Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22434/18.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
DECISÃO SOBRE A RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LITIGIOSO
Nº do Documento: RP2022060822434/18.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE; ALTERADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O processo especial de revitalização (PER) não se destina a resolver litígios sobre a existência e amplitude dos créditos, carecidos de uma mais profunda indagação e prova.
II - O processo de recuperação visa permitir ao devedor estabelecer negociações com os credores então existentes com vista a permitir um acordo que permita a revitalização daquele; assim, as negociações são com os credores existentes e em relação aos créditos vencidos e não também com quaisquer eventuais credores em relação a eventuais créditos futuros.
III - A decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental, logo não constitui caso julgado fora do processo (art. 91 CPC), destinando-se à formação e apreciação do quórum deliberativo.
IV – Assim, não tendo o litígio sido regulado pelo plano de recuperação, (o qual não foi cumprido pelo devedor) todos os pedidos formulados pelo A., na petição inicial de acção posterior, incluindo os créditos vencidos antes da prolação do despacho que nomeou o administrador judicial provisório no PER, devem ser apreciados, sob pena de se criar uma situação de denegação de justiça, já que todo o crédito do Autor, incluindo o que reclamou no PER, é litigioso, conforme decorre da divergência entre as partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 22434/18.4T8PRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo do Trabalho do Porto - Juiz 3

Recorrente: AA
Recorridas: “S..., S.A.” e
“S1... - ..., S.G.P.S., S.A.”


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto


I – RELATÓRIO
O presente recurso em separado, vem interposto da decisão proferida, em 10.02.2022, em sede de despacho saneador, na acção com processo comum nº 22434/18.4T8PRT, que o A., AA, NIF ..., portador do C.C. ..., válido até 15/06/2021, casado, engenheiro, residente na Rua ..., ... Porto, intentou contra as RR., S..., S.A., NIPC ..., e S1... - ..., S.G.P.S., S.A, NIPC ..., ambas, com sede na Rua ..., ..., ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, formulando o seguinte pedido: “NESTES TERMOS, E NOS MAIS, DE DIREITO, APLICÁVEIS, REQUER A V. EXA. SE DIGNE JULGAR PROVADA E PROCEDENTE A PRESENTE ACÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA:
I - CONDENAR AS RÉS A VER JUDICIALMENTE RECONHECIDO E DECLARADO:
A/ QUE O AUTOR FOI TRABALHADOR SUBORDINADO DA 1ª RÉ DESDE 01/02/1986 A 25/07/2018;
B/ A LICITUDE, POR JUSTA CAUSA, DA RESOLUÇÃO OPERADA PELO AUTOR EM 16/07/2018;
II - CONDENAR A 1ª RÉ A PAGAR AO AUTOR A QUANTIA GLOBAL DE 336.860,44 EUR. A TITULO DE PRESTAÇÕES SALARIAIS EM DIVIDA, RESPECTIVOS JUROS VENCIDOS, BEM COMO A INDEMNIZAÇÃO DEVIDA PELA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM JUSTA CAUSA, GOZANDO O AUTOR DAS GARANTIAS PREVISTAS NO ARTº 333 CT.
III - CONDENAR SOLIDARIAMENTE A 2ª RÉ NO PAGAMENTO DA ALUDIDA QUANTIA DE 336.860,44 EUR E BEM ASSIM DOS JUROS VINCENDOS, CALCULADOS NOS TERMOS E COM OS CRITÉRIOS ANTES ENUNCIADOS, ATÉ INTEGRAL E EFETIVO PAGAMENTO.
IV - TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.”.
Naquele, foi fixado o valor da acção em €336.860,44.
E o despacho recorrido, terminou do seguinte modo:
«Assim, e ante tudo o exposto, determina-se a absolvição das rés da instância, no que
se refere aos créditos vencidos até ao mês de maio de 2017 (inclusive), no montante ilíquido
de €92.771,47.
Custas pelo autor, na proporção do decaimento.».
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Inconformado o A. interpôs recurso, nos termos das alegações juntas, que finalizou com as seguintes “CONCLUSÕES
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Notificadas deste, as RR., não apresentaram contra-alegações.
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O recurso admitido que é de apelação – artigos 79.º, 79º- A, nº 1, b) e 80.º do CPT, em separado - artigo 83.º-A, n.º 2 do CPT, tendo “Quanto ao efeito suspensivo pretendido, indefere-se o mesmo, porquanto não se verifica nenhuma das situações previstas no artigo 83º, nºs 2 e 3 do CPT”, e instruído foi ordenada a sua subida a este Tribunal.
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O Ministério Público teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº 3, do CPT, não tendo emitido parecer, no essencial, por considerar que essa possibilidade lhe está vedada, dado o recurso em apreço, deduzido nos presentes autos, em separado, dizer respeito a questão eminentemente processual.
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Cumpridos os vistos legais, nos termos do disposto no art. 657º, nº 2 do CPC, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim, as questões a apreciar e decidir, consistem em saber:
- Se o despacho recorrido é inconstitucional, por violação expressa dos princípios da proibição do excesso ou da proporcionalidade, da adequação e da juridicidade consignados nos arts. 13.º (princípio da igualdade) e 20.º (princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva) da CRP.
- Se o despacho recorrido é nulo e como tal deve ser declarado, uma vez que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, ocorrendo uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível (art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 77.º do CPT).
- Se o despacho recorrido violou, por erro de interpretação e/ou aplicação o disposto nos artigos17.º-C, 17.º-D, 17.º-E, n.º 1, 17.º-F, 17.º-G, 130.º, n.º 1, 131.º, 146.º, 218.º, n.º 1, al. a), 233.º, n.º 1, al. c), 249.º, 256.º, 257.º, do CIRE; arts. 9.º, 10.º, n.º 2, e 579.º, 62 n.º 3, do CC; arts. 2.º, n.º 1, 10.º, n.º 4 – por confronto com o art. 4.º, n.º 3, do “antigo” CPC -, 91.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, al. e), 290.º, n.º 3, 332.º, 549.º, 576.º, n.º 2, 620.º, n.º 1, e 703.º e ss. do NCPC; 1.º, 2.º, al. a) e 50.º do CPT; arts. 13.º e 20.º da CRP; art. 6.º da CEDH), devendo ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da presente acção relativamente à totalidade dos pedidos formulados pelo Autor na petição inicial, incluindo os referentes aos créditos vencidos até ao mês de maio de 2017 (inclusive), no montante ilíquido de €92.771,47 (noventa e dois mil, setecentos e setenta e um euros e quarenta e sete cêntimos), como defende o A./apelante.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Os factos a considerar são os que emergem do relatório que antecede, devidamente documentados neste apenso e, ainda, os seguintes:
1 - A 12.02.2018, foi homologado judicialmente o plano de recuperação apresentado pela 1.ª Ré, tendo a referida sentença transitado em julgado.
2 - Sob o item “CRÉDITOS LABORAIS / PRIVILEGIADOS”, o citado plano propunha o seguinte: “1) Pagamento dos créditos laborais no prazo máximo de 90 dias após a data de homologação do Plano, com exceção dos montantes correspondentes a indemnizações por resolução ou revogação de contrato de trabalho que são pagos de acordo com o ponto seguinte;
2) Montantes correspondentes a indemnizações por resolução ou revogação de contrato de trabalho: I. Reembolso do capital em 5 prestações anuais sucessivas e fixas (cada uma no montante de 20% do saldo inicial), vencendo -se a primeira 90 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano; e II. Perdão total dos juros vencidos e vincendos.
As dívidas a funcionários detêm privilégio creditório geral ou especial e, ao abrigo do Plano de Recuperação, são considerados créditos privilegiados, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 47.º, n.º 4, alínea a) do CIRE e 333.º do Código do Trabalho.”.
3- Dispunha também o Plano, sob a epígrafe “EFEITOS LEGAIS SOBRE AS AÇÕES PENDENTES”:
“Todas as ações declarativas e procedimentos cautelares que têm em vista o reconhecimento de créditos sobre a S..., deverão prosseguir os seus termos, ao abrigo da prorrogativa legal prevista no disposto na parte final do n.º 1, do artigo 17.º-E, do CIRE, aplicando-se a tais créditos, uma vez reconhecidos, os termos previstos no Plano para créditos de igual natureza.
No que respeita às ações pendentes à data da apresentação a PER, destinadas à cobrança de créditos (com exceção das execuções fiscais e das execuções por dívidas ao Instituto da Segurança Social, I.P.) – e que se encontrem suspensas – serão consideradas extintas logo que seja aprovado e homologado o presente Plano, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE.”.
4 - Decorrido o mencionado prazo de 90 dias, nenhuma quantia foi paga pela 1.ª Ré a qualquer trabalhador.
5 - Previa ainda o referido Plano que:
Em caso de incumprimento do presente Plano, pela S..., a moratória e o perdão neste previstos ficam sem efeito, desde que, com as necessárias adaptações, tenha sido dado cumprimento, ao disposto no artigo 218.º do CIRE.”(cfr. Doc. 38 anexo à Petição Inicial).
6 - Apesar de devidamente interpelada para o pagamento dos créditos em falta e avisada da cominação prevista no art. 218.º, n.º 1, al. a) do CIRE, a 1.ª Ré não cumpriu o Plano (cfr. Doc.39 anexo à Petição Inicial).
7 - A sentença que homologou o plano de recuperação foi proferida em 12.02.2018 e a presente ação foi instaurada em 25.10.2018.
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Apreciando.
E, comecemos, pela questão enunciada em 2º lugar, ou seja, saber:
- Se o despacho recorrido é nulo, e como tal deve ser declarado, uma vez que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, ocorrendo uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível (art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 77.º do CPT)
Previamente, importa dizer que, por uma questão de economia processual iremos deixar para apreciação final a 1ª questão atrás enunciada.
Vejamos, então.
Comecemos pela transcrição do despacho recorrido, onde a Mª Juíza “a quo” considerou o seguinte:
«A questão que neste momento é colocada à apreciação do tribunal é a de saber se à presente ação de condenação se aplica, ou não, o disposto no artigo 17.º-E/1 do CIRE.
Vejamos.
Tal preceito legal prescreve que «a decisão a que se refere a alínea c) do n.º 3 do art.º 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação».
Como se vê, o artigo em causa não faz qualquer distinção entre a ação declarativa e/ou executiva, o que significa, pensamos, que nele estão incluídos estes dois tipos de ações, desde que visem a cobrança de dívidas contra o devedor, na medida em que são estas que atingem o seu património.
Esta é, aliás, a posição que se tem mostrado dominante, quer no entendimento da jurisprudência, quer no entendimento da doutrina (cfr. Ana Prata e outros, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Almedina, 2013, pág. 64 e João Labareda e outro, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Quid Juris, 2ª edição, pág. 164; AC STJ de 26.11.2015, de 17.11.2016, de 31.05.2016, de 17.03.2016 e de 26.11.2015, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
Assim, para a doutrina e jurisprudência, o critério predominante para a qualificação de uma ação como ação para cobrança de dívidas é a suscetibilidade de o fim da ação ser a condenação do devedor no pagamento de um quantitativo monetário ou com expressão monetária ou de a ação ter reflexos diretos no património do devedor.
Como tal, afigura-se-nos hoje pacífico que a presente ação está abrangida pelo disposto no n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, já que os pedidos formulados, se julgados procedentes, refletem-se obrigatoriamente no património da ré. Estamos perante o reconhecimento de créditos emergente de contrato de trabalho ou conexos com ele o que justifica a sua inserção no conceito de ações para “cobrança de dívidas contra o devedor”.
Sucede, porém, que nos presentes autos são reclamados créditos já vencidos aquando da instauração do PER e créditos que se venceram posteriormente. Na verdade, no PER o autor reclamou os créditos que se encontravam vencidos até 30 de maio de 2017 (a nomeação do administrador provisório ocorreu em 07 de junho de 2017) e no presente processo reclama créditos de março de 2016 a julho de 2018 (data em que resolveu o contrato com invocação de justa causa).
Levanta-se, assim, uma nova questão, qual seja, a de saber se o autor não podia instaurar a presente ação na sua totalidade ou apenas em parte.
Como é sabido, o processo de recuperação/revitalização veio permitir ao devedor estabelecer negociações com os credores até então existentes, com vista à obtenção de acordo que permita a sua revitalização.
E, precisamente porque assim é, as negociações a encetar têm necessariamente de ser feitas com os credores existentes e em relação aos créditos vencidos e não com quaisquer outros potenciais credores em relação a eventuais créditos futuros.
Na verdade, a revitalização não é mais do que a efetiva negociação das dívidas com os credores de modo a que o devedor consiga passar a cumprir com as suas obrigações.
Aliás, é precisamente com o objetivo de obtenção do referido acordo de revitalização, que não podem ser instauradas ações para cobranças de dívidas contra o devedor enquanto decorrem as negociações e se suspendem as ações existentes, pois, de outro modo, inviabilizava-se, ou, pelo menos, dificultava-se a obtenção de um acordo que permitisse a almejada revitalização.
Parece-nos, pois, que a obtenção de acordo com o consequente plano de recuperação não pode abranger os créditos que à data não existiam, nem por outro lado, se possa impedir que um credor cujos créditos se venceram posteriormente à reclamação de créditos no PER, não estando abrangidos pelo plano, faça valer os seus direitos num qualquer processo judicial – como se defendeu no AC TRC de 23.06.2017 (www.dgsi.pt) «[a] entender-se de outro modo, os credores cujos créditos se vencessem posteriormente àquela data ficavam impossibilitados de ver reconhecido judicialmente o seu direito (não só não eram reconhecidos os créditos no âmbito do PER e, por isso, não eram por ele abrangidos, como também não podiam posteriormente ver reconhecido tais créditos), o que, afigura-se, colide com o princípio fundamental de acesso ao direito e aos tribunais (cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).
Em suma, e citando Catarina Serra (PER, Processos e Créditos Laborais – Uma análise tridimensional (jurisprudência, novíssimo Direito da Insolvência e projectado Direito Europeu”, in Prontuário de Direito do Trabalho, 2017, II, pág. 169): «… os créditos susceptíveis de ser reclamados e suscetíveis de ser reconhecidos são, em princípio, os créditos constituídos até à data da abertura do processo (i. é, até à data da prolação do despacho de nomeação do administrador judicial provisório). São estes, em suma, os créditos susceptíveis de ser afetados pelo plano. A delimitação repercute-se no plano dos efeitos processuais do PER, existindo uma indissociável ligação entre as duas questões. Mais precisamente se a vis atrativa do processo justifica que sejam impedidas/suspensas/extintas as ações respeitantes a créditos suscetíveis de serem afetados pelo plano, não justifica mais do que isso. Deve, por isso, entender-se que as ações respeitantes a créditos ainda não constituídos à data da abertura do processo não se extinguem por força da aprovação e da homologação do plano e prosseguem o seu curso, pois a lide mantém-se útil apesar desse facto (não se torna inútil por esse facto».
Assim, no caso em apreço, considerando que aquando da instauração da presente ação já havia sido aprovado, por decisão transitada em julgado, o plano de recuperação apresentado pela 1ª ré, a qual não previa a sua continuação, há que concluir que se verifica uma exceção dilatória inominada (artigo 576.º/2 do Código de Processo Civil) – verificação de um pressuposto processual negativo ou impedimento – que nos termos do disposto no artigo 278.º/1, al e) do Código de Processo Civil, determina a absolvição das rés da instância, no que se refere aos créditos vencidos até ao mês de maio de 2017, no montante ilíquido de €92.771,47.
E nem se diga, como o faz o autor, que tem legitimidade para exigir da 1ª ré a integralidade dos seus créditos, pois que não obstante a ter interpelado para o pagamento em falta e da cominação prevista na al. a) do n.º1 do artigo 218.º do CIRE, a mesma não cumpriu o plano.
Com efeito, e de acordo com a decisão que homologou o plano de revitalização aprovado, não tendo o mesmo sido cumprido, o que ficou sem efeito foram a moratória e o perdão ali previstos.
Acresce que o artigo 233.º/1, al. c) do CIRE, citado pelo autor, estabelece que uma vez encerrado o processo, os credores podem exercer os seus direitos contra o devedor, para tal lançando mão do processo executivo.
Não nos parece, pois, que a ação declarativa seja o meio adequado para que o credor possa reagir ao incumprimento do PER.».
Quanto à questão, em apreciação, defende o recorrente que: “É inconcebível (até sob o ponto de vista intelectual) que, por um lado, se defenda: (i) que a decisão sobre a reclamação dos créditos é uma decisão incidental sumária; (ii) que não produz caso julgado fora do processo; (iii) que apenas visa apurar o quórum deliberativo; (iv) que a não participação nas negociações não tem efeitos preclusivos quanto aos respetivos direitos de crédito. E, por outro, se pugne pela extinção indistinta de todas as ações contra as sociedades devedoras.
Acresce que, por força do art. 218.º, n.º 1, do CIRE, o incumprimento do plano implica automaticamente a extinção dos efeitos quanto à moratória e ao perdão (o que o Dig. Tribunal “a quo” reconhece expressamente), existindo uma repristinação do crédito nas condições originais ou primitivas, anteriormente ao Plano. Mas, assim, o que poderia ser executado seriam esses créditos, tal como existiam antes do Plano, e não nas condições – com o perdão e moratória – estabelecidas no plano homologado, que ficou sem efeito. Acontece que, para alguma doutrina/jurisprudência, não estaria a ser propriamente executada a sentença homologatória e, por outro lado, para muitos Tribunais, no que toca a esses créditos, originais, não existiria no PER decisão judicial a reconhecê-los e a certificá-los. Dados tais entendimentos, se a sentença homologa um acordo, cuja obrigação (modificada) cessa por força do incumprimento, dificilmente um credor se pode servir de título executivo tendo por base um acordo extinto.
O Despacho Saneador é, portanto, nulo, porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, ocorrendo uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível (art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 77.º do CPT).”.
Que dizer?
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1 do art. 615º do CPC (diploma a que pertencerão os demais artigos a seguir mencionados, sem outra indicação de origem).
Nele se dispõe que, é nula a sentença quando: “a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”.
Em anotação ao art. 668º do CPC de 1961, que corresponde ao actual art. 615º, refere (Abílio Neto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 23ª ed., pág. 948), que “os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.”.
Como ensinam, (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed. Revista e Actualizada, 1985, pág. 686), as causas de nulidade constantes do elenco do nº1, do art. 615º, não incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Ora, regressando ao caso e analisando os argumentos constantes quer das alegações quer das conclusões do recorrente, em relação ao que o mesmo invoca e diz até, ser inconcebível, há, desde já, que dizer que, não se descortina o cometimento de qualquer vício, susceptível de configurar qualquer nulidade do despacho saneador/sentença, em especial, a que alude o recorrente, a al. c) do nº 1, do art. 615º.
Lendo o despacho recorrido não encontramos qualquer ambiguidade ou obscuridade no seu teor nem se vislumbra qualquer oposição entre os seus fundamentos e a decisão.
Efectivamente, o que se verifica é que, o Tribunal “a quo” considerou ser aplicável o disposto no art. 17º-E nº1 do CIRE e concluiu que relativamente aos créditos vencidos até à data da nomeação do administrador judicial provisório não poderia o Autor instaurar a presente acção por não ser o meio processual próprio para o fazer.
E, obviamente, tal não configura qualquer nulidade da decisão.
Aliás, desde logo, tendo em atenção os argumentos invocados pelo recorrente para sustentar a arguida nulidade da sentença, é notório que tal não se verifica, denotando que existe por parte do mesmo nítida confusão quanto ao alegado vício que imputa à decisão recorrida defendendo, por isso, que deve ser declarada nula e, eventual, existência de erro de julgamento de que, a mesma possa padecer que, não é gerador da nulidade daquela, nos termos expressamente previstos nas diversas al.s do nº 1, do referido art. 615º, em concreto, na al. c), já que esta, como se refere no (Ac. do STJ, de 26.01.2006, Proc. 05B2742), “só se verifica quando, no processo lógico, há um vício real no raciocínio do julgador, na medida em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente; não ocorre, por isso, mesmo nos casos de erro de julgamento, quando a decisão assenta num discurso lógico irrepreensível, limitando-se a decidir no exacto sentido preconizado pela respectiva fundamentação sem qualquer quebra ou desvio de raciocínio que permita detectar a existência de visível contradição entre as premissas e a conclusão.”.
Com efeito o que, eventualmente, poderá ocorrer, lendo o despacho recorrido, é o erro de julgamento e não qualquer vício de ordem processual.
Deste modo, só podemos concluir que, o despacho recorrido não é nulo e, consequentemente, improcede, este segmento da apelação.
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Passemos, então, à análise da questão colocada em 3º lugar, ou seja, saber:
- Se o despacho recorrido violou, por erro de interpretação e/ou aplicação o disposto nos artigos17.º-C, 17.º-D, 17.º-E, n.º 1, 17.º-F, 17.º-G, 130.º, n.º 1, 131.º, 146.º, 218.º, n.º 1, al. a), 233.º, n.º 1, al. c), 249.º, 256.º, 257.º, do CIRE; arts. 9.º, 10.º, n.º 2, e 579.º, 62 n.º 3, do CC; arts. 2.º, n.º 1, 10.º, n.º 4 – por confronto com o art. 4.º, n.º 3, do “antigo” CPC -, 91.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, al. e), 290.º, n.º 3, 332.º, 549.º, 576.º, n.º 2, 620.º, n.º 1, e 703.º e ss. do NCPC; 1.º, 2.º, al. a) e 50.º do CPT; arts. 13.º e 20.º da CRP; art. 6.º da CEDH), devendo ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da presente acção relativamente à totalidade dos pedidos formulados pelo Autor na petição inicial, incluindo os referentes aos créditos vencidos até ao mês de maio de 2017 (inclusive), no montante ilíquido de €92.771,47 (noventa e dois mil, setecentos e setenta e um euros e quarenta e sete cêntimos).
A este propósito, diz e conclui o recorrente, o seguinte: “O art. 17.º-E do CIRE apenas obsta “à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas” contra o devedor após a aprovação e homologação do plano de recuperação no âmbito do PER. No presente caso, esse Plano foi cabalmente incumprido, pelo que não estão verificadas as condições para a extinção da presente instância por inutilidade originária ou superveniente da lide. De todo o modo, a expressão “para cobrança de dívidas” não abrange as ações declarativas. O legislador não fez uma alusão genérica às ações judiciais contra o devedor, mas referiu “quaisquer ações para cobrança de dívidas”.Uma “ação para cobrança de dívida” não equivale, nem é sinónimo, de uma ação para apreciar o (in) cumprimento de obrigações (ainda que, parcialmente, com expressão pecuniária), como a presente ação de processo comum. Não existe na acção de condenação realização coativa do direito, pelo que também não se poderá falar de cobrança de dívida. Está-se ainda numa fase prévia, em que se discute e se reconhece judicialmente a existência de um devedor e de uma dívida. A presente ação destina-se a proporcionar ao Autor um título executivo (vide arts. 703.º e ss. do CPC; arts. 1.º, 2.º, al. a) e 50.º do CPT) que depois possa executar em sede própria; ou seja, numa ação executiva, esta sim - indubitavelmente - para cobrança de uma dívida. Admitir a extinção da instância nos termos do art. 17.º-E, n.º 1 parte final, de outras acções que não as executivas, implicaria que os créditos litigiosos em causa ficariam sem proteção, o que viola as mais elementares regras e princípios do Estado de Direito. Veja-se que no presente processo laboral não só se solicita (i) a condenação das Rés no pagamento de créditos laborais em dívida (pedidos II e III do “PEDIDO”, a final), como (ii) a condenação das Rés a ver judicialmente reconhecido e declarado: a) que o Autor foi trabalhador subordinado da 1.ª Ré de 01.02.1986 a 25.07.2018 (pedido I.A.); b) a licitude, por justa causa, da resolução operada pelo Autor a 16.07.2018 (pedido I.B.). Licitude esta que foi, aliás, posta em causa pela Rés na sua Contestação (cfr. arts. 25.º e ss. da mencionada peça), designadamente, invocando que inexiste falta culposa no pagamento das retribuições e, portanto, fundamento para o pagamento da indemnização peticionada pelo Autor.
Não obstante o anteriormente exposto, ainda que se entenda que a expressão “ações para cobrança de dívidas” constante do n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE deve ser interpretada no sentido de que abrange, quer as ações executivas, quer as ações declarativas que tenham por finalidade obter a condenação do devedor numa prestação pecuniária (no que não se concede e apenas se admite por mero efeito de raciocínio), sempre se concluiria que o legislador não terá pretendido incluir na extinção ali prevista, por força da homologação do Plano de Recuperação, as ações onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser satisfeitos, indo a letra do preceito além do pensamento legislativo nele vertido. De notar, aliás, que o Plano de Revitalização da S... (cfr. Doc. 38 anexo à Petição Inicial) distinguia, claramente: i) “Todas as ações declarativas e procedimentos cautelares que têm em vista o reconhecimento de créditos sobre a S...” – que deveriam “prosseguir os seus termos, ao abrigo da prorrogativa legal prevista no disposto na parte final do n.º 1, do artigo 17.º-E, do CIRE”; (ii) das “ações pendentes à data da apresentação a PER, destinadas à cobrança de créditos (com exceção das execuções fiscais e das execuções por dívidas ao Instituto da Segurança Social, I.P.) – e que se encontrem suspensas” - ações estas executivas, que seriam consideradas extintas logo que fosse aprovado e homologado o Plano. Assim, não há dúvidas de que, também na estipulação do Acordo, se visou distinguir acções declarativas pendentes que procuravam também reconhecer – e, por fim, cobrar – créditos que na insolvência o não foram, das ações executivas cuja natureza e finalidade imediata é, pressupondo já a existência de um título executivo, obter a cobrança de créditos. Distinção, aliás, consonante com a orientação doutrinal e jurisprudencial segundo a qual não importa mais saber se tanto as ações que tenham por objecto obrigações pecuniárias como as execuções para pagamento de quantia certa devem considerar-se de “cobrança de créditos”, mas sobretudo em que casos é que umas e outras devem extinguir-se por inutilidade superveniente da lide, prevalecendo o entendimento de que só relevam para a extinção os créditos que tenham sido reclamados e integralmente reconhecidos no PER e não aqueles que, por variadas razões, o não tenham sido e permaneçam controvertidos, e logo se apresentem ainda carentes de heterocomposição judicial. Consta, aliás, da própria sentença de homologação de 12.02.2018 (cfr. Doc. 37 anexo à Petição Inicial) que o que o Plano de Recuperação apresentado prevê é a extinção das acções pendentes à data da apresentação a PER, destinadas à cobrança de créditos; e que as acções declarativas, onde ainda se discute, não só a existência dos créditos, como a sua dimensão, não se extinguem com a homologação do Plano, antes devendo prosseguir os seus termos. Assim, não existe qualquer razão séria e fundada para provocar a abrupta e formalista finalização da instância, sem nada se ficar a saber acerca do conhecimento do mérito do peticionado. É certo que o credor que obtenha decisão favorável na ação declarativa, na sequência do estatuído na norma em análise, ficará impedido de lançar mão da correspondente acção executiva contra o revitalizado, ficando o seu crédito sujeito aos termos do Plano aprovado. Porém, tal não é razão suficiente para lhe retirar o direito à afirmação judicial desse crédito. O legislador, relativamente aos créditos controvertidos, não quis afastar a possibilidade da sua apreciação judicial autónoma (eventualmente posterior). A todo o direito corresponde uma ação e, portanto, a Autor tem o direito de ver judicialmente reconhecidos e declarados, quer a existência, duração e sentido do seu concreto Contrato de Trabalho, quer a validade da resolução contratual por si operada, quer ainda os créditos a que se arroga sobre as Rés. E a presente ação é a via adequada não só para a defesa e reconhecimento dos direitos e interesses do Autor, como também para o seu acesso à justiça.O reconhecimento (insuficiente / parcial) dos créditos na lista elaborada pelo Administrador Judicial não consubstancia a verificação dos mesmos, servindo apenas para efeitos de votação. Basta, aliás, atentar na nova redação do anterior art. 4.º, n.º 3, do “velho” CPC, constante do art. 10.º, n.º 4, do NCPC, para concluir que o título executivo não tem apenas de certificar a existência da obrigação, mas, ademais, que esta está acertada na esfera jurídica do Exequente e lhe é efetivamente devida.
E não se diga – como o faz o Dig. Tribunal “a quo” – que é certo ser aqui aplicável o art. 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE. Para uma franja da nossa jurisprudência (com a qual o ora Recorrente não concorda, necessariamente, mas que não pode simplesmente ser “ignorada”), inexistem fundamentos que possam, à míngua de estatuição legal nesse sentido, impor, ou, sequer, permitir, a qualificação como título executivo da sentença homologatória do Plano de Revitalização em causa, por aplicação analógica do art. 233.º do CIRE (art. 10.º, n.º 2, do CC). É que existem diferenças flagrantes entre o regime específico do PER e o do processo de insolvência, designadamente, quer em termos de "reconhecimento" de créditos (cfr. art. 256.º do CIRE), quer de abrangência de créditos pelo plano (cfr. art. 257.º, n.º 3). No PER, falta uma fase ou um processo próprio de verificação de créditos destinado ao seu reconhecimento com caráter definitivo. Para alguma doutrina e jurisprudência, a sentença do Plano de Recuperação, ao invés do que sucede na sentença homologatória de confissão, desistência e transação prevista no n.º 3, do art. 290.º do CPC, não contém qualquer decisão condenatória ou absolutória, limitando-se a um controle de legalidade da deliberação tomada e, nomeadamente, da verificação do quórum deliberativo e ao controlo da conformidade do conteúdo do plano aprovado com as regras legais imperativas aplicáveis (cfr. n.º 7, do art. 17.º-F do CIRE). Mais. Dispõe o art. 218.º, n.º 1, al. a), do CIRE, aplicável ex vi art. 17.º-F, n.º 12, do mesmo diploma, que, salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor. Quer isso dizer que a vinculação jurídica decorrente da homologação do plano de recuperação no PER, porventura por resultar de uma deliberação maioritária de credores da recuperanda, está como que sujeita a uma condição legal resolutiva, na medida em que, salvo disposição expressa do plano de recuperação em sentido diverso, a moratória ou o perdão ficam sem efeito, além do mais, quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo mencionado. Por força dessa disposição, o incumprimento do plano implica automaticamente a extinção dos efeitos quanto à moratória e ao perdão, o que significa a repristinação do crédito nas condições originais ou primitivas, anteriormente ao Plano. Mas, assim, por força da aplicação da norma do art. 218.º, n.º 1, ao PER, o que poderia ser executado seriam esses créditos, tal como existiam antes do Plano, e não nas condições –com o perdão e moratória – estabelecidas no plano homologado, que ficou sem efeito. Para alguns, não estaria a ser propriamente executada a sentença homologatória; por outro lado, para muitos Tribunais, no que toca a esses créditos, originais, não existiria no PER decisão judicial a reconhecê-los e a certificá-los. Se a sentença homologa um acordo, cuja obrigação (modificada) cessa por força do incumprimento, dificilmente um credor se pode servir de título executivo tendo por base um acordo extinto.

Ainda que existisse uma previsão normativa da natureza do art. 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE, ou que se devesse concluir pela aplicação daquele normativo, por analogia, ao PER, ainda assim não se poderia concluir (linearmente) pela atribuição de força executiva à sentença homologatória do plano de recuperação. Na verdade, o plano de recuperação no PER não pode ser equiparado a um plano de pagamentos, desde logo porque este último instituto não é aplicável a uma sociedade comercial como é o caso da devedora nestes autos (cfr. art. 249.º do CIRE). Além disso, a haver alguma similitude funcional do Plano de Recuperação PER com algum outro instituto previsto em sede de processo especial de insolvência, a mesma existe, sim, com o plano de insolvência, assim se compreendendo as diversas remissões legais que foram introduzidas no regime jurídico do PER para o plano de insolvência. Ora, se bem se atentar no conteúdo da al. c) do n.º 1, do art. 233.º do CIRE, constata-se que a sentença homologatória do plano de insolvência nunca constitui por si só título executivo, mas sempre em conjugação com a sentença de verificação de créditos ou com a decisão proferida em ação de verificação ulterior. De facto, inexistindo em sede de PER sentença de verificação de créditos ou de verificação ulterior de créditos, mal se perceberia que pudesse ser conferida à sentença homologatória do plano de recuperação uma força executiva que não é reconhecida à sentença homologatória do plano de insolvência por si só. Assim, tudo sopesado, só se poderá concluir não ser tese universalmente aceite pela nossa doutrina e jurisprudência que a sentença homologatória de plano de recuperação aprovado no âmbito de PER constitua título executivo para instauração de ação executiva para pagamento de quantia certa.”.
Vejamos.
Comecemos por analisar se ao caso é aplicável o disposto no art. 17º-E, nº1 do CIRE, tendo em conta que tal foi defendido no despacho recorrido e o apelante não acompanha esse entendimento.
Dispõe aquele, sob a epígrafe “Efeitos”, que: “A decisão a que se refere a alínea c) do n.º 3 do art.º 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
Importa lembrar que, o art. 17º-E, nº1 do CIRE se reporta apenas às dívidas existentes na data da decisão a que se refere a alínea a) do nº3 do art. 17º-C do CIRE.
Neste sentido é o acórdão desta Secção Social, datado de 05.01.2015 (Proc. nº 290/14.1TTPNF.P1 relatado pela Ex.a Sr.ª Desembargadora Fernanda Soares e subscrito pelas Ex.as Sr.ªs Desembargadoras Isabel São Pedro Soeiro e Paula Leal de Carvalho in www.dgsi.pt – lugar da internet onde se encontram os demais acórdãos a seguir citados, sem outra indicação), que, por concordarmos com os fundamentos dele constantes, citamos o seguinte: “o que releva no âmbito do PER e vincula os credores são os créditos existentes à data e não quaisquer eventuais créditos futuros. O processo de recuperação visa permitir ao devedor estabelecer negociações com os credores então existentes com vista a permitir um acordo que permita a revitalização daquele; assim, as negociações são com os credores existentes e em relação aos créditos vencidos e não também com quaisquer eventuais credores em relação a eventuais créditos futuros”.
É que o PER, dada a sua natureza urgente e a celeridade que o caracteriza, impondo-se prazos curtos, não tem vocação para resolver litígios sobre a existência e amplitude dos créditos, carecidos de uma mais profunda indagação e prova. A decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental, não constituindo caso julgado fora do processo (art. 91º CPC), visando a formação e apreciação do quórum deliberativo (Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, 2013, pág. 159 e segs.).
Tanto, assim, é que já se entendeu que mesmo admitido o crédito, caso se prossiga para insolvência, podem vir nesta a ser impugnado mesmo os não impugnados no PER, conforme (Ac. RC de 24.06.2014, Proc. nº 288/13.7T2AVR-F.C1).
Consideremos, também, o que se escreveu no (Acórdão do TRL, de 13.07.2017, Proc.1515/13.6TVLSB.L1-2) em que se sumariou o seguinte:
I – A expressão «acções para cobrança de dívidas» constante do nº 1 do art.º 17.º-E do CIRE deve ser interpretada no sentido de que abrange quer as acções executivas quer as acções declarativas que tenham por finalidade obter a condenação do devedor numa prestação pecuniária – como sucede no caso da presente acção.
II – Todavia, o legislador não terá pretendido incluir na extinção ali prevista, por força da homologação do plano de recuperação, as acções onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser satisfeitos, ainda que em obediência àquele plano, indo a letra do preceito além do pensamento legislativo nele vertido; trata-se de uma “lacuna oculta” (ausência de uma restrição) cuja integração se realiza acrescentando, por via da redução teleológica da norma, a restrição omitida.
III – Deste modo, não é abrangida pelo âmbito da extinção uma acção declarativa como esta em que se discute a existência de créditos e o seu valor, por isso relacionados (no PER) “sob condição” - sem prejuízo de a decisão de homologação do plano vincular os credores da devedora, aqui R., nos termos do nº 6 do art. 17-F do CIRE, encontrando-se a A. obrigada a observá-la nos precisos termos previstos no processo especial de revitalização, com a única especificidade de os créditos “estabilizarem” deixando de depender da “condição” ali mencionada.
IV – Não se verificando o condicionalismo que permitiria concluir pela inutilidade superveniente da lide não procede a consequente extinção da instância nesses termos.
V - A decisão de homologação do plano vincula os credores da devedora, logo, também, a aqui A., a qual terá de respeitar o consignado no âmbito do PER, não havendo, todavia, uma excepção de caso julgado a impedir o prosseguimento desta ação.”.
Ora, analisando o caso, verifica-se que, certos créditos reclamados pelo Autor na presente acção, (créditos vencidos em data anterior à data da decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do citado artigo 17-C) estão abrangidos por esse normativo, no sentido de que serão satisfeitos de acordo com o Plano homologado por sentença transitada em julgado e no pressuposto de que o referido Plano seria cumprido pela devedora.
Mas, no caso, o plano homologado por sentença transitada em julgado não foi cumprido. E, tal circunstancialismo, em nosso entendimento, faz toda a diferença para se poder chegar a uma conclusão (seja ela a exarada no despacho recorrido seja, antes, a defendida no presente recurso).
Conclusão que, para chegar a ela, importa que se coloque a seguinte questão: à luz das disposições do CIRE como deve actuar o credor, quando confrontado com o não cumprimento do Plano por parte do devedor?
Outra questão: pode e deve, instaurar acção comum peticionando, no caso, a totalidade do seu crédito? (que tinha reclamado no PER e que só em parte foi reconhecido pelo administrador judicial comum).
A resposta a estas questões, cremos, encontra solução, nos fundamentos que firmaram a decisão proferida no, (Ac. do STJ, 27.11.2019, Proc. 3266/17.3T8BRG.E1.S1, Relator: Ex.mo Conselheiro José Rainho), onde se defende e sumariou, o seguinte: “I - O PER não tem como finalidade precípua dirimir definitivamente e com força de caso julgado material litígios sobre a existência dos créditos, e daqui que a decisão que recaia sobre as reclamações de créditos é meramente incidental, não constituindo caso julgado fora do respetivo processo.
II – O objeto da sentença homologatória do plano é o próprio plano de recuperação, e não o reconhecimento de créditos, pelo que não faz caso julgado quanto à existência destes.
III - Se o crédito litigioso não é regulado no plano de recuperação, nada impede o reatamento da ação, que assim não se extingue nos termos do n.º 1 do art.º 17.º-E do CIRE.
IV - Pese embora o crédito reclamado pelo dono da obra no âmbito do PER, emergente de alegado incumprimento do empreiteiro (requerente do PER), não ter sido impugnado e constar da lista de créditos, não se extingue a ação onde esse crédito é feito valer por via de reconvenção, se o plano de recuperação que foi aprovado e homologado nada estabeleceu quanto ao crédito invocado pelo autor (empreiteiro), emergente de alegado incumprimento por parte do dono da obra.
V – Nestas circunstâncias, o litígio não foi regulado pelo plano de recuperação, pelo que a ação e a reconvenção devem ter seguimento, sob pena de se criar uma situação de denegação de justiça e de violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
VI - A sentença homologatória de plano de recuperação nas descritas circunstâncias não faz caso julgado sobre a existência do crédito do reclamante, nem é impositiva da extinção da ação e da reconvenção onde o requerente do PER e o credor reclamante discutem os seus alegados créditos.” (sublinhado e negrito nossos)
Ora regressando ao caso, temos que o crédito do Autor, incluindo o que reclamou no PER, é litigioso, dado a divergência das partes na presente acção (o que igualmente resulta do PER).
Como sabemos, no PER não existe a fase processual de verificação de créditos, pelo que inexiste qualquer decisão judicial aí proferida que julgue da existência do crédito do Autor e seu montante. E se assim é, com fundamento no que se deixou exposto, em nosso entender, o Autor tem o direito de suscitar, em acção autónoma, a apreciação desse crédito.
E o facto do Autor não ter impugnado o crédito “reconhecido”, apenas parcialmente, pelo administrador judicial provisório, tal não pode significar que esse seria o montante devido, até porque o CIRE (o processo especial de recuperação) não atribui a esse silêncio efeitos jurídicos cominatórios, destinando-se o montante dos créditos reclamados ou reconhecidos a determinar, tão só, o “quórum” necessário à aprovação do Plano.
Neste sentido é, também, o (Acórdão do TRC de 07-09-2021, Proc. nº 744/20.0T8FND-A.C1) onde se defende e sumariou o seguinte: “O reconhecimento dos créditos pelo Administrador Judicial provisório e a decisão sobre as impugnações da lista provisória de créditos não produzem efeitos fora do PER, servindo apenas para a determinação do universo de créditos e para a aferição da base de cálculo das maiorias necessárias à aprovação do plano de recuperação”.
E, ainda, o acórdão do (TRG de 18.02.20121, Proc. nº 4470/20.2T8GMR-B.G1), em cujo sumário se lê que, “I - No PER não se verifica uma verdadeira verificação e graduação de créditos, pois inexiste um procedimento tendente a fazer reconhecer judicialmente os direitos, com a produção da prova pertinente, visando-se tão somente à fixação do quórum deliberativo para a decisão de aprovação do plano, não constituindo, consequentemente, caso julgado fora desse processo.
II - Sempre que exista controvérsia sobre o valor do crédito, o procedimento de reconhecimento do crédito previsto no PER, não tem a virtualidade de garantir o cabal acesso à justiça, não constituindo um “procedimento equitativo e justo” para efeitos de dirimir em termos definitivos o conflito.
III - E assim sendo, no PER apenas os créditos não controvertidos se consideram definitivamente assentes.
Aqui chegados, transposto o exposto para o caso, face ao que já havíamos adiantado e pelos fundamentos citados, cremos que a conclusão a formular, só pode ser no sentido de que o recorrente tem razão, ou seja, de que, não pode o despacho recorrido manter-se, devendo os autos prosseguir para apreciação de todos os pedidos formulados na presente acção.
Por fim, perante esta conclusão, importa, apenas, dizer que fica prejudicado o conhecimento da 1ª questão supra enunciada, posto que o resultado a que chegámos não colide, antes respeita, os princípios constitucionais invocados pelo recorrente.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta secção em julgar a apelação procedente e, em consequência, ordena-se que o Tribunal “a quo” conheça do pedido formulado na petição inicial e referente aos créditos vencidos antes da prolação do despacho que nomeou o administrador judicial provisório no PER.
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Custas a cargo das Rés.
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Porto, 8 de Junho de 2022
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão