Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1104/17.6Y5LSB.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: RECURSO DE CONTRAORDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE DA PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Em matéria de responsabilidade de pessoas colectivas, o regime contraordenacional do art.º 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não tem paralelo na responsabilidade criminal.
II – Se verificarmos a al. a), do n.º 1, do art.º 11.º, al. a), do CP, o modelo aí adoptado é o da hétero-responsabilidade, mas já na al. b) temos um modelo misto, mas não encontramos um modelo autónomo, em que a pessoa colectiva seja responsabilizada por não se ter organizado para evitar o cometimento de crimes.
III - Esta responsabilidade autónoma assume particular importância na actualidade, sobretudo em virtude dos denominados programas de compliance, que, a serem efectivos, poderão levar à irresponsabilidade da pessoa colectiva, como já se prevê no art.º 31.º bis do Código Penal Espanhol (em Itália e França há regimes que se aproximam). É o denominado direito penal amigo.
IV – A culpa na prática das contraordenações não tem as exigências éticas da culpa penal. Nesta, e partindo sempre de um direito penal do facto, há que formar um juízo de censura sobre a conduta do agente por ter violado um dever ser ético, que lhe era exigido face aos bens jurídicos protegidos pela lei penal, em última análise assentes na dignidade da pessoa humana. Nas contraordenações, como se refere no preâmbulo do DL 433/82, o seu aparecimento “ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.”.
V - Por conseguinte, face a estas menores exigências éticas e à redacção da lei, é nosso entendimento que, ao invés do que sucede no direito penal português, no art.º 7.º, n.º 2, do DL 433/82, estamos perante um modelo de responsabilidade autónoma das pessoas colectivas, em que estas são responsabilizadas por não se terem organizado para evitar o cometimento de contraordenações. (Sumariado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz … do Juízo Local Criminal de ....., Tribunal Judicial da Comarca de ....., foi proferido despacho a rejeitar a decisão administrativa recorrida/acusação e a determinar o imediato arquivamento do processo.
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, concluindo do seguinte modo:
“1 – É na parte respeitante à rejeição da decisão administrativa e determinação de arquivamento dos autos que se interpõe o presente recurso
2 – Resulta dos autos que, após um anterior primeiro reenvio da decisão administrativa para a entidade competente para esta suprir determinados vícios dos quais padecia tal decisão – a saber, em súmula, a indicação de quais as pessoas que em concreto praticaram os factos imputados à sociedade arguida – e após ter sido proferida nova decisão, os autos foram novamente impugnados judicialmente.
3 – No despacho ora sob recurso, entende o Mmo. Juiz a quo que novamente a decisão administrativa padece do mesmo vício.
4 – E com tal fundamento, decidiu-se agora rejeitar a decisão administrativa/acusação por aplicação analógica in casu do disposto no art. 311º do Cód. Proc. Penal.
5 – Ora, na decisão administrativa agora proferida imputa-se a alguém em concreto – o representante legal da arguida – a responsabilidade pelo sucedido e que deu causa à aplicação da contraordenação em apreço nos presentes autos (cfr. alíneas h) e i) dos factos provados).
6 – Mas, ainda que assim não ocorresse, sempre, nos termos do Parecer nº 11/2013 de 16 de Setembro não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infracção para que a mesma seja imputável à pessoa colectiva.
7 – Ora, em nosso entender, quer a pessoa singular se encontra explicitada nos factos provados na decisão administrativa (representante legal da arguida), quer, mesmo que assim não sucedesse, sempre seria de imputar a infracção cometida à arguida/pessoa colectiva.
8 – Assim, verifica-se que o despacho recorrido violou o disposto no art. 311º do Cód. Proc. Penal (por aplicação analógica) ao rejeitar a decisão administrativa/acusação e ao determinar o arquivamento dos autos.
9 – Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado e determinada a sua substituição por outro que receba a decisão administrativa/acusação, admita o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida e designe data para realização de Audiência de Julgamento”.
Não foi oferecida resposta ao recurso.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
*
II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
É o seguinte o fundamento do recurso: quer a pessoa singular se encontra explicitada nos factos provados na decisão administrativa (representante legal da arguida), quer, mesmo que assim não sucedesse, sempre seria de imputar a infracção cometida à arguida/pessoa colectiva”.
*
III – Fundamentação
O despacho recorrido conclui do seguinte modo:
“Em conclusão: a decisão administrativa tem de circunstanciar e concretizar necessariamente quem atuou, como e em que circunstâncias atuou, se o fez de forma consciente ou voluntária (dolo) ou se omitiu o dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz (negligência), contra ou de acordo com as ordens da pessoa coletiva, sob pena de não ser possível estabelecer o nexo de imputação prevenido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO.
Não existindo dúvidas sobre a possibilidade de responsabilizar uma pessoa coletiva por atos cometidos pelos seus agentes, trabalhadores ou funcionários, menos ou nenhuma dúvida há de que no caso não ficou demonstrado qualquer nexo de imputação objetiva entre a prática da contraordenação e a arguida/recorrente, não bastando para afirmar esse nexo, v.g., um simples vínculo laboral com o autor material da infração ou, no caso, o exercício de certas funções no âmbito da direção e gestão empresarial. É, aliás, o que se retira da leitura atenta do Parecer n.º 11/2013, de 16 de setembro, cujo sumário surge transcrito na decisão impugnada, bem como da demais Jurisprudência e Doutrina.
Esta insuficiência factual determina uma situação análoga à prevista no artigo 311.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, dando lugar, nesta fase, à rejeição liminar da decisão administrativa/acusação e ao arquivamento do processo, pois é inaplicável o regime previsto para a nulidade das sentenças penais”.
*
São os seguintes os factos constantes da decisão administrativa impugnada:
a) No dia 18/04/2013, pelas 10h30m, foi realizada uma ação de inspeção ao estabelecimento denominado Navalrocha - Sociedade de Construção e Reparação Navais, S.A., sito em Estaleiro da Rocha Conde de Óbidos, 1350-352 Lisboa, pertencente a Navalrocha - Sociedade de Construção e Reparação Navais, S.A. (doravante, Arguida), NIPC 504438035, com sede no mesmo local, tendo como Presidente do Conselho de Administração AA.
b) A Navalrocha dedica-se à reparação de embarcações metálicas (aço e alumínio), de média dimensão, com um comprimento médio de 90 a 100 m. A empresa tem também autorização para a construção de embarcações, mas nos últimos anos não tem realizado esse tipo de trabalhos.
c) A empresa encontra-se abrangida pelo Decreto-Lei n.º 147 /2008, de 29 de julho (responsabilidade ambiental aplicável à prevenção e reparação dos danos ambientais), em virtude de no estaleiro serem utilizadas algumas substâncias ou preparações perigosas, como são exemplos tintas e diluentes, abrangidas nas alíneas a) e b) do n.º do anexo III do referido Decreto-Lei.
d) Assim, foi solicitado comprovativo de constituição de garantia financeira obrigatória (artigo 22.º do DL), tendo os responsáveis da empresa informado que ainda não possuíam tal garantia, apesar de terem já solicitado informações, em 2012, a uma companhia de seguros, sobre a constituição de um seguro que cubra estas obrigações.
e) Foi contatado o responsável pela área de qualidade, ambiente e segurança daquele estabelecimento, BB.
f) Em 23/01/2015, a entidade Lusitânia Seguros emitiu a Acta N. 001 nos seguintes termos: “Pela presente acta se declara que a Apólice acima referenciada foi alterada a partir de 07/01/2015, passando a vigorar de acordo com as condições particulares a seguir discriminadas e condições especiais (002, 003). [...] O seguro tem início em 07/01/2015 e termina em 06/01/2016 [...] Contrariamente ao exarado nas condições particulares, a alínea cc) da cláusula 59 das condições gerais é que passa a ter a seguinte redação: Exclusão dos danos causados por incêndio, raio ou explosão. Todavia, as coberturas do presente contrato serão aplicáveis em caso de emissão, dispersão, eliminação ou depósito de quaisquer substâncias sólidas, líquidas ou gasosas difundidas pela atmosfera, pelos solos e pelos meios aquáticos, na sequência de um incêndio ou explosão. [...] O presente contrato só garante parte das responsabilidades definidas no DL 147/2008 de 29 de julho. ...”.
g) A Arguida declarou em sede de IRC, relativamente ao exercício de 2012, um lucro tributável no valor de€ 475.244,52.
h) A Arguida, na pessoa do seu representante legal, exerce atividade regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 147 /2008, de 29 de julho.
i) Não o tendo feito, a Arguida, na pessoa do seu representante legal, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem censurabilidade aos factos supra descritos ou que excluam a ilicitude da sua conduta.
*
Decidindo, cumpre desde logo considerar que, em matéria de responsabilidade de pessoas colectivas, o regime contraordenacional do art.º 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não tem paralelo na responsabilidade criminal.
Sem prejuízo das alterações que possam advir da legislação que foi aprovada na Assembleia da República no passado dia 19 de Novembro, e que ainda aguarda promulgação do Presidente da República e publicação em DR, o sistema de responsabilidade criminal das pessoas colectivas – art.º 3.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, e art.º 11.º do Código Penal – consagra modelos de hétero-responsabilidade e misto, mas não modelos puramente autónomos.
Se verificarmos a al. a), do n.º 1, do art.º 11.º, al. a), do CP, o modelo aí adoptado é o da hétero-responsabilidade, mas já na al. b) temos um modelo misto, mas não encontramos um modelo autónomo, em que a pessoa colectiva seja responsabilizada por não se ter organizado para evitar o cometimento de crimes.
Esta responsabilidade autónoma assume particular importância na actualidade, sobretudo em virtude dos denominados programas de compliance, que, a serem efectivos, poderão levar à irresponsabilidade da pessoa colectiva, como já se prevê no art.º 31.º bis do Código Penal Espanhol (em Itália e França há regimes que se aproximam). É o denominado direito penal amigo.
Vistos os modelos seguidos na responsabilidade criminal das pessoas colectivas, cumpre então apreciar o art.º 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Importa ainda previamente dizer que a culpa na prática das contraordenações não tem as exigências éticas da culpa penal. Nesta, e partindo sempre de um direito penal do facto, há que formar um juízo de censura sobre a conduta do agente por ter violado um dever ser ético, que lhe era exigido face aos bens jurídicos protegidos pela lei penal, em última análise assentes na dignidade da pessoa humana. Nas contraordenações, como se refere no preâmbulo do DL 433/82, o seu aparecimento “ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.”.
Por conseguinte, face a estas menores exigências éticas e à redacção da lei, é nosso entendimento que, ao invés do que sucede no direito penal português, no art.º 7.º, n.º 2, do DL 433/82, estamos perante um modelo autónomo de responsabilidade das pessoas colectivas.
Vejamos:
- No art.º 3.º do DL 28/84, as pessoas colectivas são responsabilizadas pelas infracções quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo: hétero-responsabilidade;
- No art.º 11.º, n.º 1, al. a), do CP, a responsabilidade das pessoas colectivas resultam de actos cometidos em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança: hétero-responsabilidade;
- No art.º 11.º, n.º 1, al. b), também há responsabilidade das pessoas colectivas quando os actos são praticados por quem aja sob a autoridade de quem ocupa uma posição de liderança, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem (modelo misto de responsabilidade autónoma dos líderes e de hétero-responsabilidade da pessoa colectiva); e
- no art.º 7.º, n.º 2, do DL 433/82, as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções. Só isto. Não se exige que actue em nome do interesse colectivo, apenas no exercício de funções. O que significa responsabilidade autónoma da pessoa colectiva.
Aqui chegados, e passando ao caso concreto, nas alíneas h) e i) refere-se que a arguida, na pessoa do seu representante legal, tinha obrigação de conhecer e cumprir o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 147 /2008, de 29 de julho, e que, não o tendo feito, a arguida, na pessoa do seu representante legal, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem censurabilidade aos factos supra descritos ou que excluam a ilicitude da sua conduta.
Aqui encontramos o modelo de responsabilidade autónoma, em que a pessoa colectiva é responsabilizada por não se ter organizado para evitar o cometimento de contraordenações.
Resta dizer, face ao que vimos dizendo e perante esta responsabilidade autónoma da pessoa colectiva, não é necessário identificar quem foi a pessoa singular autora material dos factos.
Basta-nos o que temos nas mencionadas alíneas h) e i), concatenadas com as al. a) e e), para responsabilizar a pessoa colectiva: sabemos quem são o presidente do conselho de administração e o responsável pela área de qualidade, ambiente e segurança - assim considerados pelas suas funções - e está presente a violação do dever de agir pela pessoa colectiva para evitar o cometimento da contraordenação.
E assim procede o recurso.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em sequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que receba a decisão administrativa/acusação e cumpra os demais ulteriores termos processuais.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Dezembro de 2021
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira