Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
42/20.0T8HRT.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
DOENÇA DE ALZHEIMAR
PROVA PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: IA prova pericial prevista no art. 899º do CPC está sujeita às regras gerais sobre prova pericial consagradas nos arts. 467º a 489º do CPC em tudo aquilo que não forem contrariadas pelas regras especiais consagradas naquele preceito.

IINa delimitação do objeto da perícia haverá que atender ao disposto nos arts. 138º, 139º e 145º do Código Civil e 899º e 900º do CPC.

IIINa elaboração do relatório pericial deverão ser observadas as regras gerais consagradas no art. 484º do CPC, relevando as seguintes: que o relatório se pronuncie sobre todas as questões que constituem o objeto da perícia, e que as conclusões manifestadas sejam devidamente fundamentadas.

IVO relatório pericial a que se reporta o art. 899º do CPC pode ser objeto de reclamação, nos termos previstos no art. 485º do mesmo código, com os fundamentos ali previstos: deficiência, obscuridade, contradições, ou insuficiência da sua fundamentação.

VEm ação de acompanhamento de maior em que a requerente alega expressamente que o beneficiário padece da doença de Alzheimer, e junta aos autos documentos clínicos onde se refere que o mesmo padece de demência, e se coloca, ainda que de forma dubitativa, a possibilidade de tal demência se manifestar sobre a forma da mencionada doença (entre outras possibilidades), e de considerar deficiente e insuficientemente fundamentado um relatório pericial que não se pronuncia sobre tal questão, nem sequer valora aqueles elementos clínicos.

VINas condições referidas em V-, justifica-se a realização de uma segunda perícia, nos termos previstos no art. 899º, nº 2 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



1.Relatório:


A [ Adelaide .....] titular do nº de identificação civil 10......, contribuinte fiscal n.º 28....... intentou ação de interdição por anomalia psíquica, com processo comum, que veio a ser convolada em ação de acompanhamento de maior, com processo especial, relativa a B [ António .....], titular do n.º de identificação civil 001....., contribuinte fiscal n.º 11......., pedindo que o Tribunal decrete a interdição por incapacidade física e psíquica do requerido, e propondo-se exercer as funções de tutora do mesmo.
Para tanto alega, em síntese, que o requerido sofreu um Acidente Isquémico Transitório ocorrido em 2013, em período de pós-cirurgia Cardio-Torácica, consequência de um Enfarte Cardíaco; padece da doença de Alzheimer, e tem amputação das duas pernas acima do joelho, pelo que carece de acompanhamento e vigilância constantes; apresenta um estado mental confuso, não efetua movimentos, não é capaz de comunicar de forma coerente, e com conversa lógica, não se mostra orientado no tempo e no espaço e não reconhece bem as pessoas que o rodeiam, e não é capaz de se alimentar, vestir, e cuidar da sua higiene. Sustenta que o beneficiário necessita de acompanhamento, de modo a ser assistido na condução da sua vida e na gestão do seu património, e que o mesmo outorgou uma procuração a favor da diretora do lar onde reside, conferindo-lhe amplos poderes.

Apresentados os autos a despacho liminar, a Mmª Juíza a quo determinou a retificação da autuação e da distribuição, de modo a que a os autos fossem distribuídos na espécie 3ª, passando a seguir a forma especial de acompanhamento de maior.

Notificada de tal decisão a requerente apresentou novo requerimento inicial, qualificando a ação como de acompanhamento de maior, reiterando os argumentos invocados no requerimento inicialmente apresentado, e pedindo a sua nomeação para exercer as funções de “acompanhante” do beneficiário.

Determinada a citação pessoal do beneficiário por contacto pessoal, e efetuada tal citação, este respondeu, sustentando que não tem qualquer dificuldade em se situar no tempo e no espaço e que muito embora não tenha os membros inferiores se desloca em cadeira de rodas, veste-se em parte sozinho e em parte com ajuda de terceiros, que lhe é providenciada pelo lar onde reside, e embora use fraldas, fá-lo por comodidade e não por se encontrar incontinente.

Reconhece que outorgou procuração a favor da diretora do mesmo lar, conferindo-lhe poderes para praticar alguns atos em seu nome, uma vez que esta o auxilia nas tarefas de pagar impostos, receber correspondência, fazer “prova de vida”, e efetuar pagamentos.

Conclui que não carece de acompanhamento, e que caso o Tribunal venha a entender de modo diverso, o acompanhamento deve ser atribuído à diretora do lar onde reside, e não à requerente.

Seguidamente foi proferido despacho determinando a audição do beneficiário, o qual foi ouvido pela Mmª Juíza a quo, após o que foram tomadas declarações à proprietária do lar onde o beneficiário reside.

Na sequência, a Mmª Juíza a quo determinou a realização de perícia médica, realizou-se a mesma, tendo o Sr. perito apresentado o respetivo relatório, o qual tem o seguinte teor:

““1. PREÂMBULO
A realização do presente exame pericial psiquiátrico foi solicitada pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores - Juízo de Competência Genérica da Horta - Juiz 2, através do Ofício de 15 de Julho de 2020, Processo: 42/20.0T8HRT.
Sendo que previamente foram consultados os elementos enviados.

2.IDENTIFICAÇÃO DO EXAMINANDO
O examinando foi identificado de acordo com as normas em vigor no Serviço.
Nome: B, estado civil viúvo, NIF - 11......., BI 001..... domicílio: Lar HP - Apoio Domiciliário nos Cedros, Rua Dr. ... ... ... ..., n...., ... - ....- ... - C....

3.EXAME DIRETO (Observação Psicopatológica)
O senhor B, compareceu à entrevista à hora combinada, desloca- se em cadeira de rodas, conduzida pela cuidadora funcionária da instituição onde está há vários anos.
Está calmo, colaborante, orientado no espaço e no tempo e o discurso é lógico e coerente, a linguagem adequada e bem articulada, acompanha um pensamento com o curso normal.
A atenção é fixável, o humor é eutimico e a senso perceção encontra-se conservada, não se apurando alucinações atuais
O senhor é diabético e hipertenso e a perda dos membros inferiores será consequência dessas patologias.
Fez há alguns anos uma intervenção cardíaca e fez um AVC isquémico.
Quando confrontado com a finalidade da entrevista, diz ter conhecimento dela, referindo que há vários anos não tem qualquer relação com as filhas, nem sequer saber onde elas habitam. Da filha do último casamento também desconhece o domicílio.
Estas informações são confirmadas pela cuidadora, dizendo que a instituição nunca foi contatada pelas filhas.
O internamento na instituição terá sido trabalhado com uma assistente social e psicóloga dos cuidados continuados.
O senhor tem uma informação médica que foi enviada a pedido do Tribunal em 2014, que se junta ao presente relatório.

4.CONCLUSÃO
Tendo em conta o que atrás foi dito, podemos concluir que atualmente o requerido do ponto de vista do seu discernimento cognitivo está com capacidade cognitiva e críticas suficientes para se autodeterminar.
Do ponto de vista motora o senhor necessitará sempre de apoio para satisfação das suas necessidades básicas.”
Notificada do relatório pericial, a requerente requereu apresentou requerimento com o seguinte teor:
“1- O relatório, sendo muito curto e objetivo na sua conclusão, não concretiza qual o procedimento clínico que permitiu concluir o que concluiu, e quais as perguntas/metodologias adotadas pelo profissional de saúde, Especialista em Psiquiatria, concluindo apenas no seguinte:
”…podemos concluir que atualmente o requerido do ponto de vista do seu discernimento cognitivo está com capacidade cognitiva e críticas suficientes para se autodeterminar.”
“Do ponto de vista motora o senhor necessitará sempre de apoio para satisfação das suas necessidades básicas”
2– O presente pedido de esclarecimentos prende-se com o facto de este relatório ser no sentido oposto do que foi observado por este Digníssimo Tribunal na audiência realizada em 09/07/2020, quando perante a Meritíssima Juiz e às perguntas daquela o Requerido demonstrou claramente, salvo melhor entendimento, no mínimo grande confusão mental. Senão vejamos, a título meramente exemplificativo algumas das respostas do requerido no decurso da mencionada Audiência e que constam da ATA foram:
“…Disse que as filhas tinham, 12 anos, 11 anos e que a terceira filha era a mais velha”
“Não tinha a certeza sobre a estação do ano, mas sabe que está calor e que não pode ser inverno”
“Refere que a moeda usada em Portugal é o escudo e na Europa é o Euro”
“Não sabe quanto custa o lar onde reside”
“Disse residir no lar há um ano”
“Disse ter um carro e conduzi-lo quando precisa, mesmo sem estar adaptado (nada tendo referido sobre a sua limitação física”
“Soube identificar o local onde trabalhou e a profissão que exercia, tendo, no entanto referido que, por vezes, ainda é chamado para trabalhar e que vai quando é preciso (nada tendo dito sobre o facto de já estar reformado e limitado fisicamente).
“Revelou confusão em relação às expostas, tendo dito que a primeira ainda está viva e que só casou com a segunda porque foi enganado e que uma das esposas ainda está na sua casa, mas que não confia em nenhuma”
“Respondeu que o Presidente da República era o RE, o 1.º ministro era o MS e o AC era Ministro do Trabalho”.
“E que vai ele mesmo tratar dos seus assuntos junto da Segurança Social ou Finanças quando é preciso”.
3- Ora, todas estas questões, que aliás foram gravadas e que podem ser ouvidas, foram respondidas perante a Meritíssima Juiz e demais presentes, e salvo melhor entendimento estão em completa discordância e contrariedade com o relatório ora junto aos autos, causando estranheza que se tenha naquele concluído que o requerido está “com capacidade cognitiva e críticas suficientes para se autodeterminar”.
4- Tanto mais que a própria cuidadora em sede de Audição do Requerido, declarou o seguinte:
“Disse cuidar e tratar de todos os assuntos do beneficiário relacionados com a Segurança Social, Finanças e reforma”
“Que o beneficiário se encontra no Lar desde 2015”
“Que não conduz”
“Que desde aí o beneficiário reside no lar e é a declarante que trata da documentação do mesmo e de todos os assuntos necessários”
“Que ninguém do anterior trabalho do beneficiário o contacta para ir prestar serviços ou para trabalhar”
5- Logo, facilmente se verifica a contradição entre as declarações do Requerido e da sua cuidadora.
6- Mais, não pode a requerente aceitar, ainda, que as conclusões do relatório pericial apresentado, não façam menção à desorientação no tempo, que há já muito tem vindo a ser indicada nos relatórios clínicos já junto aos autos, veja-se por exemplo Relatório clinico datado de 13/09/2019, junto como documento n.º 5, onde diz “Acha que tem 60 anos, diz a sua data de nascimento” “Julga-se ainda casado e que a esposa está em casa sozinha. Sabe o nome da sua cuidadora, mas acha que ainda está a viver na Praia de Almoxarife. Desorientado no tempo (0/5), orientado no espaço (3/5). Portanto síndrome demencial (demência vascular? Alzheimer? Mista?)
7– Ora, considerando a prova documental já junta aos autos e o que resultou provado da Audiência do Requerido parece-nos que facilmente se depreende e verifica que o Requerido não está em perfeitas condições psicológicas, e como tal muito se estranha o relatório medico agora junto aos autos.
8– Se efetivamente as capacidades dos Requerido, fossem as de lucidez e discernimento cognitivo, não haveria necessidade de a cuidadora em sede de declarações do requerido, esclarecer a situação pessoal do mesmo, nem aquele teria respondido o que respondeu quanto perguntado pela Meritíssima Juiz.
9– Mais se diga, que dos vários relatórios médicos e receitas juntos aos autos, por diversas vezes são mencionados medicamentos como os que abaixo se indicam e que estão juntos aos autos, e cuja terapêutica é a seguinte:
Donepezilo - A sua utilização terapêutica principal é no tratamento da doença de Alzheimer
Usos comuns - É utilizado para tratar os sintomas de demência em pessoas nas quais foi diagnosticada a doença de Alzheimer, ligeira a moderadamente grave.
Os sintomas incluem perda de memória crescente, confusão e alterações do comportamento.
Memantina - é um fármaco utilizado primariamente no tratamento da doença de Alzheimer.
Quetiapina - é indicada ao tratamento de esquizofrenia, agindo neste caso como um antipsicótico, bem como para as fases maníacas e depressivas associadas ao transtorno de humor bipolar, e neste caso como um estabilizante de humor, em monoterapia ou como coadjuvante. Por vezes é utilizado off label, muitas vezes como um agente de acréscimo, para tratar essas condições como transtorno obsessivo-compulsivo, estresse pós-traumático, síndrome das pernas inquietas, o autismo, o alcoolismo, síndrome de Tourette, e tem sido usado por médicos como um sedativo para pessoas com distúrbios do sono ou ansiedade.
Risperidona é um antipsicótico atípico potente desenvolvido pela Janssen Farmacêutica. Usa-se mais frequentemente no tratamento de psicoses delirantes, incluindo-se a esquizofrenia. Porém a risperidona, como os demais antipsicóticos atípicos, é também utilizada para tratar algumas formas de transtorno bipolar, psicose depressiva, transtorno obsessivo-compulsivo e Síndrome de Tourette, além de se mostrar eficaz no tratamento de impulsividade e agressividade.
10– Pelo exposto, requer-se nos presentes autos que venha o especialista em psiquiatria elucidar a ora Requerente e este Douto Tribunal, em concreto dos factos e exames clínicos nos quais se baseou para concluir o que concluiu.
11– Caso assim não se entenda, requer-se a V. Ex.ª que seja oficiada nova perícia junto de especialista em neurologia por se considerar que o relatório agora junto aos autos não é esclarecedor quanto à real situação clinica do requerido nomeadamente tendo em conta os relatórios e documentos já existentes nos autos e que evidenciam a debilidade mental e física do requerido”.
Por seu turno, o beneficiário sustentou que o “Relatório é muito claro ao concluir que o Requerido possui capacidade cognitiva e criticas suficientes para se autodeterminar”, e que “não se vislumbra que o Requerido padeça de debilidade mental que justifique o pedido de suprimento requerido pela Requerente, não se justificando as medidas requeridas”.

Seguidamente foi proferido despacho com o seguinte teor:
A veio intentar ação especial de interdição por incapacidade física e psíquica de B, seu pai, fundamentando o seu pedido na desorientação daquele, no tempo e no espaço, na sequência de um acidente isquémico transitório ocorrido em 2013.
Recebida a ação em juízo, foi determinada a sua remessa à distribuição, a fim de ser tramitada como ação para acompanhamento de maior.
Notificada para aperfeiçoar a sua petição inicial, veio a requerente fazê-lo, requerendo que o Tribunal supra a autorização do beneficiário e decrete o seu acompanhamento, nomeando como acompanhante a própria requerente.
Citado, o requerido constituiu mandatário e contestou a presente ação, impugnando os factos alegados, os quais são próprios de quem não o conhece, pois tal filha apenas o conheceu em outubro de 2018. Mais adiantou que, atenta a sua idade, é normal alguma confusão com datas e acontecimentos, mas nega encontrar-se desorientado. Desse modo, não deve ser suprida a sua autorização e, caso se conclua pela necessidade de algum tipo de acompanhamento, é sua vontade que o mesmo seja deferido a HP, responsável pelo Lar onde reside desde 2015.
O Tribunal procedeu à audição pessoal do beneficiário e determinou a realização de exame pericial, o qual concluiu que o requerido está com capacidade cognitiva e críticas suficientes para se autodeterminar.
Notificado tal relatório às partes, veio a requerente reclamar do mesmo, por ser do sentido oposto ao que foi observado pelo Tribunal aquando da audição.
Já o requerido defende que o relatório é muito claro, pelo que não se justificam as medidas requeridas.
Em primeiro lugar, e ao contrário do defendido pela requerente, o relatório não é oposto ao que foi observado pelo Tribunal aquando da sua audição, pelo que, não sendo apontada qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, é tal reclamação indeferida (artigo 485º, nº2 do Código de Processo Civil).

*

Encontra-se ainda por apreciar o pedido de suprimento da autorização do beneficiário.
Dispõe o artigo 141º, nº1 do Código Civil que o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
Ora, o pedido foi requerido pela filha de António ..., mas sem a autorização deste.
No entanto, nos termos do artigo 141º, nº 2 do Código Civil, o Tribunal apenas pode suprir a autorização do beneficiário em dois casos: quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.
Analisando a situação em concreto, resulta do relatório pericial que o requerido, do ponto de vista do seu discernimento cognitivo está com capacidade cognitiva e críticas suficientes para se autodeterminar. Atento tal parecer médico, teremos de concluir que aquele tem plena capacidade, para, em liberdade e de modo responsável, segundo a avaliação que por si faça dos seus próprios interesses e das suas necessidades, de se autodeterminar e de se socorrer da representação voluntária para dispor de quem o ajude, conforme fez aquando da constituição de mandatário judicial, onde se insurge contra o presente processo.
Por outro lado, não se vislumbra qualquer fundamento atendível para suprir tal autorização.
Em face do exposto, não supro da autorização do beneficiário, pelo que, sendo a requerente parte ilegítima, absolvo o requerido da instância, nos termos dos artigos 278º, nº 1, alínea e), conjugado com os artigos 576º, nº 2, 577º, alínea e) e 578º, aplicáveis ex vi do artigo 549º, nº 1, do Código de Processo Civil].
Custas pela requerente por lhes ter dado causa, fixando-se o valor da presente ação em 30.000,01 € (artigos 303º, nº 1, 296º, nº 1, 306º e 527º, todos do Código de Processo Civil).”
Inconformada com tal decisão, veio a requerente dela interpor o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões Ao contrário da prática usual, a apelante numerou as suas conclusões seguindo a sequência numérica iniciada com a motivação do recurso.:
“40°.
O escopo do presente recurso é a impugnação, in totum, da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância por via da qual rematou os autos acima referenciados, judiciando por improcedente a presente ação, não suprindo a autorização do beneficiário, e por efeito não ordenando o acompanhamento de maior do Apelado.
41°.
A Apelante, - porque se vê confrontada com o descuido na apreciação da audição pessoal do Apelado e exame médico que culminou num erro no julgamento da matéria de facto e posterior subsunção jurídica, por banda do Tribunal a quo -, não se conforma com o inusitado veredicto.
42°.
Apelando agora ao mais elevado e ponderado critério de Vossas Excelências para que, depois de reapreciarem a posição assumida pelas partes nas peças processuais, as declarações prestadas em sede de audição pessoal do Apelado e a legitimidade da Apelante para a ação de acompanhamento de maior, subsumirem a factualidade daí resultante às normas legais efetivamente aplicáveis, revoguem a Sentença recorrida e a substituam por um aresto que determine o acompanhamento do Apelado.
43°.
Suprindo para tal a legitimidade da Apelante, declarando-a como acompanhante do seu pai. Assim,
44°.
Face a todo o supra exposto, o Tribunal a quo entendeu que o Apelado se encontra com capacidade para se autodeterminar, o que deverá ser novamente ponderado e retificado.
Ora,
45°.
Na modesta opinião da Apelante, não poderia o Tribunal a quo ter procedido ao julgamento da matéria de facto nos moldes em que o operou, porquanto a análise das declarações prestadas pelo Apelado aquando a sua audição configuram uma perturbação psíquica deste, acrescida de todas as dificuldades motoras assentes nos presentes autos. 
46°.
Ao não o fazer, na Sentença de que ora se recorre, o Tribunal a quo efetuou uma leitura errónea e abreviada, tendo considerado o Apelado capaz de se autodeterminar, o que não deixa de ser contraditório com o evidenciado pela diretora do lar onde reside aquando da diligência de audição pessoal, onde esta reiterou que tratava e acautelava de todos os assuntos respeitantes à vida corrente do Apelado.
47.°
Mais deveria o tribunal a quo ter usado da faculdade de pedir um segundo exame pericial, por forma a que não subsistissem quaisquer dúvidas quanto às capacidades cognitivas do apelado.
48.°
Mais, deveria o juiz a quo ter usado do poder que dispõe de investigação, ordenar o que tivesse por conveniente, e obter as informações necessárias para melhor suporte da boa decisão da causa.
49.°
A ora Recorrente não se conforma com a decisão proferida, e apesar de ter requerido nova prova pericial, a mesma foi indeferida, pelo que existindo a dúvida, devia o douto tribunal recorrido, na figura do meritíssimo juiz a quo solicitar a sujeição do Beneficiário a um novo exame pericial.
50.°
Perícia essa que deveria incidir sobre o que verdadeiramente interesse para os presentes autos, nomeadamente se o requerido sobre de doença ou anomalia psíquica, e em caso afirmativo em que medida a referida doença afeta a capacidade daquele governar a sua pessoa e bens.
51.°
Nos autos foi feita prova de que o Requerido toma medicação antidemencial, prova essa que foi ignorada pelo médico psiquiatra que fez a perícia, bem como contraditória com o que resulta das bulas de todas as farmacêuticas sobre os medicamentos que o Requerido toma.
52.° 
Medicação essa que não é tomada por simples prevenção, mas sim para tratamento de várias doenças do foro psíquico.
53.°
Mas também essa prova foi ignorada pelo tribunal a quo.
54.°
Da perícia médica e do interrogatório feito, em perfeita contradição, não é possível aferir com tanta certeza e segurança as doenças e/ou anomalias do foro mental de que sofre o requerido, nem em que medida o mesmo é capaz de gerir os seus bens.
55.°
Aliás, se assim não o fosse, porque existe uma procuração a favor de terceiro, (nomeadamente a responsável do lar onde o mesmo se encontra alojado), para que esta faça a gestão de todos os assuntos e bens do Requerido?!?
56.°
Se o mesmo é autossuficiente e perfeitamente saudável, porque necessita este de uma procuradora de que de tudo trate??
57.°
Procuradora essa que é diretora do lar onde está a atualmente a residir.
58.°
Também esta prova, junta aos autos, o tribunal a quo ignorou.
59.°
Assim, porque o fim primordial de qualquer processo judicial é a de procura da verdade e composição justa de um litígio, também a prova requerida pela ora Recorrente, que é de seu direito, é uma diligência que não tem qualquer objetivo dilatório, mas sim a de procurar a verdade e de ser o requerido devidamente avaliado.
60.°
Caso o tribunal entendesse que não haveria de nomear outro perito, poderia em alternativa pedir às partes, mesmo que as suas expensas, viessem indicar perito ou até diligências pertinentes (exames alternativos) para apuramento da verdade e da situação do Requerido”.

Culmina as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deve da presente Apelação ser julgada totalmente procedente, revogando-se a Sentença sob impugnação, substituindo-a por outra decisão que determine o acompanhamento do Apelado, designando como acompanhante a sua filha, ora aqui Apelante ou em alternativa, ser requerido exame/prova pericial a ser efetuada por terceiro, especialista, ao Requerido (…).”
O beneficiário não apresentou contra-alegações.
Admitido o recurso, e remetidos os autos a este tribunal, por despacho do relator foi determinada a devolução dos autos ao Tribunal a quo, a fim de o Ministério Público ser notificado de todos os atos praticados no processo, e de lhe ser dada a possibilidade de exercer a intervenção acessória prevista nos arts. 10º, nº 1, al. a) e 9º, nº 1 als. c) e d) do Estatuto do Ministério Público, conjugados com o art. 325º do CPC, nomeadamente com a possibilidade de, querendo, recorrer da decisão proferida pelo Tribunal a quo ou responder ao recurso da apelada.
Remetidos os autos à primeira instância, a título devolutivo, foi o Ministério Público citado para a causa e para, querendo, contra-alegar, não tendo o mesmo praticado no processo qualquer ato.
Voltando os autos a este Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar e decidir.

2.Questões a decidir

Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC2013, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam (2).
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil (3).
Não obstante, ressalvadas as referidas questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas(4).

No caso em análise, as questões a equacionar e decidir são as seguintes:
-Se o Tribunal a quo deveria ter determinado a realização de segunda perícia(5) ;
-Caso assim se não entenda, se deve ser decretado o acompanhamento do beneficiário;

3.FUNDAMENTAÇÃO:

3.1.- Os factos
Os factos a considerar são os constantes do relatório que antecede.

3.2.- Os factos e o direito

3.2.1.- Da prova pericial

O presente recurso foi interposto no âmbito de processo especial de maior acompanhado.
Relevam assim de modo especial, as disposições o Regime Jurídico do Maior Acompanhado (6).

Nos termos do disposto no art. 26º, nº 1 deste diploma, o mesmo é aplicável aos processos de interdição e inabilitação pendentes à data da sua entrada em vigor, razão pela qual a presente ação foi oportunamente convolada em ação de maior acompanhado.
Como se pode ler na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 110/XIII (7), que deu origem ao mencionado diploma, o mesmo visou adequar o estatuto jurídico das pessoas carecidas de proteção por motivos de doença, superando as fragilidades apontadas aos regimes da interdição e inabilitação, e adequando a legislação nacional “quer à experiência de ordens jurídicas culturalmente próximas da nossa, quer aos instrumentos internacionais vinculantes para a República Portuguesa, com relevo para a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n° 56/2009, de 7 de maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho.”
Da referida Convenção emergem os seguintes princípios fundamentais relativos à capacidade jurídica das pessoas com deficiência:
Todas as pessoas com deficiência, sem exceção, têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida;
A pessoa com deficiência deve ser apoiada nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica;
A pessoa com deficiência tem o direito a escolher a pessoa que a acompanhará na tomada de decisões da sua vida;
A pessoa com deficiência tem o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico;
A pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica;
As medidas de apoio devem ser flexíveis e de acordo com as necessidades individuais de cada pessoa com deficiência;
As medidas de apoio apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais;
Todas as medidas de apoio devem respeitar os direitos, a vontade e as preferências da pessoa com deficiência – cfr. als. n), o) e y) dos considerandos do preâmbulo, e arts. 12º, 13º, 19º, e 21º a 23º da Convenção.
Será, pois, à luz destes princípios, que cumprirá interpretar e aplicar o regime do Maior Acompanhado.
Nos termos do disposto no art. 897º, nº 1 do CPC, “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por eles requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.”
Uma das diligências instrutórias que frequentemente tem lugar no âmbito dos processos de acompanhamento de maior é o exame médico, destinado a aferir se o beneficiário padece de alguma doença que afete as suas faculdades físicas ou intelectuais, e que possam, de alguma forma, justificar a adoção de alguma medida de acompanhamento.
Um tal exame sujeita-se às regras gerais sobre prova pericial previstas e reguladas nos arts. 467º a 489º CPC, sem prejuízo das regras especiais especialmente consagradas no art. 899º do CPC.

Assim estabelece esta disposição legal:
“1- Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.
2- Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências.”
O nº 1 do citado preceito consagra efetivamente regras especiais que regulam aspetos atinentes, por um lado, ao objeto da perícia e, por outro, ao relatório pericial.
De acordo com este preceito, a perícia destina-se a apurar:
-A afeção de que sofre o beneficiário, isto é, se o mesmo padece de doença ou condição que afete as suas faculdades físicas ou psíquicas e, em caso afirmativo, em que medida (em qualidade e intensidade) aquela doença ou condição afeta estas faculdades;
-A data provável do início da mencionada doença ou condição;
-Os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.
Este preceito constituiu, pois, uma regra especial, a conjugar com o art. 476º do CPC, que consagra, no seu nº 1, a faculdade de as partes se pronunciarem acerca do objeto da perícia e no nº 2 dispõe que “Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.”
Sobre cada uma destas questões terá o sr. perito que se pronunciar.
E terá que o fazer no respetivo relatório pericial, que deve ser elaborado de acordo com os cânones definidos no art. 484º do CPC.
No caso vertente releva sobremaneira o nº 1 do mencionado preceito, que estabelece que “O resultado da perícia é expresso em relatório, no qual o perito ou peritos se pronunciam fundamentadamente sobre o respetivo objeto”.
Deste preceito decorre de forma clara e inequívoca que no relatório pericial, o/s perito/s deve/m não só expor as conclusões a que chegou/aram, mas também os fundamentos que as sustentam.
É, pois, à luz destes preceitos que se deve interpretar e compreender o mecanismo das reclamações previsto no art. 485º do CPC que estipula que apresentado o relatório pericial, o mesmo é notificado às partes (nº 1), e que se estas “entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição do relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações”.
De acordo com o citado preceito, constituem fundamentos da reclamação os seguintes vícios do relatório (8).
-a deficiência, que ocorre quando o/s perito/s não se pronuncie/m sobre todas as questões que integram o objeto da perícia;
-a obscuridade, que se verifica quando não se alcance o sentido de observações, fundamentos, ou conclusões;
-a contradição, que pressupõe a manifestação de afirmações reciprocamente incompatíveis;
-a insuficiência da fundamentação, que tem lugar quando não sejam indicadas as razões que sustentam as conclusões do/s perito/os, ou as aquelas se afigurem insuficientes para sustentar estas.
Aqui chegados, cumpre analisar o caso dos autos, à luz das considerações expendidas.
No tocante à delimitação do objeto da perícia, verificamos que as partes não se pronunciaram.
O despacho que determinou a realização da mesma perícia (9) tem o seguinte teor:
“De acordo com o estatuído no artigo 899.º do Código do Processo Civil, o juiz pode determinar a realização de um exame pericial ao beneficiário.
Atendendo à parca documentação clínica que consta dos autos e por ainda se suscitarem dúvidas relativamente à situação clínica do beneficiário, oficie o Hospital da Horta pata indicar perito, o qual desde já se nomeia, que realize exame médico ao beneficiário e elabore o correspondente relatório.
Prazo: 30 dias.”.
Com todo o respeito que o Tribunal a quo nos merece, cremos que a delimitação do objeto da perícia no contexto das ações de acompanhamento de maior justifica maior detalhe, de modo a que se consigne, de forma clara, a necessidade de o perito se pronunciar sobre todas as questões a que se reporta o art. 899º do CPC.
Por outro lado, também não teria sido pior se o Tribunal a quo tivesse consignado expressamente que também se pretendia apurar se o beneficiário padece ou não das doenças referidas na petição inicial e documentação anexa.
Na verdade, nos arts. 8º a 18º daquele articulado menciona que o beneficiário:
-em 2013 sofreu um enfarte;
-foi submetido a cirurgia;
-na sequência desta cirurgia sofreu um acidente isquémico transitório em 2013;
-sofre de Alzheimer, e apresenta um estado de mental confuso;
-tem amputação das duas pernas acima do joelho;
-encontra-se imobilizado;
-usa fralda, por não ter controlo dos esfíncteres;
-não consegue assinar o nome;
-não é capaz de comunicar de forma coerente, e não se mostra orientado no tempo e no espaço;
-não consegue alimentar-se sozinho, vestir-se sozinho, ou cuidar da sua higiene pessoal.
Por outro lado, a requerente juntou aos autos um documento intitulado “informação clínica” (10), que se reporta a uma consulta de neurologia atribuída ao beneficiário, no qual, se registou que o mesmo sofrerá de “síndrome demencial”, manifestando porém dúvidas quanto à forma de que tal síndrome se reveste “(demência vascular?, Alzheimer? Mista?)”.
No mesmo documento regista-se a medicação que à data o beneficiário tomava, e as alterações tidas por adequadas à mesma.
Por outro lado, foi igualmente junto com o requerimento inicial um outro documento, com o nome do beneficiário, e uma lista de medicamentos (11)..
Ora, como veremos, o relatório pericial é totalmente omisso de referências à alegada doença demencial.
Como já mencionámos, notificada deste relatório, a requerente requereu que o perito prestasse esclarecimentos, indicando “em concreto dos factos e exames clínicos nos quais se baseou para concluir o que concluiu” e que, caso o Tribunal assim o não entendesse, fosse determinada a realização de uma segunda perícia.

Para tanto alegou, em síntese, que:
-“o relatório sendo muito curto e objetivo na sua conclusão, não concretiza qual o procedimento clínico que permitiu concluir o que concluiu e quais as perguntas/metodologias adotadas”;
-“na audiência realizada em 09/07/2020 (…) o requerido demonstrou claramente (…) no mínimo, grande confusão mental”;
-“as conclusões do relatório pericial apresentado não fazem menção à desorientação no tempo, que há já muito tem vido a ser indicada nos relatórios clínicos já juntos aos autos; veja-se por exemplo Relatório clínico datado de 13/09/2019 (…) onde se diz (…) Desorientado no tempo (0/5), orientado no espaço (3/5). Portanto síndrome demencial (demência vascular? Alzheimer? Mista?)”;
-“dos vários relatórios médicos e receitas juntos aos autos, por diversas vezes são mencionados medicamentos como os que abaixo se indicam e que estão juntos aos autos, e cuja terapêutica é a seguinte:
Donepezilo - A sua utilização terapêutica principal é no tratamento da doença de Alzheimer
Usos comuns - É utilizado para tratar os sintomas de demência em pessoas nas quais foi diagnosticada a doença de Alzheimer, ligeira a moderadamente grave.
Os sintomas incluem perda de memória crescente, confusão e alterações do comportamento
Memantina - é um fármaco utilizado primariamente no tratamento da doença de Alzheimer
Quetiapina - é indicada ao tratamento de esquizofrenia, agindo neste caso como um antipsicótico, bem como para as fases maníacas e depressivas associadas ao transtorno de humor bipolar, e neste caso como um estabilizante de humor, em monoterapia ou como coadjuvante. Por vezes é utilizado off label, muitas vezes como um agente de acréscimo, para tratar essas condições como transtorno obsessivo-compulsivo, estresse pós-traumático, síndrome das pernas inquietas, o autismo, o alcoolismo, síndrome de Tourette, e tem sido usado por médicos como um sedativo para pessoas com distúrbios do sono ou ansiedade.
Risperidona é um antipsicótico atípico potente desenvolvido pela Janssen Farmacêutica. Usa-se mais frequentemente no tratamento de psicoses delirantes, incluindo-se a esquizofrenia. Porém a risperidona, como os demais antipsicóticos atípicos, é também utilizada para tratar algumas formas de transtorno bipolar, psicose depressiva, transtorno obsessivo-compulsivo e Síndrome de Tourette, além de se mostrar eficaz no tratamento de impulsividade e agressividade “.
A reclamação foi indeferida com a seguinte fundamentação:
“(…) ao contrário do defendido pela requerente, o relatório não é oposto ao que foi observado pelo Tribunal aquando da sua audição, pelo que não sendo apontada qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, é tal reclamação indeferida”.
Com todo o respeito que nos merece esta decisão, a verdade é que atentas as questões em discussão nos presentes autos, relativas à situação do beneficiário, não deveria a reclamação apresentada ser indeferida com tão escassa fundamentação.
Por outro lado, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, na reclamação apresentada a requerente invocou expressamente a insuficiência do relatório pericial, seja quanto à delimitação da situação clínica do beneficiário, seja quanto à insuficiência da sua fundamentação.
E na verdade, também nós entendemos que atentas as questões suscitadas, o relatório pericial é manifestamente insuficiente (art. 485º, nº 2 do CPC), desde logo porque não esclarece:
-se o beneficiário toma habitualmente a medicação referida nos documentos de fls. 24 v. e 25;
-qual a finalidade de cada um desses medicamentos;
-se o beneficiário padece ou não de demência, conforme aventado na informação clínica que constitui o documento clínico junto com o requerimento inicial (fls. 24);
-em caso afirmativo de que forma de demência está o beneficiário afetado (Demência vascular? Alzheimer? Mista? Outra?);
-em caso afirmativo, desde que data padece de tal doença;
-se tal doença tem carater evolutivo, e qual a previsível evolução da mesma;
-se a referida doença afeta as capacidades físicas e psíquicas do beneficiário e, em caso afirmativo, em que medida se reflete na sua capacidade de reger s sua vida de forma autónima;
-quais os meios de apoio e de tratamento aconselháveis à situação clínica do beneficiário;
-se o beneficiário é capaz de se alimentar, vestir, e cuidar da sua higiene pessoal;
-se o beneficiário se encontra incontinente.
E encontra-se deficientemente fundamentado, porquanto só o esclarecimento destes pontos e a sua análise critica poderá sustentar conclusões seguras acerca da situação do beneficiário.
É do conhecimento geral, e por isso constitui facto notório que não carece de alegação nem prova (art. 412º do CPC), que nas suas várias formas, a demência é suscetível de diminuir significativamente a capacidade do paciente “exercer plena, pessoal, e conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos cumprir os seus deveres” (art. 138º do CC) e, por isso, podem justificar o decretamento judicial de medidas de acompanhamento (arts. 139º e 145º do CC e 900º do CPC).
No caso concreto da doença de Alzheimer, a mesma é descrita pela Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer nos seguintes termos (12).
“O que é a doença de Alzheimer?
A doença de Alzheimer é um tipo de demência que provoca uma deterioração global, progressiva e irreversível de diversas funções cognitivas (memória, atenção, concentração, linguagem, pensamento, entre outras).
Esta deterioração tem como consequências alterações no comportamento, na personalidade e na capacidade funcional da pessoa, dificultando a realização das suas atividades de vida diária.
O nome desta doença deve-se a Alois Alzheimer, médico alemão que em 1907, descreveu pela primeira vez a doença.
À medida que as células cerebrais vão sofrendo uma redução, de tamanho e número, formam-se tranças neurofibrilhares no seu interior e placas senis no espaço exterior existente entre elas. Esta situação impossibilita a comunicação dentro do cérebro e danifica as conexões existentes entre as células cerebrais. Estas acabam por morrer e isto traduz-se numa incapacidade de recordar a informação. Deste modo, conforme a Doença de Alzheimer vai afetando as várias áreas cerebrais vão-se perdendo certas funções ou capacidades.
Quando a pessoa perde uma capacidade, raramente consegue voltar a recuperá-la ou reaprendê-la.
A Doença de Alzheimer é uma doença neurodegenerativa
Em termos neuropatológicos, a Doença de Alzheimer caracteriza-se pela morte neuronal em determinadas partes do cérebro, com algumas causas ainda por determinar.
O aparecimento de tranças fibrilhares e placas senis impossibilitam a comunicação entre as células nervosas, o que provoca alterações ao nível do funcionamento global da pessoa.
Tipos de Doença de Alzheimer
Existem dois tipos diferentes de Doença de Alzheimer:
A Doença de Alzheimer esporádica pode afetar adultos de qualquer idade, mas ocorre habitualmente após os 65 anos. Esta é a forma mais comum de Doença de Alzheimer e afeta pessoas que podem ter ou não, antecedentes familiares da doença. Parece não existir hereditariedade da Doença de Alzheimer esporádica, de início tardio. Contudo, é possível que algumas pessoas possam herdar uma maior ou menor probabilidade para desenvolverem a doença numa idade avançada. O ApoE14 é o único gene associado a um ligeiro aumento do risco de desenvolver Doença de Alzheimer, de início tardio. Mesmo assim, metade das pessoas portadoras deste gene, e que vivem até aos 85 anos, não desenvolve Demência nesta idade. Os investigadores estão a tentar encontrar outros fatores de risco, genéticos e ambientais que possam tornar o desenvolvimento da Doença de Alzheimer mais ou menos provável. No entanto até à presente data o único fator de risco evidente para o desenvolvimento desta doença parece ser a existência prévia de um traumatismo craniano severo.
A Doença de Alzheimer Familiar é uma forma menos comum, na qual a doença é transmitida de uma geração para outra. Se um dos progenitores tem um gene mutado, cada filho terá 50% de probabilidade de herdá-lo. A presença do gene significa a possibilidade da pessoa desenvolver a Doença de Alzheimer, normalmente entre os 40 e 60 anos. Este tipo de Doença de Alzheimer afeta um número muito reduzido de pessoas”.
Tendo a requerente alegado expressamente que o beneficiário padece da doença de Alzheimer, e tendo junto documentação clínica de acordo com a qual este padece de demência, considerando-se, ainda que de forma dubitativa, a possibilidade de essa demência se reconduzir a uma forma de Alzheimer, não podia o Sr. Perito deixar de se pronunciar de forma clara e inequívoca sobre esta questão.
Sendo médico psiquiatra, certamente estaria em condições de o fazer. E caso não estivesse, impunha-se que registasse as razões pelas quais não lhe foi possível clarificar tal ponto, indicando que especialidades médicas ou exames complementares reputaria de necessários à clarificação de tal questão.
Uma tal clarificação deveria ter-se por imperiosa, atenta a natureza da doença em questão e o seu impacto na capacidade de o beneficiário reger a sua pessoa de forma autónoma, tanto mais que os autos contêm indícios de que o mesmo se poderá encontrar numa situação de especial fragilidade no que respeita à defesa dos sues direitos pessoais e patrimoniais.
Na verdade, por um lado, a requerente manifestou preocupação quanto à forma como é gerido o património do beneficiário, alegando ter o mesmo conferido procuração a favor de terceiros, com amplos poderes.
E da análise do documento 28 v. a 30 resulta que a procuração que o beneficiário terá outorgado a favor da Srª Diretora da residência sénior onde reside envolve a outorga de poderes que exorbitam em muito o estritamente necessário a apoio que o mesmo eventualmente necessite em razão do seu estado de saúde.
Na verdade, estão ali contemplados poderes para “adquirir, alienar e onerar ou permutar quaisquer bens móveis e imóveis” do beneficiário; “realizar quaisquer partilhas e divisões de bens, judicial e extrajudicialmente, e contratos promessa cessão ou venda de quinhões hereditários, efetuar contratos de arrendamento (…) , pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações, podendo representá-lo em todas as fases do processo de inventário”; “consultar e movimentar contas bancárias e quaisquer outras aplicações financeiras (…) fazendo levantamentos e depósitos”; e “fazer ou aceitar confissões de dívidas”.
Enfim, e em síntese, tal procuração confere à srª procuradora poderes que lhe permitem gerir e, no limite, também alienar, todo o património do beneficiário, sem que tal amplitude de poderes se mostre objetivamente justificada.
A confirmar-se que o beneficiário se encontra na plena posse de todas as suas faculdades que lhe permitam “exercer plena, pessoal, e conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos cumprir os seus deveres”, a outorga de tal procuração não merecerá quaisquer reparos.
Mas caso assim não seja, a sua manutenção não deixará de dever ser devidamente ponderada.
De outra banda, a requerente é percecionada pelo beneficiário como uma pessoa que este apenas conheceu em 2019, com quem apenas esteve em três ocasiões, e de cujas intenções manifesta alguma reserva, parecendo considerar que o interesse na sua pessoa se reduza à preocupação pela manutenção do seu património e à expetativa de um dia vir a herdar parte do mesmo (arts. 3º, 6º, e 26º a 31º da resposta).
Este contexto justifica um especial cuidado e atenção (13).
Do exposto resulta, pois, que o relatório pericial apresentado pelo Sr. perito é deficiente, e que as conclusões nele vertidas não se acham suficientemente fundamentadas.
Era por isso justificada a reclamação apresentada pela requerente.
Não obstante tal pretensão ter sido indeferida, o certo é que a apelante não recorreu de tal decisão.
Contudo, impugnou a decisão proferida pelo Tribunal a quo, na parte em que não determinou a realização de “nova perícia junto de especialista em neurologia”, que havia requerido a título subsidiário no mesmo requerimento em que manifestou a sua reclamação.
Efetivamente, o ponto 11- do apontado requerimento tem o seguinte teor:
“11- Caso assim não se entenda, requer-se a V. Exª que seja oficiada nova perícia junto de especialista em neurologia por se considerar que o relatório agora junto aos autos não é esclarecedor quanto à real situação clínica do requerido nomeadamente tendo em conta os relatórios e documentos já existentes nos autos e que evidenciam a debilidade mental do requerido”.
Nos termos do disposto no art. 899º, nº 2 do CPC, “permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento não superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências”.
Desta disposição legal resulta que sempre que o relatório pericial não seja totalmente esclarecedor, podem as partes requerer, ou o Tribunal determinar oficiosamente outras diligências, com vista ao cabal esclarecimento acerca da situação clínica do beneficiário e/ou das suas necessidades.
No caso vertente, por tudo o que já foi exposto, é de considerar que o cabal esclarecimento acerca da situação clínica do beneficiário, nomeadamente para aferir se o mesmo sofre ou não de doença demencial, justifica plenamente a realização de uma segunda perícia, médica da especialidade de neurologia, nos termos oportunamente expostos pela requerente.
Por isso, ao apreciar o pedido de suprimento da autorização do beneficiário sustentado nas conclusões do relatório pericial, e julgar verificada a exceção de ilegitimidade, sem previamente ter determinado a realização de segunda perícia, nos termos requeridos pela requerente, o Tribunal a quo desrespeitou o disposto no art. 899º, nº 2 do CPC.
Nesta conformidade, deve o despacho requerido ser revogado, na parte em que apreciou e julgou improcedente o pedido de suprimento da autorização do beneficiário e o absolveu da instância, o qual deve ser substituído por outro que admita a realização de exame pericial da especialidade de neurologia, nos termos referidos no ponto 11- do requerimento da requerente com a refª 3873520 / 37030250 de 04-11-2020, tendo em atenção o exposto no presente aresto, e nos demais termos que forem julgados pertinentes.

3.2.2. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito“.
No caso em apreço, verificamos que face à procedência da apelação, as custas não podem ser imputadas à apelante, e que não tendo o apelado contra-alegado, nem pugnado pela improcedência da reclamação que a apelante apresentou e tinha por objeto o relatório pericial, o mesmo também não pode considerar-se vencido.
Assim sendo, entendemos não serem devidas custas.

4.Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes nesta 7ª Vara Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente revogar o despacho recorrido, na parte em que apreciou e julgou improcedente o pedido de suprimento da autorização do beneficiário e o absolveu da instância, o qual deve ser substituído por outro que admita a realização de exame pericial da especialidade de neurologia, nos termos referidos no ponto 11- do requerimento da requerente com a refª 3873520 / 37030250 de 04-11-2020, tendo em atenção o exposto no presente aresto, e nos demais termos que forem julgados pertinentes.
Sem custas.



Lisboa, 27 de abril de 2021- (14)


Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.



Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa


(2)-Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116..
(3)-Adiante designado pela sigla "CPC".
(4)-Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116..
(5)-cfr. em especial, conclusões 47º a 51º, 59º e 60º.
(6)-Aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14-08, e adiante designado RJMA.
(7)-Disponível na página internet da Assembleia da República, no seguinte endereço:
http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679595842774f6a63334e7a637664326c756157357059326c6864476c3259584d7657456c4a535339305a58683062334d76634842734d5445774c56684a53556b755a47396a&fich=ppl110-XIII.doc&Inline=true.
O processo legislativo que deu origem ao referido diploma foi objeto do e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, intitulado “O novo regime jurídico do maior acompanhado”, fevereiro de 2019, disponível no seguinte endereço:
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf .
(8)-Neste sentido cfr. LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 3ª Ed., Almedina, p.339; e ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. 545.:
(9)-Refª 49957548, de 13-07-2020, fls. 49
(10)-Doc. 5, fls. 24 v.
(11)-Doc. 5.1, fls. 25..
(12)-https://alzheimerportugal.org/pt/text-0-9-30-14-a-doenca-de-alzheimer:
(13)-E teria justificado, segundo cremos, uma postura mais interventiva por parte do Ministério Público, no âmbito da intervenção acessória (art. 325º do CPC), e ao abrigo do disposto no art. 10º, nº 1, al. a), com referência ao art. 9º, nº 1, als. c) e d), e ambos do seu Estatuto.
(14)-Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.