Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2725/17.2T8LRS.L1-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
ININTELIGIBILIDADE DO PEDIDO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
INADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– O nº 3 do art. 186º do Código de Processo Civil exige, para afastar a procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, que, além da dedução da contestação, o réu tenha interpretado convenientemente a petição inicial, aqui entendida como pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.

II– A falta ou a ininteligibilidade do pedido e/ou da causa de pedir não são passíveis de suprimento, pelo que, não há lugar a aperfeiçoamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO:


A intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B , peticionando que “se condene o R.
a)- no direito da A. a levantar ou retirar do activo comum € 8.596,92, € 15.234,89 e € 209,037,88 acrescidos de juros legais a partir da data da citação, sendo encabeçada na dívida de € 104.518,94 a C ( José .....) ..
b)- Pagar à A. € 8.775,00 respeitantes a pensão de alimentos à Eliana no período de 3-4-2008 a 31-7-2011, acrescidos de juros desde a citação.
c)- Reconhecer que a A. não tem de repor ou entregar no activo comum o valor de € 50.000,00 relativo à conta caucionada e que tem o direito a dele retirar € 4.354,64 e juros desde a citação relativos a juros dessa conta que pagou
d)- Subsidiariamente ao pedido de levantamento do activo do valor de € 104.518,94 e encabeçamento na correspondente dívida a C ( José .....), caso esse pedido não proceda, pede a condenação do R. no direito da A. de levantar do activo € 58.608,64 e juros desde a citação de pagamento parcial que efectuou dessa mesma dívida.”.

Alega, para o efeito, que entre A. e Réu corre termos o processo de inventário para partilha subsequente ao divórcio; em tal processo, foi proferida decisão a remeter A. e Réu para os meios comuns quanto a: obras realizadas na casa de morada da família que constitui a verba 21 da relação de bens; valores pagos pela A. ou através de contas comuns do casal quanto à prestação bancária da casa da Lourinhã, IMI, seguro; valores recebidos da herança do pai da A.; conta caucionada, quer quanto aos juros, quer quanto ao valor pago e modo de pagamento; “é a acção dos meios comuns que a A. apresenta” nesta acção; nesta “acção, a A. pede também a condenação do R. no pagamento da pensão de alimentos da filha do casal (…) pelo período de 3-4-2008 a 31-7-2011, pois a douta sentença no inventário apenas considerou essa pensão até à data de 2-4-2008”.

O Réu contestou, tendo, para além do mais, invocado as excepções de:
- incompetência material do tribunal para apreciar o pedido formulado na petição inicial sob a al. b), sendo competente o juízo de família e menores;
- nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial atendendo à ininteligibilidade da causa de pedir e dos pedidos, alegando, para o efeito, em síntese útil, que: “Primeiramente, cumpre referir que a autora alega no artigo 28º da petição inicial que “o casal recebeu por empréstimo de C (José .....) €104.518,94.”; “Posteriormente, a autora alega no artigo 35º e 36º da petição inicial que “da herança do seu pai ingressaram no casal Esc.41.908.334$00 ou €209.037,88. aqueles €209.037,88 pertencem à A. e a seu irmão C ( José .....) em partes iguais ou seja €104.518,94 à A. e outro tanto a seu irmão”; “A primeira contradição: a autora primeiro refere que o seu irmão emprestou dinheiro ao casal e logo em seguida refere que esse dinheiro é proveniente da herança do pai.”; “A autora incorre numa verdadeira aventura jurídica quando não só reivindica um crédito a favor de seu irmão – um terceiro nesta ação judicial, como ainda quer ser “encabeçada” nesse crédito, ou seja, quer receber um dinheiro que diz pertencer ao irmão: “haverá que reconhecer passivo de €104.518,94, do activo comum, a favor de C (José .....), sendo na respectiva dívida encabeçada a A.” (artigo 85º da petição inicial).”; “Como se não bastasse, ela quer ainda ser “encabeçada” – o que quer que isso signifique – de quantias que pagou ao seu irmão após a separação de facto do dissolvido casal: “Mas como a A. já pagou desta dívida uma parte importante deve dela ser compensada por meio do reconhecimento à A. do crédito de €89.783,62 sobre o património comum e encabeçando-a na dívida desse montante ao C (José .....)” (artigo 78º da petição inicial).”; “Uma construção jurídica absurda que leva a pedidos absolutamente ininteligíveis formulados no petitório final” – cfr. arts. 1º a 9º da Contestação.

A Autora respondeu às mencionadas excepções, defendendo a respectiva improcedência.

Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, que julgou:
-procedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria para apreciar e conhecer do pedido deduzido sob a alínea b) da petição inicial, com a consequente absolvição do Réu da instância;
-procedente a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos deduzidos sob as alíneas a), c) e d) da petição inicial, com a consequente absolvição do Réu da instância.

Inconformada, a Autora recorre desta decisão, requerendo a respectiva revogação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes Conclusões:
1ª- A al. a) do pedido não respeita apenas à dívida a C (José .....), que deve ser conhecida, mas também a despesas realizadas na casa de morada de família (€ 8.596,92), valor quanto à casa da Lourinhã (€ 15.234,89) e montante de € 104.518,94 herdado pela A..
2ª- Considerada a afirmação da A. da dívida de € 104.518,94 a C (José .....), a assentada citada no art. 37º da petição inicial e 54º da resposta à excepção e a confissão, aceita, do R. nos artigos 63º, 64º, 67º e 70º da contestação desta presente acção, está assim provada a entrada dos € 209.037,88 e deve ser apurado em instrução, discussão e julgamento se o casal constituiu ou não essa dívida que o A no art. 89º nega existir, sem todavia alegar que foi paga, mas é necessário liquidar o património do ex-casal apurando o seu passivo e o activo líquido a partilhar.
3ª- A subsidiária (com relação à parte final da al. a)) alínea d) do pedido respeita a compensação da A. pelo património comum por pagamento parcial no montante de € 58.608,64 da dívida de € 104.518,94 a C (José .....).
4ª- Como explicitado nos seus artigos 6º a 13º, a petição inicial trata e conclui sobre 5 pontos: i) obras realizadas na casa de morada de família, ii) valores pagos pela A. relativos à casa da Lourinhã, iii) valores recebidos da herança do pai da A., iv) conta caucionada e v) pensão da Eliana.
5ª- O R. confessa – confissão que a A. aceita – que os € 209.037,88 entraram na conta bancária comum de A e R.. Não há dúvida possível sobre a alegação da A. de que este valor entrou na conta do casal, que proveio da herança, que pertence metade à A. e metade a seu irmão e o R. entendeu e compreendeu isto. Não há contradição nestes factos alegados pela A.. O R. conhece esta matéria perfeitamente e ela está perfeita e exaustivamente explicada.
6ª- Nesta presente acção, nos arts. 63º, 64º, 67º e 70º da sua contestação, o R. já confessa (o que a A. aceita) que - efectivamente - entraram na conta os € 209.037,88 (ou Esc. 41.908.334$00) afirmados pela A., que pertencem metade ao C ( José .....). As entradas ocorreram em 2-6-1999, 9-5-2000, 25-5-2000 e 14-3-2001. As relações patrimoniais entre o casal cessaram em 31-12-2001, data que a douta sentença de divórcio expressamente fixou.
7ª- A demonstração de que o R. compreendeu o objecto da acção decorre com toda a evidência da defesa que elaborou ao longo dos 121 arts. da contestação e quanto à alínea a) do pedido designadamente nos arts. 89º e 90º. Não há obscuridade nenhuma no pedido, nem nenhuma sua incongruência com as razões de pedir exaustivamente explicadas de modo claro.
8ª- Esta situação foi já tempestivamente invocada no art. 71º da resposta à excepção: 71º Subsidiariamente considerar-se-ia a presente resposta seu aperfeiçoamento, facultando-se-lhe (ao R.) o contraditório (art. 590º do CPC). O que não existe motivo é para declarar a nulidade de todo o processo.
9ª- A douta sentença aqui impugnada não faz a apreciação da ininteligibilidade das alíneas a), c) e d) do demarcado pedido e decide é a considerar os artigos 28º, 35º, 36º, 85º e 78º da petição inicial. Mas o que haveria de ter apreciado era a inteligibilidade ou não dessas alíneas, sendo certo que o R. perfeitamente as entendeu para as poder qualificar de “verdadeira aventura jurídica”, e lendo o art. 78º da petição quando devia ler a al. d) do pedido e sendo que o art. 78º da petição se encontra exaustivamente explicado nos arts. 35º a 85º dessa mesma petição e 1º a 71º da resposta a que o R. pode responder (art. 590º).
10ª-Refere a douta sentença “elenco desconexo e manifestamente contraditório de factos”, mas a questão é se os factos fundamentam ou não os pedidos. E, com o devido respeito, não há neles contradição nenhuma nem a douta sentença a identifica.
11ª- Os valores entrados no casal são resultantes das vendas de 18 bens da herança do pai da A., sendo que esses valores pertencem metade à A. e metade ao irmão desta. Não existe contradição nenhuma nem nenhuma falta de clareza e o R. conhece isto perfeitamente e é o que consta alegado. O mais é questão de instrução, discussão e julgamento da causa.
12ª- Há nos autos todo um acervo de prova – os únicos 4 movimentos bancários assinalados, o depoimento da testemunha assinalado, as escrituras públicas de venda dos 18 prédios, as declarações de parte e a confissão do R.. O R. não revela dúvida nenhuma nos arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 58º, 59º, 60º, 61º e 62º quer sobre o pedido quer sobre a causa alegada dele. Não há assim ininteligibilidade da causa de pedir nem do pedido. A arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (art. 186º, nº 3).
13ª- Quanto aos 5 pedidos a apreciar nesta acção encontram-se repetida e claramente expostas as suas causas de pedir, já anteriormente articuladas no incidente de reclamação no inventário, donde já provém e foi realizada a sua discussão entre as partes, e identificados na decisão desse incidente.
14ª-Não há dúvida nenhuma nestes pedidos, que são absolutamente claros e contêm devidamente alegadas na petição as causas de pedir que a cada um deles respeita, não podendo deixar de ser conhecidos.
15ª-Não qualifica a petição de inepta não interpretar o R. “devidamente, nem a causa de pedir, nem os pedidos”. Não é a não compreensão pelo R. da petição que a torna inepta nos termos do art. 186º, nº 2 al. a). A compreensão pode suprir a nulidade se existir, mas a não compreensão não a pode tornar nula.
16ª-Não há na petição um elenco desconexo e contraditório donde resulta um discurso incoerente. A petição é completa e exaustivamente explícita - cfr. seus arts. 35º a 71º - não ocorrendo a situação de não poder o Tribunal pronunciar-se sobre a matéria de facto.
17ª-Tendo sido discutido, na exposição dos articulados – incluído o de específica resposta de 12-2-2019 providenciada pelo douto despacho de 21-1-2019 - se falta ou é ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir - e não o mérito das pretensões formuladas - elas não se verificam, contrariamente ao que considerou a douta sentença. Na petição inicial não falta nem é ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
18ª-O Ac. da Rel. de Lisboa de 9-3-2017 (Pedro Martins) www.dgsi.pt explica com muito detalhe e total consistência a lógica e a razão do pedido subsidiário na alínea d) de compensação da A. pelo património comum do valor que após 31-12-2001 entregou ao C (José .....) em satisfação parcial do crédito deste.
19ª- Os pedidos sobre os 5 pontos não têm nada de obscuros, nem são de tal forma obscuros que não se vislumbre, de todo, o seu alcance, sendo compreensível a exposição dos seus fundamentos fácticos e devendo ser julgados.
20ª- A tudo acrescendo que “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter”. 7 Ac. do STJ de 7-4-2016, Pº 842/10 (Lopes do Rego), sublinhado nosso.
21ª- A douta sentença apelada aplicou erradamente o disposto nos arts. 186.º, n.º 2, al. a), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, nº 2 e 577.º, al. b), do CPC.
Quanto à incompetência material

22ª-Da douta sentença do incidente de reclamação no inventário:
2.– A 2 de Fevereiro de 2007, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativo Eliana ...., filha dos interessados, tendo sido fixado o valor da pensão de alimentos de € 225,00, a descontar na renda do armazém, sito no Casal da Cabeça Ruiva, cujo valor era à data de 650,00.
- No presente ano lectivo de 2009/2010 a Eliana frequenta o curso de Design de Ambientes do Instituto Politécnico de Leiria;
- Eliana .....nasceu a 2 de Abril de 1990.
23ª- Na petição inicial desta presente acção à margem diz a A ora apelante 12º Na presente acção a A. pede também a condenação do R. no pagamento da pensão de alimentos da filha do casal, Eliana ...... pelo período de 3-4-2008 a 31-7-2011 pois a douta sentença no inventário apenas considerou essa pensão até à data de 2-4-2008. 13º O R. nunca requereu a cessação da pensão e a Eliana estudou sem rendimentos pelo menos até 31-7-2011.
24ª- O direito de crédito da A. ao valor de € 8.775,00 encontra-se constituído na decisão judicial e este douto Tribunal não sofre de incompetência para verificar essas constituição e existência nem a presente acção declarativa comum (art. 10º) é meio impróprio para apreciar o pedido a esse respeito formulado.
25ª- A prestação foi judicialmente fixada e não foi judicialmente cessada. Trata-se apenas de a A. provar que a Eliana estudou no período entre 3-4-2008 e 31-7-2011.
26ª- Não há motivo nem justificação para que o reconhecimento do crédito não seja apreciado na presente acção e tido em conta no inventário, nos termos judicialmente fixados pelo Tribunal de Família e não cessados, e que exija que o seja perante o Tribunal de Família, que já o apreciou e decretou, como já fixou a douta sentença que decidiu a reclamação.
27ª- A obrigação alimentar fixada em processo de regulação do exercício do poder paternal não cessa automaticamente com a maioridade do alimentando
28ª-A obrigação de custear as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação dos filhos, quando fixada durante a menoridade, se mantém e prolonga com a maioridade, sem que tal assuma a natureza de uma nova obrigação.
29ª-A sentença que fixou os alimentos devidos a menores vale como título executivo após a sua maioridade, competindo ao obrigado promover a cessação da obrigação através do incidente previsto no art. 1412.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
30ª- O pedido na alínea b), em vista da sua inclusão no inventário, pode e deve ser conhecido na presente acção. Ao declarar a incompetência material a douta sentença apelada aplicou erradamente o disposto nos arts. 96º e 97º do CPC.”.

O Réu/ora apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.

Assim, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
- se o tribunal é materialmente competente para conhecer do pedido formulado na al. b) da parte final da Petição Inicial: “Pagar à A. € 8.775,00 respeitantes a pensão de alimentos à Eliana no período de 3-4-2008 a 31-7-2011, acrescidos de juros desde a citação”;
- se se verifica a excepção dilatória de nulidade de todo o processado por verificação de ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e dos pedidos formulados nas als. a), c) e d) da parte final da Petição Inicial.

III–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam da parte I-Relatório desta decisão, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.

IV–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da competência material deste tribunal para apreciar o pedido do pedido formulado na al. b) da parte final da Petição Inicial: “Pagar à A. € 8.775,00 respeitantes a pensão de alimentos à Eliana no período de 3-4-2008 a 31-7-2011, acrescidos de juros desde a citação”:
Entendeu o tribunal a quo não ser competente para a apreciação do pedido ora em referência, por o mesmo não se integrar na sua competência material, sendo da competência dos Juízos de Família e Menores, nos seguintes termos:
“Efetivamente, a fixação de alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados e os respetivos incidentes de incumprimento compete aos juízos de família e menores e não à instância central cível - 117.º, n.º 1, al. a) e 123.º, n.º 1, al. e) da Lei 62/2013, de 26/08.”

A apelante discorda de tal entendimento, alegando, essencialmente, que: a prestação de alimentos a pagar à filha da Autora e do Réu foi judicialmente fixada e não foi judicialmente cessada, tratando-se apenas de provar que a filha estudou no mencionado período temporal, uma vez que “a obrigação alimentar fixada em processo de regulação do exercício do poder paternal não cessa automaticamente com a maioridade do alimentando”, mantendo-se para além da “maioridade, sem que tal assuma a natureza de uma nova obrigação”; e que “a sentença que fixou os alimentos devidos a menores vale como título executivo após a sua maioridade” – cfr., máxime, arts. 24º a 30º das Conclusões das alegações de recurso.

Apreciemos.

Para que o tribunal possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão, é necessário que seja competente. Daí que a competência constitua um “pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa (…).” - Miguel Teixeira de Sousa, in “A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns”, 3ª ed. revista, AAFDL, 1990, p. 13.

É pacífico na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a competência, como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, englobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se, pois, por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor - Acórdão do STJ de 13/10/2016, Manuel Tomé Soares Gomes; podendo consultar-se, ainda, neste sentido, entre outros, os Acórdãos: do STJ de 25/11/2004, Araújo Barros; de 12/01/2010, Moreira Alves; de 10/12/2015, Gregório Silva Jesus; de 29/11/2016, Alexandre Reis; e de 06/12/2016, Fonseca Ramos; o Acórdão do TRE de 15/12/2016, Mata Ribeiro; o Acórdão do TRP de 11/07/2018, Manuel Domingos Fernandes; e os Acórdãos do TRG de 23/11/2017, Ana Cristina Duarte; e de 21/11/2019, Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

A este propósito esclarecem: Miguel Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Edições Lex, 1999, p. 25: a competência é aferida “em relação ao objecto apresentado pelo autor ou recorrente”; e José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, Coimbra Editora, p. 1999, p. 129: “para a determinação da competência são relevantes os elementos identificadores da causa (pedido fundado na causa de pedir e partes) tal como o autor os configura”.

Nas sábias e ainda actuais palavras de Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, p. 90-91: “São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti (…), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deveriam ser as partes e os termos dessa pretensão. Mesmo quando a lei, não se atendo pura e simplesmente aos termos em que a acção está deduzida, requer a indagação duma circunstância extrínseca (valor ou situação dos bens pleiteados, domicílio do réu, lugar do contrato ou do facto ilícito, etc) é através desses termos que há-de saber-se qual o ponto a indagar”.

Para Mariana França Gouveia, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, Almedina, 2004, p. 507: “a estrutura de causalidade entre causa de pedir e pedido que o autor estabelece na petição inicial, ou no conjunto dos seus articulados, é suficiente, é o contexto, o enquadramento da relação jurídica alegada e, em consequência, da aplicação das normas de competência.”.

A competência dos tribunais judiciais no exercício da sua função jurisdicional de administração da justiça encontra-se regulada pela Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), de acordo com a sua categoria e as suas instâncias, podendo estas ser especializadas por matérias (cfr. arts. 202º, nº 1, 209º, 210º e 211º da CRP), e pela lei ordinária, máxime, a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26/08 (com a redacção que lhe foi dada pelas Leis nº 40-A/2016, de 22 de Dezembro, nº 94/2017, de 23 de Agosto, Lei Orgânica nº 4/2017, de 25 de Agosto, nº 23/2018, de 5 de Junho, Decreto-Lei nº 110/2018, de 10 de Dezembro, Leis nº 19/2019, de 19 de Fevereiro, nº 27/2019, de 28 de Março e nº 55/2019, de 5 de Agosto e Lei nº 107/2019, de 9 de Setembro – doravante LOSJ) e o Código de Processo Civil, de onde decorre a repartição atenta a matéria, o valor, a hierarquia e o território (cfr. arts. 64º, 66º, 67º a 69º e 70º a 95º do Cód. Proc. Civil), com primazia da LOSJ no caso de infracção das regras de competência material (cfr. art. 65º do Cód. Proc. Civil).

Nos termos do art. 211º, nº 1 da CRP, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

De acordo com o art. 64º do Cód. Proc. Civil, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Sobre a extensão e limites da competência, dispõe o art. 37º da LOSJ nos seguintes termos:
1- Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.
2-A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.”

Em consonância, o art. 60º do Cód. Proc. Civil dispõe:
1.- A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.
2.- Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território.”

Quanto à competência em razão da matéria – em causa nestes autos -, o regime regra está consagrado no art. 40º da LOSJ e nos arts. 64º e 65º do Cód. Proc. Civil, dispondo aquele preceito legal:
1- Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2- A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”

A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia entre si (de subordinação ou dependência).

O art. 130º, nº 1 da LOSJ prevê que: “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”

O que significa que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual, e, segundo este último critério, serão da competência dos juízos cíveis e de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado.

Os juízos centrais cíveis são juízos de competência especializada (os tribunais de comarca), conforme o disposto nos arts. 40º, n.º 2 e 81º, n.ºs 1 e 3, al. a) da LOSJ, dispondo o art. 117º, nº 1 deste diploma legal, que aos mesmos compete:
a)-A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000;
b)-Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c)-Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d)-Exercer as demais competências conferidas por lei.”

Também os juízos de família e menores (que a decisão recorrida considera competente para o pedido em referência) são de competência especializada (os tribunais de comarca), conforme o disposto nos arts. 40º, nº 2 e 81º, nºs 1 e 3, al. g) da LOSJ, dispondo o art. 123º deste diploma legal – para o que aqui interessa -, sob a epígrafe “Competência relativa a menores e filhos maiores” (com sublinhados nossos):
“1 - Compete igualmente aos juízos de família e menores:
(…)
e) Fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, e preparar e julgar as execuções por alimentos;”.

No caso dos autos, como se viu, a concreta pretensão da Autora é que o Réu seja condenado a pagar-lhe € 8.775,00 a título de pensão de alimentos devida à filha de ambos, por a mesma, apesar de maior de idade, ter continuado a estudar no período temporal de 03/04/2008 a 31/07/2011 – cfr. al. b) do pedido formulado na parte final da Petição Inicial e arts. 12º, 13º, 72º a 74º, 79º e 80º do mesmo articulado.

Resulta de forma cristalina que este pedido – e sua causa de pedir – se subsume, de forma manifesta, à previsão da citada al. e) do nº 1 do art. 123º da LOSJ, que atribui competência para a respectiva apreciação aos juízos de família e menores.

E, não colhem os argumentos invocados em sede deste recurso pela apelante: de que tal prestação de alimentos foi judicialmente fixada e não foi judicialmente cessada, tratando-se apenas de provar que a filha estudou no mencionado período temporal, uma vez que “a obrigação alimentar fixada em processo de regulação do exercício do poder paternal não cessa automaticamente com a maioridade do alimentando”, mantendo-se para além da “maioridade, sem que tal assuma a natureza de uma nova obrigação”; e que “a sentença que fixou os alimentos devidos a menores vale como título executivo após a sua maioridade”.

E, tais argumentos não colhem, porquanto, independentemente da anterior fixação judicial da obrigação de alimentos e respectivo cumprimento (voluntário ou coercivo), qualquer questão atinente à obrigação de alimentos devidos a filhos que, após perfazerem 18 anos, continuem a estudar - seja questão de fixação/alteração/cessação de tal obrigação, seja questão de cumprimento coercivo/executivo de obrigação alimentar anteriormente fixada judicialmente – é da exclusiva, específica e única competência dos juízos de família e menores, como decorre de forma clara do mencionado art. 123º, nº 1, al. e) da LOSJ, que prevê não só a fixação daqueles alimentos, como a preparação e julgamento das execuções por alimentos.

Incumbindo legalmente aos juízos de família e menores a apreciação do pedido em referência, a sua dedução nesta acção consubstancia uma infracção das regras de competência em razão da matéria, o que determina a incompetência absoluta do tribunal a quo para conhecer e julgar tal pretensão, com a consequente absolvição do Réu da instância relativamente a este pedido, tudo, como decorre dos arts. 96º, a), 97º, 278º, nº 1, al. a) e 577º, al. a), todos do Cód. Proc. Civil.

Pelo exposto, improcede a apelação quanto a esta questão, mantendo-se a decisão recorrida quanto à excepção da incompetência absoluta do tribunal para a tramitação do pedido deduzido sob a al. b) da parte final da Petição Inicial e consequente absolvição do Réu da instância relativamente a tal pedido.

*

Da excepção dilatória de nulidade de todo o processado por ineptidão da Petição Inicial quanto aos pedidos deduzidos sob as als. a), c) e d) da parte final da Petição Inicial:

A decisão recorrida absolveu o Réu da instância por considerar que se verifica a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, que fundamentou nos seguintes termos:
“1.5.- Cumpre decidir.
As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa (art.º 576.º, n.º 2 do CPC). O art. 577.º, al. b), do CPC, tipifica como exceção dilatória a nulidade de todo o processo.
O processo é nulo, na totalidade, quando for inepta a petição inicial (art. 186.º, n.º 1, do CPC).
A ineptidão da petição inicial implica, por força do disposto no art. 186.º, n.º 1, do CPC, a nulidade de todo o processo, cognoscível ex officio (art. 196.º do CPC), que importa a absolvição do R. da instância (art. 278.º, n.º 1, al b), do CPC).
Nos termos do n.º 2 do art. 186.º do CPC, a ineptidão da petição inicial, conducente à nulidade de todo o processado ocorre em três hipóteses:
a)- falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir;
b)- contradição entre o pedido e a causa de pedir;
c)- cumulação de causas de pedir ou de pedidos substancialmente incompatíveis.
Por sua vez, dispõe o n.º 3 do preceito legal citado que se o Réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na al. a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
Vejamos.
A Autora, em sede da petição inicial, peticiona, sob a alínea a), que o Réu seja condenado “no direito da A. a levantar ou retirar do ativo comum € 8.596,92, € 15.234,89 e € 209,037,88 acrescidos de juros legais a partir da data da citação, sendo encabeçada na dívida de € 104.518,94 a C (José .....)”.
A primeira perplexidade que nos assalta é o facto de o Réu não poder ser condenado “em direitos do Autor”, antes sim, presumimos que o que se pretendia era a declaração da titularidade da Autora nos valores aí referidos e não na possibilidade de “levantamento” ou “retirada” de tais valores.
De qualquer modo, os pedidos são insuscetíveis de aperfeiçoamento, face ao disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, pelo que se deverá concluir pela sua ininteligibilidade.
De qualquer modo, ainda que assim não se considerasse, o Tribunal não descortina a fundamentação fática constitutiva da causa de pedir dos pedidos deduzidos em sede das alíneas a), c) e d), senão vejamos.
De modo desconexo e contraditório, a Autora alega, tal como referido pelo Réu, que no “o casal recebeu por empréstimo de José Maria €104.518,94.” (artigo 28º da petição inicial) e, posteriormente, alega que “da herança do seu pai ingressaram no casal Esc.41.908.334$00 ou €209.037,88. Aqueles €209.037,88 pertencem à A. e a seu irmão C (José .....) em partes iguais ou seja €104.518,94 à A. e outro tanto a seu irmão” (artigo 35º e 36º da petição inicial). Ou seja, primeiro refere que o seu irmão emprestou dinheiro ao casal e logo em seguida alega que esse dinheiro é proveniente da herança do pai.
Não se vislumbra, a que título poderia a Autora reivindicar um direito de crédito a favor de seu irmão, terceiro nesta ação judicial - “haverá que reconhecer passivo de €104.518,94, do ativo comum, a favor de C (José .....), sendo na respetiva dívida encabeçada a A.” (artigo 85º da petição inicial).
Acresce que a A. pretende ser “encabeçada” de quantias que pagou ao seu irmão após a separação de facto do dissolvido casal: “Mas como a A. já pagou desta dívida uma parte importante deve dela ser compensada por meio do reconhecimento à A. do crédito de €89.783,62 sobre o património comum e encabeçando-a na dívida desse montante ao José Maria” (artigo 78º da petição inicial).
Não conseguimos, apesar de esforço despendido na tarefa, descortinar uma coerência no discurso ínsito na petição inicial, o qual assenta no elenco desconexo e manifestamente contraditório de factos que obstam a que o Tribunal se pronuncie sobre os mesmos.
Efetivamente, da contestação apresentada pelo Réu exulta tal perplexidade, não obstante o esforço de compreensão e tentativa de recriação de factos, pelo que se verifica que não interpretou devidamente, nem a causa de pedir, nem os pedidos, donde não tem acolhimento o previsto no n.º 3, do art. 186.º do CPC.
Refira-se, ainda, que incumbe aos Autores e não ao Tribunal, invocar os factos constitutivos do direito invocado e identificar, expressa e claramente os pedidos a deduzir.
Por último, refira-se que, nos termos do art. 590.º, nºs 2, al. b), 3 e 4, do CPC, quando a petição seja inepta, nos termos do art. 186.º do mesmo diploma, não é passível de correção, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objeto desse convite à correção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a ação prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo – vide Ac. TRC de 18.10.2016, in www.dgsi.pt.
Deste modo, estamos perante um pedido e uma causa de pedir ininteligíveis, o que gera a ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição do Réu da instância (arts.186.º, n.º 2, al. a), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, nº 2 e 577.º, al. b), do CPC.
Face à ineptidão da petição inicial acima verificada, determinativa da nulidade de todo o processado.”

Discorda a apelante da decisão recorrida, alegando essencialmente: não existir obscuridade ou ininteligibilidade dos pedidos formulados, “nem nenhuma sua incongruência com as razões de pedir exaustivamente explicadas de modo claro”; não existir nenhuma contradição entre os factos alegados (nem a decisão recorrida identifica tal contradição); não existir nenhuma ininteligibilidade da causa de pedir; e o Réu entendeu e compreendeu todo o objecto da acção, como decorre do teor da contestação. Alega, ainda, que, a ser entendido existir qualquer deficiência na exposição da causa de pedir e na formulação dos pedidos, deveria considerar-se o alegado pela apelante no seu articulado de resposta à excepção como aperfeiçoamento da petição inicial, “facultando-se-lhe (ao R.) o contraditório (art. 590º do CPC)”, como a apelante requereu, desde logo, no art. 71º daquela resposta.

Apreciemos.

Ao instaurar uma acção, o autor tem, de acordo com o disposto no art. 552º, nº 1, al. e) do Cód. Proc. Civil, o ónus de formular um pedido, requerendo ao tribunal o meio de tutela pretendido para efectivar o direito por si alegado, e tem ainda, nos termos da al. d) do mesmo preceito, o ónus de expor os factos que servem de fundamento à acção, isto é, a indicação dos factos concretos constitutivos do direito que alega, não se podendo limitar “à indicação da relação jurídica abstracta” (cfr. Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. I, p. 208).

Ora, “(…) o processo civil é há muito regido pelo princípio dispositivo (sendo manifesto e incontroverso que, apesar de o novo CPC o não enunciar explicitamente nas disposições introdutórias, ele continua a estar subjacente aos regimes estabelecidos em sede de iniciativa e de delimitação do objecto do processo pelas partes, não sendo postergado pelos regimes de maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes): é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem – e continuam inquestionavelmente a incumbir - às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida.” – Acórdão do STJ de 07/04/2016, Lopes do Rego, acessível em www.dgsi.pt.
Do nº 3 do art. 581º do Cód. Proc. Civil, resulta que “o pedido, na sua vertente substantiva [2], consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido” – Acórdão do TRL de 01/06/2010, Tomé Gomes, acessível em www.dgsi.pt.

O pedido circunscreve, desta forma, o âmbito da decisão final, pois que desenha “o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir” (cfr. art. 609º, nº 1 do Cód. Proc. Civil) – Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. I, p. 201.
Dado que o pedido é um elemento fundamental da instância processual, a petição será inepta se, através dela, não for possível descortinar o tipo de providência que o autor visa alcançar ou o efeito jurídico que pretende obter – cfr. art. 186º, nº 2, al. a) do Cód. Proc. Civil.

Assim, o pedido, para além de ser deduzido, deve ser formulado de forma clara e inteligível, precisa e determinada, de modo a que possa ser compreendido pelo réu e pelo juiz, pois que só assim a decisão judicial a proferir irá resolver aquele concreto conflito de interesses. Donde, o pedido não pode ser deduzido em termos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros, pois que o réu e o tribunal não podem ser colocados perante uma situação em que terão de adivinhar ou conjecturar sobre qual a vontade real do autor.

Na verdade, como refere António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. I, 1997, Almedina, p. 111: “Quanto ao réu, só pode exercer efectivamente o contraditório se for confrontado com uma pretensão cujos contornos e alcance resultem com imediatividade da petição inicial, sem necessidade de conjecturar acerca da verdadeira intenção do autor quando resolver solicitar a intervenção judicial; no que ao juiz concerne, a clareza e a inteligibilidade da tutela solicitada visam evitar, em todas as fases processuais, mas fundamentalmente na sentença final, incertezas quanto ao objecto da acção no que respeita à forma de tutela pretendida pelo autor (art. 661º).”

Entende-se por ininteligibilidade do pedido a impossibilidade de conhecer qual é a providência judicial que o autor pretende com a acção. A utilização de linguagem defeituosa, a expressão deficiente do pensamento do autor ou a qualificação jurídica inadequada do pedido podem não determinar a ininteligibilidade do pedido, desde que seja compreensível e determinável a pretensão do autor, designadamente com o apoio no conteúdo do articulado petitório. Por outro lado, a ininteligibilidade não equivale a inviabilidade do pedido ou falta de causa de pedir. Donde, desde que seja compreensível o sentido do pedido, não há ininteligibilidade deste, independentemente de o pedido ser bem ou mal formulado.

A ininteligibilidade do pedido que determina a ineptidão da petição é aquela que se apresenta de tal modo grave que impede que se identifique o direito invocado e o meio de tutela adequado, e não quando se está perante situações menos graves de um pedido meramente deficiente susceptível de ser cabalmente delineado através da leitura de petição inicial.

Por outro lado, como se viu, aquele que dirige uma pretensão ao tribunal terá ainda de expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado - a causa de pedir. Esta consiste, conforme resulta do art. 581º, nº 4 do Cód. Proc. Civil, nos factos concretos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor; por outras palavras, é o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo, isto é, o facto ou conjunto de factos concretos articulados pelo autor e dos quais dimanarão o efeito ou efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecidos.

A causa de pedir cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo e, por essa via, possibilita a definição do caso julgado e impede uma eventual repetição de causas. Por isso, há-de conter os factos essenciais (cfr. art. 5º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), isto é, os “factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte” (Miguel Teixeira de Sousa, in “Introdução ao Processo Civil”, Lisboa, 1993, p. 24) e que sejam juridicamente relevantes para fundamentar a pretensão do autor, ou, nas sábias palavras de Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed. - reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 351, “há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido”. Factos essenciais são, pois, os factos constitutivos do direito alegado que se incluem no quadro fáctico da norma legal em que se apoia a pretensão do autor e que possam servir para a fundamentar.

O Autor tem, assim, o ónus de alegar e provar aqueles factos que correspondem à situação de facto prevista na norma em que baseia a sua pretensão. Daqui resulta que a causa de pedir deverá ser estruturada de acordo com a interpretação do direito substantivo aplicável e em harmonia com a previsão normativa, o que significa que os factos constitutivos essenciais integradores da causa de pedir devem ser aferidos caso a caso, segundo um critério funcional que tenha em consideração o efeito pretendido pelo autor dentro da norma legal invocada. Isto é, o objecto da acção define-se através da harmonização entre pedido e causa de pedir, sendo este o efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção.” - Acórdão desta Relação de 04/02/2020, em que foi relatora Ana Rodrigues da Silva e a ora relatora foi segunda adjunta.

Decorre do acima expendido, que a causa de pedir implica a alegação não de um facto jurídico em abstracto, mas sim “um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na qualificação legal” e é esse facto, ou esses factos, que a petição deve dar a conhecer - cfr. Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, p. 370.
Tal como o pedido, a causa de pedir, para além de dever ser formulada, deve ser inteligível, sob pena de ineptidão da petição inicial – cfr. art. 186º, nº 2, al. a) do Cód. Proc. Civil.

Assim, haverá ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, quando ocorre uma omissão do seu núcleo essencial, ou seja, quando não tenham sido indicados os factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo que justificam a concessão do direito em causa; haverá ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade de causa de pedir, quando a exposição dos factos é feita de modo confuso, ambíguo ou ininteligível, de tal forma que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm distinguido claramente entre a situação de uma petição inepta e a situação de uma petição simplesmente irregular ou deficiente, no sentido de que só a falta ou a ininteligibilidade absolutas do pedido ou da causa de pedir acarretam a ineptidão.

Assim, já Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, p. 372, ensinava que “Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga.”.

Refere também, neste sentido, Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, p. 221, apud Acórdão do TRG de 24/04/2012, Eva Almeida, acessível em www.dgsi.pt: “para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – art. 193º, n.º 2 al. a) – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca a ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento.”

Por seu lado, também a jurisprudência se tem pronunciado em igual sentido, podendo citar-se, por todos, o Acórdão do STJ de 15/01/2003, Azambuja Fonseca, acessível em www.dgsi.pt, no qual se escreve: “(…) A ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir consiste na sua indicação em termos verdadeiramente obscenos ou ambíguos, por forma a não se saber, concreta e precisamente, o que pede o autor e com base em que é que o pede. (…) É pelo conteúdo da petição inicial que se afere da sua ineptidão quanto ao pedido e causa de pedir (falta ou ininteligibilidade) e não pelo entendimento que o réu faz da sua viabilidade, nomeadamente do entendimento da validade jurídica que, na contestação, atribui ao pedido do autor e aos factos em que este o funda, por constituir defesa por impugnação e levar, se aceite, à improcedência do pedido.”.

Acresce que, a idoneidade do objecto da acção implica não só a indicação e inteligibilidade da causa de pedir e do pedido, mas também, a existência de um nexo lógico formal entre ambos os termos da pretensão (cfr. als. b) e c) do nº 2 do art. 186º do Cód. Proc. Civil).

Do que se vem aludindo, conclui-se, que não se verifica a necessária e mencionada idoneidade do objecto da acção “quando:
“a)- não seja indicado qualquer efeito-prático jurídico pretendido;
b)- seja indicado um efeito pretendido em termos ininteligíveis ou tão vagos que, mesmo com o recurso aos fundamentos da acção, não permitam formular qualquer juízo de mérito positivo ou negativo;
c)- não sejam alegados os factos estruturantes da causa de pedir;
d)- sejam alegados meros conceitos de direito ou factualidades abstractas que não permitam sequer reconduzir o julgado a uma situação de facto real, em termos de evitar mais tarde a repetição de causas idênticas;
e)- seja alegada uma mole de factos sem qualquer leitura possível, positiva ou negativa, na óptica do pedido (ininteligibilidade de facto), ou que não permitam descortinar um quadro normativo aplicável (ininteligibilidade de direito), nomeadamente quando, tratando-se de causa de pedir complexa, esta se mostre de tal modo truncada que não se divise como dali possa decorrer o efeito pretendido;
f)- ocorra uma relação de exclusão formal recíproca entre a causa de pedir invocada e o pedido, entre duas causas de pedir ou entre vários pedidos cumulados, que se traduza num dizer ou desdizer simultâneos.
Em qualquer das situações enunciadas, o objecto da acção será manifestamente inidóneo para uma apreciação de mérito (…).” – cfr. já citado Acórdão do TRL de 01/06/2010, Tomé Gomes.

Verificada, pois, qualquer uma das situações enunciadas, o objecto da acção será manifestamente inidóneo para uma apreciação de mérito, implicando a ineptidão da petição inicial, reconduzível a uma nulidade insuprível de todo o processo, o que constitui excepção dilatória determinativa, mesmo oficiosamente, da absolvição do réu da instância – cfr. arts. 186º, nºs 1 e 2, 278º, nº 1, al. b), 576º, nº 2 e 577º, al. b), todos do Cód. Proc. Civil.

No caso dos autos, face ao alegado nos arts. 1º a 11º da petição inicial, verificamos estar no âmbito de uma acção cujo objecto versa, essencialmente, a definição sobre determinados direitos em conflito no âmbito do inventário judicial para partilha de bens comuns do ex-casal constituído entre Autora e Réu (em virtude do divórcio decretado relativamente ao casamento de ambos); inventário esse, onde foi proferida decisão no incidente de reclamação contra a relação de bens de relegar, de remeter, “para os meios comuns os interessados quanto às obras realizadas na casa que constitui a verba nº 21, valores pagos pela reclamante ou através de contas comuns do casal (electricidade, telemóvel, prestação bancária da casa da Lourinhã, IMI, seguro), valores recebidos da herança do pai, conta caucionada – quer quanto aos juros, quer quanto ao valor pago e modo de pagamento”. Por outras palavras, naquele inventário foi decidido que os interessados deviam na adequada acção averiguar, discutir e obter decisão sobre as questões respeitantes aos bens/direitos concretamente enunciados naquela decisão, intentando a Autora/ora apelante a presente acção com tal finalidade.

Assim, é à luz deste objecto do processo que devem ser lidos quer os pedidos formulados na petição inicial, quer a respectiva causa de pedir invocada.

Recorde-se que o tribunal a quo julgou verificada a ineptidão da petição inicial com base na ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir.

Apreciemos.

A decisão recorrida julgou ininteligível o pedido formulado sob a al. a) da parte final da petição inicial - condenação do Réu “no direito da A. a levantar ou retirar do activo comum € 8.596,92, € 15.234,89 e € 209,037,88 acrescidos de juros legais a partir da data da citação, sendo encabeçada na dívida de € 104.518,94 a C ( José .....).” – da seguinte forma: A primeira perplexidade que nos assalta é o facto de o Réu não poder ser condenado “em direitos do Autor”, antes sim, presumimos que o que se pretendia era a declaração da titularidade da Autora nos valores aí referidos e não na possibilidade de “levantamento” ou “retirada” de tais valores”.

Efectivamente, mesmo com recurso a um adequado esforço interpretativo, a conjugação do petitório com aquilo que foi articulado pela Autora ao longo da sua petição inicial, não permite, de todo, apreender, perceber, alcançar, qual é o efeito jurídico que se propõe obter, nomeadamente, olhando para o concreto objecto do processo, fica-se sem saber qual a concreta pretensão formulada pela demandante quanto às quantias que refere na al. a) do mencionado pedido. Tal incompreensão abarca a formulação “levantar ou retirar do activo comum” as quantias ali mencionadas, sem concretização do efeito jurídico que se propõe obter - declaração da natureza de tais quantias como bens/créditos próprios da demandante?; exclusão daquelas quantias dos bens/créditos comuns do casal?; aditamento de tais quantias como créditos da demandante sobre o património comum?. Por outro lado, da parte final daquele pedido - que se reporta à pretensão da Autora ser “encabeçada na dívida de € 104.518,94 a José Maria” - não é possível apreender qual o concreto efeito jurídico que a Autora se propõe obter (cessão de crédito?; sub-rogação? outra realidade normativa?), afirmando, a este propósito, no art. 45º da petição inicial: “Pede que seja constituída devedora perante o irmão devendo reconhecer-se que o património comum do casal deve essa quantia” e invocando o “art. 2098º, 2, fine”, para, logo de seguida, no art. 47º afirmar “Mas não existe razão para que não seja reconhecida a dívida do património comum do casal ao José Maria, em compensação encabeçando-se a A. no crédito de € 104.518,94 contra o património comum e na correspondente titularidade passiva desse valor perante o seu irmão ao qual já pagou após 1-1-2002 – cessação das relações patrimoniais - uma parte importante dele”, o que adensa as dúvidas de interpretação do concreto efeito jurídico pretendido, bem como as conjecturas acerca da verdadeira pretensão da Autora formulada na parte final da al. a) do pedido em referência.

Como se viu supra e aqui se reforça, transcrevendo as esclarecedoras palavras de Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945: “(…) o pedido deve ser formulado de modo que não haja dúvidas sobre o efeito jurídico, declarativo ou constitutivo, que se pretende obter; e se a acção for de condenação, acrescenta-se, há-de especificar-se a prestação que o réu tem de satisfazer.” - p. 361. E, “(…) o pedido consiste, em última análise, no efeito jurídico que o autor se propõe obter com a acção (…)”; “(…) a petição será inepta quando por meio dela não puder descobrir-se qual a espécie de providência que o autor se propõe obter do juiz, ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da acção.” – p. 362.

É a situação dos presentes autos, em que a indicação do pedido formulado sob a al. a) da petição inicial foi feita em termos verdadeiramente obscuros e ambíguos, em suma, ininteligíveis.

Desta forma, acolhe-se a decisão recorrida na parte em que considera ininteligível o pedido formulado sob a al. a) da parte final da petição inicial.

E, note-se, ainda, que, tal ininteligibilidade deste pedido estende-se ao pedido formulado na al. d), não só pela respectiva redacção – também obscura e ambígua ao pedir “a condenação do R. no direito da A. de levantar do activo € 58.608,64 e juros desde a citação de pagamento parcial que efectuou dessa mesma dívida” – como por este pedido ser subsidiário “ao pedido de levantamento do activo do valor de € 104.518,94 e encabeçamento na correspondente dívida a C (José .....)”.

De igual forma, afigura-se-nos obscuro e ambíguo o pedido de condenação do Réu em “reconhecer que a A. não tem de repor ou entregar no activo comum o valor de € 50.000,00 relativo à conta caucionada e que tem o direito a dele retirar € 4.354,64 e juros desde a citação relativos a juros dessa conta que pagou” (cfr. al. c) da parte final da petição inicial). Na verdade, mesmo com recurso a um adequado esforço interpretativo, a conjugação do petitório com aquilo que foi articulado pela Autora ao longo da sua petição inicial, não permite, de todo, apreender, perceber, alcançar, qual é o efeito jurídico que se propõe obter, nomeadamente, olhando para o concreto objecto do processo, fica-se sem saber qual a concreta pretensão formulada pela demandante quanto às quantias que refere na al. c) do mencionado pedido. Tal incompreensão abarca quer a formulação “a A. não tem de repor ou entregar no activo comum” a quantia de € 50.000,00 ali mencionada, quer a formulação “tem o direito a dele retirar € 4.354,64 e juros desde a citação relativos a juros dessa conta que pagou”, sem concretização do efeito jurídico que se propõe obter - declaração da natureza de tais quantias como bens/créditos próprios da demandante?; exclusão daquelas quantias dos bens/créditos comuns do casal?; aditamento de tais quantias como créditos da demandante sobre o património comum?.

Em suma, são completamente ininteligíveis – e não apenas deficientemente formulados ou expressos - os pedidos formulados sobre as als. a), c) e d) da parte final da petição inicial, sendo a situação insusceptível de qualquer intervenção por parte do Tribunal com vista à sua integração lógico-jurídica, como se verá infra.

Pese embora considere a petição inicial apta, alega a apelante que, deveria o tribunal considerar “a sua resposta à contestação” (articulado apresentado na sequência do despacho convidando a Autora a apresentar resposta à excepção de ineptidão da petição inicial) como aperfeiçoamento da petição inicial, de forma a que não se possa classificá-la de inepta.

Antes de analisar este argumento da apelante, diga-se que, na admissão da hipótese de que pretendia aperfeiçoar a petição inicial naquele articulado, decorre do teor do mesmo que a Autora continuou sem ali precisar e tornar claro, perceptível e inteligível nenhum dos pedidos formulados. Donde, mesmo a considerar-se admissível o aperfeiçoamento (o que não é o caso, como se verá de seguida), aquele articulado (de resposta à excepção de ineptidão da petição inicial) apresentava estruturalmente o mesmo vício de ininteligibilidade dos pedidos que a petição inicial já continha.

Porém, independentemente da consideração acabada de fazer, a pretensão da apelante de considerar o seu articulado de “resposta à contestação” como aperfeiçoamento da petição inicial e/ou de considerar que deveria ter existido aperfeiçoamento da petição inicial, é improcedente.

E, tal pretensão é improcedente, porquanto, como decorre dos arts. 6º, nºs 1 e 2 e 590º, nºs 2, al. b), 3, 4, 5 e 6 do Cód. Proc. Civil, não há que aperfeiçoar a petição inicial no caso de falta ou ininteligibilidade do pedido/causa de pedir, pois, a nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial não é suprível. Isto é: considerando os referidos normativos, é de concluir que, perante uma situação de ineptidão da petição inicial, não há que convidar o autor a corrigi-la, nem é legalmente admissível tal aperfeiçoamento. Cfr. neste sentido, por todos, os Acórdãos: do TRP de 23/02/2006, Deolinda Varão; do TRC de 18/10/2016, Manuel Capelo; e do TRL: de 02/11/2010, Dina Monteiro; de 24/01/2019, de 16/05/2019, e de 07/11/2019, todos de Manuel Rodrigues; e de 06/02/2020, Carlos Castelo Branco - todos, acessíveis em www.dgsi.pt.

Alega, ainda, a apelante que, no caso dos autos, a considerar-se existir ineptidão da petição inicial, a mesma terá que considerar-se suprida ao abrigo do nº 3 do art. 186º do Cód. Proc. Civil, uma vez que resulta do teor da contestação que o Réu interpretou convenientemente a petição inicial.

Apreciemos.

Nos termos do nº 3 do art. 186º do Cód. Proc. Civil, se o vício de ineptidão da petição inicial consistir na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e o réu contestar a acção, apesar de arguir a ineptidão com base naqueles fundamentos, a nulidade considerar-se-á suprida quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

Exige-se, assim, para afastar a procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, que, além da dedução da contestação, o réu tenha interpretado convenientemente a petição inicial, aqui entendida como pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.

A este propósito, escreve-se no Ac. do TRC de 18/10/2016, Manuel Capelo, acima citado: “Diga-se que o critério para aferir se uma petição é apta ou inepta (…) não reside em os réus haverem reclamado esses vícios, ou haverem contestado sem os protestarem. E o óbvio desta conclusão parte desde logo de se ter por inequívoco que a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir se estabelece em relação ao processo e ao que nele fica expresso e não ao que eventualmente o réu possa ter conhecimento para lá do que seja expresso na petição inicial. / De forma mais clara e no limite do absurdo, se um Autor se limitar a dizer que pretende uma determinada indemnização do Réu porque este lhe causou dano pelas razões que ele bem sabe, se este último contestar dizendo que não causou dano algum ao demandante e que tudo aquilo que ele sabe que aquele pretende referir como causa, mas não diz, é inteiramente falso, dúvidas não podemos ter que essa petição seria absolutamente inepta ainda que se argumentasse que, afinal, o réu não arguiu a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e que havia entendido bem o que o Autor pretendia. É que não se trata de o Réu entender ou não mas sim, diferentemente, de tal ter de ser entendido no processo nomeadamente por aquele que vai ter de julgar. / A locução normativa segundo a qual “se o réu contestar apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando ouvido o autor se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial” (art. 186 nº3 do NCPC) - não significa, pois, que a ausência de arguição de nulidade por parte do réu torne boa a petição quando a esta falte a causa de pedir ou esta seja ininteligível. / A previsão da norma é diversa e quer tão só significar que ainda que o Réu tenha arguido essa nulidade, se o que o Autor alegou puder permitir um julgamento de mérito, ainda que mais dificultado pela falta de clareza ou completude do que alegou, tal não obsta ao prosseguimento do processo quando se revele que interpretou bem, e/ou até esclareceu com a contestação, essa falta de clareza ou incompletude.”.

Ora, no caso dos autos, é cristalino que, na contestação apresentada, o Réu em nada corroborou ou acolheu (expressa ou implicitamente) a perspectiva apresentada na petição inicial quanto aos concretos efeitos jurídicos pretendidos (isto é: quanto aos pedidos formulados) pela Autora, não se antolhando inequívoco que tenha interpretado ou entendido convenientemente os concretos pedidos formulados. Com efeito, a defesa apresentada pelo Réu não pressupõe um concreto entendimento sobre as concretas pretensões formuladas em sede de pedido pela Autora. Na verdade, na contestação, o Réu limitou-se a narrar a sua versão dos factos e a concluir pela improcedência dos pedidos tal como enunciados pela Autora, continuando sem se descortinar ou apreender dos articulados de petição inicial, contestação e resposta à excepção de ineptidão – mesmo lidos em conjunto, em articulação entre si – sobre que pretensões/efeitos jurídicos em concreto o tribunal teria de vir a dar pronúncia de mérito (procedência/improcedência), uma vez que, como se viu, o concretamente exarado nas als. a), c) e d) da parte final da petição inicial é ininteligível.

Em suma, não tendo o Réu compreendido os pedidos, conforme expressamente o referiu na sua contestação, tal como o tribunal o não compreendeu, também por esta via não podia a ineptidão da petição inicial ser sanada, não se verificando, pois, ter sido violado o aludido nº 3 do art. 186º do Cód. Proc. Civil. É que não podemos perder de vista que, com a figura processual da ineptidão da petição inicial, visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar de forma correcta e coerente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis; sendo certo que além desse propósito de circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à actividade decisória, a figura da ineptidão propõe-se, ainda, impedir que se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de exercer cabalmente o contraditório, quer por não conhecer o fundamento do pedido contra ele deduzido, quer por não alcançar o que contra si é deduzido.

Acresce que não pode a apelante, perante a ausência de formulação de pedido inteligível, entender que basta a alegação de factos em que baseia o seu direito (causa de pedir) para que o tribunal possa do mesmo inferir um pedido que acabou por não formular correctamente, substituindo-se, assim, à parte, a quem cabe o ónus de apresentar o pedido com que pretende obter o respectivo efeito jurídico – cfr. arts. 552º, nº 1, al. e) e 581º, nº 3, ambos do Cód. Proc. Civil.

Considerando que de per si a formulação de pedidos ininteligíveis é causa de ineptidão da petição inicial e consequente nulidade de todo o processo e absolvição do Réu da instância, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo apelante no recurso atinentes à causa de pedir, o que se decide nos termos do art. 608º, nº 2, 2ª parte do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma legal.

Por todo o exposto, bem andou a decisão recorrida ao julgar procedente a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos deduzidos sob as alíneas a), c) e d) da petição inicial, com a consequente absolvição do Réu da instância.

Note-se, porém, que a decisão em apreciação não obsta a que a Autora proponha uma nova acção sobre o mesmo objecto, com a sanação da referida nulidade, nos termos do art. 279º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.

Entende-se, pois, ser de manter a decisão recorrida na parte em que julgou procedente a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos deduzidos sob as alíneas a), c) e d) da petição inicial, com a consequente absolvição do Réu da instância.

*
As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade da apelante – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

V.–DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, e, em consequência:
a)-manter a decisão recorrida quanto à excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal para a tramitação do pedido deduzido sob a al. b) da parte final da Petição Inicial e consequente absolvição do Réu da instância relativamente a tal pedido;
b)-manter a decisão recorrida quanto à verificação da excepção dilatória de nulidade de todo o processado por ineptidão da Petição Inicial quanto aos pedidos deduzidos sob as als. a), c) e d) da parte final da petição inicial e à absolvição do Réu da instância relativamente a tais pedidos.
Custas pela apelante.

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Lisboa, 27 de Abril de 2021


Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro