Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5443/21.3T8ALM-A.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
DEVER DE DILIGÊNCIA
MULTA PROCESSUAL
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A conduta do devedor que, estando obrigado a pagar determinada quantia, efetua uma transferência bancária, sem comunicar ao credor que procedeu a essa transferência e sem fazer constar deste ato elementos que permitissem ao credor identificar o autor da transferência, constitui ação praticada com negligência consciente, tal como definida pela al. a), do art.º 15.º, do C. Penal.
 2. Nessas circunstâncias, a ação do credor ao requerer ação executiva, na ignorância dessa transferência bancária, não configura um ato praticado sem a prudência normal, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 858.º, do C. P. Civil.
(pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
Nos autos de oposição à execução requerida por José … contra … Seguros SA foi proferida sentença, julgando a oposição procedente, declarando extinta a execução e condenando o embargado no pagamento de indemnização à embargante no valor de € 200,00, de multa no valor de 10 ucs e de custas com taxa sancionatória especial no valor de 4 ucs.
Inconformado com essa decisão, o exequente/embargado dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação na parte em que o condenou em € 200,00 a título indemnizatório, no pagamento de multa e taxa sancionatória especial, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
1. Com o merecido respeito, não se poderão considerar preenchidos todos os pressupostos subjacentes aos artigos 858.º e 866.º ambos do CPC, máxime, o relativo à atuação do Exequente em desrespeito da prudência normal;
2. A Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte, que conjuntamente com uma Decisão Judicial condenatória configurou o Título Executivo compósito que serviu de base à respetiva ação executiva, foi remetida à então Executada aqui Apelada em 12 de Abril de 2021, - Cfr. § 1 dos Factos Provados
3. Em 07 de Junho de 2021, volvidos cerca de dois meses, atendendo ao facto de a Apelada não liquidar as quantias em dívida, entendeu por bem o Apelante interpelar a aqui Apelada no sentido de a mesma realizar o pagamento da quantia devida, concedendo, para o efeito, o prazo de 10 dias. - Cfr. § 4 dos Factos Provados
4. Comportamento que, salvo melhor e douto entendimento, é revelador da boa-fé com que o Apelante sempre pautou o seu comportamento em todo o presente processo.
5. Se, por um lado, o Apelante procurou sempre a cobrança do seu crédito por via extrajudicial, privilegiando assim o diálogo, por outro lado, a Apelada limitou-se a realizar uma transferência bancária sem realizar qualquer comunicação ou esclarecimento, transferência bancária essa que surge identificada com a expressão “GS GERAL”, expressão da qual não resulta qualquer indicação ou referência que permitisse relacionar tal transferência com o respetivo crédito; - Cfr. § 11 e 12 dos Factos Provados
6. Impendendo sobre a Apelada, na sua qualidade de então devedora, o dever de proceder de boa-fé no cumprimento da respetiva obrigação conforme resulta do artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil;
7. Assim, devido o facto de a Apelada somente se ter dignado a proceder ao pagamento volvidos mais de dois meses e de ter empregado uma expressão para identificar a transferência, que em nada se relacionaria com o processo judicial, dúvidas não se colocam que a mesma não cumpriu com a sua obrigação em conformidade com as regras mais básicas da boa-fé que lhe era exigida;
8. Outro aspeto que importa aqui salientar, prende-se com o facto de a transferência ter sido realizada para uma conta bancária que funciona como conta de clientes do escritório do mandatário do Apelante, conta esse que regista, diariamente, inúmeras movimentações; - Cfr. § 12 dos Factos Provados
9. Contexto que tornou a concreta transferência totalmente inidentificável quer para os funcionários administrativos do escritório do mandatário quer para o próprio mandatário do Apelante; - Cfr. § 12 dos Factos Provados
10. Tudo pelo facto de a Apelada não se ter dignado a indicar um único elemento que permitisse identificar a razão subjacente a tal transferência, sendo que, para o efeito, bastaria, por exemplo, o número do processo judicial;
11. Recorde-se que a própria Apelada demonstrou a extrema dificuldade sentida em identificar os comprovativos de uma transferência por si realizada; - Cfr. artigo 12.º da PI de embargos
12. Pelo que, por maioria de razão, terá de se concluir que se uma pesquisa de determinada transferência que se sabe ter existido levou horas a ser localizada pela própria Apelada, a identificação de uma transferência com origem totalmente desconhecida e cuja descrição se encontra integralmente desprovida de qualquer significado útil inviabilizou a identificação por parte do Apelante e respetivo mandatário da origem da transferência em questão nos presentes autos;
13. Denote-se que a ora Apelada incorreu em mora por um período de tempo que ascendeu praticamente a 2 meses, pelo que em momento algum o Apelante concebeu que a mesma viesse a proceder ao pagamento da quantia devida sem realizar qualquer tipo de comunicação…
14. Tendo somente sido possível descortinar a origem da concreta transferência após a apresentação do Articulado Inicial que deu origem ao presente apenso.
15. Não restando assim dúvidas que o ora Apelante somente desencadeou o presente processo judicial pelo facto de desconhecer (sem qualquer culpa) que a correspondente dívida se encontrava liquidada;
16. Entendendo-se assim que o Apelante não só agiu em conformidade com a prudência normal que lhe seria exigível como foi para além da mesma;
17. Importa aqui dar nota, como ponto comum a ambos os regimes previstos nos artigos 858.º e 866.º do CPC, a necessidade de existirem «danos culposamente causados ao executado» em virtude de uma atuação do exequente;
18. Sendo que, a única culpa que pode ser atribuída ao Apelante é não dispor de poderes advinhatórios para conseguir identificar a origem de uma transferência surgida numa conta bancária que regista, por dia, inúmeras operações
19. Ademais, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, a única parte que no presente caso se viu prejudicada foi o Apelante: repare-se que o mesmo viu o seu crédito vencido não liquidado pela devedora aqui Apelada durante um período de tempo que ascendeu a praticamente 2 meses, suportou encargos inerentes à prévia interpelação da Apelada para cumprimento das suas obrigações e ainda todas as despesas relacionadas com o processo executivo, encargos esses que poderiam ter sido escusados ou manifestamente diminuídos se a Apelada agisse de boa-fé;
20. Deste modo resulta evidente que o Apelante atuou com o grau de exigência que lhe era exigível, impondo-se deste modo a revogação da douta decisão recorrida, substituindo-se a mesma por douto Acórdão que declare a extinção da execução, por inutilidade superveniente da lide em conformidade com a alínea e) do artigo 277.º do CPC. b) Da responsabilidade pelo pagamento das custas processuais
21. Condenou ainda o Tribunal a quo o ora Apelante em custas acrescidas de uma taxa sancionatória especial no montante equivalente a 4 UC, invocando o tribunal a quo a regra geral constante do artigo 527.º do CPC;
22. Sucede que, salvo melhor e douto entendimento não será a referida regra geral aplicável aos presentes autos, já que assume o artigo 527.º do CPC natureza de regra geral, pelo que a sua aplicação dependerá sempre do não preenchimento da previsão das normas especiais previstas nos artigos 528.º e seguintes do CPC;
23. Assim, atendendo ao concreto caso, importa aqui observar o disposto no artigo 536.º do CPC, especialmente o seu n.º 3, segundo o qual, «Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.» (negrito e sublinhados nossos);
24. Atendendo ao facto de a inutilidade superveniente da lide se dever à Apelada, a norma relativa à responsabilidade por custas aplicável no presente caso reside não no artigo 527.º do CPC conforme referido pelo Tribunal a quo, mas sim no artigo 536.º, n.º 3 do CPC, pelo que deverá não o Apelante mas sim a Apelada ser condenada em custas;
25. Acresce, também, que em face do que resultou provado sob os § 1, 4, 11 e 12, deverá concluir-se que a Apelante atuou com o grau de exigência que lhe era exigível, não lhe podendo ser imputado um comportamento culposo na instauração da execução, em concreto, face ao que resultou provado sob os § 11 e 12;
26. Todavia, referiu ainda o Tribunal a quo que «(…) apenas ao destinatário da transferência cabe apurar a proveniência da mesma implicando que, para tal, deverá criar os mecanismos adequados a proceder a essa identificação. (…)»;
27. Impera salientar que o Tribunal a quo não obstante tal afirmação, não consegue elencar um único modo segundo o qual o Apelante poderia ter conseguido identificar a proveniência da transferência; 28. Repare-se que a transferência foi realizada de uma conta bancária totalmente desconhecida do Apelante tendo surgido identificada com a expressão «GS GERAL» o que, de forma alguma, poderia indiciar ao Apelante que tal transferência era da autoria da Apelada; - Cfr. § 11 e 12 dos Factos Provados
29. Note-se que uma entidade da dimensão da aqui Apelada admitiu ter sentido extremas dificuldades para localizar uma transferência que sabia ter realizado (Cfr. artigo 12.º da PI da embargos), pelo que será, no mínimo, legítimo esperar que uma entidade de menor dimensão mas com uma conta bancária que regista inúmeras movimentações diárias não consiga identificar a origem de todas as transferências a não ser, claro está, que as mesmas surjam devidamente identificadas, o que, claramente não ocorreu no presente caso;
30. Certo é que o Apelante atuou com a prudência e diligência que lhe seria exigível, recorde-se que o mesmo somente avançou com a ação executiva após várias semanas de mora por parte da Apelada e somente após ter procedido a uma segunda interpelação no sentido de evitar um recurso desnecessário às vias judiciais, algo que somente não foi evitado pelas condutas supra descritas adotadas pela Apelada;
31. Termos em que, em face do que resultou provado sob os § 1, 4, 11 e 12, e por se considerar que a Apelante atuou com o grau de exigência que lhe era exigível, não lhe podendo ser imputado um comportamento culposo na instauração da execução, deverá revogar-se a douta sentença recorrida no seu trecho relativo às custas e à taxa sancionatória especial, e substituir-se a mesma por douto Acórdão que condene a Apelada em custas.
A apelada contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
O Tribunal a quo julgou:
A.1. Provados os seguintes factos:
- O exequente instaurou a presente execução em Setembro de 2021, para obter o pagamento da quantia de 892,50 de custas de parte constantes da nota justificativa e discriminativa que remeteu à executada em Abril de 2021 e respetivos juros.
 – E penhorou 2 contas bancárias de que a executada é titular, uma no Novo Banco e outra no BPI para garantir o pagamento da referida quantia, como se verifica do auto de penhora.
– A reclamada quantia de 892,50 de custas de parte encontra-se paga desde 15/06/2021.
– Por carta de 07/06/2021, o Ilustre mandatário do exequente informou que ainda não havia sido paga a quantia de 892,50 de custas de parte e que, caso a mesma não fosse paga no prazo de 10 dias, avançaria com a execução (doc. 1 que se junta e dá por reproduzido).
– Informou também que o valor das custas devia ser pago por transferência bancária para a conta indicada nas custas de parte enviadas ao mandatário da executada (cit. doc. 1).
– Como se verifica da nota discriminativa e justificativa remetida ao Tribunal e cuja cópia se encontra nos presentes autos, o ilustre mandatário do exequente fez constar que a quantia de 892,50 de custas de parte devia ser paga por transferência bancária para a conta no Millenium BCP com o IBAN …..
– Em 15/06/2021 foi feita a transferência da reclamada quantia de 892,50 para o IBAN acima identificado, através do Novo Banco (doc. 2 que se junta). Deste modo,
– A quantia dada à execução encontra-se paga desde 15/06/2021, ou seja, desde data anterior à execução.
– A executada nada deve desde 15/06/2021.
– Apesar de tal o exequente avançou com a execução e penhorou o saldo de 2 contas bancárias de que a executada é titular – penhora que se mantém e cujos saldos a executada não pode movimentar.
- A Executada, aqui Embargante, quando procedeu à transferência bancária da quantia de € 892,50 para a conta bancária com o IBAN indicado na Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte que lhe foi remetida pelo mandatário do Exequente, aqui Embargado, indicou no campo da descrição da operação “GS GERAL” – Cfr. Comprovativo de saldos e movimentos da conta bancária em causa que se junta como Doc. 1.
- Ora, a conta bancária em causa, trata-se de uma conta de clientes do escritório do mandatário do Exequente, aqui Embargado, que tem uma elevada movimentação diária, pelo que, não tendo os funcionários administrativos do escritório do mandatário do Exequente, percebido que a expressão “GS GERAL” diria respeito a uma transferência bancária proveniente da Executada, aqui Embargante
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consiste, tão só, em saber se no caso sub judice estão reunidos os pressupostos estabelecidos pelo art.º 858.º, do C. P. Civil para a condenação em indemnização e multa e se estão reunidos os pressupostos estabelecidos pelo art.º 531.º, do C. P. Civil para a aplicação de taxa sancionatória excecional.
Vejamos.
Dispõe o art.º 858.º, do C. P. Civil que “Se a oposição à execução vier a proceder, o exequente, sem prejuízo da eventual responsabilidade criminal, responde pelos danos culposamente causados ao executado, se não tiver atuado com a prudência normal, e incorre em multa correspondente a 10 % do valor da execução, ou da parte dela que tenha sido objeto de oposição, mas não inferior a 10 UC, nem superior ao dobro do máximo da taxa de justiça”.
O sancionamento do exequente previsto neste preceito tem como (1) primeiro pressuposto a procedência da oposição à execução e como (2) segundo pressuposto que o mesmo não tenha atuado com a prudência normal.
A oposição à execução foi julgada procedente, declarando-se extinta a execução e essa decisão é definitiva, estando fora do objeto desta apelação, pelo que é pacífica a verificação do primeiro apontado pressuposto.
Quanto ao segundo pressuposto, que o exequente/embargado/apelante não tenha atuado com a prudência normal, tanto quanto se pode depreender da fundamentação da sua decisão, o tribunal a quo considerou que o fato de a execução ter sido requerida quando a quantia exequenda já tinha sido paga permite imputar ao exequente uma atuação sem a prudência normal.
Inversamente, pretende o apelante que lhe não era exigível outra conduta e que quem não atuou com a prudência normal foi a executada, que efetuou o pagamento através de transferência bancária sem lhe comunicar, nem o pagamento nem o veículo pelo qual o fez.
Compulsada a matéria de fato pertinente, constatamos que a quantia exequenda respeita a custas de parte, que não foram pagas pela apelada no respetivo prazo (primeiro fato, não numerado).
Em face dessa situação de incumprimento, o apelante interpelou a apelada para proceder ao pagamento em dez dias, sob pena de “avançar” com a execução e que o pagamento devia ser pago por transferência bancária para a conta indicada nas custas de parte enviadas (quarto, quinto e sexto fatos, por numerar).
A apelada fez esse pagamento por transferência bancária com a indicação de “GS GERAL” (sétimo a 9 e 11 fatos, por numerar).
A conta bancária que recebeu a transferência é uma conta de clientes do escritório do mandatário da apelante, com uma elevada movimentação diária, não tendo os funcionários percebido que a expressão “GS GERAL” respeitava a uma transferência bancária proveniente da apelada (décimo segundo fato, não numerado).
Apesar da transferência bancária, a apelante requereu execução, tendo sido penhorado o saldo de 2 contas bancárias de que a apelada é titular – penhora que se mantém e cujos saldos a executada não pode movimentar (décimo fato, por numerar).
Sem prejuízo do lamentável equívoco que evidencia, esta matéria de fato não permite imputar à apelante a falta de prudência normal na instauração/requerimento da execução.
Com efeito, em face da ausência de pagamento atempado, a apelante fez uma interpelação admonitória em relação ao requerimento da execução, que lhe não era exigível, como decorre do disposto na al. a), do n.º 2, do art.º 805.º, do C. P. Civil, e não se apercebeu que a transferência bancária em causa era proveniente da apelada e respeitava à conta de custas e à interpelação que havia feito.
Nestas concretas circunstâncias, outra conduta lhe não era exigível, não lhe podendo ser atribuída a falta de prudência normal, no requerimento da execução ou qualquer outro ato.
Se falta de prudência existiu, podendo a mesma constituir a causa ou, pelo menos, estar na origem do fato de a execução ser requerida apesar da antecedente transferência bancária da quantia exequenda, ela respeita à falta de comunicação por parte da apelada que, ao limitar-se a fazer uma transferência bancária, sem informar a apelante, como é de estilo, dizendo, “nesta data depositei…”, , fez uma comunicação incompleta e deficiente.
Na realidade, a apelada fez uma transferência bancária, em cujos suportes digitais não constavam elementos que permitissem identificá-la, esperando, porventura, que o “escritório” titular da conta descobrisse o depósito e a obrigação a que respeitava.
Acresce que não se tratava de um pagamento usual e periódico, mas de um ato de pagamento isolado, o que menos exigível tornaria a sua identificação.
Como resulta dos autos, com a necessidade de dedução de oposição à execução, e não deixa de ser também lamentável, a deficiência de comunicação terá persistido após a instauração da execução, mas esta persistência não releva para a aferição dos pressupostos do instituto processual consagrado no art.º 858.º, do C. P. Civil.
Como decorre da penhora do saldo de contas bancárias e da impossibilidade legal da sua movimentação, a apelada terá sofrido danos com a equívoca situação dos autos.
Todavia, tais danos não podem ser assacados a ato culposo da apelante, em qualquer grau, antes indiciando a matéria de fato dos autos a negligência da apelada, na forma de negligência consciente, tal como definida pela al. a), do art.º 15.º, do C. Penal.
Nestas circunstâncias, a apelante não pode ser condenada em indemnização e em multa, como foi, pelo que a apelação procede quanto a uma (indemnização à apelada) e outra (multa), devendo a decisão recorrida ser revogada em relação a ambas.
Importa agora aferir se estão reunidos os pressupostos estabelecidos pelo art.º 531.º, do C. P. Civil para a aplicação de taxa sancionatória excecional em que a apelante foi condenada, a saber, (1) a manifesta improcedência e que (2) o ato da apelante seja resultado exclusivo da falta de prudência e diligência, na síntese preclara de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, 3.ª ed., vol. 2.º, pág. 431)
Dispondo o art.º 531.º, do C. P. Civil, sob a epígrafe, “Taxa sancionatória excecional”, que “Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida”,
considerou o tribunal a quo que “…a pretensão de recebimento de um crédito já pago constitui dedução de pretensão manifestamente improcedente
e que, “…a averiguação dos pagamentos através de transferências bancárias para a conta do exequente ou do mandatário do mesmo é da responsabilidade daqueles implicando a diligência e os cuidados devidos e acrescidos no conhecimento de transferências monetárias recebidas. De facto, e ainda que a mesma pudesse não estar identificada com clareza, na verdade apenas ao destinatário da transferência cabe apurar a proveniência da mesma implicando que, para tal, deverá criar os mecanismos adequados a proceder a essa identificação…”,
concluindo que “…a actuação da parte está eivada de falta de prudência ou diligência”.
Ora, como se infere do antes exposto, não podemos confirmar a sentença em qualquer destas asserções.
Não podemos confirmá-la quanto à manifesta improcedência da contestação da oposição à execução porque nela a apelante se limitou a articular fatos que o tribunal declarou provados e que permitem imputar a apresentação do requerimento da execução à ação negligente da apelada no pagamento a que estava obrigada, concluindo pela extinção da instância executiva, por inutilidade superveniente da lide, como ao caso cabia.
Não podemos confirmá-la quanto à inversão do ónus de diligência do pagamento, que incidia sobre a apelada e que faz reverter para a apelante, invocando um dever de “apurar a proveniência” de uma quantia depositada, que não colhe suporte técnico em qualquer norma relativa à titularidade de contas bancária, que viola o disposto nos art.ºs 798.º, e 799.º, do C. Civil e que contraria até os termos da oposição à execução na qual, a apelada, como salienta a apelante, reconhece no seu art.º 12.º, a negligência com que agiram os seus próprios funcionários.
Em consequência, também não podermos confirmar a sentença recorrida na conclusão de que a ação da apelante “está eivada de falta de prudência ou diligência”, pelo que a apelação não deixará de proceder também quanto à taxa sancionatória excecional em que a apelante foi condenada.
Aliás, tendo sido constatado na oposição à execução, nos termos acima constantes na matéria de fato da sentença, que a quantia exequenda havia sido paga antes de instaurada a execução, nas condições já referidas, que não permitiram à apelante tomar conhecimento desse pagamento, por ato negligente da apelada, a instância executiva extinguiu-se por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto na al. e), do art.º 277.º, do C. P. Civil, devendo as custas ficar a cargo da apelada, nos termos do disposto na parte final do n.º 3, do art.º 536.º, do C. P. Civil
Procede, pois, também a apelação relativamente à taxa sancionatória excecional em que a apelante foi condenada.
 
C) SUMÁRIO
1. A conduta do devedor que, estando obrigado a pagar determinada quantia, efetua uma transferência bancária, sem comunicar ao credor que procedeu a essa transferência e sem fazer constar deste ato elementos que permitissem ao credor identificar o autor da transferência, constitui ação praticada com negligência consciente, tal como definida pela al. a), do art.º 15.º, do C. Penal.
 2. Nessas circunstâncias, a ação do credor ao requerer ação executiva, na ignorância dessa transferência bancária, não configura um ato praticado sem a prudência normal, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 858.º, do C. P. Civil.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida relativamente à condenação da apelante em indemnização, multa e custas com taxa sancionatória excecional, com custas na 1.ª instância a cargo da apelada.
Custas pela apelada.

Lisboa, 10-11-2022
Orlando Santos Nascimento
Maria José Mouro
José Maria Sousa Pinto