Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11105/20.1T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PAGAMENTO DO IVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECUSO DA AUTORA IMPROCEDENTE E PROCEDENTE O RECURSO DA RÉ, REVOGANDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA NA PARTE QUE JULGA IMPROCEDENTE A RECONVENÇÃO E ABSOLVE A AUTORA DO PEDIDO
Sumário: I - Quando um dos contraentes pretende resolver um contrato com base na alteração das circunstâncias (artigo 437 do Código Civil) na sequência do Covid-19 tem de provar, para além do mais, as circunstâncias em que celebrou o contrato e que elas estão alteradas no momento em que pretende a resolução (e em geral umas e outras não serão as correspondentes linearmente às que existiam antes da Covid-19 e as que passaram a existir depois da Covid-19).
II – Quando o contraente pretende reaver o que prestou em cumprimento do contrato, com base no eventual futuro cancelamento de um outro contrato que celebrou com terceiro em consequência dos efeitos da pandemia provocada pelo Covid-19, corre por sua conta o risco da falta de prova da existência daquele contrato com o terceiro e de circunstâncias que tornem certo o futuro cancelamento desse contrato.
III – Não tendo invocado até à data em que pretendeu aquela restituição, qualquer atraso na prestação da sua contraparte, nem qualquer outro motivo para considerar que a obrigação desta estava definitivamente incumprida, esse contraente não pode ter o direito à resolução, naquela data, com base no incumprimento definitivo (artigos 808 e 801 do CC).
IV – Quando o contraente que comprou a mercadoria para exportação não comprova a exportação da mercadoria, tem que pagar o IVA devido ou reembolsar o IVA que o vendedor suportou no seu lugar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A 28/05/2020, a E-Lda, intentou uma acção comum contra W-Lda, pedindo a condenação desta a anular a factura M29 de 09/03/2020 e a pagar-lhe 12.633,60€, acrescidos de juros de mora, calculados desde a data em que a autora lhe solicitou o cancelamento da encomenda até ao pagamento integral da quantia.
Para o efeito, alega, em síntese, que é uma sociedade que, entre o mais, dedica a sua actividade profissional à exportação de vinhos; em Fevereiro de 2020, entrou em contacto com a ré para encomendar 1120 caixas de vinho; com a celebração do contrato informou a ré que o vinho ia ser revendido a uma companhia aérea, TAAG - LINHAS AÉREAS DE ANGOLA, e que, por esse motivo, o prazo de entrega deveria ocorrer com a maior brevidade possível; a ré, ciente da urgência na entrega, aceitou fornecer de imediato as caixas de vinho; para efeitos do pagamento da encomenda, a ré emitiu a factura M/28 em nome da autora no montante de 14.275,97€, que a autora liquidou no dia 09/03/2020; contudo, no dia 09/03/2020, a ré anulou a factura M/28 e emitiu uma nova factura (M/29), no montante de 12.633,60€, sem o montante do Imposto de Valor Acrescentado (IVA), visto que os bens a fornecer seriam para revender em Luanda, Angola, procedendo, a ré, de imediato à devolução [à autora] do IVA pago com a factura M/28. No dia 17/03/2020, face ao panorama de emergência de saúde pública de âmbito internacional e à situação de pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19) e ao atraso na entrega dos bens encomendados, a autora enviou uma comunicação para a ré a solicitar [mais à frente, artigo 20, não diz que solicitou, diz que cancelou] o cancelamento da encomenda e, em consequência, a pedir a devolução do montante pago. Isto porque, atendendo à rápida propagação do coronavírus (Covid-19), os Governos dos países afectados foram obrigados a encetar um conjunto de medidas restritivas que acarretaram fortes constrangimentos à circulação de pessoas e de bens. Em Angola, no dia 18/03/2020, o Presidente da República suspendeu todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa, com fundamento no comportamento global da pandemia do coronavírus (Covid-19). Deste modo, atendendo às restrições aplicadas relativamente à circulação de pessoas e de bens, as companhias aéreas foram fortemente lesadas, tendo sido obrigadas a limitar o número de passageiros, reduzindo o número de voos diários. Ora, a encomenda realizada junto da ré tinha como objectivo a revenda do vinho junto da TAAG que reduziu significativamente o número de voos diários, limitando apenas os voos a serviços especiais de apoio ao Serviço Nacional de Saúde e voos humanitários. Desta forma, com o cancelamento quase total dos voos diários e com a limitação da circulação de pessoas e de bens, a TAAG não precisava/precisa da quantidade de garrafas de vinho que a autora encomendou. Tal acarretou uma alteração das circunstâncias em que a autora fundou a sua decisão de encomendar o vinho. O negócio deixou de fazer sentido. A autora não tinha possibilidade de revender as garrafas de vinho a uma companhia aérea que não podia / pode desenvolver a sua actividade comercial. Contudo a ré não procedeu à anulação da factura emitida e não devolveu o montante pago pela autora. No e-mail de resposta, de 25/03/2020, a ré limitou-se a ignorar o pedido de cancelamento da encomenda e aproveitou para informar que tinha disponível para levantamento as caixas de vinho. A 30/03/2020, a autora enviou uma nova comunicação para a ré a solicitar o cancelamento da encomenda, a anulação da factura e a devolução do preço. A ré voltou a ignorar o solicitado e a insistir pelo levantamento do vinho que entretanto tinha conseguido preparar, ou seja, parte da encomenda realizada pela autora. Caso se entenda que não estamos perante um caso de alteração substancial das circunstâncias, dever-se-á analisar a mora e o incumprimento do contrato por parte da ré: a ré não entregou o vinho com a maior brevidade possível. A ré apenas tinha preparado para entrega parte do vinho e isto apenas no dia 19/05/2020. Sendo que apenas uma parte da encomenda não teria qualquer utilidade para a autora, visto que a encomenda deveria ser exportada para Angola na sua totalidade. Na eventualidade da autora diligenciar no sentido de enviar as paletes de vinho para Angola teria de suportar os custos de duas entregas, pois a encomenda não estava preparada na data acordada, acarretando assim um aumento significativo do valor da entrega, pois trata-se do envio de bens frágeis, susceptíveis de se deteriorarem, para outro país…. outro continente. Para além disso, importa referir que: ao contrário do acordado entre as partes, a ré promoveu uma “prova de boca” do vinho que, supostamente, fora engarrafado, sem consultar previamente a autora. A prova do vinho encomendado deveria ter sido realizada na presença de um representante da autora – o que não aconteceu. A autora deveria ter sido informada da “prova de boca” para que pudesse fazer-se representar. Nem foi sequer comunicada à autora a data e a hora da recolha das amostras. Assim, a autora não reúne as informações necessárias para acreditar que as análises fornecidas pela ré correspondem ao vinho engarrafado. Com o cancelamento da encomenda realizada, a ré deveria ter anulado a factura M/29 e, em consequência, ter devolvido o montante pago pela autora. Mais à frente, na parte de direito, para além do que já foi dizendo, a autora acrescenta que os constrangimentos provocados pela pandemia do coronavírus (Covid-19), tornaram impossível a manutenção da actividade da TAAG e alteraram por completo a racio da base negocial. A ré estava obrigada a entregar o vinho; como a ré não tinha disponível para entregar todo vinho encomendado incorreu em mora; facto que, associado aos constrangimentos na circulação de pessoas e bens, provocados pela pandemia do coronavírus (Covis-19), acarretou a perda do interesse da encomenda realizada por parte da autora; a ré incorreu em incumprimento definitivo nos termos do artigo 808/1 do Código Civil.
A 11/01/2021, a ré contestou, aceitando parte dos factos alegados, mas impugnando os restantes, designadamente, por desconhecimento, se o destino do vinho comprado seria, efectivamente, o que lhe foi comunicado; alega uma série de factos tendentes a demonstrar que à data da celebração do contrato, já havia uma situação de emergência de saúde pública de âmbito internacional e anúncios de cancelamentos e suspensões de voos que permitiam à autora prever o que se iria passar; diz que, “neste contexto, concretamente em 09/03/2020, as partes celebraram […] o contrato [assumindo, assim, a autora, diz a ré mais à frente, os riscos da situação previsível] e, na sequência de solicitação da autora, em 09/03/2020, ré emitiu a factura M/28 que a autora pagou a 10/03/2020; tendo a autora advertido a ré que o vinho se destinava a exportação e, por isso, não estava sujeito a IVA, a factura M/28 foi anulada e emitida a factura M/29, excluindo o IVA; como a autora tinha pago a factura com o IVA, a ré devolveu-lhe o IVA em 17/03/2020, no valor de 1.642,37€; em 17/03/2020, pelas 12.06min, a ré informou a autora que já haviam sido levadas a cabo análises ao vinho vendido e que, aguardando-se o relatório, tinha já informação de que estava tudo “ok para viagem” e recordou que tinha prontas para entregar “7 paletes de vinho e 3 de branco, menos uma de cada” e que para proceder à preparação de mais uma palete de vinho tinto e mais uma palete de vinho branco “demoro alguns dias”, deixando à consideração da autora o levantamento imediato do vinho pronto ou o levantamento de toda a encomenda em “alguns dias” (vd. doc.3); no mesmo dia 17/03/2020, pelas 15.55h, a autora, através do sócio com o endereço electrónico c@gmail.com, pediu à ré o envio do comprovativo da devolução do IVA indevidamente pago, pedido que a ré correspondeu, pelas 16h34, do mesmo dia. E, no dia 18/03/2020, pelas 11h39, a ré enviou à autora o resultado das análises feitas, pedindo informação sobre o dia em que a encomenda seria levantada (cfr. doc.5). Apenas naquele dia 18/03/2020, mas pelas 19h25h, a autora enviou para a ré, adiantada por via electrónica, a carta datada de 17/03/2020, junta com a PI sob o n.º 5, nenhuma referência sendo feita a qualquer atraso na entrega da encomenda ou ao facto de se ter levado a cabo análises ao vinho (vd. doc. n.º 6). A autora nessa carta nunca chegou, sequer, a informar que, àquela data, o cliente final do vinho comprado tivesse cancelado a encomenda feita. Como não chega sequer a alegar – e menos ainda a provar – que apenas após e em decorrência da desistência do cliente final, manifestou intenção de resolver o contrato celebrado com a ré. Pelo que, em 25/03/2020, a ré, efectivamente, respondeu, reiterando que aguardava instruções sobre se deveria proceder ao enchimento das garrafas em falta ou se deveria proceder à devolução do valor correspondente àquelas duas paletes. Em 03/04/2020, a autora enviou à ré a carta datada de 31/03/2020, onde mais uma vez se constata que se refere em termos genéricos às consequências da pandemia, sem nunca alegar que houve uma encomenda cancelada ou qualquer incumprimento contratual da ré, mormente, qualquer atraso na entrega. Face à alegação infundada e contraditória nos seus próprios termos, de que deveria ser a ré a assegurar o transporte do vinho, ainda assim a ré informou, em 28/04/2020, que “com o exclusivo propósito de obviar a que [a autora] continue a usar sucessivos expedientes para se eximir ao pagamento do vinho comprado, estamos disponíveis para entregar [o vinho], nas vossas instalações (...) na medida em que nos confirmem, no prazo de 10 dias contínuos, essa vontade.” Em 28/05/2020, a autora apresentou a sua PI. Em 12/08/2020, após solicitação da autora, a ré entregou, ao transitário por aquela escolhido, [o vinho]. Excepciona, por isso, a inutilidade superveniente da lida, para além de concluir pela improcedência da acção, ou então pela modificação do contrato com redução equitativa do preço. E porque, até hoje, a autora nunca entregou à ré o comprovativo de exportação do vinho para fora do espaço comunitário, esta viu-se obrigada a entregar à Autoridade Tributária o IVA, no valor de 1.642,37€, encargo que deveria ter sido suportado pela autora, reconvém, contra a autora, o reembolso de tal IVA (com juros de mora vencidos e vincendos até cumprimento), com compensação de valores caso o contrato venha a ser modificado. Na parte de direito, para além de tudo o que já resulta do que antecede, a ré defende que a autora entrou em mora e que ela, ré, nunca chegou sequer a entrar em mora, pelo que a autora não pode invocar a perda do interesse na prestação, nem o seu incumprimento definitivo, para obter a resolução pretendida.
A autora (que foi notificada da reconvenção a 05/03/2021) replicou, impugnando, para além dos efeitos que a ré quer retirar deles, os factos base das excepções: para além de repetir o que já tinha dito na petição inicial (embora agora alegue que a encomenda que a autora havia solicitado foi cancelada pela TAAG e que a TAAG não tinha que informar a ré desse cancelamento e a autora não tinha que comprovar, perante a ré, a existência do negócio com a TAAG), acrescenta, quanto à entrega/inutilidade superveniente, que o vinho nunca foi entregue pela ré ou levantado pela autora, impugnando a guia de transporte invocada pela ré, doc.10, por desconhecimento, estando a ré a litigar de má-fé, tanto mais que a ré ora afirma que entregou a encomenda ao transitário escolhido pela autora, como diz que a autora procedeu em 12/08/2020, à recolha do vinho comprado; quanto à modificação do contrato, a autora recusa-a e diz, entre o mais, que tendo feito a encomenda em Fevereiro de 2020, não pode ser responsável por algo que vem sendo colocado em execução desde Junho de 2019 como pretende a ré, sendo que a ré sempre teria que ter os custos em causa e estes já estão englobados no preço; quanto à reconvenção, para além de impugnar o documento em que a ré se baseia para dizer que pagou o IVA, diz que não tem de reembolsar os 1.642,37€ de IVA à ré, pois que se ré tivesse atendido às diversas solicitações da autora para cancelar a encomenda, a ré não teria de pagar o IVA; por outro lado, a autora não entregou o comprovativo de exportação do vinho porque a aludida exportação nunca chegou a acontecer. A autora não impugnou os documentos 3, 5 e 8 apresentados pela ré.
Realizada a audiência final, foi depois proferida sentença julgando quer a acção quer a reconvenção improcedentes e absolvendo a ré dos pedidos feitos pela autora e a autora dos pedidos feitos pela ré.
A autora recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que julgue procedentes os pedidos por si deduzidos – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem, com os respectivos erros de alineação, quase na íntegra:
[…]
C. A sentença é nula, nos termos do artigo 615/1-b do CPC porque não especifica os fundamentos de facto que justificam a decisão, na medida em que considerou que o depoimento da testemunha H “manifestou incertezas em relação a documento pela mesma lavrado, quando é certo que tal não é compaginável, com a precisão de pormenores em outras questões que respondeu, designadamente que teria as caixas encomendadas na sua garagem, dado que lhe pediram para ali guardar, numa base de amizade, o que nem sequer faz qualquer sentido, se tivermos em consideração que o mesmo referiu que foi quem fez o negócio com a ré e, os outros sócios da autora”, sem indicar qual o documento a que se refere.
D. A sentença é nula nos termos do art. 615/1-c do CPC, por alguns dos fundamentos de factos dados como provados estarem em oposição directa com a decisão final […].
E. Foi considerado provado em 3 que “Com a celebração do acordo de compra e venda [do vinho], a autora informou a ré que os produtos a fornecer iriam ser revendidos [à TAAG], e que, por esse motivo, o prazo de entrega deveria ocorrer com a maior brevidade possível.”
F. E considerado como não provado em -9 que a encomenda haja sido entregue à empresa transitária, a TAAG.
A. O facto de a encomenda não ter sido entregue à autora deveria ser dado como provado.
B/C. Apesar de constar do despacho saneador, como tema da prova, mais precisamente no ponto 2, que “Se os produtos referidos em (C) acabaram por ser entregues a autora e, nesse caso, em que data e circunstâncias”, na decisão na parte relativa à matéria de facto, não se procedeu à apreciação daquele facto, não obstante a Srª juíza a quo fundamenta a sua decisão num facto que não consta do elenco dos factos provados e conclui dizendo que “seja como for, a verdade é que as garrafas não foram objecto de exportação pelo simples motivo de que não resultou provado a entrega das garrafas à autora.”
D. A falta de entrega da encomenda de vinho à autora era do conhecimento da testemunha V (ficheiro de gravação 2021/11/03 – 10h56m18 - em 03’00” a 03’36”).
E. Por sua vez, contrariamente ao [que foi dito] pela Srª Juíza a quo, a testemunha H foi bastante clara quando admitiu que a encomenda lhe foi entregue a si, e não à autora (ficheiro de gravação 2021/12/20 – 11h34m14 em 03’47” a 03’54”).
F. Nessa sequência, acaba por assumir que entre ele e uma das sócias da ré (a Srª S) existe uma relação próxima, de amizade, tendo recepcionado a encomenda de vinho em seu nome pessoal, e não em nome da autora (em 04’00” a 04’32”);
G. Ao que acrescenta, quando questionado acerca da localização do vinho à data da realização daquela sessão da audiência final, que o mesmo se encontra guardado na sua garagem (em 04’37” a 04’47” e 10’13” a 10’51”).
H. E acresce que, quando confrontada com o doc.10 junto com a contestação, a testemunha H assumiu que, no dia da entrega (12/08/2020), rasurou o nome da [autora] no campo do destinatário, substituindo-o pelo nome da empresa W4, sociedade de direito angolano, a qual, num momento inicial, era quem iria comprar o vinho à ré mas, por falta de liquidez financeira desta, a testemunha acabou por recorrer à autora (em 06’08” a 06’54”; 07’51” a 09’54” e 11’59” a 12’20”).
I. Pelo que, a encomenda feita e paga pela autora, que devia ser entregue à TAAG, foi entregue a essa testemunha, em nome daquela sociedade terceira, sem o conhecimento da autora.
J. E tal foi do conhecimento da ré, uma vez que conforme o depoimento da testemunha C, contabilista certificado ao serviço da ré, esta procedeu, a 01/09/2020, à emissão de uma segunda factura (n.º 36), referente ao mesmo vinho, a favor daquela empresa terceira (ficheiro de gravação 2021/11/03 – 11h06m33 em 11’57” a 12’26”).
K. O contrato de compra e venda é um contrato sinalagmático, onde o pagamento do preço pressupõe a entrega da coisa. No entanto, in casu, verificou-se o incumprimento contratual da ré ao não entregar a encomenda à autora.
L/M. Quanto à matéria considerada não provada, III - A TAAG –reduziu o número de voos diários, limitando apenas os voos a serviços especiais de apoio ao Serviço Nacional de Saúde e voos humanitários, no período referido em 8
N. a autora logra comprovar esse facto mediante de documento ilustrativa de uma notícia da PRESSTUR – Agência de notícias e turismo e da menção do Decreto Legislativo Presidencial Provisório de n.º 1/20, de 18/03/2020, aprovado pelo Presidente Angolano (doc.1 da réplica), o que torna a limitação do tráfego aéreo no espaço aéreo angolano um facto notório, de conhecimento público.
O. Tal não poderia ter sido desconsiderado pela Sr.ª juíza a quo, e esse facto não deveria ter sido dado como não provado.
P. Quanto ao facto -7 - Ao contrário do acordado entre as partes, a ré promoveu uma “prova de boca” do vinho que fora engarrafado, sem consultar previamente a autora que deveria ter sido realizada na presença de um representante da autora, o que não aconteceu.”  
Q. Do depoimento da testemunha H resulta que, entre a autora e a ré, havia ficado verbalmente acordado que o processo de “prova de boca” do vinho que faria parte da encomenda seria acompanhado pela autora e seria nas instalações da ré (ficheiro de gravação 2021/12/20 – 11h34m14 - em 19’41” a 20’30” e 34’54” a 35’21”).
R. Não se pode ainda conformar a autora com a sentença, na parte em que julgou não demonstrados os pressupostos do instituto da alteração superveniente das circunstâncias.
S. Como fundamento para tal entendimento a Srª Juíza a quo baseia-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
T. Acontece que esse acórdão debruça-se sobre uma situação diferente da dos presentes autos, verificou-se uma ligeira quebra na actividade da recorrente, na ordem dos 30%, a recorrente não se encontrou totalmente impossibilitada de exercer a sua actividade comercial como consequência do que alegava ser uma alteração superveniente das circunstâncias;
U. Ora, in casu, a autora tomou consciência que iria deixar de conseguir proceder à revenda do vinho à TAAG, sendo que foi apenas com esse intuito que procedeu à encomenda daquela quantidade de vinho;
V. A autora efectuou a encomenda em Fevereiro de 2020, e o seu pagamento a 09/03/2020;
W. No dia 11/03/2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença COVID-19 como pandemia;
X. Poucos dias depois, o Estado Português decretou o estado de alerta e estabeleceu um conjunto de medidas excepcionais, limitativas do direito de circulação de pessoas e bens pelo território nacional e internacional, através do DL 10-A/2020, de 13/03 e da Portaria 71-A/2020, de 15/03.
Y. Perante tudo isto, a autora remeteu à ré, por via e-mail, no dia 17/03/2020 uma carta onde declarava cancelar a encomenda de vinho, com fundamento na evidente alteração superveniente das circunstâncias na qual a autora assentou a sua decisão de contratar.
Z. Posteriormente, foi declarado estado de emergência nacional, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (Decreto do Presidente da República 14-A/2020, de 18/03).
AA. Por sua vez, o Despacho 3427-A/2020, de 18/03, interditou o tráfego aéreo a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia, com algumas excepções, com efeitos a partir das 24h do dia 18/03/2020, o que foi, posteriormente e sucessivamente, prorrogado.
BB. O Governo de Angola decidiu, no dia 18/03/2020, suspender todos os voos internacionais de/ para o país, como medida de contenção da disseminação do coronavírus.
CC. Assim, no entendimento da autora encontram-se preenchidos os pressupostos previstos pelo artigo 437/1 do CC, configurando os factos supra expostos uma situação de alteração superveniente das circunstâncias.
DD. Estando a autora, naturalmente, convicta, no momento da celebração do contrato, que a validade do contrato dependia de estarem reunidas todas as condições para que o vinho fosse revendido à TAAG, e que uma situação imprevisível iria pôr em causa o negócio, o negócio não se teria concretizado.
EE. A limitação da circulação de pessoas a bens, tanto ao nível nacional como internacional, bem como a restrição do número de voos efectuados pela companhia aérea TAAG, puseram em causa a revenda dos vinhos encomendados pela autora.
FF. Na alteração das circunstâncias subsequentes à celebração do contrato, a lei apenas atribui à parte lesada o direito à resolução ou modificação do contrato havendo uma alteração anormal, que se traduz no sacrifício que representa para a parte o cumprimento do contrato, muito para além do que esta poderia prever no momento da celebração do contrato, resultando numa inerente onerosidade excessiva.
GG. A resolução do contrato não implicaria qualquer sacrifício para a ré, pois esta facturou e entregou a mesma encomenda de vinho, em Agosto de 2020, a uma outra empresa (W4) (ficheiro de gravação 2021/11/03 – 11h06m33, em 11’57” a 12’26”);
HH. A resolução do contrato não implicaria para a ré qualquer sacrifício patrimonial (ou não patrimonial), dado que acabou por vender a mesma encomenda de vinho duas vezes, a duas entidades distintas.
II. Por outro lado, e como convoca a Srª juíza a quo, nos termos dos artigos 874 e 879 do CC, o contrato de compra e venda pressupõe, para a autora, a obrigação de pagamento do preço das garrafas de vinho encomendadas e, para a ré, a obrigação de entregar as referidas garradas.
JJ. Sucede que as garrafas de vinho não foram entregues à autora nem à transitária, mas à testemunha H, em nome da empresa W4.
KK. Assim, ao contrário do referido pela Srª juiza a quo, [se] a ré não entregou a encomenda à autora não foi por circunstância única e exclusivamente imputável a esta última, mas sim porque, quando entrou em contacto com a autora para proceder à entrega, apenas tinha pronta parte da encomenda, mais precisamente “7 paletes de tinto e 3 de branco”, quando pela autora foram encomendadas 400 caixas de 24 garrafas de vinho branco e 720 caixas de 24 garrafas de vinho tinto (cfr, documento 5 junto com a contestação).
LL. Aliás, esse facto, de que a ré não entregou a encomenda à autora “por circunstância única e exclusivamente imputável a esta última”, não foi alegado por nenhuma das partes, existindo excesso de pronuncia e, consequentemente, nulidade da sentença nos termos do art. 615/1-d do CPC.
MM. Sendo que, para a autora, era fundamental que o vinho fosse entregue todo ao mesmo tempo e na quantidade encomendada, como forma a garantir que o vinho fosse todo do mesmo lote, logo que tivesse a mesma qualidade, e ainda para evitar que fossem realizados dois transportes e evitar pagar duas vezes as taxas alfandegárias (ficheiro de gravação 2021/11/10 – 11h06m33 - em 11’57” a 12’26”).
A ré também recorreu, subordinadamente - para que a sentença, na parte que absolveu a autora do pedido reconvencional, seja revogada e substituída por outra que a condene -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, quando julgou provado [em 7] que “a ré procedeu à devolução à autora do montante do IVA pago com a factura M/28, no montante de 1.292,29€”.
B) Resulta dos documentos 2 a 4 juntos com a contestação que a autora devolveu à recorrida o IVA, no valor de 1.642,37€.
C) Valor que corresponde ainda à diferença entre o valor da factura 28 e o valor da factura 29, mencionadas nos pontos 4 e 6 da matéria de facto julgada provada.
D) E que corresponde precisamente à taxa de 13% prevista na verba 1.10 da Lista II do Anexo IV do CIVA aplicada ao valor de 12.633,60€;
E) Pelo que dos factos provados, ter-se-ia de ter feito constar que a ré procedeu à devolução à autora do montante do imposto pago, no montante de 1.642,37€ (não se vislumbrando em que prova poderia o tribunal ter estribado a conclusão de que o montante devolvido ascenderia a 1.292,29€).
F) Deixa, por isso, de fazer sentido a crítica inscrita na decisão recorrida de que “A divergência de valores, do montante do imposto devolvido à autora e o pago pela ré, é evidente.”
G) Pelo que deverá o tribunal ad quem, por força do previsto no art. 662/1 CPC, alterar a decisão sobre a matéria de facto, julgando provado que a ré procedeu à devolução à autora do montante do imposto pago com a factura 28, no montante de 1.642,37€.
H) Por outro lado, a sentença é, no segmento recorrido, nula, de harmonia com o previsto no art. 615/1-c do CPC, porquanto os respectivos fundamentos estão em directa contradição com a decisão tomada.
I) O IVA é um imposto indirecto, que assenta, nos termos do art. 37 do CIVA, no fenómeno de repercussão económica, que faz recair sobre os adquirentes dos bens, sem prejuízo de posteriores repercussões até ao consumidor final, o respectivo encargo.
J) A circunstância de a autora não ter, por motivos que apenas à própria podem ser imputados, recebido o vinho que adquiriu, não a exonera do pagamento do imposto aplicado sobre o preço que o tribunal a quo não teve dúvidas ser devido, por não se verificarem quaisquer fundamentos de resolução do contrato.
K) Pelo que decidindo, como se decidiu, que o imposto, no valor de 1.642,37€, era devido e foi entregue pela ré à Autoridade Tributária e, bem assim, que este não foi suportado pela autora, que é a adquirente dos bens, não poderia o tribunal a quo deixar de condenar a autora no pagamento à ré do montante correspondente ao IVA por esta suportado, o que corresponde ao pedido reconvencional deduzido.
A ré contra-alegou o recurso da autora – no sentido da: confirmação da decisão recorrida, sem prejuízo da apreciação do recurso subordinado; ampliação da matéria de facto provada, dela fazendo constar os factos vertidos na conclusão (c), e, conhecendo do litígio, julgar os pedidos deduzidos pela autora totalmente improcedentes; apenas assim não o entendendo, conhecendo do objecto do litígio, determinar a modificação do contrato, de acordo com os juízos de equidade -, começando por, ao abrigo do art. 636/2 do CPC, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pela autora, impugnar outros pontos da decisão da matéria de facto:
C) Face à prova documental coligida nos autos (vd. docs. 3, 5 e 8 juntos com a contestação) e que não foi impugnada pela autora, deverá a matéria de facto provada ser ampliada, dela se fazendo constar que:
Em 17/03/2020, a ré pediu confirmação à autora sobre se pretendia proceder ao levantamento imediato do vinho pronto ou se preferia proceder ao levantamento de toda a encomenda em “alguns dias”; em 18/03/2020, a ré pediu informação à autora sobre o dia em que a encomenda seria levantada; em 28/04/2020, a ré informou a autora que “com o exclusivo propósito de obviar a que a [autora] continue a usar sucessivos expedientes para se eximir ao pagamento do vinho comprado, estamos disponíveis para entregar as 400 caixas de singles branco (24 garrafas) e 720 caixas de singles tinto (24 garrafas), nas vossas instalações (...) na medida em que nos confirmem, no prazo de 10 dias contínuos, essa vontade.”
D) Factos que, à luz da obrigação de entrega das garrafas de vinho que onerava a ré, adquirem relevância para o conhecimento do objecto do litígio, porquanto permitem estabelecer a mora do credor, nos termos enunciados no art. 804/2 CC, e sustentar a conclusão extraída na decisão recorrida que a “mercadoria (...) nunca foi entregue à autora, por circunstância única e exclusivamente imputável a esta última”, porquanto “à data de 28/04/2020, a totalidade dos bens adquiridos pela autora estava disponível para entrega, entrega essa que não ocorreu, porque a autora decidiu cancelar tal encomenda em 17/03/2020, com fundamento na situação de pandemia decorrente do coronavírus (Covid 19).”
Quanto ao mais, a ré sintetiza assim as suas contra-alegações:
E) No segmento decisório relativo à motivação da matéria de facto julgada provada, consignou o tribunal a quo que “Por seu turno, o depoimento da testemunha H, que conhece a autora por ser sócio da mesma e, que conhece a ré no âmbito de relações comerciais, não foi credível, porquanto esta testemunha pautou o seu depoimento por hesitações incompreensíveis, chegando inclusive ao ponto de referir que quando fez o negócio com a ré, a autora não existia. Porém, o certo é que nenhuma das partes veio sequer colocar em crise que tivesse existido o negócio entre a autora e a ré, enquanto pessoas colectivas. Acresce ainda, que ao longo do seu depoimento, esta testemunha manifestou incertezas em relação a documento pela mesma lavrado quando é certo que tal não é compaginável, com a precisão de pormenores em outras questões que respondeu, designadamente que teria as caixas encomendadas na sua garagem, dado que lhe pediram para ali guardar, numa base de amizade, o que nem sequer faz sentido, se tivermos em consideração que o mesmo referiu que foi quem fez o negócio com a ré e os outros sócios da autora.”
F) Alega a autora que a sentença é nula, nos termos enunciado no art. 615/1-b do CPC, na medida em que não especifica qual o documento lavrado pela testemunha relativamente ao qual esta manifestou incertezas incompatíveis com a precisão de pormenores em outras questões que respondeu.
G) É evidente que o documento em causa é aquele com o qual a testemunha foi confrontada aos minutos 21.45 – 22.57 do ficheiro 11h34m14.
H) As “hesitações incompreensíveis” referidas na sentença recorrida foram, porém, evidentes desde interrogatório preliminar, quando a testemunha, que renunciou à gerência da autora, disse não conseguir dizer se é seu sócio ou se é sócio-gerente (vd. minutos 0.33 a 1.55).
I) Tendo a testemunha alegado ainda desconhecer que é, ainda hoje, o sócio maioritário da autora (vd. minutos 10.50 a 11.28).
J) E se, quando encomendou o vinho à ré, seria gerente da autora (vd. minutos 12.20 a 12.33).
K) Pelo que bem andou o tribunal a quo quando concluiu que o depoimento da testemunha H não merece credibilidade.
L) A violação da obrigação de discriminar os factos que considera e de declarar, na fundamentação, quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência, prevista nos n.º 3 e 4 do art. 607 do CPC, concretizando a injunção inscrita no art. 205/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), apenas é sancionada com a nulidade prevista no art. 615/1-.b do CPC “quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e não na motivação deficiente, medíocre ou errada” – vd, por todos, o acórdão do STJ, no proc. 3413/03.2YYLSB-A.L1-B.S1.
M) Ora, a decisão recorrida não padece de “total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão”, porquanto justifica a desqualificação do depoimento da testemunha H com o facto deste se ter pautado por hesitações incompreensíveis que redundaram na negação de factos assentes por acordo das partes e na alegação de desconhecimento de factos pessoais.
N) Pelo que a arguição da nulidade prevista no art. 615/1-b do CPC é, manifestamente, improcedente.
O) Argui depois a autora a nulidade da sentença, com fundamento no art. 615/1-c do CPC, com o argumento, parece, que a decisão de absolvição da ré dos pedidos deduzidos em juízo está em directa contradição com o facto de o tribunal não ter julgado provado que a ré tivesse entregado o vinho encomendado a transitário indicado pela autora.
P) No entanto, a circunstância de não se ter logrado provar que o vinho foi entregue à autora – porquanto o seu sócio maioritário alega que o recebeu “como indivíduo” e não como “participante no... como indivíduo colectivo” (vd. minutos 31.50 a 33.40) – não implica forçosamente a conclusão de que a autora tem direito à resolução do contrato e consequente devolução do preço, como pretende.
Q) Apenas se a omissão de entrega do vinho adquirido pela autora fosse imputável à ré e, por isso, fundamento para a resolução do contrato de compra e venda, haveria contradição entre os fundamentos e a decisão.
R) No entanto, não é isso que decorre da decisão recorrida, que imputa, isso sim, à autora a circunstância de o vinho não lhe ter sido entregue, porquanto não o levantou e optou por, sem fundamento, resolver o contrato com base numa alegada, mas inexistente, alteração superveniente das circunstâncias relacionada com a pandemia da Covid-19.
S) Pelo que vem dito, improcede também esta arguição de nulidade, com fundamento na alegada contradição entre a decisão de absolvição da ré do pedido e o facto de não se ter julgado provado que o vinho comprado foi entregue à autora, pois o juízo quanto à matéria de facto não impunha necessariamente, como pretende a autora, decisão em sentido diverso.
T) Alega, ainda, a autora a nulidade da sentença, com fundamento no art. 615/1-d do CPC, por excesso de pronúncia, quando imputa a responsabilidade pela omissão de entrega do vinho encomendado à autora e por, alegadamente, esta circunstância não estar alegada nos autos.
U) No entanto, nos arts. 59 a 61 e 67 a 73 da sua contestação, em segmento que intitulou de “(A) A mora do credor”, a ré alegou, precisamente, que: a) previamente à sua entrega ao sócio maioritário da [autora] (o que aconteceu já na pendência dos presentes autos) e antes mesmo do envio de comunicação da autora pela qual esta pretendeu resolver o contrato, já a ré havia, sem sucesso, pedido instruções à credora sobre a oportunidade do levantamento do vinho nas suas instalações, não tendo esta praticado os actos necessários ao cumprimento da obrigação de entrega do mesmo; e b) a autora, inclusivamente, recusou a prestação, quando informada pela ré que “com o exclusivo propósito de obviar a que a [autora] continue a usar sucessivos expedientes para se eximir ao pagamento do vinho comprado” estaria na disposição de entregar as 400 caixas de singles branco (24 garrafas) e 720 caixas de singles tinto (24 garrafas), nas suas respectivas instalações.
V) Entende depois a autora que deveria o tribunal a quo ter julgado provado que a TAAG reduziu o número de voos diários, limitando apenas os voos a serviços especiais de apoio ao Serviço Nacional e Saúde e voos humanitários, no período referido em 8 (ponto III), com base no documento 1 que juntou com a PI e no Decreto Legislativo Presidencial Provisório 1/20, de 18/03.
W) No entanto, sempre se dirá que, ainda que provado, este facto seria irrelevante porquanto: i) a circunstância de o número de voos diários realizados pela TAAG ter sido, transitoriamente, reduzido, não permite extrair a conclusão de que o negócio que a autora terá projectado com aquela companhia aérea se teria tornado inviável; ii) O negócio controvertido, entre a autora e a ré, não ficou sujeito a qualquer condição resolutiva, designadamente nunca se previu (nem, por isso, ficou provado) que, caso o negócio da autora com a TAAG não se viesse a realizar, o contrato de compra e venda ficaria sem efeito; e iii) como bem se disse na decisão recorrida, a autora poderia, no âmbito da sua actividade comercial, dar qualquer outro destino ao vinho, sendo a ré alheia às suas opções comerciais.
X) Acresce que, caso fosse de atender ao depoimento da testemunha H, como aparentemente pretende a autora quando alega a nulidade da sentença com fundamento no art. 615/1-b do CPC, na verdade, aos minutos 24.28 – a 26.18 e aos minutos 29.00 – 30.20, a testemunha diz, taxativamente, que quando a autora tenta resolver o contrato, a TAAG não havia cancelado a encomenda.
Y) Ou seja, considerando que a encomenda da TAAG não foi sequer cancelada é, absolutamente irrelevante, se aquela companhia aérea reduziu, ou não e por quanto tempo, os voos diários.
Z) Entende ainda a autora que deveria ter sido julgado provado que “Ao contrário do acordado entre as partes, a ré promoveu uma “prova de boca” do vinho que fora engarrafado, sem consultar previamente o autora, que deveria ter sido realizada na presença de um representante da autora, o que não aconteceu.” (facto 7 não provado).
AA) No entanto, também aqui a única prova foi o depoimento da testemunha H, que, bem, foi considerado totalmente desprovido de credibilidade, tendo a testemunha, em todo o caso, apenas conseguido afirmar nos últimos 1.22 minutos que “Ah... No fundo, acho que havia um entendimento verbal, quando nós almoçámos, que esse processo seria acompanhado, inclusive de uma visita lá ao estabelecimento. Vale o que vale...”.
BB) Pelo que, bem andou o tribunal a quo quando julgou não provado o facto atrás enunciado e que, em todo o caso, nunca seria fundamento para a resolução do contrato, porquanto a autora sempre poderia ter pedido que se repetissem as análises na sua presença, o que nunca fez.
CC) Por último, insurge-se a autora contra a aplicação do direito, imputando à sentença recorrida erro de julgamento, na medida em que entendeu que não se verifica, in casu, uma alteração superveniente das circunstâncias, nos termos e para os efeitos previstos no art. 437 CC.
DD) Manda o art. 437/1 do CC que, se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, a parte lesada tem direito à resolução do contrato ou à sua modificação segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
EE) É absolutamente inusitado que a autora pretenda socorrer-se do instituto da alteração anormal e superveniente das circunstâncias quando não alega (porque não pode) e muito menos prova que a TAAG sequer tenha cancelado a encomenda do vinho que comprou à ré.
FF) Sucede que, como ensina a melhor doutrina, é de desaplicar o regime da alteração anormal e superveniente das circunstâncias a contextos adversos transversais (como sejam as grandes crises económicas mundiais ou pandemias), na medida em que estes, afectando toda a sociedade, deixam de ser “anormais” para ser, ainda que transitoriamente, uma “nova normalidade” e, assim, a revisão de todos os negócios impactados por esta “grande alteração das circunstâncias” não seria compatível com a estabilidade que a vida jurídica exige.
GG) Basta pensar que, procedesse o pedido da autora, e ter-se-ia de aceitar que a ré invocasse idêntico argumento para resolver todos os contratos celebrados, a montante, com os seus próprios fornecedores de matérias-primas...;
HH) Em todo o caso, em 09/03/2020 (quando as partes formalizaram o negócio) e em 10/03/2020 (quando a autora procedeu ao pagamento do preço), era já absolutamente evidente que o novo coronavírus teria um impacto relevantíssimo nas deslocações internacionais (algumas já suspensas), tendo, no dia seguinte, sido declarada a pandemia da COVID-19.
II) Basta pensar que, em 05/03/2020, a TAP Air Portugal já havia anunciado que iria cancelar mais de mil voos em março e abril e cancelar e suspender investimentos.
JJ) Significando que, na eventualidade de a autora não ter ponderado o impacto da doença da COVID-19 no seu negócio (importação/exportação) sibi imputet, porquanto este era já absolutamente previsível.
KK) De facto, as circunstâncias existentes quando as partes tomaram a decisão de contratar eram aptas a permitir ao operador diligente antecipar o risco associado à exportação da mercadoria adquirida e, em particular, à (re)venda da mercadoria a uma companhia aérea.
LL) Ora, o critério da “anormalidade” prende-se com a imprevisibilidade do evento ocorrido, pretendendo-se acautelar apenas circunstâncias supervenientes que as partes não pudessem antecipar aquando da conclusão do negócio.
MM) No caso, a diminuição de voos e supressão de rotas era já uma realidade em 09/03/2020, pelo que, admitindo que o destinatário final do vinho era uma transportadora aérea e que a autora possa não ter previsto a perda de interesse desta no negócio, não deixa de ser evidente que esse risco era previsível e, por isso, deveria, de facto, ter sido previsto pela autora.
NN) Dito de outro modo, ao assumir a opção comercial de adquirir vinho que tinha como alegado destinatário uma companhia aérea, no contexto de emergência de saúde pública de âmbito internacional, a autora incorporou a perda do negócio nos riscos próprios do contrato celebrado, excluindo assim a aplicação do regime da alteração superveniente das circunstâncias.
OO) Nesse sentido, veja-se, por todos, o ac. do STJ de 27/01/2015, proc. 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, onde se consignou relativamente ao requisito da imprevisibilidade que “O recorrente, ao contratar nos termos em que o fez com a instituição bancária exequente, fundou a sua decisão num ambiente económico e financeiro muito instável, conhecendo as condições que a instituição bancária oferecia e aceitando-as, sabendo da extensão do contrato (...) não podendo, pois, (...) ignorar que o país já se encontrava em crise financeira, com degradação das condições económicas de grande parte da população”.
PP) E quanto ao requisito da anormalidade se afirmou: “crise que o afectou como o comum dos cidadãos e, por tal, não se pode considerar anómala, imprevista, como factor com que ninguém poderia contar sendo coeva da vinculação contratual e, muito previsivelmente, futura.” – idem.
QQ) Acresce que não é qualquer alteração anormal das circunstâncias que dá lugar à resolução ou modificação do contrato, mas apenas aquelas face às quais a exigência do cumprimento das obrigações assumidas afronte gravemente os princípios da boa fé.
RR) Ora, a resolução do contrato celebrado entre as partes – ou a sua modificação de acordo com critérios de equidade, que fosse - seria, isso sim, gravemente ofensiva do princípio da boa fé.
SS) De facto, mal se compreenderia que, tendo a autora assumido, no contexto da sua actividade comercial, o risco de contratar o fornecimento de bens consumíveis a uma transportadora aérea quando são já evidentes dos impactos da COVID-19 no sector, repercutisse depois o risco das suas opções de negócio sobre a ré, que nunca assumiu essa opção comercial.
TT) Pelo que, manifestamente, improcede a alegação de que se produziu uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que as partes tomaram a decisão de contratar tutelada pelo art. 437 do CC.
A autora respondeu o seguinte ao recurso da ré (transcreve-se a síntese que a autora fez das suas contra-alegações):
A) Em 10/03/2020, a autora liquidou a FT M/28, no montante de 14.275,97€, que incluía o valor de 1.642,37€ referente ao IVA (cfr. doc. 1 junto pela ré com a sua contestação).
B) A encomenda objecto da aludida factura destinava-se a ser exportada para Angola, sendo aplicável a isenção do IVA prevista no artigo 14/1-a do Código do IVA.
C) Por essa razão, a ré procedeu à anulação daquela factura e emitiu uma nova factura (M/29), sem o valor do IVA, e procedeu à devolução do montante de 1.642,37€ à autora.
D) O IVA, enquanto imposto geral sobre o consumo, incide sobre as operações económicas, designadamente actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, nos termos do artigo 1 do CIVA.
E) E nos termos do artigo 4/1 do CIVA, são consideradas prestações de serviços, designadamente, as operações efectuadas a título oneroso que não constituam transmissões, importações ou aquisições intracomunitárias de bens.
F) Enquanto imposto aplicável às actividades económicas de bens de consumo ou de prestações de serviços, o IVA [pressupõe] a existência de uma contraprestação associada a uma transmissão de bens ou a uma prestação de serviços, enquanto expressão de uma actividade económica.
G) Ora, a exportação da encomenda de vinho para Angola não se concretizou, pois a encomenda de vinho não foi entregue à autora, mas a um terceiro, em representação de uma outra empresa (W4), com quem a autora não tem qualquer relação comercial nem de outra natureza, conforme se retira do depoimento da testemunha H (em 03’47” a 03’54”; 06’08” a 06’54”; 07’51” a 09’54” e 11’59” a 12’20”).
H) Deste modo, não impende sobre a autora a obrigação de proceder à devolução do montante de 1.642,37€, uma vez que, em circunstâncias normais a autora teria procedido à exportação da encomenda de vinho para Angola, ou seja, para fora do espaço comunitário, e seria aplicável a isenção de IVA, e que sem a mercadoria lhe fosse entregue, a autora nunca poderia proceder à sua exportação.
*
Os factos provados são os seguintes (a rasura e acrescento em itálico no facto 7 e os factos 9-A a 9-C e 13 resultam da decisão da impugnação da matéria de facto):
1. A autora é uma sociedade por quotas que dedica a sua actividade profissional à importação e exportação de vinhos e bebidas alcoólicas, importação e exportação de bebidas não alcoólicas e à importação e exportação de produtos alimentares.
2. A autora, em Fevereiro de 2020, entrou em contacto com a ré, para encomendar 400 caixas de 24 garrafas de vinho branco e 720 caixas de 24 garrafas de vinho tinto.
3. Com a celebração do acordo de compra e venda dessas caixas de vinho, a autora informou a ré que os produtos a fornecer iriam ser revendidos a uma companhia aérea, TAAG, e que, por esse motivo, o prazo de entrega deveria ocorrer com a maior brevidade possível.
4. Para efeitos do pagamento da encomenda referida em 2, a ré emitiu a factura M/28 em nome da autora no montante de 14.275,97€.
5. Tendo a autora liquidado o montante referido em 4 no dia 09/03/2020.
6. No dia 09/03/2020, a ré anulou a factura M/28 e emitiu uma nova factura (M/29), no montante de 12.633,60€, sem o montante do imposto de valor acrescentado, visto que os produtos a fornecer seriam para revender em Luanda, Angola.
7. A ré procedeu à devolução do montante do IVA pago com a factura M/28, no montante de 1.292,29€ 1642,37€.
8. De carta datada de 17/03/2020, remetida pela autora à ré e, por esta recebida, consta:
Assunto: Anulação de Encomenda – COVID 19
Exmos Senhores,
Vimos pelo presente, na qualidade de gerentes da [autora], e no seguimento do panorama de emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarado pela Organização Mundial de Saúde, expor e requerer junto de V. Exas. o seguinte:
Conforme é do V/ conhecimento, face à situação de pandemia e à rápida evolução da propagação do novo CORONAVÍRUS - COVID 19, o Estado português decretou estado de alerta e, em consequência, estabeleceu um conjunto de medidas excepcionais e temporárias, conforme se verifica através da análise do DL 10-A/2020 de 13/03 e da Portaria 71-A/2020, de 05/03.
Neste sentido, considerando a exponencial propagação do vírus, foi solicitado à população portuguesa que permanecesse nas suas habitações, o que reduz significativamente a circulação de pessoas e de bens pelo território nacional e internacional.
Sendo certo que, a circulação de pessoas para território internacional só poderá ser efectuada a título excepcional.
Além disso, o panorama de pandemia internacional acarreta um conjunto de constrangimentos económicos que retraem o desenvolvimento e o crescimento económico das empresas, facto que reduz a capacidade de resposta destas.
Acresce que, conforme é do V/ conhecimento a encomenda tinha como destino final Angola, mais concretamente, a companhia aérea angolana TAAG. Tudo o que ficou acima exposto relativo à pandemia COVID-19 atinge proporções muito mais críticas no sector do transporte aéreo, motivo pelo qual ficou totalmente comprometido o fornecimento solicitado.
Desta forma, a situação actual consubstancia uma alteração substancial das circunstâncias em que solicitámos a V. Exas 10 paletes de vinho, pelo que desde já se requer que se dignem dar sem efeito a encomenda realizada e, consequentemente, que procedam à anulação da factura M/28 e efectuem a devolução do valor pago para o IBAN […].”.
9. A ré não procedeu à anulação da factura M/29 e não devolveu o montante pago pela autora.
9-A. A 18/03/2020 foi publicado no DR de Angola um Decreto legislativo de cujo preâmbulo consta: “Considerando que foi declarada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde a infecção causada pelo vírus COVID-19, […] Tornando-se necessário tomar medidas urgentes em defesa do interesse público […] O Presidente da República decreta […], o seguinte: ARTIGO 1.º (Circulação fronteiriça) 1. São suspensos a partir das 0:00 (zero) horas do dia 20 de Março de 2020 todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa por 15 (quinze) dias, prorrogáveis por igual período de tempo, em função do comportamento global da pandemia do COVID-19. 2. O disposto no número anterior não abrange os voos de carga, nem aqueles que sejam indispensáveis por razões humanitárias ou que estejam ao serviço da execução da política externa de Angola.”
9-B. Num email de 17/03/2020, 12:06, a ré escreveu para a autora: 
Ponto situação W
Para n@gotv.pt • c@gmail.com
Bom dia,
Aguardo que me enviem os resultados das analises via electrónica, que já me foi comunicado que está tudo ok para viagem.
Enquanto isso, tenho prontas a entregar 7 paletas de tinto e 3 de branco, menos uma de cada. Posso ir encher, mas demoro uns dias e, nesta altura se calhar é melhor enviar já e ficar crédito para a próxima encomenda.
Digam-me quando querem recolher, para poder estar lá e acompanhar todo o processo.
9-C. Num email de 18/03/2020, 11:39, a ré escreveu para a autora:
Re: Ponto situação W
Para n@gotv.pt • c@gmail.com
Bom dia,
Seguem as análises
Já é possível apontar um dia de recolha?
10. A ré respondeu à comunicação referida em 8, por e-mail, no dia 25/03/2020, nos termos constantes de fl. 11 dos autos que se dá por reproduzido [e que este TRL transcreve agora]:
Exmos srs.
Vimos pela presente comunicação responder à vossa comunicação de 17 de Março, por email.
Estando perfeitamente cientes dos efeitos da pandemia COVID-19 no mundo, a nível pessoal e profissional, estes só se verificaram em Portugal em termos de isolamento a dia 18 de Março e, em Angola ainda não foram decretadas medidas semelhantes. Mesmo com estas medidas, todos os meios de transporte estão operacionais para Angola e, a TAAG continua a operar, embora com menos destinos.
Da parte do comprador não existiu qualquer sinal de cancelamento da encomenda, que tenhamos conhecimento, só de uma possível redução do consumo durante os efeitos da pandemia na aviação, a partir da segunda encomenda.
Somos uma microempresa, que tem esta encomenda em casa desde que a recebemos, pelo que tivemos de contrair dívidas a nível de compra de produto, matérias secas (garrafas, rótulos, cápsulas), certificação da CVR, pagamento de ordenados e armazenamento, desde Junho de 2019. Como honrados que somos, a primeira coisa a fazer é liquidar todas as dívidas junto dos fornecedores, de forma a podermos continuar a contar com o apoio deles futuramente.
Voltamos a referir que a encomenda está pronta e, pautando pela qualidade, promovemos uma "prova de boca" e análises laboratoriais, de forma a garantir que o vinho está nas mais perfeitas condições, análises essas que vos foram remetidas e o resultado comunicado de forma antecipada, quando solicitamos a recolha da encomenda nas nossas instalações, no dia 9 de Março.
A encomenda são 8 paletes de tinto e 4 de branco. Voltamos a referir que temos prontas a entregar 7 paletes de tinto e 3 de branco. Como foi comunicado, podemos encher o vinho restante (que poderá atrasar a entregar, face às contingências do COVID 19) ou proceder à devolução monetária destas 2 paletes.
Aguardamos o vosso feedback tão breve quanto possível, em relação a data de levantamento da encomenda e como proceder em relação às 2 paletes.
Ao dispor,
S
11. A ré remeteu à autora a comunicação de fl. 44v que se dá por reproduzida [e que este TRL transcreve agora]:
S@.pt 28/4/2020 11:34
Fatura n.º 29 de 09/03/2020
Para U c@gmail.com • S@gmail.com Cópia N@gotv.pt • p@f.pt Cópia oculta sv©netcabo.pt
Exmos. Senhores,
Na sequência da diversa correspondência mantida, somos a reiterar que, desde 9 de março último, que se encontram à V/disposição, nas nossas instalações, conforme informação feita constar na factura n.º 29, de 09/03/2020, 400 Caixas de Singles Branco (24 garrafas) e 400 Caixas de Singles Tinto (24 garrafas).
Como é do Vosso conhecimento, o vinho comprado por V. Exas. deve ser levantado na morada que vos foi, reiteradamente, comunicada, a última das vezes no próprio dia 9 de março, ou seja: Estrada …, … Cartaxo.
Quer isto dizer que, desde aquela data e não tendo ainda a [autora] respondido às nossas sucessivas interpelações para que procedam ao levantamento da mercadoria das nossas instalações, se encontram V. Exas em mora.
Em todo o caso reiterando tudo o que acima ficou dito, somos a informar que, com o exclusivo propósito de obviar a que a [autora] continue a usar sucessivos expedientes para se eximir ao pagamento do vinho comprado, estamos disponíveis para entregar as 400 Caixas de Singles Branco (24 garrafas) e 720 Caixas de Singles Tinto (24 garrafas) nas vossas instalações, na medida em que nos confirmem no prazo de 10 dias contínuos essa vontade.
Findo aquele prazo sem que tenham procedido ao levantamento do vinho ou confirmado o interesse em recebê-lo na morada acima mencionada, a [a ré] não deixará de cobrar à [autora] os custos de armazenamento do vinho vendido e a que respeita a factura 29, desde 09/03/2020.
12. A ré entregou à autoridade tributária o IVA de que é sujeito passivo a autora, no valor de 1.642,37€.
13. A 12/08/2020, a ré enviou a encomenda em nome da autora para aquele que tinha sido sócio-gerente da autora (não se podendo dizer que soubesse que ele já não o era) e continuava a ser seu sócio maioritário, H, o qual, ao recebê-la, riscou o nome da autora no lugar do destinatário da guia de transporte e escreveu o nome da W4.
14. A autora, até hoje, não entregou à ré o comprovativo da exportação do vinho para fora do espaço comunitário [facto acrescentado ao abrigo dos artigos 587/1, 574/2, 663/2 e 607/4, todos do CPC, por admitido por acordo por falta de impugnação - TRL].
*
A fundamentação de direito da sentença recorrida
A sentença recorrida, depois de referir, de novo, os factos provados, diz:
Acresce, ainda, dos factos, que à data de 09/03/2020 (cfr. fl. 11 do autos), a ré já dispunha de parte da encomenda para entrega à autora e que, à data de 28/04/2020 (cfr. fl. 44 verso dos autos) a encomenda estava, na íntegra, disponível para entrega à autora, mercadoria essa que nunca foi entregue à autora, por circunstância única e exclusivamente imputável a esta última.
E depois continua [transcreve-se com algumas simplificações]:
[Ou seja,] entre autora e ré foi celebrado um contrato de compra e venda de 400 + 720 caixas de vinho, as quais se destinavam a revenda, contrato esse implica para a adquirente/autora, a obrigação de pagar o preço e, para a ré, a obrigação de entregar à autora as caixas – cfr. artigos 874 e 879 do Código Civil.
Não foi estabelecido qualquer prazo de entrega das mercadorias, limitando-se, neste âmbito considerado, a que fosse com a “brevidade possível”.
Tendo em consideração que o acordo foi celebrado em Fevereiro de 2020 e que, em 09/03/2020, o pagamento do preço devido foi efectuado e que nessa data parte da encomenda estava disponível para entrega, a qual só não se verificou porque a autora não diligenciou no sentido de receber a mercadoria e que, à data de 28/04/2020, a totalidade dos bens adquiridos pela autora estava disponível para entrega, entrega essa não ocorreu, porque a autora decidiu cancelar tal encomenda em 17/03/2020, com fundamento na situação de pandemia decorrente do Coronavírus (Covid 19), o que na sua perspectiva integra uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, importa aferir se tal circunstancialismo constitui fundamento eficaz para resolver o contrato de compra e venda em apreço, dado que o cancelamento comunicado pela autora integra efectivamente uma resolução daquele contrato pela mesma.
Dispõe o artigo 436 do CC que “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.”
Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/7/2007, processo 648/2007-1, “[p]ara que a alteração das circunstâncias pressupostas pelos contraentes conduza à resolução do contrato ou à modificação do respectivo conteúdo, exige o artigo 437 que se achem reunidos cumulativamente os seguintes requisitos: a) que a alteração considerada relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, isto é, a circunstâncias que, ainda que não determinantes para ambas as partes, se apresentem como evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, que se encontrem na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade - «como representação mental ou psicológica comum patente nas negociações (base subjectiva), ou condicionalismo objectivo apenas implícito, porque essencial ao sentido e aos resultados do contrato celebrado (base objectiva); b) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, isto é, imprevisível ou, ainda que previsível, afectando o equilíbrio do contrato; c) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, quer porque se tenha tornado demasiado onerosa, numa perspectiva económica, a prestação de uma das partes (conquanto não exija que a alteração das circunstâncias coloque a parte numa situação de ruína económica, a manter-se incólume o contrato) quer porque a alteração das circunstâncias envolva, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial; d) que a manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa fé negocial; e) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprio do contrato, isto é, que a alteração anómala das circunstâncias não esteja compreendida na álea própria do contrato, isto é nas suas flutuações normais ou finalidade ou nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado.”
Em primeiro lugar, dúvidas não subsistem [que] à data de Fevereiro de 2020, data em que as partes celebraram o referido contrato, o estado de emergência em matéria de saúde pública (pandemia) já havia sido decretado pela Organização Mundial de Saúde, sendo um facto público, notório e do conhecimento geral e, por essa razão, do conhecimento de ambas as partes e, desde então, não houve uma alteração anormal nessa circunstância.
É certo e é público e notório que houve lugar a restrições na circulação de pessoas e bens, decorrente desse estado de emergência, mas também não é menos certo que esse estado de emergência era uma realidade presente à data da celebração e execução do contrato e, por essa razão, não [era] imprevisível.
Em segundo lugar, à luz do que se deixa expresso, conferir-se o direito à resolução de todos a todos negócios jurídicos de cariz comercial celebrados nesse período (Fevereiro, Março e Abril de 2020), manifestamente ofende os mais elementares ditames da boa-fé, porquanto traduzir-se-ia em fazer repercutir os efeitos económicos danosos dessa circunstância, apenas numa das partes contraentes, o que não se verifica com a manutenção do contrato, dado que o negócio em causa foi apenas celebrado entre autora e ré e sempre a autora poderia dar o destino que melhor entendesse aos produtos por si adquiridos, sem que a ré pudesse ou sequer tivesse possibilidade de interferir.
Daí que, desde já, ter-se-á que afirmar que não houve lugar a qualquer alteração anormal de circunstâncias entre o momento da celebração do contrato e a execução do mesmo.
O estado de emergência já havia sido decretado e manteve-se, acarretando limitação de circulação de pessoas e bens, com vista a conter a propagação do vírus.
Alega a autora que a companhia aérea a que se destinavam para revenda as garrafas de vinho, reduziu os voos decorrente da situação pandémica.
Porém, a verdade é que tal factualidade não resultou provada e o ónus da prova da mesma impendia sobre a autora – cfr. artigo 342/1 do CC.
De todo o modo, o certo é que ainda que tivesse havido lugar à redução de voos, tal circunstância seria de todo irrelevante, dado que o negócio foi celebrado apenas entre autora e ré, não impendendo sobre a ré, qualquer obrigação em relação a essa companhia aérea, cingindo-se apenas ao estrito âmbito das relações comerciais estabelecidas entre autora e essa companhia.
Daí que haverá que concluir que a resolução operada pela autora não é válida à luz do disposto no artigo 437 do CC, por não se verificarem os requisitos de que depende a sua validade e, por essa razão, sem mais considerações, por despiciendas, as pretensões da autora terão de improceder a sua totalidade.
Quanto ao pedido reconvencional deduzido pela ré, também o mesmo não poderá proceder.
Não há dúvidas que a ré entregou à autoridade tributária o IVA de que é sujeito passivo a autora, no valor de 1.642,37€.
Mas também não há dúvidas que resultou provado que no dia 09/03/ 2020, a ré anulou a factura M/28 e emitiu uma nova factura (M/29), no montante de 12.633,60€, sem o montante do IVA, visto que os produtos a fornecer seriam para revender em Luanda, Angola.
E a ré procedeu à devolução à autora do montante do IVA pago com a factura M/28, no montante de 1.292,29€.
A divergência de valores, do montante do imposto devolvido à autora e, o pago pela ré, é evidente.
Seja como for, a verdade é que as garrafas não foram objecto de exportação, pelo simples motivo de que não resultou provada a entrega das garrafas à autora.
Acresce que a relação comercial, sujeita a tributação, foi entre autora e ré, ambas sociedades portuguesas e, por essa razão as transacções comerciais entre as mesmas estão sujeitas ao regime de IVA – cfr. artigo 1/-a do CIVA.
Assim, o IVA liquidado, foi bem liquidado, nada havendo a restituir neste âmbito considerado.
Logo, a ré liquidou e bem, conforme lhe incumbia, o IVA correspondente a tal transacção comercial.
Donde, terá de improceder, in totum, o pedido reconvencional deduzido pela ré.
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Posto isto,
Das nulidades
Está dito e redito que os fundamentos de facto a que o art. 615/1-b do CPC se refere, são os factos e não a fundamentação da decisão de facto e que desta trata o art. 662/2-d do CPC, pelo que o que a autora diz na 1.ª conclusão C nada tem a ver com nulidades da sentença (a este mesmo resultado chega a ré nas sínteses E e L a N das suas contra-alegações, embora depois desenvolva o assunto e dê resposta substancial à autora nas sínteses F a K).
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Nas conclusões D a F (originais) e B/C (duplicadas) e K, a autora argui – de forma errada devido à omissão (i-a) de ligações entre as conclusões ou (i-b) de conclusões, de que é um sintoma o erro de alineação, e à (ii) utilização das mesmas conclusões para argumentações diferentes - a nulidade da sentença, nos termos explicitados pela ré na síntese O e com resposta nas sínteses P a S.
Pretende a autora dizer que a sentença é nula por oposição directa entre os fundamentos de facto e aquela que foi a decisão final proferida – art. 615/1-c do CPC. Isto porque a sentença disse que as garrafas não foram exportadas porque não resultou provada a entrega das garrafas à autora, mas apesar disso julgou a acção improcedente.
Mas é evidente que a contradição não se verifica, pois que o que a sentença quis dizer – e esse sentido é claro apesar das construções usadas - foi que as garrafas não foram exportadas pela autora porque a ré não entregou as garrafas à autora por esta as ter recusado, pelo que absolveu a ré do pedido, pedido este que se baseava também no fundamento do atraso na prestação por parte da ré que, assim, ao contrário do alegado pela autora, não se verificava.
E ao considerar que as garrafas não foram entregues à autora por esta as ter recusado a sentença não está a usar factos que não pudesse utilizar:
- quanto à não entrega das garrafas, na data em que a acção foi proposta, tratava-se de um pressuposto implícito da acção com o qual a ré estava de acordo: as garrafas não foram entregues. O não cumprimento da obrigação é algo que normalmente é alegado pelos credores, mas não tem de constar dos factos provados, pois que é o cumprimento da obrigação que tem de ser alegado e provado pelos devedores;   
- e quanto à justificação para a não entrega, os factos foram alegados pela ré como se verá já de seguida…
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Ao contrário do que a autora diz na conclusão LL – com resposta da ré nas conclusões T a U -, a conclusão tirada pela sentença (logo na primeira parte da transcrição feita acima) baseia-se em factos que foram alegados pela ré (como se verá melhor na parte da impugnação da matéria de facto pela ré), pelo que não se verifica a utilização, pela sentença, de factos base de uma excepção de que não se podia servir por não terem sido alegados pela ré, pelo que, por aqui, não se verifica a nulidade da sentença invocada pela autora.
O que se poderia dizer é que a sentença estava a utilizar factos que não constavam dos factos provados. Ver-se-á mais à frente que isso é verdade, mas só parcialmente, e a omissão será suprida pelo resultado do recurso da ré.
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Da nulidade – art. 615/1-a do CPC - invocada pela ré nas conclusões H a K, com resposta da autora nas sínteses das contra-alegações A a H.
Apreciação
Tendo em conta o conteúdo da sentença, na parte relativa à reconvenção, a decisão está de acordo com a fundamentação, pelo que não se verifica a nulidade em causa. Pode ter havido erro de julgamento, por desconsideração de outras regras jurídicas, mas isso não corresponde a nulidade.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Nas conclusões duplicadas de A a F e nas conclusões G a J a autora diz que devia ter sido dado como provado que as caixas de vinho encomendadas não tinham sido entregues à autora e diz que sentença não se pronunciou sobre um tema de prova.
Os elementos de prova que indica nesse sentido são as testemunhas V, H e Carlos e um documento.
A ré responde com as sínteses que constam de F a K, M e P.
Apreciação:
Quanto ao tema de prova que teria ficado sem pronúncia, a autora “esquece” (embora o tenha referido…) que o tribunal deu como não provado, em -9, que “Em 12/08/2020, após a solicitação da autora, a ré entregou no transitário, escolhido por aquela, as caixas referidas em 2 dos factos provados.”
Quanto ao mais,
A sentença recorrida, na fundamentação da matéria de facto não provada, diz:
Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal estribou-se na circunstância de não ter sido efectuada prova dos mesmos.
Importa referir que, neste âmbito considerado, o depoimento da testemunha V, que conhece a autora por a trabalhar para empresa que tem o seu domicilio na mesma morada da autora, conhecendo a ré apenas de nome, apesar de ter sido credível, dado que esta testemunha limitou-se a relatar aquilo de que tinha conhecimento, a verdade é que, no essencial, limitou-se a confirmar o negócio celebrado entre autora e ré nos termos já provados, nada mais sabendo sobre a situação em causa nestes autos de forma directa e relevante.
Por seu turno, o depoimento da testemunha H, que conhece a autora, por ser sócio da mesma e, que conhece a ré no âmbito de relações comerciais, não foi credível, porquanto esta testemunha pautou o seu depoimento por hesitações incompreensíveis, chegando inclusive ao ponto de referir que quando fez o negócio com a ré, a autora não existia.
Porém, o certo é que nenhuma das partes veio sequer colocar em crise que tivesse existido o negócio entre autora e ré, enquanto pessoas colectivas.
Acresce, ainda, que ao longo o seu depoimento, esta testemunha manifestou incertezas em relação a documento pela mesma lavrado, quando é certo que tal não é compaginável, com a precisão de pormenores em outras questões que respondeu, designadamente que teria as caixas encomendadas na sua garagem, dado que lhe pediram para ali guardar, numa base de amizade, o que nem sequer faz qualquer sentido, se tivermos em consideração que o mesmo referiu que foi quem fez o negócio com a ré e os outros sócios da autora.
Quanto aos elementos de prova indicados pela autora, o depoimento de V não tem interesse, visto que apenas pode dizer que o vinho não foi entregue no local onde trabalhava ao menos enquanto lá estava.
Quanto ao depoimento da testemunha contabilista, ele não falou sobre o assunto da entrega, mas confirma os documentos que a seguir serão referidos, do que sabe por tal constar dos papéis que viu e do que lhe foi explicado pela sócia da ré S relativamente às facturas e nota de crédito.
Quanto àquele que foi sócio gerente da autora (renunciou à 24/06/2020, isto é, até cerca de um mês depois da propositura da acção – o facto resulta da leitura em audiência de uma certidão da sociedade, pelo advogado da autora, estando a advogada da ré também a consultar online uma certidão da sociedade: gravação: 1:15 e 1:38) e que ainda hoje é seu sócio maioritário (com 50% das quotas), e que em Fev/Março de 2020 era seu sócio maioritário e gerente, tendo sido com ele celebrado o contrato e mantidos contactos, ele diz que, a pedido desesperado da sócia da ré, recebeu a entrega do vinho e guardou-o numa garagem sua, para lhe fazer o favor, mas fê-lo como sócio-gerente de uma outra empresa, não como sócio-gerente da autora. Daí o que escreveu na guia de transporte onde recepcionou o vinho, riscando o nome da autora e colocando no seu lugar o nome da outra sociedade como destinatária.
Quanto aos documentos juntos a este respeito, deles resulta que, mais tarde, a ré vem a emitir uma terceira factura, a 36, já em nome desta outra sociedade, mas 8 dias depois emite uma nota de crédito, a favor da mesma sociedade (daí que nada tenha recebido pelo valor daquela, como se vê no extracto bancário daquele mesmo período, apresentada pela ré relativamente à conta mencionada na factura). Estes três últimos documentos foram juntos pela ré a 15/09/2021, devido a requerimento da autora, e a autora não os impugnou.
Dado que aquele depoimento na parte referida não foi impugnado e os documentos emitidos pela ré apontam no sentido de o confirmarem parcialmente, não se aceita a fundamentação da sentença que, como a autora diz, realmente nem sequer identifica o documento que está a invocar (e a identificação do documento feito pela ré na síntese G, não é um resultado inequívoco), nem convence com aquilo que em parte diz sobre o depoimento da testemunha, pois que realmente o embrião do negócio poderá ter surgido antes da existência da autora – esta só foi constituída em 15/01/2020, uns tempos antes do contrato como se vê na certidão da sociedade junta com a PI (aliás, também a ré, nos articulados, fala em custos ocorridos em 2019, o que aponta no mesmo sentido) – e o que a testemunha conta, nesta parte, é, parcialmente como se viu, confirmado com os documentos emitidos pela ré.
Pode-se pois aceitar (e aditar o facto sob o n.º 13 dos factos provados) que a 12/08/2020 a ré enviou a encomenda em nome da autora para aquele que tinha sido sócio-gerente da autora (não se podendo dizer que soubesse que ele já não o era) e continuava a ser seu sócio maioritário, H, o qual, ao recebê-la, riscou o nome da autora no lugar do destinatário da guia de transporte e escreveu o nome da W4.
Já não se aceita que tal tivesse ocorrido sem o conhecimento da autora, porque isso não resulta desse depoimento, nem se acredita quando a testemunha diz que fez o favor à sócia da ré actuando ele como gerente da W4, porque isso não é confirmado pela guia de transporte.
*
Nas conclusões L a O a autora pretende que se dêem como provado afirmações de facto que tinha feito na petição inicial - ou seja, que a TAAG reduziu o número de voos diários, limitando apenas os voos a serviços especiais de apoio ao Serviço Nacional de Saúde e voos humanitários, no período referido em 8 – e que o tribunal recorrido considerou não provadas, embora o tribunal tenha acrescentado às afirmações da autora a parte acabada de sublinhar. Ou seja, o que o tribunal recorrido considera – de forma imprecisa, pois que remete para um período indeterminado - que não está provado é que aquela redução tenha ocorrido no período referido no facto 8.
A autora invoca um documento que contém, com data de 11/04/2020, uma alegada notícia com data de 18/03/2020, 16h55, em que se diz que “O Governo de Angola decidiu hoje suspender todos os voos internacionais de/para o país, como medida de contenção da disseminação do novo coronavírus, apesar de o país não ter ainda nenhum caso registado. Uma nota do Instituto Nacional de Aviação Civil refere que a medida vigora a partir das 00h00 de sexta-feira. Esta medida vem alterar as que Angola tinha implementado até terça-feira, no quadro da prevenção à doença Covid-19, interditando a entrada no país de passageiros provenientes da China, Irão, Coreia do Sul, Itália, França, Espanha e Portugal. Angola ainda não registou nenhum caso da doença até à presente data. (PressTUR com Agência Lusa).”
Quanto ao Decreto Legislativo Presidencial Provisório n.º 1/20, angolano, o mesmo está publicado no Diário da República da República de Angola, datado de 18/03/2020, e no seu sumário diz-se: “Suspende todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa, prorrogáveis por igual período de tempo, em função do comportamento global da pandemia do COVID-19, interdita a circulação de pessoas nas fronteiras terrestres, a atracagem e o desembarque de navios de passageiros e respectivas tripulações, provenientes do exterior do País, em todos os portos nacionais, por 15 dias, a partir das 0:00 horas do dia 20 de Março de 2020.”
A ré responde aquilo que consta das suas contra-alegações V a Y. 
Apreciação:
A autora também juntou, na réplica, um outro documento com uma outra notícia, de onde a autora retirava o seguinte: “Também no que à circulação que a ré tão prontamente, desde sempre, negou estar condicionada em Angola, não tomando tal situação como um motivo plausível para o cancelamento da encomenda, sempre se dirá que é público e notório, que Angola fechou as suas fronteiras aéreas em 20/03/2020, tendo apenas reaberto as mesmas a voos internacionais em 21/09/2020, bem como, retomado os voos domésticos apenas em 14/09/2020. Tal situação foi, inclusive, noticiada em Portugal através dos meios de comunicação, de entre os quais, o jornal Correio da Manhã, em formato online, cfr. doc.2 que se junta, pelo que não podia a ré ignorar e colocar em causa as circunstâncias descritas pela autora.”
No Decreto angolano citado pela autora consta ainda, com interesse, o seguinte preâmbulo: “Considerando que foi declarada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde a infecção causada pelo vírus COVID-19, por se assistir a uma alta taxa de mortalidade e pelo seu impacto social e económico negativo em todo o mundo; Tornando-se necessário tomar medidas urgentes em defesa do interesse público, com vista a se reforçarem as providências já tomadas para se evitar a importação de casos e salvaguardar a vida e a saúde da população em geral; O Presidente da República decreta […], o seguinte: ARTIGO 1.º (Circulação fronteiriça) 1. São suspensos a partir das 0:00 (zero) horas do dia 20 de Março de 2020 todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa por 15 (quinze) dias, prorrogáveis por igual período de tempo, em função do comportamento global da pandemia do COVID-19. 2. O disposto no número anterior não abrange os voos de carga, nem aqueles que sejam indispensáveis por razões humanitárias ou que estejam ao serviço da execução da política externa de Angola.
Tendo em conta o Decreto angolano, publicado no Jornal Oficial da República de Angola, considera-se que a autora tem parcial razão (para tal aponta também a imprecisão da forma como o tribunal dá o facto como não provado), mas que o facto que ela pretende acrescentar deve reproduzir com precisão o que foi decidido pelas autoridades angolanas.
Diga-se, entretanto, que desses documentos decorrem outros factos que podiam ser favoráveis à ré ou à construção feita pela sentença - decorre do preâmbulo do Decreto que se tratava de reforçar restrições já existentes, e as restrições reforçadas são concretizadas no outro documento – mas foi só a autora que fez esta impugnação e a ré não ampliou, neste parte, o objecto da impugnação, pelo que esses factos não podem ser acrescentados.
Em suma, o aditamento, com o n.º 9-A, deve ter a seguinte redacção:
A 18/03/2020 foi publicado no DR de Angola um Decreto legislativo de cujo preâmbulo consta: “Considerando que foi declarada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde a infecção causada pelo vírus COVID-19, […] Tornando-se necessário tomar medidas urgentes em defesa do interesse público […] O Presidente da República decreta […], o seguinte: ARTIGO 1.º (Circulação fronteiriça) 1. São suspensos a partir das 0:00 (zero) horas do dia 20 de Março de 2020 todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa por 15 (quinze) dias, prorrogáveis por igual período de tempo, em função do comportamento global da pandemia do COVID-19. 2. O disposto no número anterior não abrange os voos de carga, nem aqueles que sejam indispensáveis por razões humanitárias ou que estejam ao serviço da execução da política externa de Angola.”
*
Na sentença recorrida não se deram como provadas as seguintes afirmações de facto feitas pela autora:
7 - Ao contrário do acordado entre as partes, a ré promoveu uma “prova de boca” do vinho que fora engarrafado, sem consultar previamente a autora, que deveria ter sido realizada na presença de um representante da autora, o que não aconteceu.
Nas conclusões P a Q (e nada mais se acrescenta nesta parte no corpo das alegações) – com resposta da ré nas sínteses Z a AA - a autora pretende que se dê como provado, com base no depoimento do seu sócio, que “o processo de “prova de boca” do vinho que faria parte da encomenda seria acompanhado pela autora e seria nas instalações da ré.”
Isto aproveitando-se ao máximo, com boa vontade, as alegações da autora e tendo em vista o art. 640/1-b-c do CPC, pois, quanto a esta última, a norma impõe: Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Apreciação
O acrescento do facto pretendido, isto é: “o processo de ‘prova de boca’ do vinho que faria parte da encomenda seria acompanhado pela autora”, sem se dizer o que é que aconteceu ou não aconteceu, é perfeitamente irrelevante. E é também absolutamente irrelevante, pela mesma razão, dizer-se que “[a prova] seria nas instalações da ré”, pois que não se sabe se não foi isso que aconteceu.
E se se pretendesse salvar ainda mais as alegações da autora, dizendo-se que o que ela implicitamente está a dizer é que o facto 7 devia ter sido dado como provado, diga-se que não é minimamente claro que assim seja (pelo que a interpretação em causa implicaria uma violação do art. 640/1-b do CPC), mas que, se fosse assim, a passagem citada do depoimento não servia para tal fim, pois que a passagem concretizada (art. 640/1-a do CPC) limita-se ao que a testemunha disse que teria sido acordado e não ao que aconteceu ou não aconteceu.
*
Nas conclusões A a E do seu recurso, a ré está a impugnar o valor que consta do facto provado sob 7.
A autora não responde a esta pretensão.
Apreciação:
É evidente que há um erro no facto 7, visto que o valor de IVA devolvido (pela ré à autora) foi de 1.642,37€, estando certa toda a argumentação da ré a esse propósito (quer as contas quer os documentos demonstram-no de forma suficiente), o que aliás a autora não põe em causa, pois que nas contra-alegações do recurso da ré parte desse valor e não do que consta do facto 7.
Resta apenas dizer que a ré não tem razão na observação que consta da parte entre parenteses da conclusão E. A prova em que o tribunal se baseou foi a expressa admissão do facto por acordo pela própria ré (art. 574/2 do CPC - pois que a ré na contestação aceitou aquele valor). Tal como o tribunal o diz, embora falando em confissão, na fundamentação da decisão de facto: “Quanto aos factos provados nos n.ºs 1 a 7, [a convicção do tribunal sedimentou-se] na confissão de tal factualidade pela ré.” Mas como se verifica um erro de contas, o valor em causa tem de ser rectificado. O que é admitido por acordo é aquilo que resulta dos factos admitidos por acordo, não a soma aritmética errada. E aliás a ré na contestação (e a própria autora na réplica) tinha falado por várias vezes no valor de 1.642,37€ (como se vê no relatório deste acórdão).
Pelo que o facto 7 é alterado.
*   
Nas sínteses C e D das contra-alegações da ré, esta quer que se acrescentem aos factos provados uma série de afirmações feitas por si e utilizadas na fundamente de direito da sentença.
Isso tendo em conta o que a autora dizia no seu recurso em LL.
Apreciação:
Os documentos invocados pela ré são os seguintes:
- doc. 3, email de 17/03/2020, 12:06, a ré escreveu à autora:
Ponto situação W
Para n@gotv.pt • c@gmail.com
Bom dia,
Aguardo que me enviem os resultados das analises via electrónica, que já me foi comunicado que está tudo ok para viagem.
         Enquanto isso, tenho prontas a entregar 7 paletas de tinto e 3 de branco, menos uma de cada. Posso ir encher, mas demoro uns dias e, nesta altura se calhar é melhor enviar já e ficar crédito para a próxima encomenda.
Digam-me quando querem recolher, para poder estar lá e acompanhar todo o processo.
- doc. 5, email de 18/03/2020, 11:39, a ré escreveu à autora:
S
Re: Ponto situação W
Para n@gotv.pt • c@gmail.com
Bom dia,
Seguem as análises
Já é possível apontar um dia de recolha?
- doc. 8 é o email transcrito no ponto 11 dos factos provados.
Tais documentos não foram, realmente, impugnados pela autora.
Deles não resulta precisamente aquilo que a ré pretende, que são conclusões por ela tiradas do que é dito nos documentos. Como aquilo de que a ré fala são de factos consistentes nessas informações e pedidos feitos pela ré em tais documentos, e não de factos que constem desses pedidos e de informações, a transcrição desses documentos (como factos 9-B e 9-C), na parte que importa, é suficiente para dar satisfação à ré. Se, depois, esses pedidos e informações permitem ou não as conclusões que a ré pretende ou que a sentença tirou, é outra coisa, a apurar mais à frente. Mas isto apenas quanto aos documentos 3 e 5, já que o documento 8 já está transcrito.
Com isto, note-se, não se está a dizer que o que consta das declarações feitas pela ré nos documentos está provado, mas apenas que a ré fez tais declarações. Por exemplo, não é por a ré dizer que, em 17/03/2020, já tem parte das caixas preparadas, que as tem de facto.
*
Dos recursos sobre matéria de direito
Da autora – da alteração das circunstâncias
Na acção está em causa uma pretensão de resolução de um contrato, ou sob a forma de uma resolução a ser decretada pelo tribunal com efeitos retroactivos à data do pedido de cancelamento da encomenda – 17/03/2020 -, ou sob a forma de uma declaração da resolução extrajudicial naquela data; e isto por dois fundamentos diferentes: por alteração de circunstâncias ou por incumprimento definitivo da obrigação da entrega da encomenda por parte da ré.
Isto embora a autora não peça que o tribunal decrete a resolução judicial, tal como aliás não pede a declaração de resolução extrajudicial (sobre a questão da forma do exercício do direito – exercício judicial ou extrajudicial da resolução – vejam-se os autores citados abaixo, com posições opostas).
Ou seja, também quanto ao pedido se verifica a imprecisão de que já a seguir se falará quanto à data do contrato.
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Quanto à alteração de circunstâncias (art. 437 do CC), importa pois, antes de mais, saber de que circunstâncias e de que alteração se tratam, de modo a poder concluir-se que, perante elas, a exigência (da manutenção) da obrigação do pagamento do preço da compra do vinho afectaria gravemente os princípios da boa fé e não estaria coberta pelos riscos próprios do contrato.
Quanto a quais sejam as circunstâncias existentes à data do contrato, retiram-se da construção da autora através da alteração invocada na petição inicial: alteração que é a decorrente da situação de pandemia provocada pelo coronavírus que levaria, à suspensão, no dia 18/03/2020, de todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa, pelo que a TAAG já não precisava/precisa da quantidade de garrafas de vinho que a autora encomendou.
Pode-se pois dizer que a autora está a invocar, como circunstâncias, um mundo em que havia circulação de aviões com passageiros de e para Angola e onde se utilizaria o vinho fornecido, e como alteração, um outro mundo em que já não havia nada disto.
As circunstâncias a atender são aquelas que existiam na data da celebração do contrato, pelo que importa saber quando é que o contrato foi celebrado.
No caso, a autora foi notavelmente imprecisa nas suas alegações quanto à celebração do contrato, e o resultado final dos articulados das partes e da prova dos factos conduziu àquilo que consta dos factos 2 e 5, que é ainda mais dúbio.
É que, se se vir bem, apenas se sabe que a autora, em Fevereiro de 2020, entrou em contacto com a ré, para encomendar caixas de vinho, e em 09/03/2020 liquidou a factura emitida pela ré para pagamento do preço. Assim, o contrato tanto pode ter sido celebrado em 01/02/2020 como em 09/03/2020, pois que entrar em contacto não é contratar. Por isso, compreende-se que a ré diga que o contrato foi celebrado em 09/03/2020, mas também se tem que notar que a ré o faz apenas com base no facto de a factura ser de 09/03/2020, sendo que a emissão de facturas não é o mesmo que celebrar um contrato.
Sendo a data da celebração do contrato, no caso, um facto constitutivo do direito da autora à resolução do contrato por alteração das circunstâncias, era à autora que cabia o ónus da sua alegação e prova (art. 342/1 do CC), pelo que esta imprecisão a tem de desfavorecer.
Mas a posição da ré, que decorre dos factos 9-A, 10 e 11, é que a encomenda levou alguns dias a ser preparada e só estava parcialmente pronta a 09/03/2020. Ora, a preparação da encomenda não se faz sem as partes terem acordado na celebração do contrato, pelo que, pelo menos uns dias antes de 09/03/2020 o contrato já tinha sido celebrado.
Portanto, apesar de a imprecisão das alegações da autora a ter de desfavorecer, pode-se ter como certo, pelo menos, que o contrato foi celebrado uns dias antes de 09/03/2020.
(não se está a esquecer que ambas as partes fazem várias referências a outros contactos anteriores, em 2019, que estarão na base deste contrato celebrado nos dias anteriores a 09/03/2020. Mas esta acção trata do contrato da autora com a ré e não de outros e nenhuma das partes trouxe aos autos factos que permitissem concluir pela relevância de contactos anteriores para a celebração do contrato dos autos)
E o que a autora sugere, na petição inicial, é que o estado de coisas existente nessa data da celebração do contrato – uns dias antes de 09/03/2020 – foi alterado depois disso, passando a ser, segundo a autora uma situação em que deixaria de haver viagens de avião com passageiros de e a partir de Angola e em que a TAAG já não precisaria do vinho.
Estas alegações da autora, que correspondem a factos constitutivos do seu direito à resolução do contrato, teriam que ser provadas por ela (art. 342/1 do CC), ou seja, teriam que estar provadas para que se pudesse concluir pela procedência da acção.
Trata-se então de saber se se pode dizer, perante os factos provados, que, uns dias antes de 09/03/2020, a situação era aquela e, a partir de então a situação passou a ser outra, de tal modo que a 17/03/2020 se justificava a resolução do contrato.       
Ora, perante os factos provados, nada se sabe quanto à situação que se vivia nos dias imediatamente anteriores a 09/03/2020; relativamente ao período posterior (aos primeiros dias Março) até 17/03/2020 não se sabe se a situação era a descrita pela autora na carta dessa data, sendo que relativamente a Angola a autora descrevia a situação, genericamente, por remissão (facto 8) e não consta nada nos factos provados sobre isso; relativamente a Angola tudo o que agora, neste recurso, consta dos factos provados é que, a 18/03/2020, as autoridades determinaram que a partir de 20/03/2020 se passava a estar perante uma situação de suspensão de todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa por 15 dias, prorrogáveis por igual período de tempo (facto 9-A), mas relembre-se que a autora pediu o cancelamento da encomenda a 17/03/2020 e na petição quer que a resolução seja reportada a tal data.
Na carta do facto 8, a autora invocava o DL 10-A/2020, de 13/03, e a Portaria 71-A/2020, de 05/03. O DL 10-A/2020 estabelecia, segundo o seu sumário, medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo coronavírus - COVID 19. Em todo o seu articulado, não há qualquer referência a cancelamento ou suspensão de voos em Portugal ou em Angola. A Portaria 71-A/2020, que não é de 05/03, mas de 15/03, define e regulamenta os termos e as condições de atribuição dos apoios imediatos de carácter extraordinário, temporário e transitório, destinados aos trabalhadores e empregadores afectados pelo surto do vírus COVID-19, tendo em vista a manutenção dos postos de trabalho e mitigar situações de crise empresarial. Não tem nada a ver com a questão. Já a Portaria 71/2020, que também é de 15/03 e não de 05/03, estabelece, segundo o seu sumário: Restrições no acesso e na afectação dos espaços nos estabelecimentos comerciais e nos de restauração ou de bebidas. Também não diz nada quanto a voos. E tudo isto se refere a Portugal, não a Angola, quanto à qual, repete-se, nos factos provados nada consta quanto ao período anterior a 18, ou melhor, a 20/03/2020 (é certo que a autora também invocava a existência de restrições em Portugal como uma das consequências da Covid-19, mas isso apenas teria relevo se se provasse o futuro cancelamento do contrato com a TAAG de modo a demonstrar que a autora não poderia dar outro destino ao vinho em Portugal; pelo que às restrições em Portugal não foi dado relevo pela sentença recorrida, quer a nível de temas de prova, quer a nível de factos provados e não provados, e nenhuma das partes impugnou, a nível de facto, essa decisão).
Tendo isto em consideração, não há razões para dizer que, quando, numa data indeterminada de inícios de Março de 2020 e anterior a 09/03/2020, a autora celebrou com a ré o contrato, a situação era uma e, até 17/03/2020, passou a ser outra.
E se se pretendesse concluir que o que consta da carta do facto 8, de 17/03/2020, e o que veio a ser decidido por Angola, em 18/03/2020 (facto 9-A), indicia que a situação já era, à data de 17/03, uma de existência de restrições à circulação de aviões de passageiros, também se teria de concluir que a data a partir da qual teriam passado a existir essas restrições era indeterminada e nada havia que impedisse que ela fosse feita recuar ao início de Março de 2020, ou seja, antes mesmo da data em que o contrato terá sido celebrado. Todas estas imprecisões derivam da forma como os factos foram alegados e provados e correm por conta da autora (por dizerem respeito a factos constitutivos do seu direito: art. 342/1 do CC).
Em suma, ao contrário do pretendido pela autora, conclui-se que não se prova que entre a data imprecisa da celebração do contrato e a data à qual a autora pretende retroagir a resolução do contrato, se tenha verificado uma alteração de circunstâncias, assim se afastando a argumentação da autora constante das conclusões R a EE (com resposta da ré nas sínteses CC a TT), sem prejuízo do que se dirá de seguida ainda sobre elas, e tornando irrelevante a apreciação das suas conclusões FF a HH (mas não deixe de se dizer que não está minimamente indiciado, nem sequer a hipótese foi aflorada, de que a ré tenha vendido por duas vezes a mesma mercadoria, ao contrário do alegado pela autora nas conclusões GG e HH; já se viu acima que a factura 36 foi emitida no âmbito da resolução prática do caso e que ela teve, 8 dias depois, a contrapartida de uma nota de crédito do mesmo valor para a mesma sociedade, com o que se anularam os valores, nada tendo a ré recebido – ou pelo menos os elementos de prova discutidos foram nesse sentido e a autora sabe disto).
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Poderia, no entanto, dizer-se que a autora está a querer a resolução com base na sua previsão do que virá a acontecer no futuro imediato, ou seja poder-se-ia reportar a pretensão da autora ao estado de coisas resultantes já de uma suspensão temporária e parcial de circulação de passageiros por avião de e para Angola, isto é, àquilo que se pode dizer que está provado que iria acontecer a partir de 18/03/2020.
De novo, tendo em conta que era a autora que tinha que provar uma alteração de circunstâncias em relação à data da celebração do contrato, já que no caso não se pode pretender que a comparação seja feita simplesmente entre uma situação com Covid-19 e outra sem Covid-19, a verdade é que, mesmo podendo-se dizer que em 18/03/2020 haveria uma suspensão parcial temporária de circulação de aviões, não se pode dizer que à data da celebração do contrato ela ainda não existisse.
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Mas a alteração não era simplesmente a decorrente da suspensão de voos. A alteração invocada pela autora incluía a impossibilidade do fornecimento de vinho à TAAG. Ou, noutra formulação da autora, incluía a desnecessidade, pela TAAG, da quantidade de garrafas de vinho que a autora encomendou. Mas a autora não dizia que a TAAG tinha cancelado a encomenda, nem transmitia nenhuma posição assumida pela TAAG. Tratava-se, pois, apenas de uma pretensão baseada naquilo que a autora pensava que ia poder acontecer. Só depois de a ré responder, na contestação, que não havia qualquer notícia de a encomenda ter sido cancelada ou de tal vir a acontecer é que a autora veio replicar que a encomenda tinha sido cancelada e que a TAAG não tinha que dar conhecimento disso à ré.
E, mais grave ainda, se nos factos provados consta (facto 3) que a autora disse à ré qual era o destino que pretendia dar ao vinho, a verdade é que nem sequer isso se prova, isto é, que a autora tenha celebrado qualquer contrato com a TAAG. E quando a ré vem dizer isto, a autora responde que não tem que estar a fazer prova do contrato perante a ré.
Ora, nada disto pode ser assim. Os contratos, segundo o art. 406/1 do CC, devem ser pontualmente cumprido, e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
Tendo a ré invocado um dos casos admitidos por lei, ou seja, o previsto no art. 437/1 do CC, tem de alegar e provar todos os factos constitutivos desse direito de resolução do contrato (art. 342/1 do CC). Tendo alegado que tinha celebrado um contrato e factos que apontavam para a impossibilidade de cumprimento desse contrato devido à alteração das circunstâncias tinha, naturalmente, que alegar e provar tudo isso, entre o mais, pois, a celebração do invocado contrato com o terceiro e os factos que apontavam para a impossibilidade de cumprimento do mesmo, como forma de provar a alteração de circunstâncias invocada.
Ora, não se provou nada disto, pelo que a acção tinha, naturalmente que improceder.
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Vistas as coisas de uma outra perspectiva, ou seja, vendo-as do ponto de visto do requisito principal da alteração das circunstâncias, qual seja, o de que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé – principal porque dificilmente se aceitaria, neste caso, a manutenção do contrato mesmo que os outros requisitos não estivessem demonstrados inequivocamente -, no caso dos autos, perante os factos provados, não se pode concluir que a manutenção em poder da ré da prestação já realizada pela autora vá afectar gravemente os princípios da boa fé, pois que não se sabe se de facto a autora tinha celebrado o contrato que invocava (com a TAAG), ou que, a ter sido celebrado, este tenha deixado de existir, ou que seja muito provável que deixasse de existir, ou que tenha deixado de fazer sentido, porque a TAAG já não tinha interesse do vinho ou não o podia utilizar, e que portanto a autora não pudesse dar ao vinho o destino que era suposto ele ter ou que só o pudesse fazer em condições que seriam excessivamente onerosas.
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Com tudo o que antecede não se está a concordar com o essencial da argumentação da ré nas sínteses FF e GG das suas contra-alegações, que já vem da contestação – seguida pela sentença recorrida -, cuja posição, embora a ré a impute à melhor doutrina (sem a identificar), não é aquela para que a doutrina conhecida aponta, como se pode ver, por exemplo, nos estudos de Ana Taveira da Fonseca, Pandemia de Covid 19 e riscos próprios do contrato, páginas 13 e segs; Henrique Sousa Antunes, Os desafios da legislação Covid-19 à aplicação do regime da alteração das circunstâncias previsto no CC, páginas 37 e segs; e Mariana Fontes da Costa, Covid 19 e modificação extrajudicial dos contratos por alteração das circunstâncias, páginas 63 e segs, todos publicados em Contratos e pandemia, Almedina, 2021; e Barreto Menezes Cordeiro, anotação ao art. 437, página 61 a 67, em Novo coronavírus e crise contratual, CIDP/AAFDL, Junho de 2020.
Também não se concorda, no essencial, com o relevo dado pela ré (conclusões KK a PP), pela sentença e parte da jurisprudência invocada, aos riscos assumidos pela autora com a celebração do contrato e à anormalidade – desde logo porque, como se viu, não está provado que os tenha assumido e, depois, porque os requisitos da assunção dos riscos e da anormalidade não são entendidos assim por toda aquela doutrina (nesta parte teve-se principalmente em conta o estudo de Henrique Sousa Antunes que desenvolve e aplica, aos efeitos da Covid-19, várias das ideias do comentário que tinha feito ao artigo 437 no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCP/FD/UCE 2018, páginas 151 a 159).
Mas tal já é, no caso, irrelevante e por isso não se desenvolve aqui.
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A sentença recorrida vai mais longe, pois que considera que os factos permitem a conclusão positiva de que não se verificou uma alteração de circunstâncias, enquanto este TRL está apenas a dizer que não se pode concluir que se tenha verificado a alteração invocada pela autora (sendo que a prova dos factos que permitiriam essa conclusão cabia à autora).
Para chegar à conclusão de que não se verificou uma alteração de circunstâncias, o tribunal recorrido (e a ré – em parte das sínteses HH a TT) faz recuar a data em que foram estabelecidas restrições à liberdade de circulação para aquém da data da celebração do contrato, servindo-se para o efeito de uma série de factos – foram sublinhados acima, na 2.ª parte da transcrição da sentença, para evitar estar a repeti-los aqui – que não constam dos factos provados e fá-lo a pretexto de que são factos notórios.
A verdade, no entanto, é que não são factos notórios.
O facto de a OMS ter decretado o estado de emergência em matéria de saúde pública à data de Fevereiro de 2020 é um facto de que a sentença se serve mas não é um facto notório, ou seja, não é um facto que seja do conhecimento geral, como teria de ser para ser um facto notório (art. 412 do CPC). Dirá respeito a acontecimentos da história recente que afecta toda a gente e portanto toda a gente tem uma ideia sobre ele, mas quase ninguém conseguiria dizer com precisão o que é que de facto aconteceu, nem quando aconteceu. Aliás, basta pensar no assunto: tratou-se mesmo de um decreto? e tratou-se de um ‘estado de emergência’ e já tinha sido ‘decretado’ à data de Fevereiro de 2020? Tudo isto não é do conhecimento geral. Tal como quase ninguém poderá dizer, sem pesquisar, quais foram as implicações de tal ‘decreto’ e se entretanto a situação não se alterou, embora tudo isto seja invocado implicitamente pela sentença, também como factos notórios. De resto, tendo em conta o preâmbulo de uma lei já referida acima e publicada no DR (DL 10-A/2020), sabe-se que não se trata de um ‘decreto’, nem se tratou de um ‘estado’ de emergência. E isto tem razão de ser pois que a declaração emitida pela OMS não tem o sentido jurídico de ser um decreto de um estado de emergência, com a conclusão retirada pela sentença, por duas vezes, de que houve lugar a restrições na circulação de pessoas e bens (decorrente desse estado de emergência). O que houve, a crer naquela lei publicada no DR foi que a OMS declarou uma situação de emergência de saúde pública e a sentença não invoca nenhuma regra jurídica da qual decorra de tal declaração a existência de restrições na circulação (se decorresse não era necessário haver legislação nacional para o efeito).
A ré também invoca (nas conclusões HH e II) uma série de factos como se fossem factos notórios que lhe permitiriam estar a alegá-los sem indicar a respectiva prova e sem que eles constassem dos factos provados, mas, face ao que já se disse acima, esses factos não são factos notórios, sendo evidente que quase ninguém saberá o que aí consta. Tanto que a ré tinha alegado esses e outros factos com indicação da respectiva prova na contestação (como no recurso os invoca sem prova e sem impugnar, nessa parte, a decisão da matéria de facto, eles não podem ser considerados).
A autora, por sua vez, nas conclusões X, Z e AA invoca uma série de factos que tira de leis publicadas no nosso país. Em X, refere os DL e Portaria 10-A/2020 e 71-A/2020, respectivamente, já acima vistos e com relevância afastada por este acórdão. Nas conclusões Z e AA, invoca outras normas legislativas, mas ambas de 18/03/2020 e, por isso, irrelevantes pelas mesmas razões já referidas acima: são normas portuguesas, não angolanas, e entraram em vigor depois de 17/03 e a primeira nem sequer tem nada a ver com voos.
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O outro fundamento da resolução era o incumprimento definitivo da prestação por parte da ré.
Antes de mais registe-se que este fundamento não é, sequer, aflorado pela autora na carta de 17/03/2020, a carta com a qual a autora terá resolvido o contrato ou à data da qual se verificariam os pressupostos da resolução a ser decretada pelo tribunal.
Já se viu acima que o contrato foi celebrado em data indeterminada de inícios de Março de 2020.     Por outro lado, para a entrega da encomenda não foi estipulado um prazo certo, mas sim um prazo de conteúdo impreciso. Como consta do facto 3, a entrega deveria ocorrer com a maior brevidade possível.
Não havendo prazo certo para o cumprimento do contrato, nem havendo quaisquer factos – que tinham de ser alegados pela autora – que permitissem preencher, desde já, a cláusula da brevidade possível, nem tendo havido qualquer interpelação à ré, esta não chegou a entrar em mora na entrega das caixas antes de 17/03/2020 (artigos 804 e 805/1-2-a do CC), pelo que muito menos não há possibilidade de falar na conversão de tal mora num incumprimento definitivo do contrato que permitisse a resolução do mesmo pela autora (artigos 808 e 801, ambos do CC).
E também não se verificam nenhuns factos que possam permitir a conclusão de que a autora perdeu o interesse na prestação nessa data, designadamente que o vinho tivesse que ser entregue à TAAG até uma certa data e que passada ela a TAAG perdesse o interesse na prestação ou que, devido à suspensão dos voos, à TAAG já não servisse para nada o vinho encomendado ou que o vinho só pudesse ser utilizado nos voos suspensos ou só no período de suspensão.
Na PI a autora diz que a ré estava obrigada a entregar o vinho e que a ré não tinha disponível para entregar todo vinho encomendado, pelo que incorreu em mora. Mas já se viu que até à data de 17/03/2020 a ré não tinha entrado em mora e a proposta de entrega parcial data de 17/03/2020 (facto 9-B), sendo que ela não é referida na carta da autora de 17/03/2020 como fundamento do pretendido cancelamento da encomenda.
Em suma: a autora não prova o outro fundamento também invocado agora, mas não na carta de 17/03/2020.
Pelo que ficam afastados os dois fundamentos para “cancelar” a encomenda e condenar a ré a devolver o preço já pago pela autora.
Pelo que a acção tinha de improceder, como improcedeu, e, por isso, o recurso da autora não merece provimento.
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Do recurso da ré – reembolso do IVA
Aquilo que a ré diz a título de nulidade, corresponde antes, já se viu acima, a um eventual erro de julgamento da sentença que passa agora a ser considerado como tal.
Como compradora, era a autora que tinha de pagar o IVA sobre o preço da compra (art. 1/1-a do CIVA: Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: a) As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal – lembrado pela sentença recorrida; art. 37 do CIVA: 1 - A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços. […] – o art. 1/1-a foi lembrado pela autora e o artigo 37 foi lembrado pela ré; os artigos foram citados através do sítio do portal das finanças).
A autora pagou-o, mas como disse/lembrou à ré que o vinho era para exportação e nesse caso não há lugar ao pagamento de IVA (art. 14 do CIVA: 1 - Estão isentas do imposto: a) As transmissões de bens expedidos ou transportados para fora da Comunidade pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste; […] – este artigo foi lembrado pela autora e citado através do mesmo portal), a ré devolveu à autora o IVA que esta tinha pago (factos 2 a 7).
Como a ré é a responsável perante o fisco pela entrega do IVA, para não o entregar precisava do comprovativo da exportação (art. 29 do CIVA: […] 8 - As transmissões de bens e as prestações de serviços isentas ao abrigo das alíneas a) a j), p) e q) do n.º 1 do artigo 14.º […] devem ser comprovadas através dos documentos alfandegários apropriados ou, não havendo obrigação legal de intervenção dos serviços aduaneiros, de declarações emitidas pelo adquirente dos bens ou utilizador dos serviços, indicando o destino que lhes irá ser dado. 9 - A falta dos documentos comprovativos referidos no número anterior determina a obrigação para o transmitente dos bens ou prestador dos serviços de liquidar o imposto correspondente. […],” tendo em conta, por exemplo, o que é dito informação vinculativa/Ficha Doutrinária, emitida no processo: nº 3092, por despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Director - Geral, em 2012-05-24).
A ré alegou que como a autora não lhe entregou o comprovativo da exportação – como não exportou o vinho não tinha o comprovativo – a ré teve de entregar ao fisco o IVA devido pela compra (facto 12).
O facto de a autora não ter entregue o comprovativo da exportação – apesar de parecer evidente e a autora o ter aceitado implicitamente nas contra-alegações do recurso – foi dado como não provado e a ré não impugnou tal decisão, pelo que, aparentemente, não poderia ser utilizado aqui. Mas pode, porque é matéria da reconvenção e a autora não impugnou o facto, até o afirmou expressamente, como se vê no relatório deste acórdão e assim ele foi agora acrescentado como facto 14, por ter sido admitido por acordo (arts. 587/1, 574/2, 607/4 e 663/2 do CPC).
Mas, mesmo que o facto não pudesse ser utilizado, sabe-se, como acabou de ser visto (facto 12), que a ré entregou ao fisco o IVA correspondente como tinha de fazer, já que não tinha prova de que o vinho tivesse sido exportado.
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Da mora da autora e da mora da ré
Para que a autora pudesse recusar a responsabilidade pelo pagamento do IVA – que deriva do simples facto de o ter comprado – podia servir-se da alegação de que o vinho não lhe tinha sido entregue, pois que é o devedor da obrigação da entrega (do bem/vinho) que tem o ónus de alegar e provar o cumprimento da obrigação, como facto extintivo dela (art. 342/2 do CC).
Como a ré não alegava que tinha cumprido a obrigação, passou então a ré a ter o ónus de alegar e provar uma causa de exclusão da ilicitude do incumprimento.
O que a ré fez, alegando e provando os factos que demonstram que a autora entrou em mora (art. 813 do CC), pois que nunca fez o necessário para receber o vinho que a ré lhe quis entregar, como resulta dos factos provados 9-B, 9-C, 10 e 11, os dois primeiros aditados com base na procedência da impugnação da decisão da matéria de facto pela ré, e com o que se deu agora base de facto suficiente às considerações de direito que a sentença recorrida teceu sobre o assunto.
Não se concorda com os factos que a sentença recorrida extrai, logo no início (1.ª parte) da sua transcrição feita acima (estão sublinhados para se evitar estar a repeti-los aqui), dos factos provados sob 10 e 11, porque o facto de a ré ter dito, em 25/03/2020, que tinha a encomenda já quase toda pronta em 09/03/2020, e ter dito em 28/04/2020 que já tinha a encomenda toda pronta não é suficiente prova de que assim fosse.
Mas o que interessa é que a ré se comprometeu, pelo menos, a 28/04/2020, data em que, perante os factos provados, não se podia considerar que estivesse em mora, como já se viu acima, a ir entregar toda a encomenda à autora e a autora não lhe respondeu indicando-lhe se o podia fazer, o que é suficiente para o efeito de mora do credor (art. 813 do CC: O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.) Estando as partes em litígio, pois que a autora pretendia ter direito à resolução do contrato, e a dimensão da encomenda, não era exigível que a ré tivesse carregado o meio de transporte sem ter a certeza de que a autora aceitaria a entrega da encomenda e sem a colaboração da autora também não podia fazer a prova de que realmente a encomenda já estava toda pronta, pelo que a dúvida sobre esse facto também tem de recair por conta da autora.
A autora nas conclusões KK e MM alega que não era obrigada a aceitar a entrega parcial do vinho (art. 763 do CC), pelo que, ela, autora, não teria entrado em mora. O cumprimento parcial da prestação, pela ré, foi proposto à autora por email de 17/03/2020 (facto 9-B) e não há sinais de que já então houvesse qualquer litígio entre as partes (não se sabe se o email de 17/03/2020, da autora - facto 9 - foi enviado pela autora para a ré antes daquele outro). Nos factos provados não consta que a autora, até à petição inicial, tenha dito algo contra a proposta. Ou seja, não há notícia de que tenha recusado a proposta. No email de 18/03/2020 (facto 9-C) a ré insiste na proposta de entrega parcial. Torna a não haver factos provados que apontem para que a autora tenha invocado o direito de recusar a entrega parcial, pelo que o mesmo vale em relação a essa proposta. No email de 25/03/2020 (facto 10), a ré torna a insistir na proposta de entrega parcial, mas agora já como contraproposta de modificação do contrato perante a invocação, pela autora, da alteração de circunstâncias – ou seja, como proposta de renegociação do contrato - e não há factos que demonstrem que a autora invocou o direito de só receber toda a encomenda, nem mesmo que se tenha dado à maçada de responder à proposta. Depois, no email de 28/04/2020 (facto 11), a ré já quer proceder à entrega total da encomenda e não há factos no sentido de a autora, até lá, ter tido não querer aceitar a encomenda porque a entrega era parcial. Assim, a autora nunca invocou o direito ao não recebimento da prestação parcial para recusar a entrega do vinho, pelo que a mora da autora não pode ser excluída com base nesse direito.
Outras objecções da autora
A autora diz que o vinho foi entregue a terceiro (conclusões K, II e JJ). O que foi dado como provado em 13 não é suficiente para concluir que assim foi. Seja como for, a questão não tem interesse. O IVA é devido pela compra. Só não seria devido se se provasse a exportação. A autora não provou que exportou o vinho. Logo tem de pagar o IVA. Como o IVA foi pago pela ré no seu lugar, é à ré que a autora o tem agora de pagar, como reembolso. Só não o teria de fazer se a ré não tivesse conseguido provar – mas conseguiu-o - que a falta de entrega do vinho à autora era imputável à autora.
A autora alegava na petição inicial que não teve possibilidade do fazer a prova do vinho, logo não podia saber se o vinho que lhe podia ser entregue era o vinho encomendado ou se estava em condições. Mas, para além de não ter provado o que alegou a tal propósito, a autora nunca invocou esta questão como razão para não fazer o necessário para receber a entrega do vinho, pelo que também aqui isto não serve de exclusão da mora da autora e muito menos de motivo para, agora, recusar o reembolso do IVA, porque a ré, muito antes de lho exigir, já lhe tinha proposto a entrega total da encomenda.
Enfim, improcedem todos os argumentos da autora.
Logo, a autora tem de reembolsar à ré o valor desse IVA (com juros de mora comerciais desde a data da notificação da reconvenção), procedendo assim a argumentação da ré nas conclusões H a K do seu recurso (e improcedendo a argumentação da autora sintetizada em A a H das suas contra-alegações).
*
Pelo exposto, julga-se:
i\ o recuso da autora improcedente e
ii\ procedente o recurso da ré, revogando-se a sentença recorrida na parte que julga improcedente a reconvenção e absolve a autora do pedido, e substituindo-a por esta outra que condena a autora a pagar à ré 1.642,37€, com juros de mora, à taxa legal comercial vencidos desde 05/03/2021 e vincendos até integral pagamento.
Custas de ambos os recursos (na vertente de custas de parte, já que não há outras) pela autora (que é quem perde os dois recursos).

Lisboa, 14/07/2022
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas