Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2313/14.5T8LSB.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
AMPUTAÇÃO DE MEMBRO INFERIOR
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
VIOLAÇÃO DAS LEGIS ARTIS
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Em acções fundadas em responsabilidade civil médica, incumbe ao paciente alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo médico e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano;
2. Demonstrada a violação das leges artis, opera a presunção de culpa a que se reporta o art.º 799º do CC;
3. O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso e não o cumprimento defeituoso em si mesmo;
4. Operando a presunção de culpa, cabe ao médico demonstrar a conformidade entre a sua conduta efectivamente observada e a actuação que lhe era exigível;
5. Não se exige ao médico a demonstração da real causa do dano, sendo suficiente uma explicação que sustente a existência do dano e a sua conduta diligente;
6. Por outro lado, a responsabilidade médica resulta também excluída se se demonstrar que o dano se deve a caso fortuito ou de força maior;
7. Não logrando a A. provar que a evolução da sua situação clínica, e que conduziu à amputação da sua perna, se deveu a uma lesão da artéria poplítea direita, causada por anterior cirurgia efectuada pelo R., não se mostra possível concluir por uma violação das legis artis, não podendo, por conseguinte, operar a presunção de culpa constante do art.º 799º do CC, o que leva à improcedência da acção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. A  intentou a presente acção declarativa comum contra Hospital dos Lusíadas S.A e B, pedindo que a condenação solidária dos RR. pagar-lhe €266.171,33, acrescidos de juros vincendos à taxa legal.
Para tanto, alega que o R. B é médico e exerce funções para a R. Hospital Lusíadas, S.A.; que no âmbito de tais funções, o primeiro efectuou uma cirurgia artroplástica no joelho direito da A.; que um mês após esta cirurgia, foram verificadas complicações em consequência da mesma, levando à amputação da perna direita da A., o que lhe provocou danos patrimoniais e não patrimoniais.
2. Contestando, a R. Lusíadas deduziu as excepções de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade activa da A. relativamente ao pedido de indemnização por danos patrimoniais que envolvem os pagamentos realizados pelos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos (“SSCGD”) e pelo marido da A., tendo ainda impugnado a factualidade alegada na petição inicial.
Mais requereu a intervenção principal provocada de Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A..
3. Na sua contestação, o R. B alegou a inexistência de qualquer relação contratual com a A., já que os cuidados de saúde que foram prestados por si o foram na qualidade de médico colaborador do 1.º R., mais tendo impugnado a factualidade alegada na petição inicial.
Requereu ainda a intervenção provocada de AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A..
4. Admitidas ambas as intervenções, apresentaram as intervenientes contestação defendendo a improcedência da acção.
5. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, julgando improcedentes as excepções deduzidas e fixado o objecto do litígio e os temas de prova.
6. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença julgando a acção improcedente.
7. Inconformada, a A. recorre desta decisão, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1
O que está em causa no presente processo é o facto de a A ter sido submetida a uma cirurgia ao joelho direito para melhorar a sua locomoção em 11 de Julho de 2012 e, pouco mais de dois meses depois, sempre acompanhada, medicada, e aconselhada pela mesma equipe cirúrgica, ter-lhe sido amputada a perna para evitar a morte.
2
A cirurgia ao joelho foi feita pelo 2º R. – reputado ortopedista – nas instalações e com o apoio de pessoal e equipamento do Hospital dos Lusíadas – 1º R.
3
Ficaram assentes factos que a A reputa suficientes para concluir que tem de ser indemnizada por esta agressão física da sua integridade e, por isso, deve ser revogada a sentença da meritíssima Juíza a quo que absolveu os réus totalmente do pedido.
4
O indeferimento da ação está suportado no seguinte texto da sentença:
“É linear que os fatos concretos, geradores de responsabilidade civil que a A. imputa aos 1º e 2º RR. são:
“A amputação da perna direita da A. deveu-se a negligência dos 1º e 2º Réus, quer porque não realizaram atempadamente os exames e tratamentos devidos à autora, logo após a primeira cirurgia de 10-7-2012, por reporte aos sintomas que aquela apresentou, quer porque na primeira cirurgia feita pelo 2º R. este lesionou a artéria polítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo, e nada fez posteriormente para tratamento desta lesão.”
“Nenhum destes fatos resultou provado, sendo certo que impendia sobre a A. o ónus da prova dos fatos constitutivos do seu direito, nos termos gerais do artigo 487º, n.º 1 do CC”.
5
Ora, a afirmação: “a amputação da perna deveu-se a negligência dos réus” é uma conclusão de direito que resultará de factos dados como provados.
A douta sentença, neste aspeto, está contra o art.º 607º, nº 3 do CPC que obriga a distinguir os factos das conclusões de direito.
6
Também, na parte em que julga que impende sobre a A o ónus da prova da negligência dos réus, está a sentença contra a jurisprudência maioritária do STJ, nomeadamente Revista nº 136/12.5TVLSB.L1.S1 e Revista nº 359/10.1TVLSB, que entende que a responsabilidade civil por ato médico assume a natureza de responsabilidade contratual aplicando-se o ónus da prova da não culpa ao médico, nos termos do art.º 799º, nº 1 do Cód. Civil
7
Ora, os réus não só não alegaram nem provaram nenhum facto que explique que não foi por sua ação que resultou a amputação da perna da A, como ficaram provados factos que levam a concluir que essa amputação foi consequência da ação deficiente e ilícita dos réus, sendo certo que a operação ao joelho era acompanhada do dever por parte dos RR de não afetar qualquer outro bem da A. 8
De facto, o Hospital – 1º R – apresenta, na sua contestação, uma descrição de todas as ocorrências e falhas, sob o ponto de vista médico e científico, que conduziram à amputação.
9
Nos art.ºs 54º e 55º da sua Contestação diz que a doença da A obrigava a que a operação ao joelho fosse precedida de avaliação que incluísse pesquiza de lesões neuro vasculares e deveria ter sido consultada a especialidade de cirurgia vascular, o que não foi feito.
10
E nos art.ºs 61º e 62º do seu articulado, diz o Hospital que a operação ao joelho deveria ter sido feita com intervenção da cirurgia vascular, o que não foi feito.
11
Diz ainda, nos art.ºs 73º a 76º da Contestação, que, dois dias após a operação ao joelho, a A se queixou à enfermagem do Hospital de ausência de sensibilidade e de mobilidade do pé e foi verificada bolha no osso do calcanhar e no dia 17.07.2012 o médico observou falta de sensibilidade e mobilidade do membro operado e, mesmo assim, a A foi mandada para casa.
12
E nos art.ºs 94º, 97º, 98º, 100º, 109º e 101º da Contestação, diz o Hospital que só no dia 27.07.2012 é que o Dr. B pediu a intervenção da cirurgia vascular, mas que nessa data (duas semanas e meia depois da operação) já era tarde e já não foi possível evitar a amputação da perna, devido a infeção generalizada.
13
Diz ainda nos art.ºs 101º a 104º da contestação do Hospital, que os exames realizados à A em 2.08.2012, revelaram uma lesão segmentar (=cortada) da artéria, aliada a trombose venosa profunda, que não é comum mesmo em doentes como a A., o que leva a concluir que durante a cirurgia ao joelho houve uma lesão iatrogénica (=grego: iatros – médico), ou seja, a artéria foi cortada pelo médico e este não registou este facto.
14
E, em seguida, - Art.ºs 100º, 103º e 105ª da Contestação – diz o Hospital que uma lesão destas ou é diagnosticada nas primeiras horas do pós-operatório ou o prognóstico é muito reservado.
15
O Hospital refere todas estas falhas para fazer ressaltar que foram todas da única responsabilidade do Sr. Dr. B – 2º R – que teve a direção da cirurgia ao joelho e que este nunca pediu a intervenção da cirurgia vascular do Hospital, como deveria e que a partir do seu pedido de intervenção da cirurgia vascular, o Hospital fez tudo para evitar a amputação, mas já era tarde.
16
Ora, o Hospital teve intervenção direta em todos estes acontecimentos, já que a cirurgia ao joelho dirigida pelo 2º réu, foi realizada com assistência de pessoas, equipamento e instalações do Hospital (facto provado nº 15 da Sentença), pessoal igualmente competente e credenciado para esse ato médico, que também tinha obrigação de ir verificando as falhas e, portanto, tinha a mesma obrigação de cumprir e fazer cumprir tudo quanto fosse indispensável ao bom êxito da operação ao joelho. Nesse sentido, todas estas alegações do Hospital têm de ser consideradas confissão, nos termos art.ºs 352º e 356º, nº 1 do Cód. Civil, normativos violados pela sentença sub judice.
17
Também o 2º R., Sr. Dr. B, confessa, no art.º 58º da sua Contestação, que não detém os conhecimentos próprios da especialidade de cirurgia vascular necessários para um correto e adequado acompanhamento da A e que só em 27.07.2012 (data que o Hospital considera tarde de mais) é que pediu ajuda a esta especialidade. Alegação que confirma o que descreve o Hospital para a essencialidade da intervenção da cirurgia vascular.
18
Também alega, no art.º 81º da sua Contestação, que sabia que a cirurgia que realizou ao joelho comportava riscos de oclusão da artéria poplítea por trombose venosa profunda, como ocorreu, o que constitui confissão de que não cumpriu o dever de pedir a intervenção da especialidade de cirurgia vascular.
Também aqui a meritíssima juíza, ao não considerar estas confissões do 2º R., violou os art.ºs 352º e 356º, nº 1 do C.C.
19
Segundo o citado Ac. STJ Revista 359/10.1TVLSB, “O nexo de causalidade entre o facto e o dano não exige a demonstração de uma certeza científica ou naturalística, mas apenas um juízo de probabilidade de que o facto foi a causa adequada, em sentido normativo, da produção do dano”. Ora, os factos dados como provados pela sentença sub judice, são suficientes para fazer o juízo de probabilidade de que a falta de intervenção da cirurgia vascular atempadamente na intervenção cirúrgica ao joelho da autora e no pós-operatório, foi a causa adequada da produção do dano, a amputação da perna.
20
De facto, ficou dado como provado – facto nº 56 - pela sentença, que a equipa cirúrgica teve acesso a toda a informação e ficou conhecedora de todos os aspetos da saúde e doença da A.
21
Ficou provado – facto 14 da sentença – que a operação ao joelho proposta pelo 2º R se destinava a afastar as dores e melhorar a locomoção da A., assegurando a probabilidade de obtenção dos mesmos resultados da operação ao joelho esquerdo, que tinha sido realizada anos antes e que tinha resolvido todos os problemas daquele joelho.
22
Ficou provado – factos 16, 17, 18, 19 e 51 da sentença – que, após esta operação ao joelho, realizada pelo 2º R, desde o primeiro momento e nos dias seguintes, a autora se queixou de ausência de sensibilidade e falta de mobilidade do pé e foi constatado pelos réus, bolha no osso do calcanhar, coloração escura do dedo grande do pé e, mesmo assim, foi enviada para casa, em 20.07.2012, passados 9 dias da operação.
23
Ficou provado – factos 59 e 60 da sentença - que desde a operação ao joelho até ao dia 27.07.2012, foi sempre acompanhada por ambos os réus.
24
Nem a A nem os RR alegaram qualquer facto que comprovasse que, além dos RR, outra qualquer entidade tivesse seguido, aconselhado ou medicado a A ou que esta não tivesse seguido tudo quanto os RR lhe ordenaram para fazer durante ou após a operação ao joelho.
25
Ficou provado – factos 20, 61 e 54 da sentença – que o 2º R, em 27.07.2012, manifestou preocupação pelo estado da perna e pediu a intervenção da cirurgia vascular do Hospital.
26
Ficou provado – factos 54 e 23 a 26 da sentença – que a A, a partir de 27.07.2012, foi seguida pela especialidade de cirurgia vascular do Hospital que efetuou várias intervenções, mas não conseguiu evitar a conclusão final de amputação da perna da A., que corria perigo de morte.
27
Ficou provado factos 55 e 21 da sentença – que exames feitos à perna da A pelo Hospital revelaram que tinha havido lesão segmentar (=cortada) da artéria que alimenta o fluxo sanguíneo da perna operada.
28
Perante estes factos, a meritíssima juíza a quo não poderia deixar de concluir que os réus são os causadores e responsáveis pelo dano causado à A. E não o tendo feito, violou a sentença os art.ºs 798º e 799º, nº 1 do C.C.
29
Também violou a sentença os art.ºs 608º, nº 2 do CPC ao não ter em conta os factos confessados pelos réus e que acima se descrevem, assim como viola o art.º 413º do CPC porque não considerou todas as provas produzidas no processo e que levam à conclusão evidente da culpa dos RR na agressão feita à A.
30
Estão provados factos que comprovam que a A tem boa situação económica, assim como está comprovado que os RR têm boa situação económica, patente nos preços que praticaram nas intervenções que fizeram à A, sendo também certo que estão escudados por seguro para os casos como o da A.
31
Por essa razão, a A considera as indemnizações pedidas como adequadas, compensam em parte a A pelo prejuízo sofrido e não fazem grande diferença à economia dos réus.
31
As indemnizações pedidas são as seguintes: 70.000,00 euros pela perda de autonomia e pela dependência de terceiros para as necessidades básicas e deslocações; 50.000,00 euros por ter deixado de poder tratar dos netos que era uma alegria para ela; 20.000,00 euros pelo perigo de infeções por estar sempre sentada, sujeita a escaras e outros inconvenientes; 20.000,00 euros pelo seu estado psicológico e sentimento de comiseração.
32
O pedido destas indemnizações está suportado nos factos dados como provados na sentença - nºs 34 a 38 – referentes ao confinamento a cadeiras de rodas, facto 39 – referente a seu estado psicológico, factos 45 e 46 – referente ao cuidado com os netos, facto 47 – referente aos perigos de infeções.
33
Pede também a A e tem direito a receber as quantias que despendeu e que tem de despender no seu futuro na sequência de todo o processo e que são as seguintes:
34
46.800,00 euros correspondentes a 13 anos de ordenados mensais de 300,00 euros que tem pago e vai ter de pagar a mulher a dias – facto provado 40 da sentença.
35
Este pagamento a mulher a dias foi calculado tendo em conta que a vida média da mulher portuguesa é de 82 anos, que a A nasceu em 17.12.1943 – facto provado nº 1 da sentença – e que teve alta da amputação da perna em 8.10.2012 – facto provado 31 da sentença.
36
Igual cálculo está subjacente ao pedido de 23.400,00 euros, correspondente a três anos a 150,00 euros mensais, gastos pela A em assistência médica, medicamentosa, fisioterapia e deslocações – facto provado 41 da sentença.
37
Também tem direito a A de receber dos RR os 2.509,92 euros que pagou por prótese que lhe foi receitada em consequência da amputação – Factos provados 34, 35 e 42 da sentença
38
Igualmente têm os RR de pagar-lhe a cadeira de rodas elétrica que tem o valor de 6.525,90 euros – Facto provado 43 da sentença
39
Também têm os RR de pagar-lhe a quantia de 10.932,33 euros que a A. pagou pela operação ao joelho e pela amputação da perna – facto provado 44.
40
Todas estas quantias foram pedidas na data da propositura da ação, outubro de 2014.
Segundo o art.º 566º, nº 2 do C.C., a indemnização deve ser definida na data mais recente que puder ser atendida.
41
Segundo STJ Proc. 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A, por estar privado do montante da indemnização, o lesado sofre um prejuízo que corresponde aos juros contados desde a citação.
42
Também, do art.º 805, nºs 1 e 3 do C.C., se segue que os juros devem ser contados desde a citação dos RR para a ação, no presente caso desde 27.10.2014, como resulta das referências CITIUS de 24.10.2014.
43
São assim devidos juros de mora sobre todas as quantias pedidas, à taxa legal – 4% ao ano- desde 27.10.2014 até total pagamento.
44
Deve, então, ser revogada a sentença sub judice, por não ter atendido e aplicado os normativos citados nestas conclusões e ser substituída por decisão que condene os réus a pagar solidariamente à A as quantias descritas, no total de 250.168,15 euros, acrescido dos juros legais à taxa de 4% ao ano, desde 27.10.2014 até total pagamento”.
6. Em contra-alegações, os RR. e as Intervenientes defenderam a improcedência do recurso.
*
II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso são:
- da nulidade da sentença;
- da responsabilidade dos RR..
*
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou a seguinte factualidade:
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Nos termos do art.º 607º, n.º 4 do CPC, consideram-se provados os seguintes factos:
Factos Provados
1- A autora nasceu em 17.12.1943, é casada com AA desde 19.08.1973 e reside com ele desde essa data em economia comum.
2- Tem uma filha nascida em 27.02.75, casada desde 26.06.2005, e dois netos, um nascido em 22.03.2006, e outro nascido em 23.06.2010.
3- A A. exerceu a profissão de empregada de escritório e atualmente está reformada a receber uma reforma de 5 995,78 euros anuais.
4- O marido da A. foi empregado no Banco Nacional Ultramarino e Caixa Geral de Depósitos, auferindo da Caixa Geral de Aposentações a pensão mensal de 2.266,30 euros, tendo-lhe sido pago em 2012 o total anual de 29.020,20 euros.
5- Autora e marido são proprietários de uma casa tipologia T3 com garagem para 3 carros, e a A. é dona, desde 2011, de um veículo automóvel de marca Peugeot, tendo uma situação económica confortável.
6- A única filha da autora está empregada na Caixa Geral de Depósitos, é casada, estando igualmente o seu marido empregado, e tem uma situação económica confortável, sem necessitar de apoio dos pais.
7- A autora sofre desde há cerca de 20 anos de artrite reumatoide, doença que causa inflamações nas articulações, entre outras alterações.
8- Devido a esta doença, a autora tinha problemas sobretudo nos joelhos e, por essa razão, em 2005 foi operada ao joelho esquerdo, tendo sido feita artroplastia total do joelho, ou seja, substituição da articulação do joelho da perna esquerda por prótese.
9- Em resultado desta operação, a autora, relativamente ao joelho esquerdo, ficou sem inflamações, inchaços ou dores.
10- Em princípios de 2012, na sequência de consultas de ortopedia no Hospital dos Lusíadas, aqui 1º R., a autora passou a ser seguida pelo Dr. B, 2º Réu, médico especialista em ortopedia, a prestar serviços no 1º R., atuando com total autonomia técnica e científica relativamente a este último.
11- Na sequência, a autora passou a ser acompanhada pelo Dr. B, e todas as consultas e tratamentos que a autora teve no âmbito desta doença, a partir de então, foi sempre por marcação e acompanhamento de pessoal do Hospital, 1º réu, nas instalações deste.
12- Após várias consultas com o Dr. B, e realizados todos os exames prescritos por este, feitos nas instalações e com técnicos do 1º réu, o Dr. B propôs-se fazer, no joelho direito da autora, operação idêntica à do joelho esquerdo, assegurando a probabilidade de obtenção dos mesmos resultados do joelho esquerdo.
13- Depois da operação ao joelho esquerdo, em 2005, a A., apesar de sofrer de artrite reumatoide, fazia a sua vida normal deslocando-se de forma independente e sem ajuda de terceiros, assegurava a lide da casa e apoiava a filha na educação dos netos, cuidando deles.
14- A operação cirúrgica proposta pelo 2º R. destinava-se a afastar as dores do joelho direito, e melhorar a sua locomoção, como já tinha acontecido com a intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo.
15- Em 29.06.2012 o Dr. B marcou a cirurgia, a qual foi realizada em 11.07.2012, no Hospital 1º réu, dirigida pelo Dr. B 2º R., e com apoio de pessoal e equipamento do Hospital réu.
16- Logo após a operação verificou a autora e fez notar ao pessoal do Hospital, 1º R., e ao 2º R., que não tinha sensibilidade na perna operada.
17- Nos dias seguintes à operação, a autora foi todos os dias acompanhada por pessoal do Hospital e pelo Dr. B, e sempre a autora se queixou de que não sentia a perna do joelho para baixo.
18- Passados cerca de 4/5 dias da operação, o dedo grande do pé direito da A., e o calcanhar começaram a apresentar uma coloração escura.
19- Tais sinais foram referenciados no processo clínico da A. como “Zona de pressão do calcanhar/ sofrimento cutâneo por pressão”, foi retirada a compressão da zona, aplicada “placa Vahreesive”, e a autora teve alta dada pelo dr. B, no dia 20 de julho de 2012.
20- No subsequente dia 27 de julho de 2012, a autora voltou à consulta no Hospital réu e foi novamente atendida pelo Dr. B, o qual após a examinar fez o seguinte diagnóstico e registo clínico:
“Úlcera de pressão no calcanhar dtº assim como lesões (flictenas na face anterior do 1/3 médio da face anterior da perna dtª) cutâneas e sinal evidente de sofrimento vascular em declive com recuperação e retornos capilares, mas sinais evidentes de lesão arterial. Estas lesões instalaram-se no decorrer desta semana, apesar da medicação profilática e do uso de contenção elástica.
Pede-se observação por cirurgia vascular”.
21- Em 12 de Agosto de 2012 foi feita à autora no Hospital dos Lusíadas uma aortografia que revelou “lesão na art. popliteia dta”. 22- Tal exame foi efetuado por se ter revelado “quadro isquémico distal na perna/pé dto (necrose 1º dedo, calcâneo e loca tibial anterior)”.
23- Na sequência, a autora foi “submetida a um bypass popliteu/tronco tibioperoneal com veia safena contralateral em posição invertida” e foi feita “limpeza das zonas necrosadas da perna”.
24- Apesar desta cirurgia de revascularição, a evolução clínica da A. foi desfavorável e houve infeção de tecidos necrosados na perna e calcâneo.
25- Nessa sequência, foi feita nova intervenção cirúrgica para desbridamento, constatando-se coleção purulenta pré-tibial.
26- Nesta ultima intervenção, a autora foi avaliada no bloco operatório, sob anestesia, pela equipa de Cirurgia Vascular, Plástica e Ortopedia, tendo sido feita exploração do compartimento posterior da perna e a loca tibial anterior, tendo-se constatado a existência de infeção marcada, pelo que se decidiu propor a amputação pelo 1/3 inferior da coxa, sob pena de risco de vida da autora.
27- Dia 21.09. 2012, após consentimento, foi feita a amputação da perna direita da A. pelo 1/3 da coxa, ou seja, acima do joelho.
28- O Hospital dos Lusíadas é um hospital novo, construído e Instalado pela Caixa Geral de Depósitos, com prestígio de um dos melhores hospitais privados do País.
29- Por seu lado, o Dr. B é um conceituado e experimentado cirurgião na especialidade de ortopedia e traumatologia.
30- A autora, após a amputação da perna, passou a depender de terceiros para se locomover e deixou de poder assegurar, como fazia antes, o serviço doméstico em sua casa e de poder ajudar a filha na educação dos netos.
31- A autora teve alta da operação de amputação da perna em 8.10.2012.
32- Por esta cirurgia de amputação o Hospital réu cobrou 5.251.70 euros.
33- A partir da alta a autora iniciou tratamentos de medicina física e de reabilitação.
34- Em 1.10.2013, após várias sessões no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, foi-lhe aplicada uma prótese em substituição da perna amputada.
35- Por força da doença de artrite reumatoide da autora, que lhe retira força e mobilidade dos braços e mãos, a prótese não conferiu à A. capacidade de verticalização, tendo esta ficado confinada ao uso de cadeira de rodas.
36- Devido à fraqueza muscular que a artrite reumatoide lhe provoca, a autora não tem forças para sozinha fazer mover a cadeira de rodas, assim como não tem forças para se locomover com ajuda de canadianas ou muletas apoiadas nas axilas dos braços, necessitando de terceira pessoa quer para locomover a cadeira, quer para locomover a A. por qualquer outro meio.
37- A autora, por força da doença de artrite reumatoide e da amputação da perna direita, dependerá sempre de terceiros para as suas atividades funcionais, incluindo entrar e sair da cadeira de rodas e fazer o mínimo movimento de locomoção.
38-É o marido da autora que tem prestado a esta todos os cuidados de saúde, de higiene, e alimentação que a esposa carece, assim como é ele que transporta a A. em cadeira de rodas.
39- A autora, na sequência dos factos referidos, está num estado de tristeza quase contínuo, por ter passado a obrigar o marido ou alguém que o substitua a estar junto de si para qualquer movimento que tenha de efetuar.
40- A autora deixou de poder fazer qualquer trabalho em casa, sendo obrigada a contratar uma empregada de limpezas, com o que despende uma média de 300,00 euros mensais.
41- A autora, pelos problemas provocados pela operação citada, e pela artrite reumatoide, tem de gastar em assistência médica, medicamentosa, fisioterapia, uma média de 150 euros mensais, tendo em conta que é beneficiária dos serviços sociais da Caixa Geral de Depósitos.
42- A autora pagou 2509,92 euros pela prótese.
43- A autora necessita de uma cadeira elétrica para se locomover sem ajuda de terceiros, embora continue a não conseguir entrar e sair da cadeira sozinha, a qual tem um custo de cerca de 6.525,90 euros.
44- A autora pagou pela referida operação ao joelho a quantia de 1.703,74 euros, como comparticipação aos serviços sociais da Caixa Geral Depósitos, e pela cirurgia de amputação 9.228,59 euros.
45- A A. deixou de poder cuidar dos seus netos, e já não pode ficar sozinha com eles, coisa que antes da referida operação fazia, o que era uma fonte de alegria diária para si.
46- E a filha não voltou, após a operação cirúrgica citada, a entregar os filhos ao cuidado da Autora e marido, dadas as limitações que ambos passaram a ter, pelas incapacidades da autora e pela contínua dedicação do marido aos cuidados da A.
47- Pelo facto de ter passado a estar sempre sentada, a autora tem escaras e outros inconvenientes físicos, que lhe causam dor.
48- O 1.º Réu celebrou com a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., um contrato designado por “contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional”, com a apólice n.º 72/8250702, por efeito do qual se previu que a segunda será responsável, até aos limites do capital seguro, pela indemnização dos danos que vierem a ser exigidas à primeira, e que resultem, nomeadamente, de atos de negligência médica praticados no exercício da sua atividade profissional.
49- O evento referente à amputação da perna da A. não foi participado pelo 1º R. à Interveniente sua seguradora “Fidelidade”.
50- A Autora, à data da primeira consulta com o 2.º Réu -22-06-2012-, e antes da cirurgia de 11.07.2012, locomovia-se em cadeira de rodas porque tinha dificuldade em caminhar, muito embora referindo-se, no registo do 2.º Réu, na consulta daquele dia, que “em casa consegue andar agarrada”.
51- Dos diários de enfermagem, consta que a Autora, aos 13.07.2012, se queixava de “ausência de sensibilidade e mobilidade do pé (membro operado)” e que se verificou uma flictena no calcâneo (em linguagem não científica uma “bolha” no osso que forma o calcanhar) no caso com conteúdo hemático.
52- Na véspera da alta, no dia 17.07.2012, o 2.º Réu, depois de observar a Autora, refere, conforme registou no processo clínico, que “a sensibilidade táctil já existe a nível do 1/3 médio do pé direito, mas mantém défice de extensão ativo” (referindo-se à movimentação anatómica do pé), fazendo um diagnóstico favorável à alta médica.
53- Depois da alta, o 2.º Réu agendou nova consulta com a Autora para o dia 27.07.2012, tendo-se esta deslocado às instalações do 1.º Réu no referido dia para ser observada pelo 2.º Réu, que constatou novamente que a Autora não esboçava extensão ativa do pé, e apresentava, segundo o diagnóstico registado no processo clínico pelo 2.º Réu, uma úlcera de pressão no calcâneo direito e lesões/flictenas na face anterior do 1/3 médio da face anterior da perna direita (aquilo a que é chamado popularmente de "canela"), Lesões cutâneas essas com “sinal evidente de sofrimento vascular em declive com recuperação e retornos capilares, mas com “sinais evidentes de lesão arterial”, as quais segundo o 2.º Réu, se instalaram no decurso da semana em que esteve em casa, “apesar da medicação profilática e do uso de contenção elástica”, mais requerendo o 2º R. ao 1º R. a intervenção da equipa de cirurgia vascular.
54- Intervenção que foi de imediato instituída pela referida Área de especialidade vascular, que além de pedir a realização de exames, observou “importante edema da perna e pé e com grande flictena do calcanhar direito”, tendo sido drenado e aplicado penso de proteção, administrando-se a terapêutica médica no sentido de anti coagulação, tentando com isso uma melhoria do estado clínico da A.
55- O padrão arteriográfico demonstrado pelos exames realizados à Autora no dia 02.08.2012, pela Cirurgia Vascular (Ecodoppler e Angiotac), revelou a existência de uma lesão segmentar da artéria poplítea.
56- Na primeira consulta da A. com o 2º R a 22-6-2012, este apurou que:
- A A. tinha sido sujeita a uma artroplastia total do joelho esquerdo há 7 anos;
- Há cerca de dois anos havia sofrido uma fractura do fémur direito, razão pela qual foi operada no Hospital S. Francisco Xavier, tendo um encavilhamento aparafusado do fémur direito (vide processo clínico).
- A A. frequentava, à data, a consulta de Ortopedia do Hospital S. Francisco Xavier, estando em lista de espera para a colocação de uma prótese no joelho direito, que apresentava valgo exagerado e instabilidade do ligamento lateral interno (LLI), com dor.
- A. apresentava um deficit de mobilidade no joelho direito, com uma flexão de 80 e uma extensão de -20 graus e andava em cadeira de rodas por ter dificuldade em caminhar, sendo que em casa conseguia andar agarrada.
- A A. tinha 68 anos de idade, 73Kg de peso, 165 cm de altura, calçava o 38, estava reformada tendo sido empregada de escritório;
- Tinha, como antecedentes pessoais relevantes, artrite reumatoide desde há mais de 20 anos, hipertensão arterial, litíase renal, histerectomia total transfundida, miastenia gravis, patologia do foro oftalmológico com duas intervenções cirúrgicas para catarata, episódio de isquémia cerebral transitória e era alérgica à penicilamina;
- Estava multimedicada com Solexa (AINE), Fosamax, Voltaren (AINE), Meticorten (5mg/dia), Doxion, Tenormint mite, Zocor, Metrotexate (5mg/semana) e Folicil
57-Na sequência da análise dos exames pedidos pelo 2º R. e das observações feitas em consulta, este diagnosticou à A. uma osteoartrose grau IV, joelho valgo grave em artrite reumatoide, pelo que foi proposta à doente cirurgia artroplástica do joelho direito e eventual remoção de material de osteossíntese do fémur direito – cavilha, caso intra operatoriamente se entendesse necessário, o que veio a ser realizado a 11-07-2012.
58- A equipa cirúrgica foi constituída pelo 2º R., pelo Dr. FG, como primeiro ajudante e pelo Dr. MC como segundo ajudante.
59- Quando foi dada alta à A. em 20-7-2012, esta foi encaminhada para o ambulatório da consulta de ortopedia com marcação para o Dr. B para o dia 27 de julho de 2012, sendo medicada quer para as dores, quer para a prevenção do risco trombo-embólico e mantendo apoio de fisioterapia no domicílio, bem como instruída sobre os procedimentos vários a seguir, como sejam a contenção elástica dos membros inferiores e a aplicação de gelo no joelho direito.
60-Durante o período que decorreu desde a alta até à consulta de dia 27 de Julho de 2012 o 1º R. manteve contacto telefónico com o marido da A. de modo a ser informado quanto à evolução da situação clínica desta, tendo a A. e marido o contato telefónico do 1º R.
61- Aquando do descrito em 20, o 2º R. foi falar pessoalmente com a colega Drª AG, médica da cirurgia vascular, manifestando-lhe estar preocupado com a perna da autora, pelo que esta observou a A. nesse mesmo dia 27-7-2012.
62- Nessa observação a Dr.ª AG detetou edema acentuado da perna direita da A., com flictenas (bolhas de líquido), e diagnosticou trombose venosa profunda, a confirmar por exames que prescreveu, medicando de imediato a A. para esse quadro, o qual se confirmou após os exames.
63- Nessa observação a Dr.ª AG fez constar do processo clínico:
“Flictena do calcanhar dtº (drenou-se e penso de proteção); Lesão com pequena flictena da face anterior da perna, sem alteração da temperatura do membro.
Fez-se Doppler arterial – Fluxos bi/trifásicos popliteia e mono/bi na tibial posterior
Boa reperfusão capilar. Pede-se eco Doppler venoso e medica-se com lovenox 80, augmentin duo e nimed.
Elevação do membro
Reavaliar após 1 semana.”
64- No dia 3 de Agosto de 2012 os especialistas de cirurgia vascular concluíram, após a realização do eco-doppler arterial, pela existência de oclusão popliteia com reabitação monofásica distalmente, tendo também sido identificada TVP popliteio femoral. 65- O 2º R. pediu também a colaboração do Dr. RL, especialista de cirurgia plástica, para o tratamento das úlceras, tendo este médico observado a A. no dia 8 de Agosto, prescrevendo então a realização de penso com placa de hidrocoloide e hidrogel 3 vezes por semana, fazendo desbridamento com lâmina do tecido necrosado durante os pensos.
66- No dia 10 de agosto a A. voltou à consulta do 2º R., que manteve a indicação de ser observada e seguida pela cirurgia vascular, bem como a realização de pensos.
67- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 0084 0544 7702, celebrado com a AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua Gonçalo Sampaio, 39, 4002-001 Porto, o segundo réu transferiu para esta a responsabilidade civil em que possa incorrer em consequência de atos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.
Factos Não Provados
Com relevância à boa decisão da causa, não se logrou provar:
a- Que o imóvel de que a A. e marido são proprietários foi comprado e pago pelo casal, pelo preço de 250.000,00 euros, em 2009, sem recurso a qualquer crédito; e que o veículo automóvel da A. tenha sido comprado por 20.000,00 euros, sem recurso a crédito.
b- Que o 2º R. disse à autora que iria conseguir o resultado de melhoria de vida que já havia proporcionado a operação anterior ao joelho esquerdo.
c- Que o descrito em 18 tenha ocorrido no dia seguinte à operação, 11 de Julho, e que tal sintoma decorria da deficiente irrigação sanguínea da perna operada.
d- Que na consulta de 27-7-2012 o 2º R., após ter verificado que havia uma ferida na parte inferior da perna operada e acentuando-se os sinais de pé escuro, continuando a autora a referir que não tinha sensibilidade na perna, mandou-a para casa, tendo-lhe sido feito apenas um penso.
e- Que na cirurgia de 21-09-2012 onde foi amputada a perna à A., tenha sido constatado que, na sequência da operação feita pelo Dr. B em 11 de Julho de 2012, tenha ficado lesada a artéria poplítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo.
f- Que o pessoal do 1º R. que acompanhou a autora em todo o processo e o Dr. B, como responsável principal da operação, não prestaram a devida atenção aos sinais que a autora lhe ia referindo sobre a sua falta de sensibilidade na perna e deixaram arrastar a situação durante um mês e, unicamente por esta razão, a autora teve a sua perna amputada;
g-Que logo após os primeiros sintomas referidos pela A., se o 2º Réu tivesse mandado realizar exames às artérias, teria sido evitada a amputação da perna;
h- Que nos últimos meses antes da A. ser operada ao joelho a 11-7-2012, fazia todos os trabalhos de casa, desde cozinha a limpezas;
i- Que a A. necessite de pelo menos mais 4 próteses no espaço de 13 anos;
j- Que a A. gaste 15.000,00 euros no espaço de 13 anos, com nova cadeira elétrica e ou com a manutenção da mesma;
l- Que quando a A. sai à rua provoca em terceiros um sentimento de comiseração social;
m- Que à data dos fatos em causa nos autos, existia um acordo entre a 1.ª Ré e o 2.º Réu, mediante o qual este podia exercer a sua atividade profissional nas instalações daquela, com a liberdade e autonomia inerentes à sua profissão, e que a faturação podia ser feita na totalidade pela 1.ª Ré ou pelo 2.º Réu mediante apresentação de honorários.
n- Que na primeira modalidade (facturação total pela 1.ª Ré), o 2.º Réu recebia uma percentagem do valor cobrado, numa repartição de honorários, cabendo à 1.ª Ré uma quota minoritária, sendo quase toda a sua totalidade a favor do médico”.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Analisemos então as várias questões suscitadas pela apelante.
1. Da nulidade da sentença:
Inicia a apelante a sua discordância com a sentença recorrida, referindo que a mesma viola o art.º 607º, nº 3 do CPC, porque não distingue os factos das conclusões de direito.
Nos termos do art.º 607º, nºs 2 e 3 do CPC, “A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar”; “Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.
Entende a apelante que “a afirmação: “a amputação da perna deveu-se a negligência dos réus” é uma conclusão de direito que resultará de factos dados como provados. A douta sentença, neste aspeto, está contra o art.º 607º, nº 3 do CPC que obriga a distinguir os factos das conclusões de direito” (Cls. 5).
Não existem quaisquer dúvidas de que a sentença deve obedecer a uma estrutura lógica, na qual se possa apreender o nexo entre a decisão e a sua motivação, v.g. os seus fundamentos de facto e de direito, e ainda entre estes dois segmentos da fundamentação, sob pena de estarmos perante uma nulidade, nos termos e para os efeitos da al. c) do art.º 615º do CPC.
Não é, porém, o caso dos autos.
Recorde-se que a apelante defende que ao afirmar que a amputação da perna se deveu a negligência dos RR., a sentença recorrida confunde factos e direito-
Antes de mais, cumpre referir que a afirmação em causa surge assim contextualizada:
“Volvendo ao caso concreto, é linear que os factos concretos, geradores de responsabilidade civil que a A. imputa aos 1º e 2º RR. são:
“A amputação da perna direita da A. deveu-se a negligencia dos 1º e 2º Réus, quer porque não realizaram atempadamente os exames e tratamentos devidos à autora, logo após a primeira cirurgia de 10-7-2012, por reporte aos sintomas que aquela apresentou, quer porque na primeira cirurgia feita pelo 2º R. este lesionou a artéria polítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo, e nada fez posteriormente para tratamento desta lesão.”
Nenhum destes factos resultou provado, sendo certo que impendia sobre a A. o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito, nos termos gerais do artigo 487º, n.º 1 do CC.”
Constata-se, pois, que a aludida afirmação se insere na fundamentação jurídica da sentença, referindo-se os fundamentos genéricos da causa de pedir apresentada pela A. e concluindo pela inexistência de factos provados que a sustentem, não sendo possível descortinar qualquer confusão entre factos e direito nos termos alegados pela apelante.
Na verdade, apenas se poderia concluir pela existência de tal confusão se a mesma fosse patente no elenco dos factos provados, o que não é manifestamente o caso.
Acresce que a estrutura da sentença recorrida está conforme com o citado art.º 607º, separando de forma clara a fundamentação de facto da fundamentação de direito, não se alcançando qual seja a violação do preceito em causa.
Donde, e quanto a esta questão, improcede a apelação.
Mais alega a apelante a violação do art.º 608º, nº 2 do CPC, porquanto o tribunal não atendeu à confissão feita pelos RR. nas suas contestações, o que também conduz à violação do art.º 413º do CPC.
O art.º 615º, al. d) do CPC estatui que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Relaciona-se este preceito com o disposto no art.º 608º do CPC, segundo o qual a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso e que possam determinar a absolvição da instância, bem como resolver todas as questões de mérito que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras, salvo as que forem de conhecimento oficioso.
Assim sendo, na fundamentação da sentença deve o juiz pronunciar-se sobre cada uma das pretensões trazidas a juízo, bem como sobre cada um dos fundamentos que lhes são opostos em sede de contestação, seja a título de excepção dilatória e que não tenha sido antes apreciada, seja a título de excepção peremptória.
Por outro lado, “… não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito”, cfr. Tomé Gomes, in Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf.
Quer isto dizer que não há qualquer omissão de pronúncia quando as questões estruturantes da posição das partes sejam implícitas ou tacitamente decididas, já que a análise da argumentação das partes não se confunde com a apreciação das questões que devem ser conhecidas, esta sim essencial.
Nas palavras de Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Do que se vem de expor decorre que a circunstância de o tribunal recorrido não fazer qualquer menção à existência de confissão, não se enquadra em qualquer nulidade da sentença, antes constituindo uma eventual falha na matéria de facto.
A este propósito, cumpre referir que a apelante não efectua a impugnação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do art.º 640º do CPC, limitando-se a dizer que o tribunal recorrido não valorou a confissão efectuada por ambos os RR. nas respectivas contestações, dessa forma violando o disposto no art.º 413º do CPC.
Nos termos deste artigo, “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”.
Na tese da apelante, tendo os RR. confessado determinados factos, essa confissão teria de ser acolhida nos factos provados, o que não sucedeu.
Mais uma vez não assiste razão à apelante.
E, desde logo, porque não existe qualquer confissão que cumpra valorar.
Estatui o art.º 352º do CC que “confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”.
Mais refere o art.º 355º do CC que a confissão pode ser judicial ou extrajudicial, explicando-se no seu nº 2 que “Confissão judicial é a feita em juízo, competente ou não, mesmo quando arbitral, e ainda que o processo seja de jurisdição voluntária”.
Preceitua o art.º 356º, nº 1 do CC que “A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado” e o nº 2 que “A confissão judicial provocada pode ser feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal”.
De salientar ainda que, nos termos do art.º 357º, nº 1 do CPC, a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar e que o art.º 358º, nº 1 do CC estabelece que “A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente”.
Desta força probatória plena resulta que os factos confessados devem ter-se como aceites para efeitos do processo, e assim dados como provados, sem qualquer necessidade de prova ou actividade judicial.
Como explica Luís Filipe Pires de Sousa, in Direito Material Probatório, Coimbra, 2020, pág. 94, “a eficácia de prova plena significa que está excluída uma valoração diversa do juiz sobre a veracidade dos factos objectos da confissão, desde que esta seja admissível (cf. Art.º 354º), estando o juiz vinculado à confissão e a parte contrária eximida de provar o facto confessado”.
Mas, para que exista esta eficácia de prova plena é necessário que a confissão provenha de pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira (art.º 353º, nº 1 do CC).
Por outro lado, a prova plena da confissão é também afastada no caso de litisconsórcio necessário, podendo apenas ser eficaz em caso de litisconsórcio voluntário, restringindo-se, neste caso, ao interesse do confitente (art.º 353º, nº 2 do CC).
Em decorrência desta norma, estabelece o art.º 288º, nº 1 do CPC que “No caso de litisconsórcio voluntário, é livre a confissão, a desistência e a transação individual, limitada ao interesse de cada um na causa” e o nº 2 que “No caso de litisconsórcio necessário, a confissão, a desistência ou a transação de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas, seguindo-se o disposto no n.º 2 do artigo 528.º”.
Nos autos, constata-se que os RR. não confessam quaisquer dos factos mencionados pela apelante, e particularmente, que a causa da amputação da perna da A. tenha sido causada por qualquer acto dos RR., o que se extrai da forma como apresentam a sua versão dos factos alegados pela A..
Isto é, os RR. não reconheceram a realidade exposta pela A., nos termos e para os efeitos do art.º 352º do CC, não se podendo concluir pela existência de uma declaração confessória inequívoca como exigido pelo art.º 357º do CC.
Saliente-se que a circunstância de os RR. admitirem que a A. foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a essa operação, não sendo, por isso, possível concluir pela existência de confissão, nos termos e para os efeitos do art.º 352º e ss. do CC.
Por outro lado, constata-se que a versão trazida aos autos pela A. foi impugnada pelos RR., seja de forma coincidente, seja de forma parcelar.
Ora, em caso de litisconsórcio, quando apenas uma das partes confesse um determinado facto, é essa confissão ineficaz. Ou seja, determinado facto não pode ser dado como provado em relação a uma parte e como não provado quanto a outra. Neste sentido, veja-se, entre outros, o Ac. TRL de 11-11-2014, proc. 2987/11.9TBPDL.L-71, relator Tomé Gomes e Ac. TRP de 27-10-2020, proc. 2210/19.8T8PNF.P1, relator João Diogo Rodrigues.
No caso vertente, face à situação de litisconsórcio existente, o efeito da eventual confissão sempre se restringiria ao interesse do confitente, não podendo, portanto, produzir efeitos que afectem o interesse de todos os RR..
Do que se vem de expor, decorre que não existe qualquer violação do disposto no art. 413º do CPC, que cumpra sanar, o que redunda na improcedência deste segmento da apelação.
2. Da responsabilidade dos RR.:
Defende a apelante a revogação da sentença recorrida, por entender que estão provados factos que determinam a condenação dos RR. nos termos por si peticionados.
Insere-se a presente acção no instituto da responsabilidade civil e, em concreto, na problemática da responsabilidade civil por acto médico.
Tal como tem vindo a ser defendido, este subdomínio da responsabilidade civil encontra-se na confluência da responsabilidade extracontratual, consagrada nos art.ºs 483º e ss. do CC, e da responsabilidade contratual, prevista nos art.ºs 799º e ss. do CC.
Seguiremos aqui de perto os recentes acórdãos desta secção de 27-11-2018, proc. 18450/16.9T8LSB.L1, relatado pela ora 1ª adjunta, de 13-10-2020, proc. 1572/13.5TVLSB.L1-7, relator Luís Filipe Sousa, de 28-09-2021, proc. 612/17.3T8MTA.L2, relator Edgar Taborda Lopes e, em particular, de 24-01-2023, proc. 12091/16.8T8LSB.L1-7, relator Diogo Ravara, e no qual a ora relatora e a 1ª adjunta tiveram intervenção como 1ª e 2ª adjunta, respectivamente.
Importa, antes de mais, salientar que a responsabilidade civil da qual emerge qualquer “obrigação de indemnização, tanto pode ser contratual (por resultar de uma relação jurídica de natureza creditícia, sendo a obrigação de indemnização decorrente da violação de deveres originados nesse vínculo obrigacional originário), como extra-contratual (por resultar da violação de direitos absolutos ou da prática de actos lícitos ou ilícitos) que provoquem danos a outrem” (Ac. TRL de 28-09-2021, supra citado).
Refira-se que a responsabilidade civil extracontratual se estrutura com base em cinco pressupostos fundamentais: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo causal entre o facto ilícito e o dano (cfr., neste sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. I, 7ª edição, Coimbra, 1993, pág. 516).
Existindo estes requisitos, verifica-se uma situação de responsabilidade civil extracontratual, a qual investe o civilmente responsável numa obrigação de indemnizar, nos termos dos art.ºs 483º e ss. do CC.
Por outro lado, os pressupostos da responsabilidade contratual ou obrigacional mostram-se elencados no art.º 798º do CC, o qual estipula que “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
São assim pressupostos da responsabilidade civil contratual o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Por outro lado, importa referir que o facto ilícito se assume como um erro ou a omissão do zelo exigível, que leva à existência de incumprimento do contrato celebrado entre as partes.
Donde, para que exista responsabilidade civil, em qualquer uma das duas vertentes, é necessário a existência de um facto, da ilicitude, da imputação do facto ao lesante, a existência de danos e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Como se refere no referido Ac. de 24-01-2023, “Os pressupostos da responsabilidade civil são pois bastante semelhantes, quer numa, quer noutra modalidades, divergindo, quanto aos seguintes aspetos:
- ónus da prova da culpa (artigo 799.º, n.º 1 e artigo 487.º, n.º 1, do CC);
- prazos de prescrição (artigo 309.º e artigo 498.º do CC);
- responsabilidade por facto de outrem (artigo 800.º, n.º 1 e artigo 500.º do CC); e
- atenuação equitativa da indemnização em caso de mera culpa (artigo 494.º do CC).
Atenta a semelhança de regimes, a doutrina e a jurisprudência têm admitido a sua conjugação, v.g. nas situações em que os danos ocorram no âmbito da execução de um contrato, mas se consubstanciem na lesão de direitos absolutos do lesado, como são os direitos de personalidade, maxime o direito à integridade pessoal (nas suas vertentes física e psíquica), consagrado nos art.ºs 25º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, e no art.º 70º, nº 1 do CC”.
No que aos presentes autos diz respeito, estruturou a apelante a presente acção com fundamento em responsabilidade civil, alegando ter sido amputada a sua perna direita na sequência de complicações causadas pela cirurgia efectuada pelo 2º R. nas instalações do 1º R.. Mais sustenta que, não fora tal cirurgia, não teria ocorrido a amputação.
Embora tenha invocado, na petição inicial, como causa do seu direito a responsabilidade civil extracontratual, veio a apelante, em alegações, invocar a responsabilidade contratual dos RR..
Com interesse para esta questão, mostra-se assente que a A., ora apelante, foi submetida, em 11-07-2012, a uma intervenção cirúrgica efectuada pelo R., Dr. B, nas instalações do R. Hospital dos Lusíadas e com apoio de pessoal e equipamento deste Hospital (facto nº 15).
Deste facto e da sua conjugação com a demais factualidade assente, conclui-se que a apelante terá celebrado com o Hospital um contrato de prestação de serviços médicos, figura contratual sem regulamentação legal específica, incluída na categoria genérica dos contratos de prestação de serviços previstos no art.º 1154º do CC, e subordinada às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações (cfr. art.º 1156º do CC).
Assim, tem de se concordar com a apelante quando refere que a questão trazida a juízo deve ser apreciada de acordo com os termos da responsabilidade civil contratual.
Mais, como se refere nos arestos referidos, embora a questão em apreço se relacione também com a responsabilidade extracontratual, face à violação do direito à integridade pessoal, sendo o regime da responsabilidade contratual claramente mais favorável à autora, seja no que respeita ao ónus da prova da culpa (art.º 799º do CC), seja quanto ao regime da responsabilidade por actos dos representantes legais ou auxiliares (art.º 800º do CC), impõe-se a análise do mérito da causa sob o prisma da responsabilidade contratual. Neste sentido cfr. Acs. STJ de 02-06-2015, proc. 1263/06.3TVPRT.P1.S1, relator Maria Clara Sottomayor e de 07-03-2017, proc. 6669/11.3TBVNG.S1, relator Gabriel Catarino.
Assim, e tal como decorre do art.º 799º do CC, “o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor”.
No que se refere ao conteúdo da prestação a cargo do médico, na responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato de prestação de serviços médicos, para além do que conste de concretas cláusulas contratuais acordadas, há que recorrer ao que consta dos regulamentos deontológicos próprios, seja em convenções internacionais subscritas pelo Estado Português, nomeadamente a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, celebrada em Oviedo em 1997, e habitualmente conhecida como Convenção de Oviedo, seja no Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (Diário da República, 2.ª série, n.º 139, de 21/07/2016) e na Lei de Bases da Saúde.
Decorre destas normas que a prestação profissional do médico assenta, antes de mais, no dever de prestar os melhores cuidados, restituir ou promover a saúde aos seus pacientes, suavizando o sofrimento e prologando a sua vida.
A jurisprudência maioritária qualifica esta obrigação como uma obrigação de meios, visto que o médico estará obrigado a desenvolver a sua actividade, prudentemente e com diligência, visando um determinado objectivo, sem que lhe seja exigível a obtenção de um concreto resultado. Neste sentido, para lá dos acórdãos já citados, veja-se ainda os Acs. do TRP de 17-03-2017, proc. 7053/12.7TBVNG.P1, relator Jorge Seabra, do TRG de 14-01-2021, proc. 304/17.3T8BRG.G2, relator Cristina Cerdeira e do STJ de 07-03-2017, proc. 6669/11.3TBVNG.S1, relator Gabriel Catarino.
Como se explica, a este propósito, no Ac. de 27-11-2018, já citado, “O médico não está obrigado a determinado resultado material ou imaterial (a cura como evento incerto), mas deve desenvolver uma actividade profissional tecnicamente qualificada na escolha e utilização dos meios mais idóneos a conseguir a cura”.
Não obstante, e como se refere no Ac. desta secção de 24-01-2023 que vimos seguindo de muito perto, “o STJ já admitiu a qualificação de tal obrigação como obrigação de resultado em casos de cirurgias com uma probabilidade de insucesso ínfima [vd. acs. STJ 23-03-2017 (Tomé Gomes), p. 296/07.7TBMCN.P1.S1 e STJ 29-03-2022 (Mª Clara Sottomayor), p. 640/13.8TVPRT.P2.S1], ou relativamente a determinados aspetos da mesma cirurgia [ac. STJ 15-12-2020 (Ricardo Costa), p.  765/16.8T8AVR.P1.S1].”.
Assim, e por forma a que se possa concluir por uma situação de responsabilidade civil médica, terá de existir uma desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo médico e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre esses actos e o dano.
Essencial para essa aferição é o conceito de diligência exigível, ou seja, que a concreta actuação do agente se conforme dentro do padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura.
Conclui-se, pois, que no contexto da responsabilidade civil por acto médico o preenchimento do pressuposto ou requisito da ilicitude consiste na violação de deveres profissionais do médico (por acção ou omissão).
Por outro lado, as legis artis correspondem a “métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes” (Ac. STA de 13-03-2012, proc., 0477/11, relator Políbio Henriques apud Ac. TRL de 13-10-2020 supra citado).
Isto é, a violação das leges artis decorre da desconformidade objectiva entre os actos realizados e os que, à luz dos conhecimentos técnicos e as melhores práticas da ciência médica à data, seriam devidos, podendo essa violação decorrer de imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou inobservância dos regulamentos, ou da conjugação de dois ou mais destes factores. Para ulteriores esclarecimentos quanto ao que se entenda por imperícia e imprudência, veja-se o aresto de 24-01-2023, onde se efectua cuidada e detalhada análise da questão.
Como se pode ler neste aresto, “A questão que se coloca pertinentemente será sempre a da definição do já aqui referido padrão de diligência exigível ao médico.
E a exigibilidade está intrinsecamente ligada à culpa, a qual consiste num nexo de imputação do ato ilícito ao agente, em que não há previsão ou aceitação do resultado antijurídico.
O ato ilícito será imputável ao agente porque ele deveria ter atuado por molde a evitá-lo, usando da diligência adequada”.
Consequentemente, tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, demonstrada a violação das leges artis, opera a presunção de culpa a que se reporta o art.º 799º do CC.
Ou seja, o que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso e não o cumprimento defeituoso em si mesmo.
Operando a presunção de culpa, cabe ao médico demonstrar a conformidade entre a sua conduta efectivamente observada e a actuação que lhe era exigível.
Saliente-se que não se exige ao médico a demonstração da real causa do dano, sendo suficiente uma explicação que sustente a existência do dano e a sua conduta diligente, não sendo, porém, bastante a arguição de explicações alternativas para a ocorrência do dano.
Por outro lado, a responsabilidade médica resulta também excluída se se demonstrar que o dano se deve a caso fortuito ou de força maior.
Como se refere nos arestos citados, atenta a complexidade do organismo humano e a circunstância de cada pessoa ser diferente das demais e nessa medida única, em medicina as probabilidades da verificação de situações qualificáveis como caso fortuito são mais elevadas do que em outras actividades humanas, razão pela qual se admite uma certa margem de risco tolerado ao acto médico, nomeadamente face à imperfeição dos conhecimentos da medicina à data do acto.
Ainda assim se dirá que, para afastar a responsabilidade médica não é suficiente a mera demonstração de que, na sequência de um determinado tipo de cirurgia, numa reduzida percentagem de casos se verificam determinadas sequelas no paciente (percentagem racional de risco típico), sendo sempre necessário apurar a causa efectiva dessas sequelas.
Analisada a questão de forma sintética, apreciemos então o caso dos autos.
Da análise dos factos provados extrai-se que a A., ora apelante foi submetida a uma intervenção cirúrgica ao seu joelho direito em virtude de problemas de há vários anos, tendo, posteriormente, havido necessidade de proceder à amputação da perna.
Mais está provado sob os nºs 18 a 27 que, passados cerca de 4/5 dias da operação, o dedo grande do pé direito da A., e o calcanhar começaram a apresentar uma coloração escura, o que foi referenciado no processo clinico da A. como “Zona de pressão do calcanhar/ sofrimento cutâneo por pressão”, foi retirada a compressão da zona, aplicada “placa Vahreesive”, tendo a A. tido alta dada pelo Dr. B, no dia 20 de julho de 2012; que no dia 27 de Julho de 2012, a A. voltou ao Hospital e examinado pelo R., o qual efectuou diagnóstico e pediu observação por cirurgia vascular; que, no dia, 12 de Agosto de 2012, e face à existência de um “quadro isquémico distal na perna/pé dto (necrose 1º dedo, calcâneo e loca tibial anterior)” foi feita à autora no Hospital dos Lusíadas uma aortografia que revelou “lesão na art. popliteia dta”; tendo a A. sido “submetida a um bypass popliteu/tronco tibioperoneal com veia safena contralateral em posição invertida” e feita “limpeza das zonas necrosadas da perna”; sem que tenha sido obtida evolução clínica favorável, o que levou a nova intervenção cirúrgica para desbridamento, constatando-se coleção purulenta pré-tibial; que, nesta ultima intervenção, a A. foi avaliada no bloco operatório, sob anestesia, pela equipa de Cirurgia Vascular, Plástica e Ortopedia, tendo sido feita exploração do compartimento posterior da perna e a loca tibial anterior, tendo-se constatado a existência de infeção marcada, pelo que se decidiu propor a amputação pelo 1/3 inferior da coxa, sob pena de risco de vida, tendo sido efectuada, dia 21.09. 2012, após consentimento, a amputação da perna direita da A. pelo 1/3 da coxa, ou seja, acima do joelho.
Da sequência destes factos resulta que a amputação da perna direita da A. se deveu a complicações após a cirurgia efectuada pela R., pelo que se impõe apurar se essas complicações e consequente amputação se devem a qualquer violação das leges artis.
A este propósito, há que referir que a A. estruturou a presente acção alegando a evolução da sua situação clínica e que conduziu à amputação da sua perna e que, no essencial, foi dada como provada, e ainda que, na sequência da cirurgia de Julho de 2012, tinha ficado lesada a artéria poplítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo (art.º 35º da petição inicial); que “o pessoal do 1º R. que acompanhou a autora em todo o processo e sobretudo o Sr. Dr. B, como responsável principal da operação, não prestaram a devida atenção aos sinais que a autora lhe ia referindo sobre a sua falta de sensibilidade na perna e deixaram arrastar a situação durante um mês e, unicamente por esta razão, a autora teve a sua perna amputada” (art.º 45º da petição inicial) e ainda que “se, logo após os primeiros sintomas, o Sr. Dr. B tivesse agido e feito o que posteriormente foi feito, ou seja exames às artérias, teria sido possível evitar a amputação da perna” (art.º 48º da petição inicial).
Ora, tal como se pode verificar dos factos não provados sob as als. c) a g), não se mostra provada essa factualidade, ou seja, não está assente qualquer facto que sustente que a causa da amputação de que a apelante foi vítima tenha sido provocada por qualquer acto ou omissão do médico ou de qualquer outro profissional de saúde.
Na verdade, dos factos provados não resulta que os procedimentos cirúrgicos adoptados pelo R. fossem inadequados perante o quadro clínico da A. ou que a cirurgia efectuada ao joelho tenha provocado uma lesão na artéria poplítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo, nem que, na execução de qualquer dos vários actos médicos praticados, o R. tenha incorrido na violação de qualquer legis artis.
Recorde-se, mais uma vez, que cabia à A. alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo R. médico e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano, sendo certo que não se presume o cumprimento defeituoso em si mesmo, mas tão somente a culpa desse cumprimento defeituoso, desde que feita a prova da violação das legis artis.
Não estando assente essa violação das legis artis, não pode operar a presunção de culpa constante do art.º 799º do CC, não estando, assim, demonstrados os pressupostos da ilicitude e da culpa, que constituem elementos integradores da causa de pedir dos autos, o que redunda na improcedência da acção quanto ao 2º R., como decidido em primeira instância.
No mais, e uma vez que a responsabilidade dos demais RR. dependeria da responsabilidade do R. B, na medida em que responsabilidade da R. Lusíadas, S.A. se fundava no art.º 800º do CC, e as responsabilidades das seguradoras decorriam dos contratos de seguro celebrado com os dois RR., dependendo por isso da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil relativamente aos mesmos, improcedendo a acção relativamente àquele R., improcede necessariamente também no demais.
Concluindo, entende-se que a sentença recorrida não merece qualquer censura, sendo improcedentes as conclusões da apelante.
As custas devidas ficarão a cargo da apelante, cfr. art.º 527º do CPC.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 2 de Maio de 2023
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano