Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2655/20.0T8PNF-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
CONHECIMENTO NO SANEADOR
ELEMENTOS NECESSÁRIOS
Nº do Documento: RP20211215/20.0T8PNF-A.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Como decorre com clareza da norma do n.º2, do art.º 61.º do CPT, para que o juiz possa “julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa” - sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 e 4, do art.º 3.º CPC, ou seja, de observar e fazer cumprir o princípio do contraditório - é necessário que se verifiquem cumulativamente dois pressupostos: i) o processo deve conter os elementos necessários para habilitar o conhecimento e decisão da questão; ii) a causa deve revestir-se de simplicidade que permita esse conhecimento nessa fase.
II - Não se verificando esses pressupostos, qualquer uma daquelas questões só pode ser apreciada e decidida na sentença, após a produção de prova em audiência de julgamento.
III - O Tribunal a quo ajuizou mal ao enveredar pela decisão da questão de abuso de direito na fase de saneamento, visto resultar do confronto da posição das partes que há factos controvertidos relevantes para essa apreciação de mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
IV - 4. Vale isto por dizer, que o processo não continha os elementos necessários para habilitar o conhecimento e decisão da questão, falhando assim esse pressuposto exigido pelo n.º2, do art.º 61.º do CPT.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 2655/20.0T8PNF-A.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca do Porto Este – Juízo do Trabalho de Penafiel - B… instaurou acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum, a qual veio a ser distribuída ao J4, contra C… – UNIPESSOAL, Lda., pedindo que seja julgada procedente, em consequência devendo:
– ser reconhecida a qualificação do vínculo contratual do Autor como “contrato de trabalho subordinado”, com efeitos desde a data da incorporação efectiva na Ré, desde 01 de julho de 2004 até 30 de Setembro de 2008;
II – ser a Ré condenada a pagar ao Autor e relativamente ao período compreendido entre 01 de julho de 2004 até 30 de Setembro de 2008:
a) € 7.636,30 relativos às férias não gozadas;
b) € 14.492,19 relativos aos subsídios de férias;
c) € 16.379,90 relativos aos subsídios de Natal;
d) € 4.181,77 relativos às férias e subsídio de férias correspondentes ao período 01/01/2008 – 30/09/2008;
e) € 1.318,78 relativos ao subsídio de Natal correspondente ao período 01/01/2008 a 30/09/2008;
f) € 43.476,57 relativos à compensação a que se refere o art. 222º do CT, correspondente ao triplo da retribuição do período de férias em falta;
III – Ser reconhecida válida a rescisão, com justa causa, do contrato de trabalho que existiu entre autor e ré, operada pelo A.;
IV – ser a Ré condenada a pagar ao Autor:
1. a remuneração do mês de Junho, no montante de € 245,40;
2. os proporcionais de subsídio de natal do ano da cessação do contrato, no montante de € 1.542,60;
3. os proporcionais de subsídio de férias do ano da cessação do contrato, no montante de € 1.790,25;
4. as férias não gozadas e vencidas no dia 01/01/2020 e as férias não gozadas relativas ao ano da cessação do contrato, no montante de € 5.208,00.
5. a quantia de € 1.164,00 pelas 159,25 horas de formação não administrada;
6. a indemnização devida nos termos conjugados do disposto no art.º 391º do Código do trabalho, assim calculada € 3.495,21 x 14 anos e 10 meses, pelo que reclama a esse título o montante de € 53.632,71.
7. a título de danos não patrimoniais a quantia de €.10.000,00.
III - ser a Ré condenada em demais acréscimos legais, designadamente juros legais de mora, incluindo custas e procuradoria.
Para fundamentar os pedidos alega, no que aqui releva e em síntese, que no dia 1 de Julho de 2004, foi contratado pela C…, S.A., através de contrato reduzido a escrito, no qual se obrigava a promover e celebrar em nome daquela e por conta dela de contratos de compra e venda de cafés da marca C1… e produtos afins, visita de clientes e prospecção de mercado, elaboração de notas de encomenda e cobrança do respectivo preço e prestação de serviços de manutenção preventiva das maquinarias utilizadas por estes, numa zona geográfica específica, definida unilateralmente por aquela, no concelho de Paredes.
No exercício da sua actividade utilizava os equipamentos e materiais pertencentes à Ré, designadamente a viatura, sendo totalmente alheio às despesas com combustível e manutenção da mesma. A actividade do A. era realizada nas instalações da C…, sitas em …, com excepção dos contactos com os clientes.
Como contrapartida das funções desempenhadas auferia, então, uma retribuição fixa mensal de € 461,39, acrescida de uma comissão variável em virtude dos valores das vendas efectuadas. Cumpria o período normal de trabalho semanal de 40 horas, correspondente ao horário diário das 09h00 às 18h00, com intervalo para almoço das 12h45 às 13h45, de segunda a sexta-feira.
Todo o trabalho do A. era dirigido e fiscalizado pela C….
Posteriormente, em 1 de Julho de 2007, a R. deu-lhe a assinar um novo contrato titulado de “contrato de agência, pelo prazo de três anos, sujeito a renovação. Não obstante o novo acordo escrito, subscrito pelas partes, todas as condições de prestação da actividade mantiveram-se inalteráveis.
Sucede que, a partir de Fevereiro de 2008 a Ré iniciou um processo de reestruturação da sua organização. Em consequência da referida reorganização, no dia 31 de Outubro de 2008 a Ré: Um primeiro designado por “contrato de transacção preventiva”, no qual faziam cessar o contrato de agência entre as partes, com efeitos a partir de dia 31 de Outubro de 2008; um segundo titulado “contrato de trabalho sem termo”, a vigorar a partir de 01 de Novembro de 2008; e, um titulado “acordo de suspensão do contrato de agência”.
Todos os contratos foram subscritos por ambas as partes em 30 de Setembro de 2008, não obstante a data aposta nos mesmos ser posterior.
Como condição para a continuidade da prestação da actividade pelo A., a R. exigiu a outorga do acordo titulado “acordo de suspensão do contrato de agência”, subscrito em 20 de Outubro de 2008. Em consequência das pressões exercidas pelos Chefes de Equipa da Ré e outros superiores hierárquicos, o A. obrigou-se a aceitar os termos desse acordo, pois aquela garantiu-lhes que todas as condições de prestação da sua actividade se manteriam inalteráveis, não sofrendo quaisquer prejuízo patrimoniais.
Desde 01 de Julho de 2004 o A. iniciou a prestação da sua atividade para a aqui Ré, exercendo, desde sempre, as funções correspondentes à categoria de vendedor, sob as ordens, autoridade, direcção e fiscalização da R., mediante uma retribuição mista, com uma componente fixa e uma componente variável, cumprido um horário estipulado pela R. Os contratos desencadeavam-se de forma sucessiva e ininterrupta e não existia qualquer processo negocial.
O A. apenas tomou plena consciência da questão jurídica da qualificação dos contratos e das respectivas implicações no início do mês de Outubro de 2008. Demonstrativo de que o relacionamento sempre se caracterizou por um vínculo laboral, foi o facto da Ré deixar de ter quaisquer prestadores da actividade correspondente às funções de vendedor adstritos a um contrato de agência, a partir de Outubro de 2008, ao formalizar, através da redução a escrito, os contratos de trabalho que sempre existiram com os seus alegados agentes. Só que a R. só pretendia que tal regularização produzisse efeitos para o futuro, actuando de forma culposa, demonstrativa da sua má-fé, ao tentar eximir-se às obrigações inerentes a tal qualificação jurídica, ao não reconhecer todos os direitos adquiridos até àquela data, inclusive a antiguidade do aqui A.
Prossegue alegando um conjunto de factos, para depois concluir que todos os vínculos contratuais estabelecidos desde 1 de julho de 2004, pelo A. e pela R., até à altura em que, formalmente se iniciou o contrato de trabalho sem termo, consubstanciam um só contrato de trabalho, que face às circunstâncias enunciadas, é um contrato de trabalho por tempo indeterminado.
Nesse pressuposto, reclama um conjunto de alegados créditos laborais relativos a esse período em que pretende seja reconhecido que exerceu funções ao abrigo de um vínculo de trabalho subordinado e não de contratos de agência.
Realizada audiência de partes, não foi possível a sua conciliação.
Regularmente notificada para o efeito, a Ré contestou, apresentando defesa por impugnação e por excepção, neste caso invocando que no caso de a relação contratual que vigorou entre o Autor e a
Ré, entre 01 de Janeiro de 2003 e 31 de Outubro de 2008, vier a ser qualificada como contrato de trabalho, nos termos pretendidos por aquele, “Então, o exercício desse suposto direito não pode deixar de ser configurado como um manifesto abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334.º, do Código Civil (tanto mais que até juros se reclamam!), por exceder manifestamente os limites impostos a esse exercício pela boa-fé, em termos clamorosamente ofensivos da justiça, uma vez que a propositura da presente ação por parte do Autor representa uma conduta contraditória e trai as expectativas legítimas geradas pelo mesmo na Ré ao longo de quase 20 (vinte) anos, inexistindo, assim, a obrigação da Ré de proceder ao pagamento das prestações pecuniárias reclamadas pelo Autor nos presentes autos».
Para sustentar essa posição, alega, factos visando descrever em que termos o A. exercia a actividade naquele período e as circunstâncias que rodearam à celebração dos contratos denominados de agência, para sustentar, no essencial, que como Agente, para além de ter passado a dispor de uma viatura automóvel que lhe foi atribuída pela Ré, passou a auferir quantia média mensal ilíquida de € 3.082,50, quando, como Vendedor Substituto, auferia uma quantia média mensal ilíquida de € 713,35.
Mais alega, que o Autor esteve, desde Janeiro de 2003, inscrito na Autoridade Tributária e Aduaneira como empresário em nome individual, desde aquela data sendo sujeito passivo de IVA e tendo declarado ser beneficiário de rendimentos da categoria “B”, pata efeitos de IRS.
Foi considerado pela Ré e, mais importante, sempre se considerou, um prestador de serviços, e não trabalhador subordinado; «acordou» e «aceitou» celebrar com Ré, os contratos de agência que vigoraram entre ambos, entre os dias 01 de Janeiro de 2003 e 31 de Outubro de 2008, sempre tendo manifestado livremente à Ré o seu interesse em celebrar os mesmos.
No dia 30 de Setembro de 2008, pelo Autor e pela Ré foi «livremente, de boa fé e em plena consciência» celebrado um contrato de trabalho sem termo, com início em 01 de Novembro de 2008. Porém, o Autor exigiu à Ré, tal como os restantes Agentes, como condição para o início da execução do contrato de trabalho sem termo que tinha celebrado no dia 30 de Setembro de 2008, a celebração de um acordo de suspensão do contrato de agência celebrado em 01 de Julho de 2007.
Esse acordo foi livremente celebrado no dia 20 de Outubro de 2008.
O Autor, entre 01 de Janeiro de 2003 e 31 de Outubro de 2008, nunca manifestou junto da Ré, vontade de ser trabalhador subordinado, o que bem se compreende, porquanto os Agentes da Ré eram substancialmente melhor remunerados que os seus Vendedores com contrato de trabalho subordinado.
Entre Janeiro de 2003 e 31 de Outubro de 2008, nunca reclamou junto da Ré, o pagamento de quaisquer quantias a título de subsídio de férias, de subsídio de Natal, subsídio de refeição, abono de falhas, a comparticipação em despesas de educação do próprio e do seu agregado familiar ou o acesso à loja do pessoal.
O Autor pretende juntar direitos próprios dos trabalhadores subordinados com as quantias mais elevadas que auferia enquanto Agente.
A propositura da presente ação por parte do Autor representa uma conduta contraditória e trai as expectativas legítimas geradas pelo mesmo na Ré ao longo de quase 20 (vinte) anos, pelo que o Autor atua em manifesto abuso de direito.
Invoca, ainda, arestos desta Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, nos quais foram alegadamente apreciados casos exactamente iguais ao doestes autos, neles tendo-se concluído que os aí autores actuaram em abuso de direito.
O Autor respondeu à defesa por excepção da Ré, contrapondo, no essencial, que não exerceu o seu direito de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.
A R. quer fazer crer que o A., por sua iniciativa e livremente, denunciou o contrato de trabalho em 31 de dezembro de 2002, para no dia imediatamente seguinte, celebrar um contrato de agência com a R., sem que nada estivesse previamente definido pela R., e sem que tal imposição partisse da mesma. E depois refere que o acordo de suspensão do contrato de agência, datado de 20 de outubro de 2008, mas não celebrado naquela data, como a mesma quer fazer crer, consubstancia uma confissão extrajudicial por parte do A.
Sucede que todos os acordos escritos celebrados entre o A. e a R., foram subscritos por si sem que fossem precedidos de qualquer processo negocial. Não lhe foi conferida a possibilidade de alterar os seus conteúdos, ou mesmo de discutir as cláusulas nos mesmos ínsitas. Todos os contratos foram impostos pela R. de forma reiterada, sistemática e sucessiva, limitando-se o A. a realizar a adesão àquele procedimento estereotipado.
O que sucedia e tinha que ser aceite pelo A., pois no caso de não subscrever os ditos acordos, era de imediato advertido pela R. para a necessidade de se conformar com os mesmos, sob pena de não continuar ao seu serviço. Advertência expressa, feita ao A, e demais colegas de trabalho nas mesmas circunstâncias, e que ocorria, de igual forma, quando manifestavam qualquer dúvida ou reservas quanto ao teor dos mesmos.
Tal ameaça abrangia não só os alegados “contratos de agência” que se foram sucedendo no tempo, como o mencionado “acordo de suspensão do contrato de agência” e ainda o contrato de trabalho por tempo indeterminado.
Quer isto dizer que, o A. nunca manifestou livremente a vontade de celebrar os referidos contratos, sendo-lhe imposto os termos e o conteúdo dos mesmos, sendo sempre compelido a assiná-los sob pena de ser “dispensado” pela R. Tratando-se de contratos pré-elaborados e sem que o A. tivesse possibilidade efetiva de alterar ou propor alterações ao seu conteúdo.
A R. independentemente da qualificação que atribui aos contratos, bem sabia que as relações contratuais mantidas com o A. consubstanciavam um verdadeiro contrato de trabalho subordinado, sendo reflexo disso mesmo, a formalização através da redução a escrito, do contrato de trabalho com efeitos a partir de setembro de 2008, que sempre existiu, materialmente, com o seu alegado agente.
Logo, é absolutamente falso o invocado pela R. no art.º 100.º a 116.º da contestação. No que concerne ao alegado pela R. nos artigos 119.º a 132.º, o A. aceita, apenas os montantes indicados a título de comissões por ele recebidas, desconhecendo, sem ter obrigação de conhecer, o demais ali referido, pelo que expressamente se dá por impugnado.
A circunstância de o Autor nunca ter manifestado, junto da Ré, a vontade de ser seu trabalhador não consubstancia uma vinculação irreversível de forma a impedi-lo de sindicar a natureza da relação contratual estabelecida com a contraparte. Não existindo qualquer processo negocial, designadamente esclarecimentos ou conversas prévias acerca dos seus termos, conteúdo, qualificação, tratando-se de um procedimento estereotipado imposto pela R. ao A. de forma sistemática e reiterada, sem que este o pudesse questionar, não se pode falar em abuso de direito.
Não é, pois, admissível concluir que o autor tenha excedido, muito menos de forma manifesta, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito, pelo que não pode qualificar-se de abusivo o exercício do direito efetuado pelo A. nesta Acão.
I.2 Findos os articulados foi proferido despacho saneador no âmbito do qual foi apreciada a arguida excepção, tendo o Tribunal a quo concluído pela decisão seguinte:
«[…]
Revertendo ao caso dos autos, diremos que não foram alegados pela R factos bastantes para configurar a referida excepção de “supressio”, na medida em que o A vem reclamar direitos e nenhum facto é invocado pela R de onde se possa concluir que tenha criado na R a convicção de que não iria exigir dela os direitos que agora reclama.
Face ao exposto, entendemos que a invocada excepção de “supressio” tem que improceder».
I.3 Inconformada com esta decisão, a Ré interpôs recurso de apelação, o qual foi admitido e fixado o efeito e modo de subida adequados. Apresentou alegações, as quais sintetizou nas conclusões seguintes:
1. O presente recurso vem interposto do despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção de abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», que o mesmo denominou de «excepção de “supressio”», doravante designado por «despacho recorrido».
2. O despacho recorrido, na parte em que julgou improcedente a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o mesmo denominou de «excepção de “supressio”», decidiu do mérito da causa, pelo que é recorrível, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-A, n.º 1, alínea b), do Código de Processo do Trabalho.
3. Ao invés do decidido no despacho recorrido, a Recorrente, nos artigos 1º a 177.º, da contestação, alegou factos mais do que bastantes para configurar a excepção de abuso de direito, por si invocada, que o despacho recorrido denominou de «excepção de “supressio”», nomeadamente, factos de onde se pode concluir que o Recorrido tenha criado na Recorrente a convicção de que não iria exigir dela os direitos que agora reclama;
4. O despacho recorrido fez «tábua rasa» de outros casos, que são exactamente iguais ao dos presentes autos, e que foram indicados pela Recorrente nos artigos 168.º, 170.º, 171.º e 173, da contestação, nos quais, com os mesmos, se não mesmo com menos factos, o Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação do Porto, o Tribunal do Trabalho de Penafiel, 1.º Juízo, e o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Barcelos – Juiz 2, decidiram que a conduta do trabalhador, que é exactamente igual à do Autor, constituía abuso do direito.
5. O despacho recorrido, na parte em que julgou improcedente a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o mesmo denominou de «excepção de “supressio”», violou o disposto no artigo 334.º, do Código Civil, padecendo, assim, de erro de julgamento da matéria de direito, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que julgue procedente a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o despacho recorrido denominou de «excepção de “supressio”».
6. O processo não continha, na fase do despacho saneador, os elementos necessários para decidir a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o despacho recorrido denominou de «excepção de “supressio”», ou seja, para decidir do mérito da causa, uma vez que faltava produzir a prova documental requerida pela Recorrente no final da contestação, e produzir a prova testemunhal requerida pela Recorrente, que indicou 15 (quinze) testemunhas!, para demonstrar os factos bastantes que alegou para configurar a excepção de abuso de direito, denominada no despacho recorrido de «excepção de “supressio”», nomeadamente, os factos de onde se pode concluir que o Recorrido tenha criado na Recorrente a convicção de que não iria exigir dela os direitos que agora reclama.
7. A presente causa não é simples (o Recorrido pela qualificação do contrato de agência como contrato de trabalho, o pagamento de créditos laborais, o reconhecimento da licitude da resolução do seu contrato de trabalho, com as legais consequências, incluindo uma indemnização por danos não patrimoniais, e a Recorrente, na sua contestação de 1242 artigos, alega a excepção de abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», defende-se por impugnação e deduz um pedido reconvencional…)
8. O processo não continha, na fase do despacho saneador, os elementos necessários para decidir a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o despacho recorrido denominou de «excepção de “supressio”», ou seja, para decidir do mérito da causa, e a presente causa não é simples, pelo que o Tribunal a quo podia, e devia, ter relegado tal decisão para momento posterior ao despacho saneador.
9. O despacho recorrido, na parte em que julgou improcedente a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o mesmo denominou de «excepção de “supressio”», sem que o processo contivesse, na fase do despacho saneador, os elementos necessários para decidir a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente, que o despacho recorrido denominou de «excepção de “supressio”», ou seja, para decidir do mérito da causa, e sem que a presente causa fosse simples, violou o disposto no artigo 62.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, padecendo, assim, de erro de julgamento da matéria de direito, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que relegue tal decisão para momento posterior ao despacho saneador.
I.4 O Recorrido Réu não contra-alegou.
I.5 O Ministério Público teve visto nos autos, nos termos do art.º 87.º3, do CPT, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso, na consideração do seguinte:
Salvo melhor opinião, entende-se, que terá sido prematura a decisão de improcedência da invocada excepção de abuso de direito, na modalidade considerada, pelo Despacho em recurso, de “supressio”.
Com efeito, neste particular, o processo não continha ainda, nesta fase, os elementos necessários, ou todos os elementos, para decidir a excepção de abuso de direito, invocada pela Recorrente.
O despacho em recurso, decidiu do mérito da causa, devendo, antes, salvo melhor entendimento, relegar tal decisão para momento posterior ao despacho saneador, apreciados todos os elementos de prova a produzir.
Tanto mais que há decisões anteriores a decidir pela verificação do abuso de direito em casos semelhantes, como os acórdãos citados nas alegações de recurso.
E considerou também o STJ que, “integra abuso do direito a propositura duma acção em que o A. pede que seja reconhecido como trabalho subordinado o período de mais de 12 anos de colaboração com uma empresa ao abrigo de sucessivos contratos de agência, peticionando o pagamento de férias, subsídio de férias e Natal, e outros créditos laborais, se, ao passar ao estatuto de contrato de trabalho por tempo indeterminado da mesma empresa, acordou com esta que o contrato de agência em vigor ficava suspenso para terminar (automaticamente) no dia em que vier a cessar o contrato de trabalho, ficando o trabalhador com direito a uma indemnização pela cessação do contrato de agência correspondente ao valor das comissões que lhe seriam devidas até ao termo deste contrato, de montante nunca inferior a 18 (dezoito) meses da média mensal das comissões auferidas nos doze meses anteriores à celebração desse acordo, se o contrato de trabalho cessar por razões que lhe sejam imputáveis.
Esta conduta constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, em virtude de estar em oposição frontal com a assumida nesse acordo, frustrando a confiança da empresa que legitimamente confiou em que os interesses do trabalhador ficaram suficientemente acautelados com a celebração desse acordo. – Ac. de 12.09.2013, proc. 842/09.1TTMTS.P1-4ªsecção (Gonçalves da Rocha, Leones Dantas e Melo Lima).
Em suma, entende-se que, assiste razão à recorrente, neste particular».
I.6 Foram cumpridos os vistos legais e determinada a inscrição do processo para julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], a questão colocada pela recorrente para apreciação consiste em saber se o tribunal a quo ao ter julgado improcedente a excepção de abuso de direito, sem que o processo contivesse, na fase do despacho saneador, os elementos necessários para a decidir, violou o disposto no artigo 62.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, padecendo a decisão de erro de julgamento da matéria de direito.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
A matéria relevante para a apreciação do presente recurso é a que consta do relatório.
II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A recorrente discorda da decisão do Tribunal a quo, defendendo que errou ao ter julgado improcedente a excepção de abuso de direito, sem que o processo contivesse, na fase do despacho saneador, os elementos necessários para a decidir, violando o disposto no artigo 62.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, padecendo, assim, de erro de julgamento da matéria de direito.
Defende que a decisão deve ser revogada e substituída por outra relegue tal decisão para momento posterior ao despacho saneador.
Atentando na decisão recorrida, dela consta a fundamentação seguinte:
-«Excepção de “supressio”:
Invoca a R a excepção de “supressio”, alegando que nunca antes desta data o A nunca deu a entender à ré que não concordava com os contratos celebrados e com a forma como lhe foram feitos os pagamentos, pelo que a ré se convenceu que o mesmo aceitava esses contratos e essa forma de liquidação.
Apreciando.
Preceitua o art. 334º do Cód. Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como ensina o Prof. Almeida Costa in Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 64, o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais. Ou seja, tal instituto constitui uma válvula de escape do sistema aplicável às situações em que, pese embora a existência do direito, o seu exercício se mostraria intolerável face aos referidos limites, designadamente o da boa-fé.
Na definição apresentada pelo Prof. Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, Almedina, 1983, pág. 43, “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem».
Como se escreveu no Ac. do S.T.J., de 12-06-2012 (Proc. nº 1267/03.8TBBGC.P1.S1, in www.dgsi.ptj), a figura do abuso do direito surge, assim, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Pode dizer-se (seguindo, ainda, de perto o citado aresto) que o abuso do direito, na configuração expressa no art.º 334º do Cód. Civil tem um carácter polimórfico.
Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito (cfr. Prof. Baptista Machado, “Estudo sobre a Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, Vol. I, págs. 345 e ss.).
Nos casos em que é aplicável a proibição do venire, a responsabilidade pela confiança funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos.
Uma modalidade especial da proibição do venire – se não mesmo uma figura autónoma na fisionomia polimórfica do abuso do direito – é a chamada «Verwirkung» e também apelidada supressio (Prof. António Menezes Cordeiro, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Setembro de 2005, págs. 356 a 358) e que, ainda segundo o aludido Mestre, se pode assim caracterizar:
a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer;
b) com base neste decurso de tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.
Quanto a essa excepção limitar-nos-emos a transcrever o que foi referido no acórdão da Relação de Lisboa de 8/10/2014, processo 1115/13.0TTLSB.L1-4 por aderirmos inteiramente ao entendimento nele plasmado quanto à excepção invocada pela ré.
“Ora, no caso presente, nenhum elemento de facto permite concluir pela existência, no comportamento do autor, de um agir em abuso de direito.
Ao proceder como procedeu, o autor não entrou em contradição com a sua conduta anterior e, por isso, não traiu a confiança e a expectativa que essa sua conduta criou na outra parte em relação à situação jurídica futura. De resto, ainda que isso se verificasse – e não se verificou -, só existiria abuso de direito quando o venire atingisse proporções juridicamente intoleráveis, traduzindo-se em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito, o que, no caso, em apreço não aconteceu.
Na verdade, o autor apenas veio exercer um direito que lhe assiste e não se pode concluir que haja excedido, no exercício desse direito, os limites impostos pela boa fé, ou pelo seu fim social ou económico, em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico social dominante.
Em suma: o autor limitou-se a reclamar o pagamento de prestações a que tem direito e a inércia a que se remeteu no decorrer do contrato não foi de molde a criar a convicção na entidade empregadora de que no futuro ele não iria exigir o pagamento dessas prestações (neste sentido pronunciaram-se os Acs. do STJ de 05.11.2003 e de 21.09.2005, www.dgsi.pt).”.
Revertendo ao caso dos autos, diremos que não foram alegados pela R factos bastantes para configurar a referida excepção de “supressio”, na medida em que o A vem reclamar direitos e nenhum facto é invocado pela R de onde se possa concluir que tenha criado na R a convicção de que não iria exigir dela os direitos que agora reclama.
Face ao exposto, entendemos que a invocada excepção de “supressio” tem que improceder».
II.2.1 Estabelece o art.º 61.º do CPT, o seguinte:
1 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador nos termos e para os efeitos dos n.ºs 2 a 7 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 27.º do presente Código.
2 - Se o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa.
Este regime corresponde, em termos próximos, ao estabelecido no processo civil, dispondo o art.º 595.º, do CPC, no que aqui releva o seguinte:
-«1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
[..]».
Esta norma do CPC tinha como antecedente o art.º 510.º. Estabelecia esse artigo que, findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere despacho saneador [n.º1] destinado a conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes ou que deva apreciar oficiosamente [al. a)], bem como a “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidas deduzidos ou de alguma excepção peremptória” [al. b)].
A estatuição da norma abrange os casos em que a questão seja unicamente de direito, ou simultaneamente de direito e de facto, ou só de facto. Como elucida o Professor Anselmo de Castro, verificada a condição expressa na norma, ou seja, “(..) a de não haver necessidade de prova ou de mais provas, e uma vez que a causa possa terminar por decisão de fundo, não poderá o juiz abster-se de conhecer do pedido” [Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, pp. 254].
Não permitindo o estado do processo o conhecimento imediato do mérito da causa, deve o juiz proceder à fixação da base instrutória [art.º 511.º], seleccionando “(..) a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida”[n.º1].
Parafraseando o Ac. do STJ de 09-02-2010, [Proc.º 1176/03.0TCSNT.L1.S1, Conselheiro Alves Velho, disponível em www.dgsi.pt/jstj], o que está verdadeiramente em causa é “[..] saber se era possível proferir decisão sobre o mérito da causa no despacho saneador, correspondendo a matéria de facto seleccionada para essa decisão ao critério legal, critério que há-de ser, segundo se crê, o vertido no art. 511º-1 CPC, ou seja, a consideração, na fundamentação de facto da decisão, da matéria de facto relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”.
Recorrendo de novo à lição do Professor Anselmo de Castro, se a questão é de “direito e de facto, ou só de facto, não poderá o processo também deixar de conter sempre todos os elementos para um decisão conscienciosa; isto é, nunca é possível, em rigor, que subsista qualquer margem de indeterminação a resolver pelo recurso a critérios de oportunidade. Do que se trata é de saber como deve aplicar-se o direito, ou se todos os factos que interessam à sua aplicação estão ou não admitidos por acordo ou já provados – questões em que não pode entrar qualquer margem de discricionariedade, e cuja resolução, estritamente jurídica, como é óbvio, não oferece maior dificuldade neste momento do processo que no final da causa” [Op. Cit., pp. 255].
Retomando o art.º 61.º do CPT, como decorre com clareza da norma do n.º2, para que o juiz possa “julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa” - sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 e 4, do art.º 3.º CPC, ou seja, de observar e fazer cumprir o princípio do contraditório - é necessário que se verifiquem cumulativamente dois pressupostos: i) o processo deve conter os elementos necessários para habilitar o conhecimento e decisão da questão; ii) a causa deve revestir-se de simplicidade que permita esse conhecimento nessa fase.
Não se verificando esses pressupostos, qualquer uma daquelas questões só pode ser apreciada e decidida na sentença, após a produção de prova em audiência de julgamento.
O tribunal a quo entendeu conhecer da defesa por excepção suscitada pela Ré, na consideração de não terem sido alegados pela R “factos bastantes para configurar a referida excepção de “supressio”, na medida em que o A vem reclamar direitos e nenhum facto é invocado pela R de onde se possa concluir que tenha criado na R a convicção de que não iria exigir dela os direitos que agora reclama”.
Não podemos acolher este entendimento.
Na verdade, atentando com o devido cuidado nas posições assumidas pelas partes, salta à vista que há matéria de facto controvertida quanto a esta questão. Basta confrontar os fundamentos da Ré com a resposta do autor à defesa por excepção para logo se perceber que assim acontece.
Melhor explicando, a Ré alega um conjunto vasto de factos, através dos quais pretende demonstrar que o autor acordou e aceitou, livre e conscientemente, celebrar consigo os contratos de agência que vigoraram entre ambos, entre os dias 01 de Janeiro de 2003 e 31 de Outubro de 2008, tendo manifestado livremente esse interesse.
Na versão da Ré, essa posição interessada e esclarecida do A. na celebração desses contratos de agência assenta no facto de assim ter obtido retribuições mensais mais elevadas do que auferiria como trabalhador subordinado, acrescendo que beneficiava ainda do uso de veículo para o exercício da actividade. Mais defende a Ré, que foi por essa razão que o A. , entre 01 de Janeiro de 2003 e 31 de Outubro de 2008, nunca reclamou ser trabalhador vinculado por contrato de trabalho, nem quaisquer créditos com esse fundamento.
No essencial, é nessa base que defende que a propositura da presente ação por parte do Autor representa uma conduta contraditória e trai as expectativas legítimas geradas pelo mesmo na Ré ao longo de quase 20 (vinte) anos, por isso actuando em abuso de direito.
Em contraponto, o Autor vem dizer que a Ré quer fazer crer que celebrou aqueles contratos, por sua iniciativa e livremente, o que não é verdade, dado que todos os acordos escritos celebrados entre as partes, foram subscritos por si sem que fossem precedidos de qualquer processo negocial e foram impostos pela R. de forma reiterada, sistemática e sucessiva, pois no caso de não aceitar era de imediato advertido pela R. para a necessidade de se conformar com os mesmos, sob pena de não continuar ao seu serviço. Advertência expressa, feita ao A, e demais colegas de trabalho nas mesmas circunstâncias. Concretiza, que tal ameaça abrangia não só os alegados “contratos de agência” que se foram sucedendo no tempo, como o mencionado “acordo de suspensão do contrato de agência” e ainda o contrato de trabalho por tempo indeterminado.
Conclui que nunca manifestou livremente a vontade de celebrar os referidos contratos, sendo-lhe imposto os termos e o conteúdo dos mesmos, sendo sempre compelido a assiná-los sob pena de ser “dispensado” pela R.
Em linha com essa posição, impugna um leque de factos alegados pela Ré - art.º 100.º a 116.º da contestação – e no que concerne ao alegado aos artigos 119.º a 132..º, aceita apenas os montantes indicados a título de comissões por ele recebidas, dizendo desconhecer, sem ter obrigação de conhecer, o demais ali referido, que impugna.
Parafraseando o Acórdão desta Relação de 22-05-2019, relatado pelo aqui 1.º adjunto [Proc.º 3610/18.6T8MTS.P1, disponível em www.dgsi.pt] “não se deve passar desde logo ao conhecimento do mérito, com base no citado normativo, se esse conhecimento apenas tiver na base alguns dos elementos alegados, com omissão porém da discussão da causa de factos, também alegados, nessa fase ainda controvertidos, indispensáveis para a apreciação do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito”. Essa posição consta sintetizada no respectivo sumário, nos termos seguintes:
I - O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
II - Face ao referido em I, apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertido com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa.
Sobre a relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito, como elucida Paulo Ramos de Faria [JULGAR Online, outubro de 2019, p.3] “Na sua concretização doutrinal mais exigente, as várias soluções plausíveis da questão de direito são “todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objeto da ação” 5. O substantivo “soluções” não significa aqui “resultados”, mas sim resoluções, isto é, diferentes meios para chegar a um possível resultado. Ensaiando-se uma maior densificação do conceito, as soluções plausíveis são também descritas como sendo as “vias de solução possível do litígio, tidas em conta as posições assumidas pelas partes quanto à fundamentação jurídica das pretensões e exceções, e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão que elas levantem”.
No caso, sempre com o devido respeito, o Tribunal a quo ajuizou mal ao enveredar pela decisão desta questão na fase de saneamento, visto resultar do confronto da posição das partes que há factos controvertidos relevantes para essa apreciação de mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
Vale isto por dizer, que o processo não continha os elementos necessários para habilitar o conhecimento e decisão da questão, falhando assim esse pressuposto exigido pelo n.º2, do art.º 61.º do CPT.
Mas não só, pois como alega a Ré, tão pouco a causa pode ser qualificada de manifesta simplicidade, para permitir esse conhecimento na fase de saneamento. Desde logo, por existir matéria controvertida relevante para a apreciação da questão decidida, mas também em razão do autor ter deduzido um conjunto de pretensões - qualificação do contrato de agência como contrato de trabalho, o pagamento de vários créditos laborais, o reconhecimento da licitude da resolução do seu contrato de trabalho, com as legais consequências, incluindo uma indemnização por danos não patrimoniais – ao longo da PI constituída por 265 artigos, tendo a ré exercido a sua defesa, rebatendo os fundamentos invocados ali invocados numa extensa contestação 1242 artigos, alegando a excepção de abuso de direito, defendendo-se por impugnação e deduzindo pedido reconvencional.
Concluindo, o recurso merece acolhimento, cumprindo revogar a decisão recorrida e determinar que a apreciação da questão seja relegada para a sentença, após produção de prova.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida e determinando-se que a apreciação da questão do alegado abuso de direito do autor seja relegada para a sentença, após produção de prova.

Custas do recurso, nos termos e proporção que vierem a ser fixados na sentença final, considerando que o autor não contra-alegou (art.º 527.º CPC).

Porto, 15 de Dezembro de 2021
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira