Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19480/21.4T8SNT.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: EXECUÇÃO
LEGITIMIDADE PLURAL
SUCESSORES LEGATÁRIOS DO EXECUTADO
REQUERIMENTO EXECUTIVO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Na ação executiva a legitimidade tem representação formal no título e afere-se, por isso, em função dele (cf. art.º 53º, do Código de Processo Civil).

2. Mas tal regra geral comporta desvios. Em caso de sucessão na obrigação por morte do devedor verificada antes da instauração da ação executiva, esta deve ser desde logo intentada contra os sucessores daquele, sem necessidade de recurso ao incidente de habilitação, recaindo sobre o exequente o ónus de alegar no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão (art.º 54º, nº 1, do CPC).

3. Sucessores, para efeitos da lei, são os herdeiros e os legatários (art.º 2030º, nº 1, CC), pelo que havendo notícia da existência de herdeiros e de legatários instituídos em testamento, todos têm de ser demandados, em litisconsórcio necessário, sem prejuízo de em tempo oportuno, poderem deduzir embargos e alegarem factos suscetíveis de poderem infirmar a respetiva legitimidade.

4. A ocorrência de ilegitimidade plural, por não terem sido demandados os sucessores legatários da devedora, traduz-se na falta de um pressuposto processual, de conhecimento oficioso, mas suscetível de ser suprido, pelo que nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 6º, nº 2, e 726º, nº 2, al. b), este último a contrario, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se que o juiz, em sede de despacho liminar, convide o exequente a aperfeiçoar o Requerimento Executivo, com vista à demanda daqueles sucessores.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
J…, residente na Rua …, Estoril, veio instaurar ação executiva para pagamento de quantia certa contra Herança de M….., com referência a domicílio sito em Rua de …., em Lisboa, e contra J.T…., residente em morada que alegou desconhecer, apresentando como título executivo um cheque no qual figura como sacadora sua mãe, M…, entretanto falecida.
Alegou os seguintes factos:
“I. Questão Prévia
A autora da herança, M…., faleceu no dia 14 de janeiro de 2021, pelas 20h30, conforme declaração de óbito que se junta como Doc. N.º 1, e que se reproduz para todos os efeitos legais.
Os herdeiros da falecida são (i) J… e (ii) J.T.…, conforme Imposto de Selo da Herança e Habilitação de Herdeiros, que ora se junta como Doc. N.º 2, 3 e 4 e se reproduz para todos os efeitos legais.
De acordo com o consagrado no art.º 54.º, n.º 1.º do Código de Processo Civil (“CPC”), são os herdeiros supra referidos, quem tem legitimidade para ser parte na presente ação.
Adicionalmente, refira-se que a herança é citada na pessoa do Exmo Senhor P.M., portador do NIF …….., na qualidade de Cabeça de Casal da herança supra referida.
Aliás, a este respeito, veja-se o disposto no art.º 33.º da Lei Uniforme Relativo ao Cheque (“LUC”):
“A morte do sacador ou a sua incapacidade posterior à emissão do cheque não invalidam os efeitos deste.”
Assim, é claro que o Exequente tem direito a ver pago o seu cheque, enquanto título executivo, por força do art.º 703.º, n.º 1, alínea c) do CPC, conforme Doc. N.º 5, que ora se junta e se reproduz para todos os efeitos legais.
II. Dos Factos
1. O Exequente é legítimo portador de 1 (um) cheque, no valor de EUR 200.000,00 (duzentos mil euros), emitidos pela sua falecida mãe, M... sacado sobre o Banco BPI, S.A., conforme infra melhor se descreve:
- Cheque n.º 4665334321, com data de emissão de 01.06.2021.
2. O cheque foi entregue ao Exequente pela sua mãe, a título de doação, no ano de 2020.
3. O cheque encontra-se datado de 01.06.2021, uma vez que a mãe do Exequente só nessa data queria que fosse levantado o montante.
4. Acontece, porém, que a mãe do Exequente vem a falecer em janeiro de 2021.
5. O Exequente é dono e legítimo portador do cheque n.º 4665334321 sacado pela falecida M…, que constitui título executivo.
6. Apresentado a pagamento, o referido cheque não foi pago na data do vencimento (02.06.2021), nem posteriormente, pelos Executados, apesar de, por diversas vezes, instados a fazê-lo.
7. Assim, atento o disposto nos artigos 28.º, 29.º, 40.º e 44.º da LUC, são os Executados solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Exequente, não só do valor do cheque junto como Doc. N.º 3, no montante de EUR 200.000,00, mas também pelos juros de mora legais calculados à taxa legal de 4%, desde a data do vencimento até efetivo e integral pagamento, sobre o montante de capital de EUR 200.000,00.
8. Deste modo, na presente data (09.12.2021), os juros de mora vencidos relativamente ao cheque junto como Doc. N.º 5, ascendem o valor de EUR 4.164,38.
9. Deste modo, os Executados devem ao Exequente a quantia global de €204.164,38, a que acrescem os juros de mora que se vencerem desde esta data até efetivo e integral pagamento, calculados à referida taxa de 4%, sobre a verba de capital de €200.000,00, relativamente ao cheque junto como Doc. N.
*
Foi proferido despacho liminar que convidou o exequente a aperfeiçoar o requerimento inicial, prestando esclarecimentos sobre a aceitação, ou não da herança, visando, assim, aferir da personalidade jurídica da executada; sobre a invocada solidariedade do seu irmão, e executado, quanto ao pagamento do valor titulado pelo cheque que alega constituir uma doação que lhe foi feita pela falecida mãe de ambos, e finalmente, para esclarecer se a alegada doação lhe foi ou não feita por conta da legítima.
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Prestados os esclarecimentos pelo Exequente, foi proferida a seguinte decisão:
“J… intentou a presente execução contra a Herança de M…, representada pelo cabeça de casal P.M., e contra J.T…., apresentando como título executivo um cheque que alega ter-lhe sido entregue, a título de doação, pela sua falecida mãe, M…, mais alegando que os executados são solidariamente responsáveis pelo pagamento do valor daquele cheque e dos juros.
Notificado para informar se a herança já foi aceite pelos herdeiros, para justificar a razão pela qual intenta a execução contra o seu irmão e para esclarecer a que título lhe foi feita a doação, respondeu dizendo que a herança já foi aceite, mas que nem todos os bens foram partilhados entre os herdeiros da falecida, que o seu irmão, tal como ele próprio, apenas responde pelo valor dos bens que tenha recebido por parte da autora da herança, não respondendo os seus outros bens pela dívida, e que a doação está dispensada de colação, tendo sido feita por conta da quota disponível.
Vejamos,
A personalidade judiciária é a suscetibilidade de ser parte em juízo, como autor ou como réu, sendo certo que quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária (art.º 11.º do Código de Processo Civil, diploma a que respeitam todos os normativos legais infra citados, sem menção de fonte diversa).
A personalidade judiciária consiste, assim, na possibilidade de requerer ou contra si ser requerida, em nome próprio, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei (cfr. Antunes Varela, in «Manual de Processo Civil», 2ª Ed., pág. 108).
Nos termos do art.º 12.º, al. a), só a herança jacente dispõe de personalidade judiciária, o que não acontece com a herança indivisa.
Ora, a herança, a partir do momento em que é aceite, deixa de ser jacente e passa a denominar-se por indivisa (até ao momento em que é partilhada), deixando por isso de ter personalidade judiciária, não podendo, assim, demandar nem ser demandada.
A Herança de M…., tendo sido já aceite, carece, pois, de personalidade judiciária, pelo que deve a execução ser liminarmente indeferida quanto à mesma.
De outra sorte, na ação executiva, contrariamente ao que acontece na ação declarativa, o interesse direto em demandar e em contradizer não radica nas pessoas que são titulares da relação material controvertida tal como esta é configurada pelo autor (art.º 30.º, n.º 3); ao invés, na ação executiva a legitimidade das partes afere-se através de um critério formal definido pelos art.ºs 10.º, n.º 5, e 53.º.
Estatui o n.º 3 do art.º 10.º que “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”.
Por outro lado, dispõe o n.º 1 do art.º 53.º que “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.
Assim, e conforme se decidiu no Acórdão da R.L., de 26.11.1996, tirado no Proc. 0011531, disponível in www.dgsi.pt, “Nas execuções a legitimidade resulta de indicação da Lei (art.º 26º nº 3 e art.º 55º nº 1 C. P. Civil), devendo a execução ser promovida pela pessoa que figure no título executivo como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. II - Assim, os sujeitos da obrigação devem figurar como tais no título executivo.”.
É, portanto, o título executivo que delimita subjetivamente a execução.
No caso, o exequente demanda J.T…., mas o mesmo não é obrigado (devedor) em face do documento dado à execução, uma vez que não apôs a sua assinatura no cheque.
A ilegitimidade de alguma das partes constitui exceção dilatória, insuprível, de conhecimento oficioso, que, no caso, conduz ao indeferimento liminar da execução, também relativamente ao executado J.T…..
Mostrando-se a Herança de M… ainda por partilhar e constituindo a doação que o exequente alega ter-lhe sido feita passivo dessa herança, é na partilha que a doação deverá ser considerada, por forma a apurar como há-de ser composto o quinhão de cada um dos herdeiros.
Termos em que, face ao exposto, indefiro liminarmente, nos termos conjugados dos art.ºs 278.º, n.º 1, als. c) e d), 576.º, 577.º, als. c) e e), 578.º e 732.º, n.º 1, al. c), o requerimento executivo apresentado por J..
Custas pelo exequente, fixando-se o valor da causa em €204.164,38 (art.ºs 296.º, n.º 1, 297.º, n.º 1, 299.º, n.º 1, 306.º, e 527.º, n.ºs 1 e 2).
Registe e notifique.”
*
O exequente não se conformou com a decisão, na parte em que o requerimento executivo foi indeferido liminarmente, por ilegitimidade do executado J.T., e dela recorreu, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“A. A Sentença a fls. é recorrível, por meio de apelação, nos próprios autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo, nos termos e para os efeitos do disposto nos Arts. 644.º, n.º 1(a), 645.º, n.º 1(a) e 647.º, n.º 1, todos do CPC;
B. Resulta claro da lei (interpretada de forma uniforme pela jurisprudência), que tendo havido, nomeadamente, sucessão mortis causa na titularidade da obrigação exequenda "entre o momento da formação do título e o da propositura da acção executiva", devem assumir, liminarmente, a posição de parte, como executados, os sucessores da pessoa que figura no título como devedor. Ónus que, no presente caso, foi respeitado pelo Exequente/ Recorrente, o qual deduziu, no próprio requerimento executivo, os factos constitutivos da sucessão.
C. O facto de a herança ser a responsável pelo passivo deixado pelo falecido, é questão que nada tem a ver com a legitimidade passiva na acção executiva. Ela prende-se, apenas, com os bens que podem ser penhorados, como resulta, de resto, do citado Art.º 744.º, n.º 1 do Código Civil.
D. Assim, deve a sentença que indeferiu liminarmente a execução por falta de legitimidade passiva do herdeiro J.T…., ser revogada e substituída por outra que prossiga a execução contra o mesmo.
E. Ainda a este título, refira-se que apenas não se colocou o ora Exequente/ Recorrente também como Executado porquanto, em termos processuais, a mesma parte não pode assumir a qualidade de interveniente activo e passivo. Sem prejuízo, e como manifestado nos autos, o Exequente/Recorrente encontrava-se, naturalmente, disponível para apresentar outro requerimento executivo e, se necessário, a colocar-se também como interveniente passivo.
F. Subsidariamente, da Sentença a fls. parece também resultar que a execução não configura o meio adequado para recuperar o valor doado e não pago pela falecida a um dos seus herdeiros. A este respeito, a Sentença a fls. nada mais acrescenta, nem, segundo entendemos, é este o motivo que determina o indeferimento liminar.
