;
e) Determinar a alteração da redação do facto provado n.º 10), que passa a ser a seguinte: “10. Em 15.07.2019, ao final da tarde, os réus AC e JC bateram à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra””;
f) Proceder ao aditamento de um novo facto – com o n.º 70) – não provado, com a seguinte redação: “Que, aquando do referido em 10), a ré MC tenha batido à porta da fracção autónoma identificada nos pontos 1 e 2 “supra””;
g) Determinar a retificação da redação do facto provado n.º 39), que passar a ser a seguinte: “39. Em Outubro de 2018, os réus já haviam comunicado verbalmente à filha da autora que pretendiam que a autora desocupasse o imóvel;”;
h) Determinar a alteração da redação do facto provado n.º 45), que passa a ser a seguinte: “Os requeridos JS, AC, JC e MC foram citados no âmbito do procedimento cautelar em Outubro de 2019;”; e
i) Julgar parcialmente procedente a apelação, absolvendo-se a ré MC dos pedidos contra si formulados, mantendo-se, quanto ao mais, o decidido na sentença recorrida.
Custas pela apelada/autora e pelos apelantes/réus, na proporção de 1/10 e de 9/10, respetivamente.
Notifique e registe.
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Lisboa, 26 de maio de 2022.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
José Maria Sousa Pinto