Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20092/19.8T8SNT-A.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: PROCESSO DO TRABALHO
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: É admissível reconvenção da ré empregadora para exercer compensação de créditos de que é titular contra os autores trabalhadores com créditos por estes peticionados na acção (art.os 30.º, n.º 1 do CPT e 126.º, n.º 1, alínea o) da LOSJ).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRelatório.



Na presente acção declarativa, com processo comum, que AAA e BBB intentaram contra CCC, na qual, além do mais, esta deduziu reconvenção contra aqueles pedindo que fosse "considerado procedente e provado o pedido reconvencional deduzido pela Ré Reconvinte e julgado procedente o pedido de litigância de má fé dos AA", a Mm.ª Juiz a quo proferiu despacho saneador que, na parte ora relevante, decidiu que, "não estando reunidos os requisitos de que o artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho faz depender a sua admissibilidade, por não ser processualmente admissível, não se admite a reconvenção deduzida pela Ré".

Irresignada, a ré recorreu desse despacho, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"a)-Vem o presente recurso do despacho saneador com a referência 130718923, que não admitiu a reconvenção deduzida pela Ré, alegando não só que não existe conexão entre os pedidos, mas também que a Ré não pretende operar qualquer compensação.
b)-Segundo o art. 30.º do CPT e 126.º, 1, als. n), o), LOSJ a reconvenção só admissível: i) se emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção; ii) caso se destine a obter compensação; iii) caso o pedido do réu tenha conexão com a acção, por se relacionar com o pedido do autor por acessoriedade, complementaridade ou dependência.
c)-O Tribunal a quo não tem razão quando a final do capítulo III do despacho saneador alega que a Ré não pretende operar qualquer compensação, já que a mesma foi expressamente invocada.
d)-Com efeito, quer no artigo 52.º da 1.ª contestação, quer no artigo 143.º da 2.ª contestação (na sequência de um pedido de aperfeiçoamento dos pedidos dos AA decretados pelo Tribunal), a compensação é expressamente invocada justamente para que a reconvenção tivesse cabimento legal.
e)-Assim sendo, nos termos do artigo 30.º do Código do Processo de Trabalho, a reconvenção é legalmente admissível e deve outrossim ser admitida, com as legais consequências.
f)-Existe jurisprudência abundante sobre a admissibilidade da reconvenção quando a compensação é invocada a saber: Acórdão do STJ 03/05/2006, processo: 06S251; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03/12/2020, processo: 3339/19.8T8BCL-A.G1; Acórdão da Relação de Coimbra de 12/05/2016, processo: 1056/15.7T8CLD-A.C1 entre muitos outros. Todos in www.dgsi.pt.
g)-Portanto, dúvidas não podem restar de que, tendo a Ré invocado expressamente a compensação, nem sequer tinha que demonstrar conexão dos pedidos, que efectivamente não existe, pelo que a reconvenção deve ser admitida, sendo revogado o despacho saneador, na parte em que não admite a reconvenção, sendo outrossim substituído por um despacho que admita a reconvenção da Ré, pelo facto da mesma ser legalmente admissível, seguindo-se os ulteriores termos do processo".

Os autores não contra-alegaram.

Os autos foram com vista ao Ministério Público, tendo o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da decisão ser confirmada, negando-se provimento ao recurso de apelação interposto pela ré.

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[1] Assim, a questão a resolver consiste em saber se:
a reconvenção deduzida pela ré contra os autores deve ser admitida.

***

IIFundamentos.

1.O despacho recorrido:
"Do disposto no artigo 30.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, conjugado com o artigo 126.º, n.º 1, alínea o) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, resulta que, em processo laboral ('Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 98.º -L'), a reconvenção é admissível:
a)-quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
b)-quando o mesmo tenha com o facto jurídico que serve de fundamento à acção uma relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência, salvo no caso de compensação, em que a conexão é dispensada; desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal.

Assim, enquanto que no processo civil, por decorrência do disposto no artigo 266.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, é admissível a reconvenção quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa, no processo laboral, o artigo 30.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, restringe essa admissibilidade à situação em que o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção.

Daqui decorre que, no âmbito do processo laboral, não é admissível reconvenção com base no facto jurídico que serve de fundamento à defesa.

Conforme nota Leite Ferreira, in Código de Processo do Trabalho Anotado, 4.ª edição, pág. 167, esta restrição da admissibilidade da reconvenção no domínio do processo laboral visa 'evitar que o réu, normalmente a entidade patronal, se servisse da acção contra si proposta, em regra, por um trabalhador, para, fora do campo da defesa directa ou propriamente dita, passar a atacar este com uma contra-acção'.

Esclarece o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Maio de 2006, processo n.º 06S251, disponível in www.dgsi.pt, que a expressão 'facto jurídico que serve de fundamento à acção' empregue no artigo 30.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, quer pelo seu teor literal e pela sua inserção sistemática em capítulo intitulado 'Instância', em que é regulada a cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir (cfr. artigo 28.º), só pode ser entendida como referindo-se à causa de pedir, ao facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão.

Ora, no caso, a reconvenção deduzida pela Ré não se funda na causa de pedir em que os Autores sustentam a sua pretensão (a saber, créditos laborais vencidos e não pagos, mais propriamente, retribuição relativa a 18 dias de trabalho prestado no mês de Dezembro de 2018, proporcionais de férias e subsídios de férias relativos ao ano da cessação do contrato, férias vencidas e não gozadas e trabalho suplementar, para além de indemnização por danos não patrimoniais causados pelo alegada situação de desemprego involuntário em que foram colocados, consubstanciada num despedimento operado pela Ré 'simulado' em denúncia do contrato pelos Autores), mas antes numa causa de pedir autónoma e distinta (relacionada com a alegada apropriação ilícita pelos Autores de quantias que não lhes pertenciam).

Ou seja, o pedido da Ré não emerge do(s) facto(s) jurídico(s) que serve(m) de fundamento à acção.

Por outro lado, a reconvenção deduzida não tem cabimento no artigo 126.º, n.º 1, alínea o) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que se reporta às questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão, referindo-se a alínea anterior às questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente.

Tais relações de conexão, para que operem, devem estabelecer-se entre as questões reconvencionais e a acção, ou seja quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.

Como refere, Leite Ferreira, ob. cit., a conexão pode resultar duma relação de acessoriedade, complementaridade ou dependência, pressupondo a conexão objectiva, em qualquer dos casos, uma causa dependente de outra. Na acessoriedade a causa subordinada é objectivamente conexa e dependente do pedido da causa principal; na complementariedade, ambas as relações são autónomas pelo seu objecto, mas uma delas é convertida, por vontade das partes, em complemento da outra; na dependência, qualquer das relações é objectivamente autónoma, como na complementariedade, simplesmente o nexo entre ambas é de tal ordem que a relação dependente não pode viver desligada da relação principal.

Ora, no caso, não existe conexão objectiva entre os pedidos dos Autores e o pedido da Ré. De resto, o pedido da Ré apenas se relaciona com a relação laboral que serve de fundamento à presente acção de forma muito mediata, pois teria sido no âmbito da relação laboral estabelecida com os Autores que, alegadamente, estes teriam tido acesso aos meios que lhes permitiram, na alegação da Ré, apropriar-se ilegitimamente das quantias que esta refere.

A causa subordinada - a da reconvenção - não é objectivamente conexa e dependente do pedido da causa principal (acessoriedade), nem se pode afirmar que, sendo ambas relações autónomas pelo seu objecto, uma delas teria sido convertida, por vontade das partes, em complemento da outra (complementaridade), nem, mesmo, que o nexo entre ambas seja de tal ordem que a relação dependente não pode viver desligada da relação principal (dependência); pelo contrário, ambas são rigorosamente independentes e um pedido não depende, em nada, do outro.

Por fim, de registar, que a Ré não pretende fazer operar qualquer compensação.

Nestes termos, não estando reunidos os requisitos de que o artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho faz depender a sua admissibilidade, por não ser processualmente admissível, não se admite a reconvenção deduzida pela Ré".

2.Outros factos processuais relevantes:
a)-Citada, a ré apresentou articulado que assim muito se resume:
CCC, Ré nos autos acima identificados, notificada da petição aperfeiçoada vem apresentar a sua nova
CONTESTAÇÃO COM RECONVENÇÃO
o que o faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
(…)
III–Da Reconvenção
24.º
Atendendo ao enorme valor que os AA deviam à Ré, titulado pela confissão de dívida, obviamente que tendo sido apurados os créditos laborais devidos pela saída dos AA. estes não lhe foram pagos e foram usados na compensação do muito que os AA. deviam à Ré.
(…)
52.º
Por mera cautela de patrocínio e sem conceder, caso o Tribunal venha a considerar terem os AA créditos laborais sobre a Ré, deverão os mesmos considerar-se compensados pelo valor que de seguida se invoca em sede reconvencional.
(…)
155.º
Paralelamente, uma vez que aos AA, bem como a outro trabalhador da Quinta, (…), foram disponibilizados cartões de crédito – cujo perfil de utilização permitia-lhes cumulativamente:
a)-Levantamentos em ATM’s com o limite diário de € 400,00 (por cartão);
b)-Pagamentos a fornecedores, cujo limite (plafond mensal) para todo o conjunto de cartões de crédito emitidos à Ré ascende a € 6.250,00.
156.º
Foram, assim, emitidos os cartões de crédito com os números (…) (para uso do A. AAA e (…) (para uso da A BBB), encontrando-se os mesmos associados à conta à ordem n.º 0000 .... ...., titulada pela Ré junto do … – cfr. Documento n.º 10 - 1ª Contestação, correspondente a cópia do rosto dos cartões emitidos e disponibilizados aos AA– sendo que até Janeiro de 2015, a A. BBB utilizou um cartão de crédito identificado com número terminado em '…' e o A. Leo utilizou outro com número de identificação terminado em …'.
162.º
Para grande espanto e surpresa da Ré, foi apurado que os AA se apropriaram indevidamente de quantias de valor superior a € 100.000,00, entre 2014 e 2018 – conforme descrição detalhada que infra se realizará.
157.º
Por esgotarem o limite da al. b) do artigo 62.º ut supra, começaram a ser feitos pelos AA vários pedidos de pagamento antecipado do extracto dos cartões usados, que deveria ser exclusivamente utilizados pelos AA na gestão corrente da (…).
158.º
Os quais foram anuídos pela Ré, atendendo à relação de confiança que existia.
(…)
162.º
Para grande espanto e surpresa da Ré, foi apurado que os AA se apropriaram indevidamente de quantias de valor superior a € 100.000,00, entre 2014 e 2018 – conforme descrição detalhada que infra se realizará.
(…)
238.º
Em suma, os AA apropriaram-se ilegitimamente da quantia total de € 103.270,00 (cento e três mil duzentos e setenta euros), sendo que parte dessa quantia € 71.071 (setenta e um mil e setenta e um euros) se encontra assegurada por uma confissão de dívida, a qual repete-se foi legitimamente obtida e que é, portanto, válida.
239.º
Assim sendo nesta sede a Ré peticionará apenas a diferença entre o valor global da dívida e o valor ainda não confessado pelos AA, pois não aceita de forma alguma que o valor anteriormente confessado seja agora questionado, pelo que ira envidar pela sua cobrança coerciva na sede própria.
240.º
Assim sendo, além do valor que os AA confessaram dever em 18 de Dezembro de 2018, devem ainda à Ré a quantia de € 32.199,00, quantia essa que vence juros pelo menos desde a data da demissão dos AA, o que à data de hoje se calculam em € 1.429,11, à qual acrescerão os juros que se vencerem até integral pagamento.
241.º
Em suma o pedido reconvencional totaliza € 33.628,11 (trinta e três mil seiscentos e vinte oito euros e onze cêntimos), o qual os AA reconvintes deverão ser condenados a pagar, com as legais consequências".

b)- concluindo, em síntese, pedindo que:
"… deverá a presente acção ser julgada improcedente por não provada e, em consequência, ser a Ré absolvida da totalidade dos pedidos, devendo outrossim ser considerado procedente e provado o pedido reconvencional deduzido pela Ré Reconvinte, bem como julgado procedente o pedido de litigância de má fé dos AA."

c)-O Valor da causa é de € 31.512,46.

3.O direito.
A recorrente empregadora apelou do despacho da Mm.ª Juiz a quo que lhe não admitiu a reconvenção deduzida contra os autores, que foram seus trabalhadores, alegando que só por lapso da Mm.ª Juiz tal se pode compreender uma vez que na contestação deduziu a reconvenção contra aqueles com vista a obter a compensação e isso a tal a habilitava nos termos conjugados dos art.os 30.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e 126.º, n.º 1, alínea o) da Lei da Organização do Sistema de Justiça.

A tese do decisão recorrida é que os pedidos formulados na reconvenção não resultam dos factos alegados pelos reconvindos na acção mas pela própria reconvinte por via da defesa e acobertou essa decisão no disposto pelo art.º 30.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, conjugado com o art.º 126.º, n.º 1, alínea o) da Lei da Organização do Sistema de Justiça.

O art.º 30.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho estatui que "sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 98.º-L, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e nos casos referidos na alínea o) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal".

Por sua vez, o art.º 126.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema de Justiça estabelece que "compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: o) Das questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão"; sendo certo que na alínea anterior desse normativo se refere: "n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja directamente competente".

O valor da causa excede manifestamente o da alçada do tribunal a quo, pois que monta a € 31.512,46 e este último é de € 5.000 (art.º 44.º, n.º1 da Lei da Organização do Sistema de Justiça), pelo que não impedia a dedução da reconvenção.

Por seu turno, com o pedido reconvencional pretendeu a apelante ré exercer a compensação, pelo que não restam dúvidas de que lhe assistem razão.[2] Aliás, deve dizer-se que terá sido mesmo por lapso da Mm.ª Juiz a quo que não admitiu a reconvenção pois que na fundamentação da sua decisão não questionou a admissibilidade quando se pretender exercer a compensação de créditos, antes deu por suposto que nesse caso a lei nem sequer exige "as relações de conexão referidas na alínea anterior".[3]

Assim sendo, deve conceder-se a apelação e revogar o despacho recorrido, devendo a Mm.ª Juiz a quo proferir despacho em que, caso nada de diverso do ora apreciado a tal obste, admita a reconvenção da ré.

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IIIDecisão.
Termos em que se acorda conceder a apelação e revogar o despacho recorrido, devendo a Mm.ª Juiz a quo proferir novo despacho em que, caso nada de diverso do ora apreciado a tal obste, admita a reconvenção da ré.
Sem custas (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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Lisboa, 12-01-2022.



(António José Alves Duarte)
(Maria José Costa Pinto)
(Manuela Bento Fialho)



[1]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[2]Neste sentido, vd. a jurisprudência citada pela apelante, a qual, com data venia, se dá por reproduzida.
[3]Citação retirada do segundo parágrafo da terceira folha do despacho recorrido, que do processo digital é folhas 118.