Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
819/19.9T9STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
APROPRIAÇÃO
Nº do Documento: RP20211124819/19.9T9STS.P1
Data do Acordão: 11/24/2021
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É manifestamente infunda por inexistência de crime a acusação pelo crime de abuso de confiança baseada na mera não devolução pelo arguido de coisa que recebeu por título não translativo da propriedade, sem que a vontade de apropriação se tenha revelado numa conduta externa incompatível com a vontade de restituir a coisa
II - O elemento central da tipicidade do crime de abuso de confiança é a apropriação de coisa móvel que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade e, por isso, afetando a confiança com base na qual a coisa móvel havia sido entregue.
III - A apropriação é a atuação que revela, externa e materialmente, a inversão do título de posse que constitui o momento essencialmente relevante para a integração dos elementos e para a consumação do crime; o agente tem que fazer sua a coisa, passando a atuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário a que terá de acrescer o dolo, a intenção de não querer restituir.
IV - São exemplos de ato concludente da apropriação, a recusa de restituição ou a omissão da recusa depois de interpelação para o efeito, admitindo-se ainda a tipicidade da mera omissão da devolução decorrido um tempo razoável
V - A falta de restituição imediata da viatura no final do seu aluguer não constitui, por si só, qualquer ato concludente da apropriação da mesma; todavia, tendo decorrido mais de um mês sobre a data aprazada para a entrega, se o arguido continua sem entregar a viatura alugada, mesmo depois de interpelado para o efeito, tal comportamento é suscetível de ser interpretado como recusa de devolução da coisa e consequente apropriação da mesma
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 819/19.9T9STS.P1
Recurso penal

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
No Processo 819/19.9T9STS do Juízo Local Criminal de Santo Tirso - Juiz 1, foi em 9.06.2021 proferido despacho que rejeitou a acusação deduzida por ser a mesma manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do Código Processo Penal.
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, para este Tribunal da Relação do Porto, pugnando pela sua revogação e consequente recebimento da acusação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
Conclusões do recorrente
1. Proferiu o Mm.º Juiz a 9 de junho de 2021, despacho de rejeição de acusação pública proferida nos presentes autos, nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal por entender, em síntese que os factos elencados e descritos não consubstanciavam a prática de qualquer ilícito criminal por parte do arguido, por entender que não se encontra descrito na acusação público o facto em que se possa extrair que o arguido se apropriou do veículo automóvel, assim invertendo o título da posse.
2. Ora não se aceita tal tese civilista e simplista da realidade fáctica subjacente aos autos e que se encontra descrita no libelo acusatório, porquanto a mesma de facto representa a prática dos ilícitos criminais de abuso de confiança, nos termos aí imputados ao arguido.
3. Para que seja cometido o crime de abuso de confiança é necessário que tenha lugar recebimento lícito pelo agente de uma coisa móvel, com a obrigação de a restituir; descaminho por parte de quem a recebe; prejuízo ou perigo de prejuízo para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa entregue. Protege-se o bem jurídico património, no contexto de uma relação de fidúcia entre o agente e o proprietário Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense”, Tomo II, Coimbra Ed., 1999, págs. 94-97, Juan González Rus, “Curso de Derecho Penal Español”, E. Marcial Pons. Madrid, 1996, págs. 699-670 e Norberto Barranco, “Tutela Penal de la propriedad y delitos de apropriación – El dinero como objecto material de los delitos de hurto y apropiación indebida”, PPU Ed., Barcelona, 1994, págs. 39 e segs. e configura-se ilícito que atinge a sua consumação quando o agente, que recebe a coisa do seu proprietário, do seu detentor legítimo ou de um terceiro obrigado a presta-la, por título não translativo da propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini Acs. do STJ de 31/10/91, in BMJ 410, pág. 430, de 12/01/94, in C.J., Acs. do STJ, ano II, tº1, pág. 195, de 20/04/95, in CJ (STJ), tomo 2, ano III, pág. 173, entre muitos.
4. O arguido não desconhecia que tinha realizado um contrato de aluguer de automóvel com a empresa “B…, Unipessoal, Lda.”,
5. e que tal contrato cessava a 5 de agosto de 2019.
6. Na acusação pública em crise encontra-se descrito que o mesmo foi interpelado para entregar a viatura a 5 de agosto tendo “solicitado” ficar com o carro mais uns quatro ou cinco dias,
7. Que se transformaram em mais de um mês em que o arguido, sem qualquer justificação, se apropriou do veiculo automóvel fazendo-o seu até ao dia 16 de setembro de 2019, quando foi recuperado pela empresa ofendida (de aluguer de automóveis).
8. Se tal não representa uma inversão do titulo da propriedade, então até quando, no entendimento do Tribunal a quo podia o arguido fazer pelo uso do veículo automóvel, fazendo como seu, deslocando-se no seu dia –a- dia para o trabalho, sem o entregar voluntariamente à empresa proprietária?
9. É que a apropriação consiste no facto de o agente fazer sua coisa alheia que, recebida validamente, passa, posteriormente, a possuir ilicitamente ao inverter o título de posse ou detenção, na medida em que dela passa a dispor como se fosse sua, o que aconteceu.
10. Consta ainda expressamente na acusação pública ora em crise que a viatura apenas foi recuperada a 16 de setembro em frente ao local de trabalho do arguido,
11. Sendo perfeitamente induzido de que o arguido em momento algum entregou o veículo automóvel voluntariamente.
12. A se entender de forma diferente, salvo devido respeito, aberta se encontra a fórmula para se fazer um contrato de aluguer de veículo automóvel e “ignorar” qualquer prazo de entrega durante tempo indeterminado, fazer do veículo como seu se tratasse, sem quaisquer consequências criminais.
13. Ao rejeitar a acusação pública proferida contra C…, nos termos da qual imputa ao arguido a prática de um crime de abuso de confiança do artigo 205.º do Código Penal, violou o disposto nos artigos 311.º do Código de Processo Penal e 205.º do Código Penal.
14. Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo o despacho judicial aqui em causa revogado e substituído por outro que proceda ao recebimento da acusação e a continuação dos autos, designando-se dia para audiência de julgamento nos legais termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal.
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Por despacho de 9.09.2021 foi o recurso regularmente admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo
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Respondeu o recorrido arguido às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão proferida.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual não acompanhou o recurso interposto pelo Ministério Público, antes concordando com a decisão recorrida.
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Cumprida a notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, após o que foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) [1].
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt. [2].
Posto isto,
a questão a conhecer oficiosamente e/ou submetida ao conhecimento deste tribunal é:
1ª Da rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada
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Com relevo para a resolução da questão objeto do recurso importa recordar
a fundamentação da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
“Nos presentes autos deduziu o Ministério Público acusação contra o arguido C…, nos termos da qual imputa ao mesmo a prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205.º, n.º 1, do Código Penal.
Assenta a aludida acusação na seguinte factualidade:
O arguido C… celebrou com B…, Unipessoal, Lda., empresa que se dedica à atividade de aluguer de veículos automóveis, com sede na Trofa, área desta comarca, um contrato de aluguer de um veículo automóvel, de um veículo Smart, matrícula ..-UZ-.. em 31 de julho de 2019.
Assim, nesse mesmo dia, cerca das 19 horas, o arguido dirigiu-se às instalações da D…, sitas na Rua …, no …, área desta comarca, tendo sido entregue o veículo automóvel ao arguido, que assinou o respetivo contrato, onde constava como data de devolução 5 de agosto de 2019.
No entanto, no dia 5 de agosto de 2019, o arguido não procedeu à entrega do veículo automóvel, e após ter sido interpelado por um funcionário, solicitou mais 3 ou 4 dias de aluguer, no entanto, não mais procedeu à entrega do referido veículo automóvel.
O veículo apenas foi recuperado pela ofendida no dia 16 de setembro, à porta do local de trabalho do arguido.
Sabia o arguido que o veículo automóvel não lhe pertencia e que o contrato de aluguer que havia celebrado com a ofendida era até ao dia 05-08-2019.
Agiu com o propósito consumado de se apropriar do veículo automóvel, causando à ofendida um prejuízo no valor de 1.260€.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”
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Dispõe o n.º 2 do art. 311.º, do CPP, na parte com relevo para o caso em apreço, que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada.
No que diz respeito ao que se deva entender por acusação manifestamente infundada, estabelece a al. d), do n.º 3, do mesmo preceito legal, que tal sucede se “os factos não constituírem crime”.
Ora, constata-se que é o que ocorre na situação sub judice, uma vez que os factos em causa, tal como se encontram descritos no libelo acusatório, não constituem crime.
O direito penal tem carácter subsidiário, destinando-se a salvaguardar os bens jurídicos fundamentais e essenciais à vida do homem em sociedade, só devendo intervir sempre que o dano causado possua dignidade penal, onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana e quando os outros meios de intervenção de bens jurídicos menos gravosos se mostrem insuficientes (princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade).
Compete ao legislador prever os factos que devem ser considerados crime.
Contudo, “O legislador não é completamente livre nas suas decisões de criminalização e de descriminalização. Tais decisões seguem sempre muito de perto a evolução histórica da sociedade para a qual são tomadas, revelam-se estritamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos directamente políticos, pelos interesses de grupos sociais e pelas representações axiológicas neles prevalecentes em certo momento histórico” [3].
Determina, o artigo 1.º do Código Penal e o artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, que consagram os princípios da tipicidade e da legalidade, que para haver infração penal é necessário que o comportamento humano coincida formalmente com a descrição objetiva e subjetiva feita na norma incriminadora. Daí que antes de o facto voluntário ser punível e imputável a título de culpa deve a ação corresponder a um dos esquemas ou delitos tipo objetivamente descritos na lei penal. O que não se ajusta ao tipo não é crime.
Em suma, o crime é uma conduta humana, voluntária e culposa que preencha um tipo descrito na lei e que tenha sido lesivo de algum interesse juridicamente protegido.
«Pouco importa que alguém haja cometido um facto antissocial, excitante de reprovação pública, francamente lesivo do minimum de moral prática que o direito penal tem por função assegurar, com as suas reforçadas sanções, no interesse da ordem, da paz, da disciplina social: se esse facto escapou à previsão do legislador, isto é, se não corresponde, precisamente, a parte objecti e a parte subjecti, a uma das figuras delituosas anteriormente recortadas in abstracto pela lei, o agente não deve contas à justiça repressiva, por isso mesmo que não ultrapassou a esfera da licitude jurídico-penal” [4].
De facto, nem todos os factos da vida social constituem um ilícito com relevância penal, podendo até suceder um facto não ser ilícito sob o ponto de vista criminal e sê-lo sob o ponto de vista civil. Efetivamente, o âmbito do punível não coincide em toda a sua extensão e medida com a amplitude do ilícito, sendo o campo de definição deste mais amplo.
No caso em apreço foi deduzida acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205.º, n.º 1, do Código Penal.
Procederemos assim à análise do referido tipo legal e a sua subsunção, ou não, aos factos descritos na acusação.
Do crime de abuso de confiança:
Dispõe o art.205.º, n.º 1 do CP que “Quem, ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” Os elementos objetivos deste tipo de crime são:
A) uma apropriação ilegítima;
B) de coisa móvel;
C) entregue por título não translativo da propriedade.
Apesar de não serem necessárias específicas qualidades pessoais para que alguém seja agente de um crime de abuso de confiança, é imperioso que uma determinada coisa lhe tenha sido entregue voluntariamente, por quem era anterior possuidor ou proprietário da mesma.
Por outro lado, é, ainda, requisito necessário que o sujeito ativo tenha recebido a coisa por título não translativo da propriedade, ou seja, a título precário, que a tenha em seu poder com a condição de a restituir em si mesma, ou o equivalente preço.
Quanto ao sujeito passivo, normalmente este é o titular do património em que se integra a coisa objeto material da infração.
O objeto material da infração de acordo com o tipo em análise terá de ser uma coisa, com valor patrimonial.
Terá, ainda, de se tratar de coisa móvel alheia, devido ao facto da entrega ter sido efetuada por título não translativo da propriedade.
O bem jurídico protegido, devido à inserção sistemática do art.º 205.º no código, é o direito de propriedade, mas também outros direitos reais sobre a coisa de que o sujeito passivo seja titular. Interessa que a coisa tenha o valor patrimonial da utilidade que para este apresente, a qual pode ou não ter um valor económico, portanto avaliável em dinheiro sobre o bem jurídico protegido, veja-se Manzini, ob. cit., vol. IX, págs. 26 e 27 e, ainda, pág. 793, onde afirma que "...enquanto que com a sanção do furto se protege a situação de facto da posse do proprietário ou de qualquer outro detentor, com a do abuso de confiança se tutela o direito subjectivo que outrem tem sobre a coisa, de quem ilegitimamente a apropria”.
Por outro lado, visa-se, ainda, punir a quebra da relação de confiança que é pressuposto para que se proceda à entrega da coisa. A posse ou detenção da coisa por parte do agente terá de ser obtida de forma voluntária e lícita, caso contrário estaremos perante furto, roubo ou mesmo burla. Acresce que esta entrega para ser voluntária e lícita terá de fundamentar-se num título válido e deverá evidenciar uma detenção precária da coisa, ou seja, que se constitua a obrigação de a restituir ou de a afetar a um uso ou fim determinado. Isto, porque a lei não se basta com uma entrega que gere uma qualquer obrigação que não venha a ser cumprida, mas sim uma entrega através de um título que exclua a transferência da propriedade sobre a coisa, ou que de algum modo justifique a sua apropriação. Neste sentido, cfr. Eduardo Correia, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, VII; nº 1, pág. 63.
Apesar do referido título não poder ser translativo da propriedade, a obrigação que dele emerge não poderá, igualmente, corresponder a um mero direito de crédito de quem entrega, sobre quem passa a deter, senão estaria reconhecida, contra os princípios do nosso ordenamento jurídico, a prisão por dívidas. Assim, quem entrega a coisa deverá reservar para si um poder real sobre a coisa. Por outro lado, quando a lei fala de entrega da coisa, não pressupõe um ato prévio material que a concretize, bastando que o agente seja investido de um poder sobre a mesma que permita que este se aproprie dela (mera entrega jurídica). No mesmo sentido, Sousa Brito, ob. cit., pág. 84; no sentido de que é necessário que se trate de um contrato, Cavaleiro de Ferreira. É que há situações (como acontece com o próprio depósito judicial) em que pode não haver uma entrega material da coisa, pelo que, como refere o Prof. Beleza dos Santos (in R.L.J., Ano 82º, pág. 34), com relação ao art. 453º do código de 1886, tem de entender-se aquele termo "...no sentido mais amplo, fazendo assim interpretação declarativa lata". Em conformidade com o exposto, entende este ilustre Prof. que entregar tanto pode querer dizer pôr nas mãos de alguém, através de um ato material, como passar para o poder de ou confiar a outrem, independentemente de um facto material de entrega do próprio objeto. Essa entrega não tem de ser feita diretamente pelo dono da coisa, bastando que o seja por sua ordem, não interessando, também, a origem – lícita ou ilícita – do direito sobre a coisa por parte do ofendido. Pode, ainda, resultar de um ato de confiança (contrato), de um ato de autoridade (decisão judicial) ou da própria lei.
Ao nível do título de entrega, o art.205.º não nos fornece tal definição, pelo que aí caberão todos os que não impliquem transferência de propriedade, nos termos do art.1316º, do Código Civil, mas tão só da posse ou detenção.
Partindo de uma visão restritiva da expressão qualquer título, prevista no art.646º do Cód. Penal Italiano (a que corresponde o nosso art.205.º), Montavas diz que o mesmo deverá ser derivado (porque existe confiança da coisa) e não originário (mediante apreensão direta da mesma), penalmente não ilícito e não translativo de propriedade.
De igual modo, resulta patente que tal comportamento é social e eticamente censurável, dada a existência legal de comandos de censurabilidade dirigidos à pessoa do agente, bem como à sua atitude interna – consciente –, de antijuricidade, revelada na não conformação e desatendimento dos valores socialmente instituídos, o que o arguido bem sabia.
Transpondo tais considerações para o caso dos autos, verifica-se que, atenta a descrição fáctica realizada na acusação, não se mostram integralmente preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo relativamente ao arguido.
Isto porque, a acusação limita-se a afirmar que o arguido celebrou com a ofendida um contrato de aluguer de veículo automóvel, o qual findaria a 5 de agosto de 2019; não tendo ocorrido a entrega no referido dia 5 de agosto, o arguido foi contactado e solicitou a extensão do aluguer por mais 3 ou 4 dias; não obstante, o mesmo não entregou o veículo no final desse período; veículo esse que foi recuperado pela ofendida a 16 de setembro, encontrando-se então o mesmo à porta do local de trabalho do arguido.
Se é certo que resulta da descrição factual realizada que o arguido tinha na sua posse um veículo automóvel que não lhe pertencia, o qual lhe foi entregue de modo lícito (por na decorrência da celebração de contratos de locação), não é menos verdade que não se mostra relatado qualquer facto do qual se posse extrair que o arguido se apropriou do mesmo, assim invertendo o título da posse.
Tal como refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 16.05.2007, disponível em www.dgsi.pt:O crime de abuso de confiança só se consuma a partir do momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é, quando o agente, detentor ou possuidor legítimo, a título precário ou temporário, faz entrar a coisa no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua.”
Note-se que, é inclusive referido que, na interpelação feita ao arguido, este solicitou a prorrogação do aluguer por mais 3 ou 4 dias, o que é demonstrativo de que este reconhecia que a propriedade do mesmo não lhe pertencia e não se recusava a proceder à sua devolução, só não tendo diligenciado pela entrega na data acordada.
Só se o arguido fosse interpelado para restituir o veículo e se recusasse a fazê-lo, aí sim, poder-se-ia concluir que passou a fazer uso do mesmo como se dele fosse proprietário, invertendo o referido título da posse.
Pelo contrário, na acusação é dito até que a locadora veio a tomar posse veículo, ficando assim o arguido desapossado do mesmo, sem que tenha aparentemente encetado alguma conduta contrária à intenção da ofendida em recuperar a posse do veículo (nada sendo referido neste aspeto).
Tal como refere o Acórdão da Relação de Guimarães de 07.11.2005, disponível em www.dgsi.pt, em situação similar à dos presentes autos:
“(…) VII - No entanto, a sentença o que deu como provado é que o arguido, que recebeu aquelas coisas por título não translativo da propriedade, as não devolveu, e daí infere-se, mas de forma incorrecta e meramente conclusiva, que ele se apropriou e as fez suas, o que não pode aceitar-se, pois da simples não devolução não se retira a disposição de consumar o crime, apropriando-se o agente da coisa.
VIII – Uma das atitudes onde se manifesta claramente a correspondente intenção é a recusa de restituição, entendida como implicando a vontade de se comportar o agente como proprietário, mas verifica-se que a sentença não desmonta consistentemente qualquer atitude desse género e, o que é pior, limita-se a seguir de princípio a fim a infeliz redacção da peça acusatória, que já enveredara por idêntica simplificação.
IX – Não se podendo concluir que o arguido se apropriou do que recebera para determinado fim, falta um dos elementos típicos do crime do artigo 205°, n° 1, do Código Penal, terá de declarar-se a conduta atípica, tendo, por isso, o arguido de ser absolvido da acusação, o que determina igualmente a absolvição do pedido de indemnização, por não revelarem os autos a existência de danos ocasionados por um crime (artigo 74°, n° 1, do CPP).
Temos assim que para se poder afirmar a existência da consumação do elemento objetivo do tipo de crime de abuso de confiança, tal como está definido no art. 205º, do Código Penal, é necessária a prática de qualquer ato objetivamente idóneo e concludente, «uti dominus», o que, manifestamente, não sucede no caso dos autos, inexistindo uma realidade objetiva que se traduza na inversão do título de posse ou detenção.
Da factualidade descrita na acusação não resulta assim que o arguido se tenha apropriado ilegitimamente do referido veículo automóvel.
Temos assim de concluir que, mesmo que em sede de audiência de julgamento se viessem a provar todos os factos descritos na acusação, tal não teria a virtualidade de conduzir à condenação do arguido, uma vez que a sua conduta não é criminalmente punível.
Deste modo, conclui-se que os factos imputados ao arguido C… não se encontram previstos na lei como crime, ou seja, a sua conduta não preenche todos os elementos essencialmente constitutivos de qualquer tipo legal qualificado como crime.
Estatui o art. 311.º, n.º 2, al. a), do CPP, que a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito, na parte que releva para o caso concreto, que a acusação se considera manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.
Face ao exposto, e atendendo aos fundamentos acima expostos, determina-se a rejeição da acusação deduzida por ser a mesma manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do Código Processo Penal”.
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Conhecendo a questão suscitada, cumpre decidir.
1ª Da rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada
A questão central dos autos consiste em saber se na acusação (rejeitada) falta a narração factual do elemento típico em causa (apropriação) e, na afirmativa, se essa omissão constitui fundamento de rejeição liminar daquela por ser manifestamente infundada.
Como bem refere o despacho recorrido, estabelece o n.º 2 do art. 311.º, do CPP, na parte com relevo para o caso em apreço, que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada.
A acusação é manifestamente infundada, dispõe a al. d), do n.º 3, do mesmo preceito legal, se “os factos não constituírem crime”.
Assim acontece quando, diante o texto da acusação, faltam os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.
Por conseguinte, é manifestamente infundada, por inexistência de crime, a acusação fundada em factos conclusivos, que omite os concretos factos ilícitos e apenas imputa factos vagos ou genéricos [5].
É manifestamente infunda por inexistência de crime a acusação pelo crime de abuso de confiança baseada na mera não devolução pelo arguido de coisa que recebeu por título não translativo da propriedade, sem que a vontade de apropriação se tenha revelado numa conduta externa incompatível com a vontade de restituir a coisa - cfr. RE 21.03.2000, CJ, 2, 280 e citado RG 7.11.2005 (Miguez Garcia), www.dgsi.pt.
A apropriação tem de revelar-se por conduta externa que seja incompatível com a vontade de restituir, através de manifestação nesse sentido ou dando determinado destino à coisa [6].
Pratica um crime de abuso de confiança, nos termos do disposto no artigo 205º, n.º 1 do Código Penal, o agente que, tendo recebido coisa móvel por título não translativo da propriedade, ilegitimamente se apropria da mesma.
Parafraseando Eduardo Correia, a apropriação característica do ilícito em apreço estrutura-se "numa íntima conexão de elementos subjectivos e objectivos ou materiais. Justamente porque o agente já detém a coisa por efeito da entrega, a apropriação há-de radicar-se, eminentemente, numa certa intenção, numa certa atitude subjectiva nova: o dispor da coisa como própria, a intenção de se comportar relativamente a ela como proprietário, uti dominus, com o chamado animus rem sibi habendi ... tal apropriação ... não pode ser, por outro lado, um puro fenómeno interior, mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute" (RLJ, Ano 93, págs. 35/36).
O elemento central da tipicidade do crime de abuso de confiança é a apropriação de «coisa móvel» que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade e, por isso, afetando a confiança com base na qual a «coisa móvel» havia sido entregue.
A apropriação é a atuação que revela, externa e materialmente, a inversão do título de posse que constitui o momento essencialmente relevante para a integração dos elementos e para a consumação do crime.
O agente tem que fazer sua a coisa, passando a atuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário a que terá de acrescer o dolo, a intenção de não querer restituir [7].
O crime de abuso de confiança pressupõe, pois, a quebra da «relação de fidúcia» que intercede entre o agente e o proprietário da coisa e entre o agente e a própria coisa - quer seja uma relação anterior de confiança (artigo 205º, nº 1), quer seja uma relação especial e positivamente determinada na lei («depósito imposto por lei» - nº 5).
A prova da apropriação deve ser de tal modo que revele exteriormente a intenção de atuar uti domini, supondo, em caso de coisa fungíveis e em situações de preexistência de relação contratualmente formatada, a exteriorização de comportamentos que se afastem manifestamente do domínio ainda próximo das disfunções de cumprimento e mora, e revelem, claramente, que a confundibilidade patrimonial e a utilização da coisa ocorram com a plena e determinada intenção de não restituir.
Assim, são exemplos de ato concludente da apropriação, a recusa de restituição ou a omissão da recusa depois de interpelação para o efeito, admitindo-se ainda a tipicidade da mera omissão da devolução decorrido um tempo razoável [8].
Nesse sentido considerou a RP 12-06-2019 (Paulo Costa) www.dgsi.pt que: “No crime de abuso de confiança, quando alguém detém coisa de que usufruiu, mas que não lhe pertence, e não a restitui, apesar da interpelação para a sua entrega ao seu legítimo dono ou detentor, tendo decorrido um prazo razoável para que a restituição ocorra após tal interpelação e sem que alguma justificação ou entrega ocorram, está demonstrada a intenção de não restituir, logo, está provado o dolo de apropriação e, por conseguinte, o tipo subjectivo daquele ilícito”.
Também o ac RE 22-01-2019 (Carlos Berguete Coelho) www.dgsi.pt, considerou que o “desaparecimento do veículo e, bem assim, da própria arguida, que não se conseguiu contactar, aponta, pelo menos com maior adequação lógica, para que se deva entender que a conduta não se quedou por um abuso de uso do veículo e se projectou como atitude de quem, afinal, se veio a assumir como dona da viatura. Note-se que o seu silêncio não se mostra idóneo para afastar tal perspectiva e, ao invés, acaba por confortá-la, enquanto consentânea com postura de quem, como a arguida, não só se alheou do que estava obrigada, como se colocou, com a sua indiferença, como se fosse proprietária, subsistindo durante longo período investida do poder de dispor da coisa. A lógica presunção de que a arguida actuou de forma compatível com quem tacitamente se recusou a entregar o veículo e, assim, se afirmou como dona do mesmo, é a que melhor serve a compreensão do homem médio suposto defronte do juízo de avaliação a efetuar. Ao ter seguido outro caminho, o tribunal incorreu no alegado erro notório na apreciação da prova”.
Aqui chegados temos como assente que a falta de restituição imediata da viatura no final do seu aluguer não constitui, por si só, qualquer ato concludente da apropriação da mesma.
Do facto do arguido utilizar o veículo para além do período acordado não se pode concluir, sem mais, que usou e fruiu do mesmo comportando-se como uti dominus.
Aceita-se que do facto do arguido não entregar a viatura na data aprazada não se pode retirar, sem mais, a ilação de que o arguido se quisesse apropriar daquela.
Todavia, como bem questiona o recorrente Ministério Público, “se tal não representa uma inversão do titulo da propriedade, então até quando (…) podia o arguido fazer uso do veículo automóvel, fazendo como seu, deslocando-se no seu dia –a- dia para o trabalho, sem o entregar voluntariamente à empresa proprietária?”
Na verdade, tendo decorrido mais de um mês sobre a data aprazada para a entrega, se o arguido continua sem entregar a viatura alugada, mesmo depois de interpelado para o efeito, tal comportamento é suscetível de ser interpretado como recusa de devolução da coisa e consequente apropriação da mesma, sem que o julgador se encontre vinculado a outras narrativas sacramentais de sentido idêntico.
Uma das atitudes onde se manifesta claramente a intenção de apropriação é a recusa expressa ou tácita de restituição, entendida como implicando a vontade de o agente se comportar como proprietário da coisa.
Ainda que no caso a interpelação para restituir tenha ocorrido, não se pode aceitar que a recusa de restituição a pressuponha, como conditio sine qua non, para efeitos de concretização da apropriação.
Tanto mais que o julgador pode e deve apurar, ainda nos limites da alteração não substancial prevista no art.358º, nº1, do Código Processo Penal, outras circunstâncias indiciárias que confirmem ou infirmem essa vontade contrária à devolução da viatura, como o próprio silêncio do locatário, sendo ao caso irrelevante se, depois de interpelado para restituir, o arguido aventou sozinho com a prorrogação do aluguer, mas voltou a não restituir o veiculo no final do prazo por si imposto, nada mais disse, nem pagou, vindo este a ser recuperado, mais de um mês depois, por razões exclusivamente alheias à vontade do agente.
Como refere o ac RC 14.01.2015 (Fernando Chaves) www.dgsi.pt: “I - O nosso processo penal, de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, admite que, sendo a descrição dos factos na acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos, matéria regulada nos artigos 303.º, 358.º e 359.º que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia. II - Se a alteração dos factos for não substancial, isto é, não determinar uma alteração do objecto do processo, o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação ou da pronúncia e que tenham relevo para a decisão da causa, exigindo-se, porém, que ao arguido seja comunicada a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (n.º 1 do artigo 358.º), ressalvando-se os casos em que a alteração derive de factos alegados pela defesa (n.º 2)”.
Em suma, a narração factual da acusação contém um mínimo necessário que, além da falta de restituição do automóvel no final do aluguer, quando conjugada com outras circunstâncias indiciárias a apurar em julgamento, poderão plausivelmente acomodar o preenchimento do elemento típico da apropriação por parte do agente, clarificando-se então se foi ou não intenção do arguido fazer do veículo coisa sua.
Por conseguinte, concede-se razão ao recorrente.
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3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e consequentemente, revogando a decisão recorrida, determina-se a sua substituição por outra que, salvo outro impedimento, receba a acusação para julgamento.
Sem custas.
Notifique.
Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Presidente da Secção, Dr. Borges Martins;

com declaração de voto que se segue do Excelentíssimo Juíz Adjunto, Dr. Raúl Cordeiro.
Voto de vencido:
Votei vencido por entender que o recurso deveria ser julgado improcedente e mantido o despacho recorrido. Com efeito, respeitando diferente entendimento, considera-se que a acusação não contém factos que preencham os elementos do crime de abuso de confiança imputado ao arguido C… (art. 205.º, do C. Penal), pois que, embora este não tenha cumprido o contrato de aluguer que celebrou com a locadora “B…, Unipessoal, Ld.ª”, dado que não devolveu o veículo automóvel na data do termo de tal contrato (05-08-2019), não constam da peça acusatória quaisquer factos que sustentem que aquele passou, a partir de então, a assumir-se como proprietário desse veículo, invertendo o título de posse / detenção.
Efetivamente, tal como é sustentado no parecer do Exm.º Procurador-Geral Adjunto, tendo o arguido recebido o veículo automóvel uti alieno, teria de alegar-se que, em momento posterior (após o termo do contrato), passou a comportar-se relativamente a tal veículo uti dominus, naturalmente através de atos objetivamente idóneos e concludentes, o que, repete-se, não conta da acusação.
Apenas se refere que o arguido, no dia 05-08-2019 (data do termo do contrato), “não procedeu à entrega do veículo automóvel e, após interpelado por um funcionário, solicitou mais 3 ou 4 dias de aluguer, no entanto, não mais procedeu à entrega do referido veículo automóvel” (§ 3.º).
E acrescenta-se que “o veículo apenas foi recuperado pela ofendida no dia 16 de setembro, à porta do local de trabalho do arguido” (§ 4.º).
Mais se diz que o arguido “agiu com o propósito consumado de se apropriar do veículo automóvel…” (§ 6), mas sem que se concretize factualmente o suporte desta conclusão.
Nem sequer é alegado na acusação que o arguido se recusou a entregar o veículo à locadora, sua proprietária. E tal como se argumenta no despacho recorrido, é até alegado que, após uma interpelação feita por um funcionário, o arguido solicitou a prorrogação do aluguer por mais 3 ou 4 dias, o que é demonstrativo de que este reconhecia que a propriedade do mesmo não lhe pertencia e não se recusava a proceder à sua devolução, só não tendo diligenciado pela entrega na data acordada.
E, sem mais, a locadora foi recuperar tal veículo no dia 16-09, à porta do local de trabalho do arguido.
Considera-se, por isso, que a acusação não descreve uma realidade factual suscetível de preencher tal ilícito criminal, sendo o incumprimento contratual, tal como descrito, uma questão meramente cível, não reclamando tutela do direito penal, pois este constitui a ultima ratio.
Pelo exposto, não descrevendo a acusação, a nosso ver, os factos com relevância criminal, não poderão superar-se as apontadas insuficiências factuais com o eventual recurso, em sede de audiência e depois de produzida prova, ao disposto no artigo 358.º do CPP, pelo que se considera que bem andou o Exm.º Juiz ao rejeitar a mesma, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do CPP, razão essa porque teria julgado improcedente o recurso.
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Raúl Cordeiro
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Porto, 24.11.2021
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cardoso
Borges Martins
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[1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados sem indicação da respetiva origem.
[2] Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10-95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
O STJ apenas pode sindicar a existência de eventuais nulidades, insanáveis, ou por omissão ou excesso de pronúncia, ou de produção de prova, ou meios de obtenção de prova, proibidos por lei (art. 410.º, do CPP) – cfr. STJ 2016-11-23 (Pires da Graça) in www.dgsi.pt.
[3] - Figueiredo Dias, in «Lei criminal e Controlo da Criminalidade», pág. 72.
[4] - Cfr. Nélson Hungria, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2002, I volume, 3ª. Edição, p. 90. [5] Albuquerque, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009,. Universidade Católica Editora, anotação ao art.311, pg.790.
[6] Segundo Figueiredo Dias, in ”Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, tomo II, pág. 104, sobre a forma como deva manifestar-se a apropriação, escreve: necessário é apenas que (…) se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário” (...) é indispensável que através do acto ou actos de apropriação se tenha verificado uma deslocação da propriedade: a mera afetação da substância da coisa (…) não constitui abuso de confiança.
[7] A apropriação tem que ser "para si"; mesmo que o agente dê a coisa gratuitamente a outra pessoa, tem que haver um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropria da coisa (cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 24 de março de 2004, proc. 2142/03, e de 10 de março e 2004, proc.216/04).
[8] Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, anot. ao art. 205º, nota 13 a 15, pág.813.