G. O cheque dado à execução foi entregue ao Exequente pela sua mãe, a título de doação manual, sendo que, nos termos do artigo 2113.º, n.º 3 do Código Civil, a mesma se presume dispensada de colação. Sendo que, por outro lado, entende-se por doações manuais as doações feitas mediante a tradição da coisa.
H. Deste modo, a doação não foi feita por conta da legítima, não devendo integrar o acervo hereditário. E, por conseguinte, o Executado é parte legítima na medida em que tenha recebido bens da herança e haja de reconstituir a quota disponível à qual, como vimos, é imputada a doação.
I. O que determina, também por consequência, que a execução constitui um meio adequado para promover a recuperação judicial da quantia não paga pela falecida ao herdeiro, ora Exequente.”
*
O executado respondeu ao recurso, tendo culminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura, devendo manter-se na íntegra, não assistindo qualquer razão ao Apelante nas suas alegações.
B. O ora Apelado não apôs a sua assinatura no cheque que pretende servir de título executivo aos presentes autos, não se podendo considerar, por referência ao documento em questão, que seja obrigado ou devedor de qualquer quantia que do mesmo conste.
C. Sendo o título executivo que delimita a execução e as respetivas partes e, exigindo a lei que a execução tenha de ser de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e que tenha de ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor, conclui-se que o ora Apelado é parte ilegítima na presente ação executiva.
D. Acresce que é facto evidente que o Apelante, configurando a ação executiva como o fez, se encontra numa clara situação de preterição de Litisconsórcio Necessário, nos termos previstos nos artigos 30.º, 33.º, n.º 1 do CPC e 2091.º, n.º 1 do CC.
E. Encontrando-nos perante uma situação de herança indivisa, nos termos conjugados do disposto no n.º 1 do artigo 2091.º do CC e 33.º, n.º 1 do CPC, uma execução destinada ao pagamento da dívida da herança indivisa deve ser instaurada contra essa herança, representada por todos os herdeiros, determinando a falta de algum desses herdeiros a extinção da ação em questão.
F. O próprio Apelante reconhece que, em termos processuais, não pode ser Exequente e Executado na mesma ação executiva, sendo que, perante o litisconsórcio necessário legalmente exigido, tal realidade tem como consequência direta a impossibilidade de prosseguimento dos presentes autos nos termos pretendidos pelo Apelante.
G. A eventual coincidência na mesma pessoa da qualidade de Exequente e Executado no mesmo processo configura desde logo uma impossibilidade não só lógica como processual, que não é aceitável do ponto de vista da efetiva tutela judiciária.
H. Sendo de qualquer das formas sempre inadmissível e ilegal qualquer cenário que importasse o prosseguimento da presente ação executiva apenas contra o ora Apelado na qualidade de Executado, uma vez não pode este ser única e exclusivamente responsabilizado por uma alegada dívida da herança, dívida essa que não assumiu, para mais quando se encontra demonstrado que existem outros herdeiros.
I. De resto a ação executiva também nunca poderia prosseguir, porquanto o processo executivo e os juízos de execução não são nem o meio adequado, nem o Tribunal competente para apreciar o pedido formulado pelo Apelante.
J. O alegado crédito do Apelante deveria ter sido reclamado em sede de processo de inventário, e não nos presentes autos executivos, conforme resulta do regime de inventário, nomeadamente dos termos conjugados da alínea b) do artigo 1082.º e do n.º 4 do artigo 1106.º, ambos do CPC, pois havendo impugnação da dívida – como sucede no caso concreto - caberá ao juiz responsável pelo processo de inventário apreciar a sua efetiva existência e montante.
K. Atenta a demonstração da existência de diversas exceções dilatórias não supríveis que, nos termos e ao abrigo da alínea b) do número 2 do artigo 726.º do CPC, sempre teriam como consequência o indeferimento liminar do requerimento executivo, é manifesto que os presentes autos não reúnem as condições para o seu efetivo prosseguimento.
L. Ademais, e contrariamente ao pretendido pelo Apelante, a alegada doação invocada por este (em cuja existência não se concede mas que por mera cautela de patrocínio se admite) não configura uma doação manual, que possa encontrar-se dispensada de colação.
M. Nos termos melhor explicitados no douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 28/06/2018, no âmbito do processo n.º 5182/15.4T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt “5- Não integra doação manual a doação de importância em dinheiro a descendente através de cheque (ordem de pagamento dada a banco), tendo a doação, atualizada por aplicação dos índices de preços do consumidor, nos termos do artigo 551º, do Código Civil, de ser relacionada - cfr. nº 3, do artigo 2109º, de tal diploma -, para ser levada à colação, para igualação dos quinhões hereditários dos herdeiros.” – destaque e sublinhado nossos.
N. “A entrega, pelo falecido, dos cheques não consubstancia uma pura entrega da coisa doada, feita pelo doador ao beneficiário, acompanhada da tradição do bem, que é o que caracteriza a doação manual. A doação foi feita pelo pai da recorrente, por escrito, pois entregou-lhe três cheques, não tendo sido manual, com tradição da coisa, pois que não foi entregue o dinheiro, mas sim cheques, documentos que constituem ordens (escritas) de pagamento dadas a uma instituição bancária. Não resultando a existência de dispensa de colação deve ser relacionada, no processo de inventário, a importância doada.”.
O. A alegada doação – ocorrida algures no ano de 2020 – tinha data de efetivação apenas para 01.06.2021 (data de emissão do cheque) não consubstanciando assim, para todos os efeitos, uma doação manual, na medida em que a entrega do cheque não traduziu efetivamente uma entrega de dinheiro,
P. Não se encontrando assim tal alegada liberalidade dispensada de colação e devendo por isso tal importância ser relacionada no processo de inventário, conforme de resto se retira da posição expressa pelo Tribunal a quo na sentença recorrida quando entende que “Mostrando-se a Herança de M... ainda por partilhar e constituindo a doação que o exequente alega ter-lhe sido feita passivo dessa herança, é na partilha que a doação deverá ser considerada, por forma a apurar como há-de ser composto o quinhão de cada um dos herdeiros.”.
Q. Não sendo assim o presente processo executivo o meio adequado para o Apelante fazer valer a sua alegada pretensão.
R. É assim manifesto que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura, devendo a mesma ser mantida na íntegra, o que expressamente se requer.”
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O recurso foi admitido e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art.ºs 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº 3 do mesmo Código).
No caso, cabe decidir se o executado J. é, só por si, parte legítima na execução.
III. Fundamentação de Facto
Os factos a atender são os descritos no relatório deste acórdão, e ainda, os seguintes, evidenciados pelos documentos apresentados com o Requerimento Executivo, apresentado em 25/12/2021 (referência citius 20131248):
1- Foi apresentado como título executivo um cheque datado de 1 de junho de 2021, no valor de €200.000,00, constando como sacadora M…; como sacado, o “Banco BPI, S.A.”; e como beneficiário, o Exequente J....
2- M… faleceu no dia 14 de janeiro de 2021, no estado de viúva de M.J.T..
3- Sucederam-lhe, como herdeiros, os seus dois filhos, J... (Exequente) e J.T…. (Executado).
4- No Testamento outorgado em 3 de maio de 2019, M... instituiu como sucessores legatários, os seus netos, filhos respetivamente, de J… e de J.T…..
5- No Testamento outorgado posteriormente, em 12 de março de 2021, a testadora declarou que para além daquele outro testamento, deixou ainda, como disposição de última vontade e por conta da legítima, nova instituição de legado a favor do filho J….   
IV. Fundamentação de Direito
Cuida-se, no presente recurso, e apenas, da questão da (i)legitimidade passiva do executado J.T., posto que, no demais, a decisão transitou em julgado.
As ações executivas são fundadas em títulos, que delimitam os seus fins e limites (cf. art.º 10º, nº 5, do Código de Processo Civil).   
O título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão material e, portanto, a possibilidade de realização coactiva e, eventualmente, coerciva da correspondente prestação através de um processo executivo. A particularidade do título executivo reside em que o documento em que se materializa incorpora um direito à prestação e, ao mesmo tempo, atribui um direito à execução, ou seja, o direito do credor a que o Estado agrida o património do devedor ou de um terceiro para lhe facultar o exercício do seu direito de execução contra esse devedor ou terceiro (…)”.[1]
O art.º 703º do Código de Processo Civil define as espécies de títulos executivos. No que importa para os autos, cumpre atentar na alínea c), do seu nº 1, nos termos da qual podem servir de base à execução títulos de crédito, ou seja, títulos que incorporam uma obrigação, como os cheques, que contêm uma ordem de pagamento, dada pelo emitente (sacador), ao sacado (banco), para que este pague a importância nele titulada ao beneficiário (tomador/portador) (art.º 1º Lei Uniforme Cheques).
O sacador, ao emitir o cheque, obriga-se a ter a sua conta bancária provida para que o mesmo possa ser pago a quem se apresentar como seu legítimo portador, e nos termos do art.º 33º da LUCh, a morte do sacador ou a sua incapacidade posterior à emissão do cheque não invalidam os efeitos deste.
A par das Letras e Livranças, a exequibilidade dos cheques “(…) e a sua oponibilidade pelo exequente ao executado obedecem a regras específicas, a mais importante das quais é a de que o credor não tem que invocar outra relação para além da que resulta do próprio título, bastando a sua conjugação com as normas jurídicas que atribuem ao portador um direito de crédito e que vinculam o obrigado ao correspondente cumprimento. Por isso, na data do vencimento ou nas circunstâncias referidas no artigo 43º da LULL, o legítimo portador pode exigir dos responsáveis o pagamento do capital inscrito, dos juros de mora e dos referidos acréscimos referidos no art.º 48º da LULL ou no art.º 45º da LUCh”.[2]
Ou seja, os títulos de crédito, consubstanciam a própria obrigação – a obrigação cambiária – que é independente da relação jurídica que lhe deu origem.
A legitimidade é um pressuposto processual.  O objetivo da legitimidade das partes prende-se com o interesse em que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, apresentando-se, por isso, como refere Anselmo Castro, como o corolário do princípio do contraditório[3].
Como resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 30º do Código de Processo Civil, “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar”; “o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”, exprimindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
 “A legitimidade representa (…) uma posição da parte em relação a certo processo em concreto – melhor, em relação a certo objecto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa.
(…)
A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu ocupar-se em juízo desse objecto do proceso”.[4]
Segundo Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora[5], “ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ele oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado (…); e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida”. Logo, “(…) a lei define a legitimidade (como poder de dirigir o processo) através da titularidade do interesse em litígio (…)”, sendo que “(…) à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (…) na procedência ou improcedência da acção. Exige-se que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer; não basta um interesse directo, reflexo ou derivado”
 E o nº 3 daquele mesmo art.º 30º, dispõe, por seu turno, que “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”.
Porém, na ação executiva, a legitimidade tem representação formal no título e afere-se, por isso, em função dele, como resulta do regime especial decorrente do art.º 53º, do Código de Processo Civil:
“1- A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e devedor deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.
2- Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título”.
Deste modo, na execução fundada em cheque, terão legitimidade os sujeitos que nele figuram, respetivamente, como credor (o exequente e beneficiário do cheque) e devedor (o executado - sacador).
A referida norma geral, comporta, porém, desvios, como decorre expressamente do artigo seguinte daquele mesmo Código, desde logo, no caso de ocorrer sucessão no direito ou na obrigação, nomeadamente, antes da instauração da ação executiva.
Assim, nos termos do nº 1, do art.º 54º, “Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.
Explica-nos José Lebre de Freitas[6], que “Tendo havido sucessão, entre vivos ou mortis causa, na titularidade da obrigação exequenda, entre o momento da formação do título e o da propositura da ação executiva, seja do lado activo, seja do lado passivo, devem tomar, desde logo, a posição de parte, como exequentes ou como executados, os sucessores das pessoas que figuram no título como credores ou devedores”, sendo assim dispensável “(…) o recurso ao incidente de habilitação (…) quando a intervenção dos sucessores tenha lugar no momento da instauração da execução. É suficiente, então, que o exequente deduza no próprio requerimento inicial os factos constitutivos da sucessão, sem que tenham lugar (…) os termos subsequentes do incidente de habilitação”.  
Ou seja, nas referidas circunstâncias, o exequente tem de alegar no Requerimento Executivo os factos que evidenciam a sua legitimidade ativa ou a legitimidade passiva do executado em termos em tudo idênticos ao que ocorre nas ações declarativas quando surge a necessidade de suscitar o incidente da habilitação dos sucessores da parte falecida (cf. art.º 351º, do Código de Processo Civil), sendo que em sede executiva – e independentemente da intervenção liminar do juiz – os executados poderão sempre, em sede de embargos, deduzir factos que venham infirmar a legitimidade (ativa ou passiva, consoante a situação do caso concreto).[7]
Deste modo, no âmbito da execução, a ilegitimidade só ocorre quando a parte não coincide com aquela que consta do título executivo e inexista qualquer outra circunstância que lhe atribua legitimidade para a execução[8].
No caso, os autos evidenciam-nos a seguinte factualidade:
- A presente ação entrou em juízo em 25 de dezembro de 2021;
- O exequente J. apresentou como título executivo um cheque datado de 1 de junho de 2021, no valor de € 200.00,00, do qual é beneficiário e portador, dele constando como sacadora, a sua mãe, M...;
- Alegou que apresentado em tempo a pagamento, o cheque não foi pago.
- Mais alegou e demonstrou, que a sua mãe M... (obrigada cambiária) faleceu em data anterior à propositura da execução - no dia 14 de janeiro de 2021 -, no estado de viúva de M.J.T.; que lhe sucederam como herdeiros, os seus dois filhos, J… (Exequente) e J.T…. (Executado);
- Resulta dos documentos que acompanham o Requerimento Executivo que M... instituiu, por testamento, como sucessores legatários, os seus netos, filhos respetivos do ora Exequente e Executado (cf. art.º 2030º, do Código Civil).
Deste modo, e subsumindo os factos ao enquadramento jurídico que se deixou traçado, é inequívoco que no caso dos autos, e no âmbito da legitimidade passiva para a execução, estamos perante uma situação de desvio à regra geral prevista no referido art.º 53º, nº 1, do CPC.
Porém, o Exequente, não deu integral cumprimento ao sobredito art.º 54º, nº 1, in fine, do mesmo Código, na medida em que no Requerimento Executivo não alegou todos os factos constitutivos da sucessão da obrigada cambiária, tendo omitido a instituição de sucessores legatários.
E sucessores, para efeitos da lei, são os herdeiros e os legatários (cf. art.º 2030º, nº 1, do Código Civil).
No âmbito do procedimento da habilitação de herdeiros (cf. o citado art.º 351º, nº 1, do CPC), têm de ser chamados ao processo para nele ocuparem a posição do falecido, os sucessores, ou seja, todos os seus herdeiros ou legatários, em litisconsórcio necessário. Logo, em sede executiva, quando o devedor morre antes de instaurada execução, e permanecendo a herança indivisa (como decorre do Requerimento Executivo e não é cabalmente infirmado no requerimento posteriormente aperfeiçoado), devem ser alegados todos os factos da sucessão e identificados todos os sucessores, que, do lado passivo, assegurarão a legitimidade para a execução, o que no caso não sucedeu, quanto aos legatários.
No que diz respeito aos filhos da devedora, seus herdeiros, sendo um deles simultaneamente o beneficiário e portador do cheque, e, portanto, o credor, e sendo manifesto que as partes não podem assumir nos processos posições antagónicas, só o outro herdeiro pode ser demandado na qualidade de sucessor da devedora, pelo que o executado J.T. será sempre parte legítima na execução, ainda que, no caso vertente, e em face dos elementos constantes dos autos, ocorra uma situação de ilegitimidade (plural) por preterição de litisconsórcio necessário passivo, na medida em que não foram demandados, como executados, os legatários. O litisconsórcio necessário é imposto por lei ou por negócio jurídico (quando é este que exige a intervenção de todos os interessados para o exercício do direito), sendo que no caso tal imposição decorre da lei, designadamente, do citado nº 1, do art.º 54º, do CPC, ao exigir que a execução tem de correr entre os sucessores do credor ou devedor da obrigação exequenda (logo, entre todos os sucessores).
Estamos perante a falta dum pressuposto processual, de conhecimento oficioso, mas suscetível de ser suprido, pelo que nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 6º, nº 2, e 726º, nº 2, al. b), este último a contrario, ambos do Código de Processo Civil, impunha-se ao juiz, em sede de despacho liminar, o convite ao aperfeiçoamento do Requerimento Executivo.
 E resta dizer, que para aferir da legitimidade liminar para a execução - e é disso que trata o recurso face ao segmento da decisão recorrida que foi posta em crise -, nada mais cumpre ponderar ou apreciar, desde logo, a questão da responsabilidade pelo pagamento do valor titulado pelo título cambiário.
Conforme decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2000[9] “(…) tendo havido, nomeadamente, sucessão mortis causa na titularidade da obrigação exequenda "entre o momento da formação do título e o da propositura da acção executiva" (situação que, no nosso caso, importa considerar), devem assumir, liminarmente, a posição de parte, como executados, os sucessores da pessoa que figura no título como devedor.
Dito por outras palavras, "a legitimidade que é concedida" ao sujeito que conste do título executivo como devedor é igualmente "reconhecida aos seus sucessores".
(…)
O facto de a herança ser a responsável pelo passivo deixado pelo falecido (…), é questão que nada tem a ver com a legitimidade passiva na acção executiva.
Ela prende-se, apenas, com os bens que podem ser penhorados.” – sublinhado nosso.
E quanto à penhora, e sempre sem prejuízo da possibilidade da dedução em tempo oportuno de oposição à execução mediante embargos, só no decurso do processo poderão ser determinados os bens suscetíveis de serem penhorados, sendo que também neste tocante, assistirá aos executados, sendo caso disso, e querendo, a possibilidade de lançar mão dos mecanismos de oposição que têm ao seu dispor.
Por último, as considerações feitas no despacho recorrido a propósito do processo onde deveria ser atendida a alegada doação da quantia monetária titulada pelo cheque – negócio subjacente ao crédito cambiário - são inócuas à apreciação do pressuposto da legitimidade processual, considerando a natureza do título e o regime jurídico à luz do qual deve aferir-se da legitimidade liminar das partes, e não constituíram fundamento da decisão de ilegitimidade, pelo que não poderão ser aqui objeto de apreciação.
Concluindo, e ainda que por fundamentos diversos do recorrente, a apelação tem de proceder, na medida em que o despacho recorrido, ao indeferir liminarmente o Requerimento Executivo, por julgar verificada a exceção insuprível de ilegitimidade passiva, violou o disposto nos arts. 6º, nº 2, 54º, nº 1, e 726º, nº 2, al. b), todos do Código de Processo Civil.

V. Decisão
Em face do exposto, acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, e em consequência, revogar o despacho recorrido, na parte em que indeferiu liminarmente a execução quanto ao executado J.T…., determinando-se que o mesmo seja substituído por outro que convide o Exequente a apresentar novo Requerimento Executivo, onde, em conformidade com o ora decidido, alegue todos os factos constitutivos da sucessão e identifique todos os sucessores.

Lisboa, 17 de novembro de 2022
Cristina Lourenço
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
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[1] João de Castro Mendes, Miguel Teixeira de Sousa, “Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL Editora, 2022, pág. 550.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, 2021, pág. 25-26.       
[3] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil declaratório, II, Livraria Almedina, Coimbra, pág. 168.
[4] João de Castro Mendes, in “direito processual civil IIº Vol.”Edição AAFDL, 1987, pág. 187.
[5] In, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 129, 134 e 135.
[6] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1, Coimbra Editora, 1999, págs, 112-113 (em anotação ao artigo então correspondente ao 56º)
[7] António Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires Sousa, “Código Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 91.
[8] Vide, Miguel Teixeira de Sousa, “Acção Executiva Singular”, LEX, Lisboa, 1998, pág. 143.
[9] Proferido no processo JSTJ00040701, acessível em www.dgsi.pt