Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11359/20.3T8SNT.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
DETENÇÃO ILEGAL
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. No artigo 22.º da CRP consagra-se o princípio geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas por danos decorrentes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa, por ação ou omissão dos respetivos titulares de órgãos, funcionários ou agentes, lesivos de direitos, liberdades e garantias de outrem. 
II. No direito ordinário, o regime jurídico relativo à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, RRCEE, encontra-se regulado em anexo à Lei n.º 67/2007, de 31.12, sendo que a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional encontra-se regulada nos artigos 12.º a 14.º do RRCEE.
III. O artigo 12.º constitui o «regime geral» na matéria, ao passo que o artigo 13.º trata da «responsabilidade por erro judiciário».
IV. O artigo 13.º reporta-se a situações de patente, ostensiva, evidente, desconformidade do decidido com o regime constitucional e legal vigente ou os respetivos fundamentos factuais.
V. Em termos exclusivamente subjetivos, o referido artigo 12.º integra todos aqueles que se compreendem na «administração da justiça», aí se abrangendo designadamente juízes, agentes do Ministério Público, funcionários judiciais e órgãos de polícia criminal, ao passo que o apontado artigo 13.º reporta-se tão-só a atos ou omissões cometidas por magistrados judiciais.
VI. No erro judiciário a que se reporta o referido artigo 13.º, n.º 1, do RRCEE cabem, em particular, as situações de «sentença penal condenatória injusta» e «de privação injustificada da liberdade» e, em geral, «decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto».
VII. O n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE, estabelecendo que «[o] pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», é aplicável a todo e qualquer «erro judiciário», e, pois, igualmente às situações de «privação injustificada da liberdade» integrantes do n.º 1 do mesmo preceito legal e desde logo é aplicável designadamente a situações a que reportam os artigos 220.º, n.º 1, e 222.º, n.º 2, do CPPenal, sendo que nestes casos, tendo havido pedido de habeas corpus e tendo este sido deferido, com libertação imediata do preso/detido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que assim haja determinado constitui a decisão revogatória a que se refere o n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE.
VIII. Com a entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13.09, e consequente redação dos artigos 696.º, al. h), 696.º-A, 701.º e 701.º-A, todos do CPCivil, afiguram-se ultrapassadas suscitadas questões de constitucionalidade do referido artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, tal como críticas referentes à aplicação do direito da União.
IX. A exigência de «prévia revogação da decisão danosa», conforme artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, constitui pressuposto do direito indemnizatório em causa, pelo que a sua não verificação acarreta a improcedência da ação, com absolvição do pedido.
X. O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas prescreve no prazo de três a contar da altura em que o lesado teve conhecimento dos pressupostos daquele direito, não se exigindo para o efeito o conhecimento da pessoa responsável e a extensão integral dos danos, sem prejuízo de suspensão do prazo prescricional por motivo de força maior ou dolo do obrigado e, em todo o caso, do prazo prescricional de 20 anos estabelecido no artigo 309.º do CCivil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I.
RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, o A., FS, demanda o R., ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a condenação deste no pagamento ao A. da quantia de €100.000,00, acrescida de juros legais, à taxa legal, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento
Como fundamento do seu pedido, o A. alegou, em suma, que exerce a profissão de advogado há já 40 anos e que no âmbito da sua atividade profissional patrocinou AF em processo crime contra JMP, em razão de uma situação de insegurança daquele por causa de ameaças e pressões exercidas sobre ele por parte do referido JMP e que justificaram a proteção policial do AF.
Referiu também que, entretanto, patrocinou uma reunião entre o AF e o JMP, tendo os mesmos chegado a um acordo no sentido daquele entregar ao filho deste a quantia de €107.500,00, a ser paga através do A., sendo que este assim procedeu no sentido de obter a concórdia entre as partes e nessa sequência, em nome do referido AF, declarou no processo crime prescindir de proteção policial.
Alegou igualmente que em 10.04.2012 AF foi ouvido pela Polícia Judiciária sem a presença do A., que não foi convocado para o ato, o que constituiu um procedimento ilegal, ao mesmo tempo que potenciou que o inquérito crime assume contornos tais que conduziram à detenção ilegal do A. em 21.04.2012, em Alvaiázere, junto aos seus escritórios, situação de detenção que perdurou até 23.04.2012, ao mesmo tempo que foi deduzida acusação contra o A. pelos crimes de extorsão agravada, rapto agravado e prevaricação, dos quais o A. foi, entretanto, absolvido.
O A. mencionou ainda que o referido procedimento ilegal da investigação crime, bem como a alegada detenção ilegal do A. causaram a estes danos patrimoniais e não patrimoniais, pois decresceu nos seus rendimentos e teve perdas patrimoniais, assim como foi notícia em jornais, com ofensa da sua honra e consideração, o que lhe causou angústias, ansiedade e desesperança.
O R. contestou.
Alegou que a ação assenta em dois fundamentos com distintos regimes jurídicos: por um lado, funda-se na responsabilidade civil extracontratual por ações ou omissões ilícitas cometidas por funcionários do Estado e, por outro lado, baseia-se na responsabilidade civil extracontratual resultante de decisão jurisdicional por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos.
Referiu também que quanto àquele primeiro segmento o direito indemnizatório encontra-se prescrito, sendo que em todo o caso inexistem os pressupostos para responsabilizar civilmente o R. nos termos pretendidos.
O R. concluiu pedindo a sua absolvição do pedido.
Convidado a pronunciar-se sobre a exceção de prescrição suscitada, o A. respondeu, em síntese, no sentido de que tal exceção não ocorre na situação vertente.
Realizou-se audiência prévia.
O A. juntou novo articulado.
Em 25.07.2022, o Juízo Central Cível de Cascais proferiu saneador-sentença no qual absolveu o R. do pedido, a partir, em suma, do entendimento de que:
«(…)
Nos presentes autos o autor funda o pedido indemnizatório na responsabilidade civil extracontratual do Estado, pedindo a condenação do réu numa indemnização única no valor de €100.000,00, apresentando dois fundamentos jurídicos que, por sua vez, correspondem a duas causas de pedir distintas.
(…), a presente acção tem, como primeiro fundamento a actuação dos agentes do Estado, no caso dos inspectores da Polícia Judiciária e da magistrada do Ministério Público que praticaram actos no decurso do inquérito, subsumíveis no art.º 12.º, com remissão para o art.º 7.º da Lei n.º 67/2007.
Para além disso, e de forma autónoma, funda o autor a sua pretensão em erro judiciário por detenção ilegal nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 67/2007 e art.º 225.º do CPP, (…).
(…) relativamente ao primeiro fundamento da presente acção, reconduzível à actuação dos órgãos de polícia criminal e do Ministério Público no âmbito do inquérito em que o autor foi visado, são os tribunais judiciais materialmente incompetentes para a acção, devendo tal gerar a absolvição da instância nesta parte, caso não exista outro fundamento que determine o conhecimento imediato do mérito da acção.
Com efeito, atento o disposto no art.º 278.º, n.º 3, do CPC, caso se entenda que o conhecimento desta excepção se destinaria a tutelar o interesse do réu, e não havendo qualquer outro motivo que obste ao conhecimento do mérito da causa, não se procederá à extinção deste fundamento da acção por absolvição da instância mas será conhecida a excepção peremptória de prescrição no caso desta dever ser conhecida de forma integramente favorável a esta parte.
(…)
Termos em que, sem prejuízo do decidido quanto à excepção de incompetência material, se decide declarar verificada a excepção de prescrição relativamente ao direito indemnizatório formulado pelo autor assente na vertente administrativa da responsabilidade civil jurisdicional do Estado a que se refere o art.º 12.º do RRCEE.
(…)
Pelo exposto, por não se verificar o requisito da prévia comprovação da revogação da decisão judicial geradora dos danos, nos termos exigido pelo art.º 13.º, n.º 2, do RRCEE, aplicável às decisões judiciais de privação da liberdade por referência à detenção de que o autor foi objecto, deve a presente acção ser considerada improcedente.
(…) atenta a matéria de facto concretamente provada e à subsunção que foi feita dos elementos e dos meios de prova apresentados que compõe o processo crime a que se refere a acção, entende-se não ter ficado demonstrada qualquer situação de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto por referência à situação de detenção do autor».
(Negrito da autoria dos aqui subscritores).
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o R., o qual apresentou as seguintes conclusões:
«1º O prazo de 3 anos a que se refere o artigo 5º do R.R.C.E.E., começa apenas a correr a partir da data do trânsito em julgado da respetiva sentença, que no caso ocorreu em 10-09-2019, sendo assim a presente ação tempestiva, porque instaurada em 03-09-2020.
2º Tal resulta da Jurisprudência do Acórdão de 23-01-2007 e 14-12-2020, invocado nas presentes alegações.
3º Mesmo para a presente causa, devem ser, desde já, aditados aos factos dados como provados os enunciados, sob os nº 36 a 46, das alegações aqui dadas por reproduzidas.
4º Tal matéria, importa ser analisada, tendo em vista a comprovação da existência de erro grosseiro nos pressupostos de facto que levaram à detenção do A..
5º Pois o aí declarado, em sede de Inquérito por parte dos Investigadores da Polícia Judiciária, e demais entidades, - entre outros, o Inspetor HC - e a Directora Coordenadora, e Digna Magistrada do Ministério Público, são factos falsos, e, sempre entendidos por um jurista, médio, sério e equilibrado, como impossíveis de executar, por parte de um Advogado, sério, equilibrado, com quarenta anos de actividade, e conhecedor de Direito.
6º Só uma desconexão causal, imprevidente e negligente daqueles investigadores, e assim também não séria, poderiam ter levado a escrever ofensivamente, o que escreveram em relação ao A., violando inteiramente quer os seus direitos profissionais, quer os seus direitos constitucionais, constitucionalmente consagrados. (artigo 66º e 67º do E.O.A e artigo 18º e 22º da C.R.P.)
7º O A. sempre actuou nos autos como advogado da vítima, contactando a parte contrária, apenas e só porque o arguido, ou arguidos, deixou de ser patrocinado a partir dos meados de Janeiro de 2012 pelo seu Advogado Dr. CC, como também resulta dos autos.
8º Nos autos está comprovada a existência de erro grosseiro na privação da liberdade do arguido, o ora A., e se comprova que o arguido não foi agente do crime, que motivou a detenção ilegal. É que,
9º O A. actuou nos autos na execução do seu mandato forense.
10º Foi detido pelas imputações dos crimes de extorsão agravada, rapto na forma tentada e prevaricação do Advogado, das quais apenas foi acusado do crime de prevaricação do qual foi absolvido. (Doc. Nº 4, junto ao requerimento de 27-12-2021)
11º No despacho de arquivamento, nenhuma explicação é dada sobre tais casos em relação ao A., sobre a actuação do A., e assim até sobre o arquivamento.
12º A acusação do crime de coação aparece nos autos, como tábua de salvação do processo e seus actores, passando os chamados “extorsores” e raptores a ofendidos sem qualquer explicação.
13º Sobre tais crimes de coação, existe parecer jurídico junto aos autos, de jurisconsulto “Dr. Pedro Caeiro”, bem fundamentando a inexistência de tais crimes.
14º A Ordem dos Advogados, validou toda a atuação do A., dentro da legalidade e do cumprimento do mandato do constituinte e amigo do A., AF.
15º Em toda a petição e demais requerimentos dos autos, o A. sempre alegou nunca ter sido o agente dos crimes que o acusavam, de extorsão agravada, rapto na forma tentada e prevaricação de Advogado.
16º Está provado nos autos, que o A. recorrente não foi o agente dos crimes que o acusaram.
17º Nos autos não está em causa um erro banal ou comum, mas sim perante uma descabida e ilegal decisão sem um mínimo de acerto, para o cidadão comum, cidadão do foro, ou qualquer jurista sério e minimamente independente, que analise com coerência aquele auto de Inquérito. (Proc. Nº …/… – Junto a estes autos)
18º O cliente do A., AF, sempre confirmou e declarou ao mesmo A., todo o seu apoio, conforme declarações juntas aos autos.
19º Existe notório erro de julgamento entre a verdade fáctica e jurídica e o afirmado na decisão, que infirma o seu mérito, por constituir lapso grosseiro, negligente e gritante, pois jamais se poderia ter entendido que o A., recorrente, não se encontrava no processo como Advogado da vítima, como sempre esteve.
20º Os autos exigiam o devido respeito pelos direitos do Advogado A., no exercício da sua missão nobre de Advogado, o que não sucedeu, que pelo menos sempre exigiriam que qualquer dúvida sobre o seu comportamento, justificava uma interpelação ou notificação prévia, em sede de investigação, o que contra “legem” jamais sucedeu, e é manifesta representação da atuação grosseira dos investigadores e demais entidades de que o Réu é responsável nos termos legais.
21º É que o erro de direito praticado pelo Juiz, constitui fundamento de responsabilidade civil do Estado, “quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente contrária, assente em conclusões absurdas demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente diligente”, como resulta do tramitado naqueles autos de Inquérito (vide Ac. Proc. Nº …/…, já referido)
22º Por outro lado, contrariamente ao decidido, a norma do nº 2 do artigo 13º da Lei 67/2007, não é aplicável ao presente caso, porque a 1º parte do nº 1, abrange um regime especial para a situação de responsabilidade pela privação injustificada da liberdade, como consta do artigo 225º do C.P.P.
23º De tal norma não resulta como pressuposto a revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, como defende a sentença agora impugnável.
24º A questão decorrente e julgada no processo penal, pode ser apreciada à luz do princípio de suficiência do processo civil, como sucede no artigo 7º nº 1 do C.P.P. e artigo 38º nº 1 do C.P.T.A.
25º A situação do nº 2 do artigo 13º do R.R.C.E.E., é de conjugar com a segunda parte do nº 1, deste artigo, mas nunca com a primeira.
26º Assim o defendeu o Acórdão do S.T.J. de 05-11-2012, Proc. Nº 1962/09.6TVPRT.P1-S1, descrito nas alegações.
27º E este tribunal, assim não está impedido de investigar toda a verdade e, assim, os factos que conduziram à ilegal detenção do A.. É que,
28º Nos autos não existem, contra o A. os meios de prova, aliás não especificados na decisão, e nem foram levados em conta o que deveriam ter sido previamente analisados tais quais o do A. recorrente ser Advogado, e estar no exercício da sua profissão, legalmente protegido pelo seu Estatuto Profissional, que lhe confere direitos e proteção que não foram acautelados como no caso legalmente deveriam ter sido, e não foram.
29º Contrariamente ao afirmado nos autos, o A. não foi condenado, pelos factos referidos na detenção, e jamais por factos que tivessem a ver com o ofendido seu cliente, mas antes sim por factos praticados na defesa desse ofendido, e contra os arguidos, estes sim que inexplicavelmente passam de extorsores e raptores, a VÍTIMAS!...
30º Tal fundamento e imputação da actuação do A. contra o ofendido constitui pois mais um claro erro e falsidade na decisão que se impugna. E, assim,
31º Deve ser revogada a aliás douta sentença, e substituída por outra que determine a formulação de competente despacho saneador, com definição do objeto do litígio e respetivos temas de prova, e os autos possam prosseguir para necessário julgamento.
32º É que a aliás douta sentença, violou além do mais o disposto no artigo 5º e 13º nº 1 do R.R.C.E.E., artigo 66º e 67º da Ordem dos Advogados, artigo 18º e 22º do C.R.P., artigo 220º, 204º, 225º, tudo do C.P.Penal e o princípio da suficiência do Processo Civil, e o artigo 482º do C.C..
NESTES TERMOS, e nos demais de direito,
Deverá o presente RECURSO, ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, nos termos acima expostos, com as legais consequências, mandando-se baixar os autos à 1ª instância, afim de ser proferido novo despacho saneador, com definição do objeto do litígio, factos provados e não provados, e demais temas de prova, afim de se efetivar o necessário julgamento.
Só assim decidindo, será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA».
A R. contra-alegou, sustentando a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.

II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pelo Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso a apreciar, nos presentes autos está em causa apreciar e decidir:
. Da prescrição do direito indemnizatório quanto à atuação da Polícia Judiciária e do Ministério Público;
. Da necessidade de prévia revogação da decisão judicial danosa;
. Da detenção ilegal em razão de decisão judicial proferida com erro grosseiro.
Assim.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos, os quais não foram impugnados pelo Recorrente em sede recursória e, assim, se têm aqui por assentes:
1. O autor FS é advogado de profissão e exerce a respetiva atividade na ex comarca de Alvaiázere, hoje comarca de Leiria, onde reside, e onde mantém o seu escritório profissional;
2. Em 12.01.2012 foi instaurado nos serviços do Ministério Público de Cascais o processo de inquérito n.º …/…, na sequência de uma queixa crime apresentada por AF contra JMP e incertos (fls. 2 e ss. do processo crime);
3. Nesse processo esteve em causa a investigação de factos suscetíveis de integrarem a prática de crimes de extorsão agravada e rapto, na forma tentada, p.p., respetivamente, pelos art.ºs 223.º n.ºs 1 e 3, a), com referência aos art.ºs 204.º, n.º 1, al. a), e 161.º, n.º 1, 22.º e 23.º, do CP (fls. 23 e ss. do processo crime);
4. O autor patrocinou nesse processo o queixoso AF, residente em Av. Da República n.º 1438 -Loja …, 2775-271 Parede (fls. 6 do processo crime);
5. No âmbito da investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária foram efetuadas várias diligências, nomeadamente, interceções telefónicas, vigilâncias, inquirição de testemunhas, para além de diversas inquirições do queixoso (cfr. fase de inquérito do processo crime);
6. Nas declarações prestadas no dia 12.02.2012, o queixoso confirmou os factos denunciados, relatando os acontecimentos ocorridos nos dias 26.12.2011 e 13.01.2012, quando foi abordado, ameaçado e agredido pelo denunciado JMP e NO (fls. 20 e ss. e 32 e ss. e do processo crime);
7. Em 14.03.3012, o Ministério Público requereu a realização de interceções telefónicas, nos termos dos art.º 187.º, n.º 1, al. a), e n.º 4, al. a), 189.º, n.º 2, 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal (CPP), as quais foram ordenadas por despacho da M.ª Juiz de Instrução Criminal proferido no dia 21.03.2012 (fls. 161 e ss. e 169 do processo crime);
8. No dia 10.04.2012 o queixoso foi de novo inquirido, referindo ter aceite a sugestão do seu advogado, o ora autor, de efetuar um “acordo” de pagamento com os seus extorsores, no valor de €100,000,00, por forma a cessar as ameaças e tentativas de rapto, sendo essa quantia paga de forma faseada (fls. 281 e ss. do processo crime);
9. Mais referiu ter pago até esse momento a quantia de €50.000,00, em duas vezes, que entregou ao ora autor, tendo este ficado encarregue de, posteriormente, fazer a entrega dessa quantia a JP, filho do suspeito JMP (fls. 282 do processo crime);
10. Referiu ainda não ter qualquer dívida para com JMP ou família deste, tendo aceite o acordo como forma de fazer cessar as ameaças e tentativa de rapto de que era alvo (fls. 283 do processo crime);
11. Em 16.04.2012, a Polícia Judiciária elabora um relatório da investigação onde dá conta das
diligências efetuadas e refere:
“Conforme resulta do teor das intercepções telefónicas supra indicadas constata-se que a actuação do Dr. FS, enquanto advogado de AF, vítima dos factos, é bastante duvidosa, transparecendo uma cumplicidade suspeita com os autores dos factos, nomeadamente JMP e JP, filho deste (…)
Tanto mais que o Dr. FS afirma ter na sua posse um documento (Produto n.º 88 , assinado por JMP, JP e MT, no qual estes assumem a inexistência de qualquer dívida e que só os prejudicaria perante a PJ (…)
Só posteriormente é que o Dr. FS vai entregando, de forma faseada, quer através de cheque em dinheiro, montantes monetários a JP, ficando com parte do dinheiro extorquido na sua posse, tal como se verifica no decorrer das intercepções telefónicas (Alvo 50553M) (…)
Mais grave ainda, é quando o Dr. FS, refere que vai falar com JP e não com JMP, em virtude deste poder ter o telefone sob escuta, colocando, em causa a investigação e a resolução de um crime do qual o seu constituinte foi e continua ser vítima, vindo aqui ao de cima, eventualmente interesses obscuros por parte do Dr. FS (…)
Mais adiante e, após JP ter-se deslocado ao escritório do Dr. FS , seu primo, contacta telefonicamente o pai, JMP, a quem diz para não ligar mais ao primo, (Dr. FS) que depois falam, referindo, no entanto que é por causa de um problema de Lisboa, do PJ, numa clara alusão a PJ (…) Posteriormente, em nova conversa entre JMP e JP, este último informa o pai que vai ao Banco depositar o cheque do Dr. FS, referente às contas do avô, retorquindo JMP que no sábado iria estar com o Dr. Simões pois este tem lá mais cheques para lhe entregar.” (fls. 351 e ss., em especial 368 e ss. do processo crime);
12. Apresentados os autos ao Ministério Público, por despacho de 16.04.2012, foi requerida a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito relativamente aos vários suspeitos, incluindo o autor, ao abrigo do disposto no art.º 257.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP (fls. 420 e ss. do processo crime);
13. Nesse despacho e no que respeita ao autor, refere-se:
“Finalmente, quanto a FS, não obstante o mesmo ser advogado da vítima, certo é que o mesmo se encontra a servir, se não mais, pelo menos de intermediário num processo de extorsão ao seu próprio constituinte, bem como decorre das intercepções telefónicas realizadas nestes autos e dos respectivos excertos que terá sido através deste que os imputados autores dos factos tiveram conhecimento da existência de tais intercepções, assim comprometendo o sucesso da investigação e, dessa forma revelando um perigo de perturbação do presente inquérito”. (fls. 422 do processo crime);
14. Por despacho da M.ª Juiz de Instrução Criminal de 17.04.2012 foi ordenada a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito relativamente ao autor, ao abrigo do disposto no art.º 257.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP (fls. 429 e ss. do processo crime);
15. É do seguinte teor esse despacho:
“Relativamente ao Dr. FS, advogado, existem fortes indícios nos autos de que o mesmo se tem comunicado com os demais suspeitos, interferindo directamente no decurso do inquérito, nomeadamente no que respeita à aquisição e conservação da prova.
Assim sendo, mostra-se relevante para a investigação e para a descoberta da verdade, a sua presença neste tribunal, razão pela qual se determina também a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, relativamente a este suspeito, ao abrigo do disposto no art.º 257.º, n.º 1, al. b), do CPP.” (fls. 431 do processo crime);
16. Os mandados de detenção foram emitidos em 18.04.2012 e cumpridos pela Polícia Judiciária que procedeu à detenção do autor, pelas 14h15 do dia 21.04.2012 e à constituição de arguido e prestação de TIR (fls. 444, 615 e 615 vs., 616 e 617 do processo crime);
17. Por despacho proferido em 23.04.2012, o Ministério Público validou a constituição de arguido do autor, ao abrigo do disposto no art.º 58.º do CPP e requereu a apresentação do mesmo para primeiro interrogatório judicial, nos termos do art.º 141.º do CPP (fls. 646 e ss. do processo crime);
18. Nesse despacho o Ministério Público faz a descrição da factualidade apurada, a sua subsunção jurídico penal à prática de um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art.º 370.º, n.º 1, do CP, apresenta os elementos probatórios que a sustentam, e propõe medida de coação para além da já aplicada de TIR (fls. 647 a 651 e ss. do processo crime);
19. Aí se refere, no que respeita ao autor:
“Em momento não concretamente apurado, mas próximo desta data, o arguido FS, advogado de profissão e familiar dos arguidos JMP e JP, foi mandatado pelo ofendido para apresentar uma queixa crime pelos factos ocorridos.
Ao ter conhecimento da referida factualidade, FS contactou com JMP, tendo ambos acordado que aquele mediaria os contactos entre as partes envolvidas, convencendo o ofendido a entregar quantias monetárias aos arguidos através do seu mandatário, ficando FS com parte daquelas que faria suas (…)
Não obstante, os arguidos JMP, JP, NO e FS, mantiveram os seis intentos de obter quantias monetárias do ofendido, que sabiam não lhes serem devidas.
Assim, FS convenceu o ofendido de que deveria proceder a entregas de dinheiro àqueles, contra entrega de declarações escritas assumindo que as mesmas não eram devidas, a que AF assentiu, por temer pela sua vida e integridade física e pelas dos seus familiares.
Neste seguimento, no dia 21.01.2012, o arguido JP, na presença de FS e de AF emitiu uma declaração nos termos da qual aceitava o pagamento de € 107.500,00, a fim de evitar qualquer processo judicial. (…)
Perante a subscrição de tais declarações e visando a todo o custo preservar a sua vida e integridade física, AF acordou então entregar a quantia de €107.000,00 àqueles que, posteriormente repartiriam entre si e NF, mediante pagamentos faseados e por intermédio do seu mandatário, o arguido FS.
Assim e por modo e em datas não concretamente apuradas, o ofendido entregou a FS a quantia de €50.000,00, tendo este entregue a JP e JMP a quantia de €35.000,00, retendo o remanescente para si próprio”. (fls. 648 a 650 do processo crime);
20. O autor foi presente para primeiro interrogatório judicial nesse dia 23.04.2012 (fls. 653 e ss. do processo crime);
21. Terminado o interrogatório judicial, foi proferido, nesse mesmo dia, despacho pela M.ª Juiz de Instrução Criminal que validou a detenção do autor ao abrigo do disposto no art.º 257.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP e considerou cumprido o prazo de apresentação previsto nos art.ºs 141.º e 254.º, n.º 1, al. a), do CPP (fls. 661 e 662 do processo crime);
22. No mesmo despacho foi acolhida a promoção do Ministério Público, no que se refere à factualidade apurada e respetiva subsunção jurídica, considerando-se o autor indiciado pela prática de um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art.º 370.º, n.º 1, do CP;
23. Tendo sido aplicada ao autor a medida de coação de proibição de contactar com o ofendido, implicando tal necessariamente que deixe de representar profissional o ofendido no processo (fls. 662 do processo crime);
24. Por requerimento de 11.05.2012, o autor, através do seu mandatário requereu autorização para consulta dos autos, nos termos do art.º 90.º, n.º 1, do CPP, o que foi deferido por despacho do Ministério Público de 15.05.2012 (fls. 780 e ss. do processo crime);
25. O autor, então arguido, não interpôs recurso do despacho que validou a detenção, o qual transitou em julgado, tendo, em 15.05.2012, interposto recurso do despacho anterior proferido em 17.04.2012 que ordenou a sua detenção, através da emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito. (fls. 790 e ss. do processo crime);
26. Por decisão singular da Desembargadora-Relatora da Relação de Lisboa proferida em 20.09.2013, foi rejeitado por manifesta improcedência o recurso apresentado pelo arguido;
27. Por acórdão de 06.11.2013 da Relação de Lisboa foi rejeitada a reclamação para a conferência apresentada pelo arguido dessa decisão singular;
28. Entretanto, em 05.06.2013, o Ministério Público deduziu acusação contra o autor, imputando-lhe a prática de dois crimes de coação, p.p. pelo art.º 154.º, n.º 2, do CP, e um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art.º 370.º, n.º 1 e 2, do mesmo Código (fls. 1429 e ss. do processo crime);
29. Em 02.09.2013, o autor requereu a abertura de instrução (fls. 1457 e ss. do processo crime);
30. Em 18.02.2014, procedeu-se a debate instrutório, findo o qual foi decidido não pronunciar o mesmo pelos crimes que lhe vinham imputados. (fls. 1572 e ss. do processo crime);
31. O Ministério Público interpôs recurso dessa decisão (fls. 1578 e ss. do processo crime);
32. Por acórdão do tribunal da Relação de Lisboa proferido em 06-11-2014, foi revogada a decisão instrutória, pronunciando-se o autor pela prática dos crimes pelos quais vinha acusado aí se referindo:
“De facto, olhando para estes elementos temos de concluir que se tratam de facto, de indícios constantes dos autos quanto aos crimes imputados ao arguido, ora recorrido, e relativamente aos quais, o Tribunal recorrido não tomou em consideração a actividade de apreciação crítica exigível. (…)
Ora, sendo este advogado de profissão com larga experiência profissional, ao ter praticado tais actos, não podia deixar de querer beneficiar JP e JMP, cujos interesses eram contrapostos com os da causa que lhe estava confiada, facto que decorre das regras de experiência comum.” (fls. 1655 e ss., em especial, fls. 1661 e 1662, do processo crime);
33. Realizado o julgamento, por sentença proferida em 01.09.2017, foi o autor absolvido da prática do crime de prevaricação de advogado e condenado como autor de dois crimes de coação, p.p. pelo art.º 154.º, n.º 1, do CP, na pena de 100 dias de multa, por cada crime, em cúmulo jurídico, na pena única de 125 dias de multa à taxa diária de €30,00 (fls. 1963 e ss. Do processo crime);
34. Por acórdão proferido em 12.02.2019, pela Relação de Lisboa foi negado o recurso interposto pelo ora autor dessa sentença e confirmada integralmente a decisão recorrida (fls. 2080 e ss. do processo crime);
35. Apresentada reclamação desse acórdão, por decisão da Relação de Lisboa de 25.07.2019,
foram indeferidas as nulidades arguidas pelo autor, aí arguido (fls. 2116 e ss. do processo crime).
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Nos presentes autos está em causa a responsabilidade civil extracontratual do Estado por alegados danos decorrentes do exercício da função jurisdicional.
Vejamos.


1. Do regime jurídico aplicável ao caso.
1.1.
Segundo o disposto no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa, na redação da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30.09, «[o] Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».
Ou seja, a Constituição consagra o princípio geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas por danos decorrentes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa, por ação ou omissão dos respetivos titulares de órgãos, funcionários ou agentes, lesivos de direitos, liberdades e garantias de outrem. 
Como refere Jorge Miranda, Direito Fundamentais, edição de 2020, página 446 a 448, «[c]onforme decorre do seu lugar sistemático, do confronto com as fórmulas precursoras das Constituições anteriores e com as raras fórmulas paralelas de Constituições de outros países (…), bem como da ligação íntima com outros artigos, ele [o referido artigo 22.º] incorpora um princípio geral. Não apenas todos os direitos devem receber tutela jurisdicional como, se lesados por qualquer modo, à atuação do Estado há de corresponder uma contrapartida de responsabilidade civil», sendo que «tem-se em vista todas as funções do Estado – a administrativa, a jurisdicional, a legislativa e a política strito sensu ou governativa» e o «art.º 22.º é complementado pelo art.º 117.º, n.º 1, sobre responsabilidade dos titulares de cargos políticos, pelos art.ºs 216.º, n.º 2, e 222.º, n.º 5, sobre a responsabilidade dos juízes, e pelo art.º 271.º, sobre responsabilidade dos funcionários e agentes da Administração».


1.2.
No direito ordinário, o regime jurídico relativo à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas encontra-se regulado em anexo à Lei n.º 67/2007, de 31.12, adiante designado por RRCEE, sendo que o respetivo artigo 7.º, n.º 2 foi, entretanto, alterado pela Lei n.º 31/2008, de 17.07, em domínio que aqui não releva.
A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional encontra-se regulada nos artigos 12.º a 14.º do RRCEE.
O artigo 12.º constitui o «regime geral» na matéria, ao passo que o artigo 13.º trata da «responsabilidade por erro judiciário» e o artigo 14.º refere-se à «responsabilidade dos magistrados».
1.3.
No que aqui releva, o artigo 12.º do RRCEE dispõe que «(…) é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça (…) o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa».
Tal pressupõe pelo menos «culpa leve» por parte do agente da justiça, a qual se presume em face da ilicitude da sua ação ou omissão, conforme artigos 9.º e 10.º do RRCEE.
Como refere Guilherme da Fonseca, Julgar 05, maio-agosto 2008, página 54, «a cláusula de remissão [inserta na parte final daquele artigo 12.º] implica que se deva atender às acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve envolvendo só a responsabilidade exclusiva do Estado, por força do regime do art.º 7.º, n.º 1, e aqueles que são cometidos “com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que se encontram obrigados em razão do cargo”, envolvendo a responsabilidade solidária do Estado com os autores dessas acções ou omissões, sendo que se presume “a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos”, por aplicação dos art.ºs 8.º, n.ºs 1 e 2, e 10.º, n.º 2».
1.4.
Por sua vez, o artigo 13.º, n.º 1, do RRCEE preceitua que «[s]em prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões judiciais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos».
Nos termos daquele preceito, o «erro judiciário» reporta-se a situações de patente, ostensiva, evidente, desconformidade do decidido com o regime constitucional e legal vigente ou os respetivos fundamentos factuais.
Como refere José Manuel Cardoso da Costa, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138, n.º 3954, janeiro-fevereiro de 2009, página 162, «(…) a responsabilidade por erro judiciário é limitada às situações de erro grave, ou muito grave, do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor  jurisdicional, já que apenas poderá caber nos casos em que tal percepção contrarie de modo manifesto o sentido normativo autêntico da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente  errada dos factos. Limitada a este tipo de situações, no âmbito dele a responsabilidade por erro judiciário assume agora, porém, um carácter geral, por assim dizer, ou de princípio – já que, por um lado, pode ter lugar no âmbito de qualquer domínio jurídico ou jurisdicional e em razão de qualquer decisão jurisdicional (…) e, por outro lado, poderá ser efetivada desde que a decisão produza um qualquer dano ao interessado (não sendo, pois, necessário um dano anormal ou, sequer, de especial gravidade)».
No mesmo sentido, Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, edição de 2013, páginas 340 e 341, refere que «[o] domínio do erro judiciário abrange, pois, quer a atividade de interpretação e aplicação do direito, quer a atividade de aquisição e valoração dos fundamentos fácticos da decisão».
No dizer do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2023, processo n.º 2138/20.7T8BRG.G1.S1, conforme demais jurisprudência daquele Tribunal aí referida e ainda acórdãos do mesmo Tribunal de 10.05.2016, processo n.º 136/14.0TBNZR.C1.S1 e 12.07.2018, processo n.º 237/16.0T8STR.E1.S1, «[é] entendimento pacífico que apenas o erro evidente, crasso, indesculpável, inadmissível e sem justificação, que só por desatenção ou desleixo foi cometido, pode ser qualificado como erro grosseiro para efeitos do art.º 13º do RRCEE».
1.5.
Noutra perspetiva, ora em termos exclusivamente subjetivos, o referido artigo 12.º integra todos aqueles que se compreendem na «administração da justiça», aí se abrangendo designadamente juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais e órgãos de polícia criminal, ao passo que o apontado artigo 13.º, estando exclusivamente em causa «decisões jurisdicionais», reporta-se tão-só a atos ou omissões cometidas por magistrados judiciais.
Como refere Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, edição de 2013, página 340, «[n]a administração da justiça hoc sensu (ou “administração judiciária”, na fórmula tradicional) compreende-se o vasto conjunto de condutas, incluindo omissivas, correspondentes ao serviço público da Justiça, imputáveis a juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais e outros agentes com competências nos domínios judiciários – ou até ao serviço no seu conjunto. O erro judiciário refere-se, em contrapartida, ao âmbito limitado das decisões judiciais em sentido estrito, ou seja, atuações exclusivas dos juízes que se traduzem na resolução de questões jurídicas através da interpretação e aplicação de preceitos jurídicos aos factos apurados».

1.6.
No erro judiciário a que se reporta o referido artigo 13.º, n.º 1, do RRCEE cabem, em particular, as situações de «sentença penal condenatória injusta» e «de privação injustificada da liberdade» e, em geral, «decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto».
Tal como sucede relativamente ao artigo 12.º do RRCEE, quanto à «violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», também na primeira parte do apontado artigo 13.º, n.º 1, do RRCEE o legislador enuncia a título meramente exemplificativo a «sentença penal condenatória» e a «privação injustificada da liberdade», sendo que no âmbito desta última categoria cabem desde logo as situações a que reportam os artigos 220.º, n.º 1, e 222.º, n.º 2, do CPPenal.
1.7.
Neste contexto, o n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE, estabelecendo que «[o] pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», é aplicável a todo e qualquer «erro judiciário», e, pois, igualmente às situações de «privação injustificada da liberdade» integrantes do n.º 1 do mesmo preceito legal e desde logo é aplicável designadamente a situações a que reportam os artigos 220.º, n.º 1, e 222.º, n.º 2, do CPPenal, sendo que nestes casos, tendo havido pedido de habeas corpus e tendo este sido deferido, com libertação imediata do preso/detido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que assim haja determinado constitui a decisão revogatória a que se refere o n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE.
Em momento prévio à ação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado em virtude de «privação injustificada da liberdade» exige-se, pois, uma decisão judicial que afaste, que revogue, a decisão judicial eivada de erro grosseiro.
Como refere José Manuel Cardoso da Costa, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138, n.º 3954, janeiro-fevereiro de 2009, páginas 163 e 164, “(…) sendo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado «erro» judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo (…) n.º 2 do artigo 13.º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta”.
No mesmo sentido refere Carlos Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, edição de 2011, página 220, que «[o] reconhecimento judicial do erro constitui um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional, sendo uma condição prévia à demonstração da ilicitude, como pressuposto necessário do direito à indemnização. Se não se fizer a prova no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder».
A propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2015, processo n.º 2210/12.9TVLSB.L1.S1, refere que «[e]xige-se no nº 2 do citado art.º 13º que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. Trata-se de opção do legislador derivada da necessidade (…) de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado».
«Assim, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização».
«(…) Podemos, pois, concluir que, "se não se fizer a prova, no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder (…)”».
1.8.
A apontada interpretação conferida ao n.º 2 do artigo 13.º tem merecido diversas reflexões críticas quanto à sua conformidade constitucional – na matéria, veja-se por exemplo Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, edição de 2013, página 357 a 364, e as remissões aí feitas.
Com o devido respeito por entendimento diverso, entendemos, contudo, que com o sentido normativo indicado tal preceito legal não afronta materialmente a Constituição, designadamente com os princípios do Estado de direito democrático, da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva.
Nessa sede, na esteira dos acórdãos n.ºs 90/8471/05, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, decidiu «[n]ão julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
Naquele último acórdão do Tribunal Constitucional refere que «[a]nalisando (…) a solução prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, importa começar por recordar o amplo espaço de conformação legislativa quanto à definição do âmbito e dos pressupostos da responsabilidade do Estado reconhecido pelo artigo 22.º da Constituição (…). Em especial, no que se refere à responsabilidade do Estado por erro judiciário, esta interfere, pelas razões já mencionadas, com a própria configuração e modo de funcionamento do sistema judiciário, tal como prefigurados na Constituição (…), ampliando desse modo ainda mais o campo de intervenção do legislador ordinário. Assim, para além da previsão genérica do direito à reparação pelos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos do estado e demais entidades públicas, que, justamente por ser geral, também deve abranger os juízes e os ilícitos que estes eventualmente cometam no exercício das respetivas funções, não é possível a partir do citado preceito constitucional determinar com mais exatidão os contornos do direito à indemnização fundada em erro judiciário».
«Certo é que a mencionada solução legal não exclui em absoluto tal direito, limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa). Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente predefinido (muito menos a invadi-lo). E, por isso mesmo, também não se pode dizer que essa norma revista a natureza de uma lei harmonizadora destinada a resolver um qualquer conflito de bens jurídicos fundamentais ou de uma lei restritiva de um direito fundamental (…).»
«Em rigor, a norma do artigo 13.º, n.º 2, RCEEP concorre, juntamente com a do n.º 1 do mesmo artigo, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade do Estado por erro judiciário do Estado. É, nessa exata medida, uma lei conformadora ou constitutiva: “não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem da Constituição” (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 213). Na verdade, o direito à indemnização por erro judiciário civil foi fixado, na parte respeitante  à determinação de quem é o juiz competente para realizar a apreciação da decisão judicial danosa, legislativamente pelo artigo 13.º, n.º 2, em causa (cfr. Vieira de Andrade, ibidem, que, na nota 63, refere como exemplo de direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador, entre outros, os direitos às indemnizações previstas nos artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, da Constituição – isto é: as indemnizações por erro judiciário penal)».
«Como explica Vieira de Andrade, “apesar do poder legislativo de configuração, ao juiz cabe ainda verificar o respeito pelo conteúdo essencial do direito (que será em regra o seu conteúdo mínimo) […], avaliado segundo um critério de evidência” (v. o Autor cit., ob. cit., p. 214). Ora, como referido, a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito».
«Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupõe um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária».
1.9.
De todo o modo, com a entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13.09, e consequente redação dos artigos 696.º, al. h), 696.º-A, 701.º e 701.º-A, todos do CPCivil, afiguram-se ultrapassadas as suscitadas questões de constitucionalidade, tal como as decorrentes da aplicação do direito da União e em função do acórdão do TJ 09.09.2015, C-160/14, João Filipe Ferreira da Silva Brito e o./Estado Português.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, Julgar on line, As recentes alterações na legislação processual civil [I Jornadas a Sul], dezembro de 2019, o regime decorrente da Lei n.º 117/2017 «é totalmente compatível com a jurisprudência europeia, dado que esta apenas determinou a impossibilidade da exigência da revogação prévia da decisão violadora de direito europeu quando, em termos práticos, aquela revogação não estava legalmente assegurada para todas as decisões (alegadamente) violadoras de direito europeu. Agora, segundo o novo regime, passa a ser viável a revogação prévia da decisão, independentemente de a violação imputada pelo recorrente à decisão respeitar ao direito europeu ou ao direito interno. Cabe assim acentuar que o novo regime acaba com qualquer diferença entre decisões (supostamente) violadoras de direito europeu e decisões (alegadamente) violadoras de direito interno».
Igualmente em post de 20.04.2020, Jurisprudência 2019 (221), Miguel Teixeira de Sousa refere que «[q]uanto ao regime processual da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, importa agora ter presente o disposto nos art.ºs 696.º, al. h), 696.º-A, 701.º e 701.º-A CPC, todos na redacção da L 117/2019, de 13/9».
«Como não podia deixar de acontecer, a referida dualidade de regimes quanto à necessidade ou à dispensa da revogação prévia da decisão na qual se cometeu o alegado erro judiciário deixa de se verificar no novo regime legal. Agora, a revogação prévia da decisão é obtida, qualquer que seja o fundamento da alegada responsabilidade civil do Estado, no recurso de revisão (cf. art.º 701.º, n.º 1 caput, CPC)».
1.10.
No que respeita à prescrição do direito indemnizatório em causa.
Nos termos do artigo 5.º do RRCEE, «[o] direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição».
O apontado preceito remete o regime prescricional em causa para o artigo 498.º do CCivil, assim como para o disposto neste «Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição».
Ora, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do CCivil, «[o] direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso».  
Do apontado regime legal decorre, assim, que o direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas prescreve no prazo de três a contar da altura em que o lesado teve conhecimento dos pressupostos daquele direito, não se exigindo para o efeito o conhecimento da pessoa responsável e a extensão integral dos danos, sem prejuízo de suspensão do prazo prescricional por motivo de força maior ou dolo do obrigado e, em todo o caso, do prazo prescricional de 20 anos estabelecido no artigo 309.º do CCivil.
Como refere Gabriela Páris Fernandes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, edição de 2018, páginas 375 e 376, a «jurisprudência» tem vindo a esclarecer «que o momento em que se inicia o prazo curto de prescrição é aquele em que sejam conhecidos do lesado os pressupostos da ação de indemnização, traduzidos nos seus elementos fácticos», sendo que «entende a doutrina que, se no final do prazo de prescrição [de três anos] não for conhecida, sem culpa do lesado, a pessoa do responsável, deve aplicar-se o disposto no artigo 321.º, que determina a suspensão do prazo de prescrição durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu direito, por motivo de força maior ou em consequência de dolo do obrigado, no decurso dos últimos três meses do prazo (…)». 
2. Do caso em apreciação.
Embora concluindo pela sua incompetência material quanto ao pedido de condenação do Estado relativamente a alegados «danos ilicitamente causados pela administração da justiça», artigo 12.º do RRCEE, o Tribunal recorrido conheceu do mérito da causa quanto a tal segmento do petitório, conforme princípio da prevalência da decisão de mérito, consagrado no artigo 278.º, n.º 3 do CPCivil.
Tal não foi impugnado em sede recursiva, pelo que tem-se a matéria por assente nos autos, termos em que importa ora tão-só apreciar da prescrição do direito indemnizatório por «danos ilicitamente causados pela administração da justiça», assim como da invocada «responsabilidade por erro judiciário».
Vejamos.
2.1.
A causa de pedir corresponde ao facto ou factos que fundamentam o pedido.
Como referem Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, edição de 2022, «[o] pedido formulado pela parte tem de ser fundamentado, ou seja, tem de assentar numa causa de pedir. A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material ou o direito potestativo alegado pelo autor. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico: é a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir (…). Portanto, a causa de pedir é um conceito processual que é construído com base na previsão de regras de direito substantivo».
2.2.
Na sua petição inicial, quanto à ilicitude e culpa alegadamente ocorridas, o A. fundamenta o seu pedido indemnizatório:
.  Desde logo, na forma como a Polícia Judiciária, designadamente o Inspetor responsável pela condução do processo e a sua Diretora Coordenadora tramitaram o inquérito n.º …/…, ouvindo o ofendido na ausência do seu advogado constituído, aqui A., pedindo informações sobre este e levantando suspeitas quanto à participação do mesmo na atividade criminosa investigada, com comentários depreciativos relativamente à pessoa do A., conforme artigos 26.º a 50.º da petição inicial;
.  Depois, na falta de diligência do Ministério Público que em 16.04.2012 promoveu a detenção do aqui A. fora de flagrante delito, conforme artigos 51.º e 53.º da petição inicial;
. Finalmente, na precipitada decisão judicial de emissão de mandado de detenção fora de flagrante delito do A., a qual foi proferida em 17.04.2012 e decorre alegadamente de uma análise grosseira dos respetivos pressupostos, conforme artigos 52.º, 53.º, 56.º a 61.º da petição inicial.
Ou seja, o pedido indemnizatório do A. decorre de alegados «danos decorrentes do exercício da função judicial».
Estão em causa condutas, por um lado, de agentes da Polícia Judiciária, bem como do Ministério Público e, por outro lado, de Juiz de Direito.
Relativamente àquela primeira situação os danos em causa decorrem alegadamente da «administração da justiça», conforme artigo 12.º do RRCEE, ao passo que na última situação estão em causa danos reportados a uma decisão judicial causadora de «responsabilidade por erro judiciário», conforme artigos 13.º do RRCEE.   
2.3.
A prescrição suscitada no presente recurso respeita tão-só àquela primeira situação, delimitada que está pelos artigos 8.º a 22.º da contestação, em conformidade com o disposto no artigo 303.º do CCivil, devidamente considerada na decisão recorrida, conforme decorre das suas páginas 10 a 13.
Ora, em matéria prescricional relevam os factos dados como provados com os n.ºs 8 a 13, 16 e 20 a 25.
Daquela factualidade resulta que no âmbito do processo n.º 257/12.4TACSC:
. Em 10.04.2012 o queixoso AF foi ouvido na Judiciária sem a presença do aqui A., então seu mandatário judicial,
. Em 16.04.2012 a Polícia Judiciária elaborou um relatório de investigação;
. Em 17.04.2012 o Ministério Público promoveu a emissão de mandatos de detenção fora de flagrante delito relativamente ao aqui A.
. Em 15.05.2012 foi deferida ao aqui A. a consulta do referido processo.
A presente ação foi interposta em 04.09.2020
Ou seja, entre a data em que o aqui A. teve conhecimento do direito indemnizatório ora em causa, maio de 2012, e a propositura da presente ação, em setembro de 2020, decorreram mais de oito anos, pelo que nos termos supra indicados dos artigos 5.º do RRCEE e 498.º, n.º 1, do CCivil, importa considerar prescrito o direito indemnizatório invocado pelo A. na presente ação como decorrente de alegados «danos ilicitamente causados pela administração a justiça», conforme artigo 12.º do RRCEE.
Os acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2007, processo n.º 7348/2006-1, e 14.12.2020, processo n.º 955/09.0TBTVD.L1-1, invocados pelo Recorrente reportam-se a situações diversas da detenção ilegal aqui em causa, sendo que aquele primeiro acórdão foi proferido em data anterior ao RRCEE.
Improcede, pois, nesta parte o recurso.
2.4.
No que respeita à responsabilidade por erro judiciário.
Estão ora em causa decisões proferidas por Juiz de Direito.
Nomeadamente, a decisão do Juiz de Instrução Criminal de 17.04.2012, que determinou a detenção fora de flagrante delito do aqui A., e de 23.04.2012 que validou a sua detenção entretanto ocorrida.
Tal factualidade foi dada como provada, conforme factos apurados com os n.ºs 14, 15 e 21.     
Apurou-se ainda que:
«25. O autor, então arguido, não interpôs recurso do despacho que validou a detenção, o qual transitou em julgado, tendo, em 15.05.2012, interposto recurso do despacho anterior proferido em 17.04.2012 que ordenou a sua detenção, através da emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito. (fls. 790 e ss. do processo crime);
26. Por decisão singular da Desembargadora-Relatora da Relação de Lisboa proferida em 20.09.2013, foi rejeitado por manifesta improcedência o recurso apresentado pelo arguido;
27. Por acórdão de 06.11.2013 da Relação de Lisboa foi rejeitada a reclamação para a conferência apresentada pelo arguido dessa decisão singular».
Isto é, in casu a invocada responsabilidade por erro judiciário não se mostra fundada «na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», conforme referido artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, pois, por um lado, a referida decisão judicial de 23.04.2012 que validou a detenção do aqui A. não foi objeto de recurso e, por outro lado, o recurso da decisão judicial de 17.04.2012 que determinou a detenção do mesmo foi rejeitado por manifesta improcedência. 
Nestes termos e em função do supra exposto, uma vez que o pedido indemnizatório por erro judiciário não se mostra no caso vertente fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, conforme exigência do indicado artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, enquanto pressuposto do direito indemnizatório em causa, improcede também a pretensão do A./Recorrente quanto ao erro judiciário e, pois, também nessa parte o recurso em causa.
A seu favor o Recorrente invoca o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.2013, processo n.º 1963/09.6TVPRT.P1.S1.
Contudo, o presente caso não é de todo em todo subsumível à situação a que se refere tal acórdão, já que o mesmo respeita a uma situação em que foi deferido um pedido habeas corpus em virtude de prisão ilegal, situação que não se verificou in casu.   
Tal como já deixámos dito, em casos como aquele a que se refere o referido acórdão de 05.11.2013, com o deferimento do habeas corpus e a imediata libertação do preso, o Supremo Tribunal de Justiça revoga a decisão judicial que determinou a respetiva prisão, pelo que com tal acórdão relativo ao pedido de habeas corpus mostra-se cumprido o requisito a que se refere o n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE.
 2.5.
Segundo o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPCivil, na parte que aqui releva «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)». 
Nos termos da apontada disposição legal, o Juiz deve abster-se de conhecer de questões cuja apreciação se mostre desnecessária, escusada, inútil, em função de outras anteriormente abordadas e decididas, o que bem se compreende por motivos de coerência lógica do discurso judiciário e de eficiência do sistema de justiça.
 Ora, na situação em apreço, considerando a prescrição do direito indemnizatório por alegados danos ilicitamente causados pela administração da justiça e não procedendo a responsabilidade do Estado por erro judiciário, por a mesma não se fundar na prévia revogação da decisão alegadamente danosa, conforme exposto, mostram-se prejudicadas as demais questões suscitadas pelo Recorrente, nomeadamente o pretendido aditamento de factualidade que considera provada, bem como a apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, nomeadamente o invocado erro grosseiro da sua detenção.
Improcede, assim, o recurso.
*
* *
Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede a pretensão do Recorrente.
Na relação jurídico-processual recursiva o Recorrente configura-se como parte vencida, pois a improcedência do recurso é-lhes desfavorável.
Nestes termos, as custas do recurso devem ser suportadas pelo Recorrente, incluindo naquelas tão-só as custas de parte, conforme artigos 529.º, n.º 4, e 533.º do CPCivil, assim como 26.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais.

V. DECISÃO  
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso, mantendo-se, pois, a decisão recorrida.
Custas, na vertente de custas de parte, pelo Recorrente.

Lisboa, 11 de maio de 2023
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins
Inês Moura