Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
559/20.6T8AMT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
PESSOAS AFECTADAS
Nº do Documento: RP20211122559/20.6T8AMT-C.P1
Data do Acordão: 11/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Em face da notória incapacidade de a devedora solver as suas obrigações, acumulando dívidas, designadamente à Segurança Social, já que, de forma continuada e consecutiva, durante mais de três anos, deixou de entregar as quotizações e contribuições relativas aos trabalhadores que tinha ao seu serviço, aos quais, também, deixou de pagar salários, era dever da sócia e gerente de direito da devedora, bem como do seu gerente de facto, requerer a declaração de insolvência.
II - Tendo incumprido esse dever, fizeram com que se agravasse a situação de insolvência da devedora (com óbvio prejuízo para os seus credores) e esse incumprimento tem relevante conexão substancial com uma actuação gravemente culposa dos seus gerentes, de direito e de facto, que assim não podiam deixar de ser (ambos) afectados pela qualificação culposa da insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 559/20.6T8AMT-C.P1
(Incidente de qualificação da insolvência)
Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante (J1)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
Por sentença proferida em 06.07.2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “B…, L.da”, na sequência de pedido a tanto dirigido, em 21.04.2020, ao Juízo de Comércio de Amarante (J1), Comarca do Porto Este, por C….
Na sentença que a decretou, não foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
No entanto, na sequência do relatório do Administrador da Insolvência (AI), a credora e requerente da insolvência C… apresentou requerimento em que alega factos que, em seu entender, preenchem as previsões das alíneas a), b), d), e), f) g) h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), pelo que há fundamento para qualificar a insolvência como culposa, devendo ser afetados por tal qualificação, não só a gerente de direito da insolvente, D…, mas também o seu gerente de facto E…, nos termos prevenidos no artigo 189.º, n.º 2, al. a), do mesmo Código.
Por despacho de 20.11.2020, foi declarado aberto o incidente pleno de qualificação da insolvência.
Efectuadas a publicação e notificações previstas nos n.os 2 e 3 do artigo 188.º do CIRE, veio o AI, em 10.12.2020, apresentar o seu parecer em que formula as seguintes conclusões:
«Face ao que antecede, verifica-se que a presente insolvência é anterior à data em foi requerida pelo credor, conforme certidão de dívidas consta da certidão de dívidas da segurança social, onde é possível verificar que se encontram por pagar contribuições desde 2017.
Desta forma, entende o signatário, enquanto Administrador Judicial, e no exercício das competentes funções foi confrontado com um factor que, salvo melhor entendimento, pode configurar o conceito de «insolvência culposa»: i. Violação do dever de apresentação da sociedade à insolvência.
Face ao supra exposto, salvo melhor apreciação, o signatário é de parecer que se encontram violadas as normas vertentes na alínea a) do n.º 3 do art. 186º do CIRE, no entanto, não é possível apurar de que forma o mero incumprimento do dever de apresentação à insolvência no prazo a que alude o C.I.R.E. criou prejuízos ou agravou a situação em que a insolvente já se encontrava, pelo que na opinião do administrador judicial, a insolvência deve ser considerada fortuita».
Na vista a que alude o n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, o Ministério Público, em dissonância com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência[1], pronunciou-se no sentido de se julgar a insolvência como «culposa e com culpa grave por violação do disposto nas als e) e g), do nº 2, e al a), do nº 3, do artigo 186º do CIRE», devendo ser afectados por essa qualificação D… e E… «na qualidade de gerentes de facto da insolvente, sendo a D… também sócia e gerente de direito, e, por isso, autores de todas as decisões relacionadas com a atividade desenvolvida por esta sociedade, com os demais efeitos legais, designadamente, os previstos no artigo 189º, nº 2, als a) a c) e e), do mesmo diploma legal.», para tanto alinhando os seguintes factos:
1 - A insolvente B…, L.da foi constituída em 23/09/2016, sendo sócias a D… e F… e nomeada gerente a D…;
2 - Em 29/10/19 a F… cedeu a sua quota à sociedade B…, L.da.
3 - A B…, L.da deve à Autoridade Tributária e Aduaneira 38.844,11 e, sendo 36.684,58 € de capital, 395,41 € de juros e 1.764,12 € de custas devidas nos PEFs contra si pendentes.
4 - Dívida que se iniciou em 26/04/2019 com o montante de 2.000,00 € de IVA de capital referente ao mês de Fevereiro do mesmo ano e, a partir de então, foi sucessivamente aumentando, até atingir os 36.684,58 € de capital, sendo 2.000,00 € de IVA do mês de Março de 2019, vencidos em 23/05/19, 2.000,00 € de IVA do mês de Maio de 2019, vencidos em 24/07/19, 1.500,00 € de IVA do mês de Junho de 2019, vencidos em 27/08/19, 3.259,92 € de IVA do mês de Setembro de 2019, vencidos em 27/11/19, 1.968,19 € de IVA do mês de Outubro de 2019, vencidos em 24/12/19, 2.659,43 € de IVA do mês de Novembro de 2019, vencidos em 22/01/20, 6.527,78 € de IVA do mês de Dezembro de 2019, vencidos em 24/02/20, 2.553,01 € de IVA do mês de Fevereiro de 2020, vencidos em 30/04/20, 5.165,45 € de IVA do mês de Março de 2020, vencidos em 05/06/20, 27,06 € de IRC do ano de 2018, vencido em 02/09/19, 27,06 € de IRS/DMR de Janeiro de 220, vencidos em 20/02/20, 1.029,81 € de Coimas e custos administrativos do mês de Julho de 2019, vencidos em 02/09/19 e 23/09/19, 1.879,50 € de Coimas e custos administrativos do mês de Agosto de 2019, vencidos em 30/09/19, 18/10/19 e 04/11/19, 566,15 € de Coimas e custos administrativos do mês de Outubro de 2019, vencidos em 13/01/20, 1.103,37 € de Coimas e custos administrativos do mês de Novembro de 2019, vencidos em 27/02/20 e 696,47 € de Coimas e custos administrativos do mês de Dezembro de 2019, vencidos em 16/03/20.
5 - A insolvente B…, L.da deve também ao Instituto da Segurança Social IP 102.571,75 € de quotizações sem falta, sendo 93.827,37 € de capital e 8.744,38 € de juros, reportando-se o primeiro débito a Janeiro de 2017, no valor de 1.578,74 €, dívida que foi sucessiva e mensalmente aumentando durante os meses de Fevereiro a Dezembro de 2017, Janeiro a Dezembro de 2018, Janeiro a Dezembro de 2019 e Janeiro a Março de 2020.
6 - A falta de capacidade financeira da B…, L.da para cumprir as suas obrigações para com os credores, sobretudo para com o Instituto da Segurança Social IP e a Autoridade Tributária e Aduaneira, reporta-se a, pelo menos, finais de 2017, em que a dívida ao Instituto da Segurança Social IP ascendia a 27.863,90 € de capital, montante correspondente a quotizações devidas ao longo dos doze meses desse ano.
7 - Pelo que, verificando-se a situação de insolvência efetiva da B…, L.da, em final do ano de 2017, deveria ter-se apresentado à insolvência em princípios de 2018, e, não o fazendo, aumentou a sua dívida em 65.963,47 € de capital para com o Instituto da Segurança Social IP e aumentou ainda o seu passivo em mais 36.684,58 € de capital por dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira.
8 - Factualidade enquadrável, como refere o Senhor/a Administrador/a de Insolvência na previsão do nº 3, al a), do artigo 186º, do CIRE.
9 - Mas, que também preenche a previsão das als e) e g), do nº 2, do citado artigo, na medida em que os gerentes de facto e de direito da B…, Lda mantiveram esta empresa em atividade por mais de três anos, acumulando ao longo do tempo sucessivos e avultados débitos, com o consequente prejuízo para os credores, cientes que a insolvência viria a ser declarada como veio a suceder no dia 06/07/2020, visando apenas o interesse deles próprios diretamente e através da sociedade G…, Unipessoal, Lda, empresa de que é também sócia e gerente de direito a D…, para quem a insolvente trabalhava em exclusividade.
9 - Embora a gerente de direito nomeada destas duas sociedades seja a D…, como refere a credora requerente, que trabalhou para a insolvente, quem tomou todas as decisões relacionadas com o exercício da atividade de ambas as empresas foram a indicada D… e o E…, pessoas que, em conjunto e de comum acordo contrataram pessoas para trabalhar na insolvente sob as suas ordens e orientações, negociaram com fornecedores e clientes os produtos a adquirir e o produto final a vender e respetivos preços, estabeleceram as diretrizes e metas da empresa, movimentaram as contas bancárias, geriram as receitas recebidas, e deram toas as demais ordens e praticaram todos os demais atos que eram necessários à organização e ao funcionamento e laboração da insolvente.
Notificada a devedora e citados os referidos D… e E…, vieram estes apresentar, em conjunto, oposição, com os seguintes fundamentos (síntese):
- a dívida à Administração Tributária estava a ser paga em prestações e estava a ser negociado um plano de pagamento prestacional da dívida à Segurança Social;
- as dívidas de salários às trabalhadoras eram de montantes inferiores aos indicados (que já incluem valores de indemnizações por rescisão dos contratos de trabalho);
- não havia dívidas a fornecedores ou instituições de crédito;
- é falso que a B1… não tivesse escrita organizada nem tenha apresentado as suas contas relativas ao ano de 2018;
- é, ainda, falso que a B1… tenha feito desaparecer ou ocultado património.

Rematam pedindo a sua absolvição.
A credora C…, respondeu à oposição, reafirmando o que havia alegado quando suscitou o incidente
Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador tabelar, fixou-se o valor da causa (em € 30.000,00), identificou-se o objecto do litígio, ao abrigo do disposto nos artigos 591.º, n.º 1 alínea e), e 6.º do Código de Processo Civil foram logo elencados os factos que podiam considerar-se assentes, enunciaram-se os temas de prova e admitiu-se a prova oferecida, tudo sem quaisquer reclamações.
Realizou-se audiência final (com três sessões), após o que, em 21 de Julho de 2021, foi proferida sentença[2] que terminou com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e fundamentos expostos, decide o Tribunal qualificar culposa a insolvência da devedora, “B…, Lda.”, e, em consequência:
a) Declarar afetados pela qualificação culposa da insolvência, os requeridos, com culpa grave, o gerente de facto da Insolvente, E…, e com culpa diminuta, a gerente de direito da Insolvente, D…;
b) Decretar a inibição do requerido E… para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, atenta a gravidade do seu comportamento e da sua contribuição para o agravamento da situação de insolvência da Requerida;
c) Decretar a inibição do requerido E… para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses.
d) Decretar a inibição da requerida D… para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 (dois) anos, atenta a diminuta gravidade do seu comportamento e da sua contribuição para o agravamento da situação de insolvência da Requerida;
e) Decretar a inibição da requerida D… para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 2 (dois) anos.
f) Condenar os Requeridos a indemnizar os credores da Devedora Insolvente reconhecidos no apenso de reclamação de créditos, no montante dos créditos não satisfeitos e até às forças do respetivo património, fixando-se o valor dessa indemnização, no montante de €50.000 (cinquenta mil euros), para o requerido E…, e no montante de €1.000 (mil euros), para a requerida D…, a ser paga a cada credor na proporção do respetivo crédito reconhecido e não satisfeito, por referência ao montante global dos créditos reconhecidos.
*
Custas a cargo da massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 304.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.»
Inconformados com a sentença, os afectados D… e E… dela vieram, em conjunto, interpor recurso de apelação por requerimento de 17.08.2021, acompanhado da respectiva alegação, que sintetizaram nas seguintes conclusões:
....................................
....................................
....................................
O digno Magistrado do Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se pela total improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Sob o título «II – Da Impugnação da Matéria de Facto», os recorrentes alegam o que está condensado nas conclusões 1.ª a 22.ª, mas destas não resulta, expressa ou, sequer, implicitamente, quais os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados.
A primeira questão a apreciar e decidir consiste, pois, em saber se o tribunal a quo fez errada apreciação da prova e, em consequência, julgou mal a matéria de facto, mas, previamente, haverá que apreciar se os recorrentes cumpriram os ónus de especificação previstos no artigo 640.º do CPC e, concluindo-se pela negativa, qual a consequência.
Depois, haverá que decidir se, quer em função de uma eventual alteração da factualidade relevante, quer em face dos factos considerados provados se impõe reverter a qualificação, como culposa, da insolvência declarada e se deve afectar ambos os recorrentes.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, importa conhecer os factos provados considerados relevantes para a decisão.
Resultantes de documentos com força probatória plena e de documentos não impugnados:
A) A Requerida “B…, L.da” foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais, em 06.07.2020, por ação apresentada a juízo em 21.04.2020.
B) A Requerida foi constituída em 23.09.2016, com o objeto social de Fabrico e comércio de urnas funerárias, portas e caixilharias, painéis de cofragem, alinhamento e transformação de madeiras; com sede social na Rua …, ….-… …, …, concelho de Amarante; com o capital social de 5.000,00 euros, dividido em suas quotas, uma de valor nominal de 4.500 euros, pertencente à sócia D…, e outra de valor nominal de 500 euros, pertencente à sócia F…, que a transmitiu à própria sociedade em 29.10.2019, tendo sido nomeada gerente a sócia D…, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um gerente.
C) No apenso A de reclamação de créditos, foram reclamados e reconhecidos créditos pelo Sr. Administrador de Insolvência no valor global de 165.327,86 euros.
D) Foi reconhecido um crédito à Autoridade Tributária, no montante global de 38.844,11 euros, referente aos seguintes tributos: IVA vencido em 26.04.2019, no montante de 2.083,94 euros, vencido em 23.05.2019, no montante de 2.077,33 euros, vencido em 23.07.2019, no montante de 2.060,93 euros, vencido em 27.08.2019, no montante de 1.538,95 euros; vencido em 23.10.2019, no montante de 1.583,08 euros, vencido em 27.11.2019, no montante de 3.304,92 euros, vencido em 24.12.2019, no montante de 1.988,07 euros, vencido em 22.01.2020, no montante de 2.676,52 euros, vencido em 24.02.2020, no montante de 6.541,48 euros; vencido em 30.04.2020, no montante de 2.553,01 euros, vencido em 05.06.2020, no montante de 5.165,45 euros; IRC vencido em 02.09.2019, no montante de 27,74 euros; IRS vencido em 20.02.2020, no montante de 194,51 euros; custas e coimas.
E) Foi reconhecido um crédito ao Instituto de Segurança Social, no montante global de 102.571,75 euros, referente a contribuições vencidas nos meses de janeiro a dezembro de 2017, janeiro a dezembro de 2018, e janeiro a dezembro de 2019.
F) Foi reconhecido um crédito à credora H…, por salários e subsídios de alimentação vencidos nos meses de fevereiro, março e abril de 2020, nos montantes de 1.905,00 euros e 213 euros.
G) Foi reconhecido um crédito à credora C…, por salários e subsídios de alimentação vencidos nos meses de fevereiro e março de 2020, nos montantes de 1.270,00 euros e 147 euros.
H) Foi reconhecido um crédito à credora I…, por salários e subsídios de alimentação vencidos nos meses de fevereiro e março de 2020, nos montantes de 1.270,00 euros e 147 euros.
I) Em Assembleia Geral de Credores realizada em 04.11.2020 foi rejeitado pelos credores presentes o Plano de Insolvência apresentado pela Devedora.
J) O processo de Insolvência foi encerrado, por despacho proferido em 18.03.2021, por insuficiência da massa, não tendo sido apreendidos quaisquer bens.
K) A Requerida “B…, L.da” depositou as suas contas na Conservatória de Registo Comercial referentes aos exercícios de 2016, 2017, 2018 e 2019.
L) Da declaração de IES da Requerida referente ao exercício de 2016 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados, 17.841,60 euros, custo de mercadorias vendidas e das matérias consumidas, sem valor, fornecimento de serviços externos, 6.474,93 euros, gastos com o pessoal, 23.166,54 euros, resultado liquido do período, -11.799,87 euros, ativos fixos tangíveis, sem valor, clientes, 13.812,90 euros, caixa e depósitos bancários, 647,09 euros, fornecedores, 829,80 euros, Estado e outros entes públicos, 9.791,83 euros, total do capital próprio, -6.799,87 euros, total do passivo 21 743,88 euros.
M) Da declaração de IES da Requerida referente ao exercício de 2017 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados, 212.173,85 euros, variação nos inventários da produção, 21.270,00 euros, custo de mercadorias vendidas e das matérias consumidas, 80.545,32 euros, fornecimento de serviços externos, 34.444,15 euros, gastos com o pessoal, 117.366,49 euros, resultado liquido do período, 954,55 euros, ativos fixos tangíveis, sem valor, clientes, 1.504,54 euros, caixa e depósitos bancários, o montante de 13.519,03 euros, fornecedores, 37.197,73 euros, Estado e outros entes públicos, o montante de 37.119,94 euros, total do capital próprio, o montante de -5.845,32 euros, outras contas a pagar, 12.632,22 euros, total do passivo 89.249,89 euros.
N) Da declaração de IES da Requerida referente ao exercício de 2018 constam os seguintes saldos: vendas e serviços prestados, 229.069,75 euros, variação nos inventários da produção, -4.415,00 euros, custo de mercadorias vendidas e das matérias consumidas, 153.564,03 euros, fornecimento de serviços externos, 25.016,22 euros, gastos com o pessoal, 109.315,14 euros, resultado liquido do período, -63.846,89 euros, ativos fixos tangíveis, sem valor, inventários, 35.401,33 euros, clientes, 14.460,00 euros, caixa e depósitos bancários, 809,39 euros, fornecedores, 27.475,36 euros, Estado e outros entes públicos, 64.166,81 euros, total do capital próprio, o montante de -69.692,21 euros, outros passivos correntes, 27.711,22 euros, total do passivo 121.893,39 euros.
O) A sociedade “G… – Unipessoal, L.da” foi constituída em 01.06.2012, com o objeto social de Fabrico e comercialização por grosso e a retalho de materiais funerários; com sede social na Rua …, n.º .., ….-… …, concelho de Felgueiras; com o capital social de 5.000,00 euros, aumentado para 25.000 euros em 08.06.2016, pertencente inicialmente à sócia D…, que a transmitiu à sócia I…; tendo sido inicialmente nomeada gerente a sócia D…, que renunciou em 05.04.2016, tendo sido nomeada gerente a sócia I…, e obrigando-se a sociedade com a assinatura de um gerente.
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Factos resultantes da audiência de julgamento:
1. A Requerida D… procedeu à abertura de contas bancárias em representação da Insolvente, no Banco J…, na K… e no L…, assinado as respetivas fichas de abertura e sendo tais contas movimentadas com a sua assinatura.
2. A Requerida D… assinava os cheques sacados sobre as contas bancárias tituladas pela Insolvente.
3. A Requerida D… entregava os cheques por si assinados ao Requerido E…, que os utilizava como entendia.
4. A Requerida D… recebeu os cartões para movimentar a conta a crédito e débito provenientes das contas bancárias tituladas pela Insolvente, que entregou ao requerido E… para que os pudesse utilizar, como bem entendesse.
5. Sempre que era necessário movimentar em homebanking as contas tituladas pela Insolvente, a Requerida D… recebia no seu telemóvel os códigos necessários à realização de movimentos que fornecia ao Requerido E… ou à funcionária da empresa que trabalha no escritório.
6. Era o requerido E… quem dava ordens aos empregados da Requerida, sendo por todos reconhecido como o “patrão”.
7. Foi o Requerido E… quem entrevistou e contratou as trabalhadoras H… e I… para o serviço da Insolvente.
8. A Requerida D… era vista pelos trabalhadores da Insolvente como uma colega e uma trabalhadora com posição igual à dos demais trabalhadores.
9. A Requerida D… não dava ordens aos trabalhadores da Insolvente.
10. A requerida D… exercia a sua atividade como pintora de urnas.
11. Antes da constituição da sociedade “B…, L.da”, a Requerida D… e outros trabalhadores da insolvente tinham sido trabalhadores da sociedade “M…, L.da”, sendo ali seu patrão, o Requerido E….
12. Os salários dos trabalhadores da Insolvente eram pagos por transferência bancária e, ultimamente, por cheques de conta titulada pela sociedade “G… - Unipessoal, L.da”.
13. Quem contratou os serviços do Técnico de Contas Certificado da “B…, L.da” foi o Requerido E….
14. Era o requerido E… quem contactava com o Técnico de Contas Certificado da Insolvente para tratar dos assuntos referentes à contabilidade da Insolvente.
15. Quando a sociedade “M…, L.da” foi declarada insolvente, os trabalhadores desta sociedade (entre eles a requerida D…) acordaram com o Requerido E… passarem a trabalhar ao serviço da sociedade “B…, L.da”, que seria constituída para esse efeito, com o mesmo objeto social da primeira “M…”.
16. No ano de 2019, a requerida “B…, L.da” emitiu todas as suas faturas (onze) em nome da sociedade “G…, Unipessoal, Lda.”, com o NIPC ……….
17. No ano de 2018, a requerida “B…, L.da” emitiu as suas faturas (cinquenta e oito) em nome da sociedade “G…, Unipessoal, Lda.”, com o NIPC ………, e a outros clientes com os seguintes NIPC: ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ……….
18. No ano de 2017, a requerida “B…, L.da” emitiu as suas faturas (oitenta e três) em nome da sociedade “G…, Unipessoal, Lda.”, com o NIPC ………, e a outros clientes com os seguintes NIPC: ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………, ……….
19. Os Requeridos não entregaram ao Sr. Administrador de Insolvência, até à emissão do seu parecer de Qualificação, as Declarações de IES dos exercícios de 2016, 2017 e 2018, nem o Balancete acumulado a 31.12.2019.
20. Só por intervenção do Tribunal, já no decurso do incidente de qualificação, as declarações de IES da Devedora, referentes aos exercícios de 2016, 2017 e 2018 e a relação das faturas emitidas pela Insolvente aos seus clientes, foram juntas ao processo.
21. Só após notificação do Tribunal à testemunha N…, Técnico de Contas Certificado da Insolvente, aquando do seu depoimento, foram juntos ao processo os Balancetes acumulados referentes a 31.12.2018 e 31.12.2019.
22. No exercício de 2020 (até março) a Insolvente teve despesas com fornecedores nomeadamente, a “O…, L.da o montante de 1.550,00 euros, P…, S.A.”, o montante de 404,48 euros, Q…, o montante de 9.759,56 euros, “S…, S.A.”, o montante de 64,58 euros.
23. No exercício de 2019, a Insolvente teve despesas com fornecedores nomeadamente, “O…, Lda, o montante de 1.550,00 euros, “T…”, o montante de 738 euros, “P…, S.A.”, o montante de 494,77 euros, G…, Unipessoal, o montante de 7.173 euros, Q…, o montante de 20.237,29 euros, “U…”, o montante de 1.175,27 euros, “V…”, o montante de 6.501,11 euros, “W…, Lda.”, o montante de 1.078,78 euros, “X…”, o montante de 695,06 euros, “Y…, 428,42 euros, “Z…”, o montante de 36,90 euros, “AB…”, o montante de 126,51 euros.
24. No Balancete mensal e acumulado a 31.12.2019, a Insolvente apresentou os seguintes valores: matérias primas, 18.546,33 euros, produtos acabados em armazém, 16.855 euros, resultados transitados 74.692,21 euros, custo das mercadorias vendidas, 18.546,33 euros, fornecimentos e serviços externos 17.884,57 euros, energia e fluidos 16.200 euros, eletricidade 16.200 euros, gastos com o pessoal, 150.477,95 euros, prestação de serviços 148.650 euros, variações nos inventários, 16.855 euros, resultado liquido do exercício 119.551,37 euros.
25. Em fevereiro de 2020, por ordem do Juízo de Trabalho de Penafiel foram arrestadas todas as máquinas existentes nas instalações da Insolvente.
26. Com a remoção das máquinas da Insolvente, os seus trabalhadores ficaram impedidos de laborar.
27. Nos últimos três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência, a Requerida “B…, L.da” não foi proprietária de qualquer veículo automóvel.
*
Factos não provados:
a) A quem pertenciam as máquinas existentes nas instalações da “B…, L.da” e outros equipamentos com que laborava na sua atividade e, nomeadamente, se pertenciam à Insolvente ou antes à sociedade “G…, Unipessoal, L.da”.
b) A quem pertenciam os veículos utilizados pela Insolvente na sua atividade.
c) A Insolvente laborava em instalações pertencentes à “G…, Unipessoal, L.da”.
d) A “G…, Unipessoal, L.da” era a única cliente da Insolvente que lhe cedia apenas a sua mão de obra.
e) A “B…, L.da.” era uma sociedade prestadora de serviços, que vendia apenas a sua mão-de-obra – minutos de trabalho – a terceiros.
f) Que após o arresto verificado em fevereiro de 2020, a “B…, L.da” se tenha tornado proprietária de novas máquinas que utilizava na sua laboração.
g) Passados dois meses sobre o arresto feito nas suas instalações, a “B…, L.da” voltou à laboração normal o que lhe permitiria solver as suas dívidas para com a Segurança Social e Administração Tributária.
*
O recorrente que pretenda impugnar, com sucesso, a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de cumprir (“sob pena de rejeição”)[3] vários ónus de especificação, previstos no artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
O ónus fundamental[4] consiste na especificação dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[5].
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.
O reexame da matéria de facto é, necessariamente, segmentado, tem em vista a correcção de pontuais erros de julgamento.
Estes ónus de especificação que a lei processual civil (em especial o citado artigo 640.º, n.º 1, do CPC) põe a cargo do recorrente decorrem dos princípios, considerados estruturantes do processo civil, da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais.
Actualmente, pode dizer-se que está consolidado o entendimento de que a falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pela importante função delimitadora do objecto do recurso que essa especificação desempenha, justifica a rejeição do recurso que impugna a decisão sobre matéria de facto[6].
Como é patente face ao teor das conclusões que se reproduziram, os recorrentes não cumpriram o ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto de recurso quanto à impugnação da matéria de facto, mais exactamente, não dizem quais os concretos pontos de facto que consideram erradamente julgados. Omissão que se constata, não só nas conclusões, mas também no “corpo” da motivação do recurso.
Aliás, a mesma omissão se verifica quanto ao ónus de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, embora reproduzam passagens de depoimentos testemunhais, os recorrentes não relacionam o conteúdo específico desse meio de prova com qualquer facto individualizado que considerem incorrectamente julgado.
Os recorrentes defendem, ainda, que, «subsidiariamente, se proceda à ampliação da matéria de facto para prova dos factos em que os recorrentes fundam a não culpa» (conclusão 26.ª).
Como é intuitivo, a ampliação da matéria de facto, prevista na parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, tem directa relação com a insuficiência ou lacuna factual, de que pode padecer a sentença, para a decisão da causa.
Ao enunciar os temas de prova, o juiz não pode prefigurar uma solução ou enquadramento jurídico do caso, antes deve seleccionar os factos considerados essenciais que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis.
No entanto, para se impor a ampliação, «não basta que os factos tenham conexão com alguma das “soluções plausíveis da questão de direito”», devendo a Relação “ponderar o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender”[7].
Para o mesmo efeito, não pode confundir-se insuficiência de factos com insuficiência ou falta de prova para se dar como provados esses factos.
Se o tribunal deu como não provados determinados factos que, na perspectiva do recorrente, eram essenciais para determinado enquadramento jurídico, o que tem a fazer é impugnar, nessa parte, a decisão de facto com fundamento em erro de julgamento.
Por último, a ampliação da matéria de facto há-de ter por objecto factos essenciais alegados pelas partes (neste caso, pelos oponentes/recorrentes).
Segundo os recorrentes, os pedidos de pagamento em prestações das dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária, bem como o plano de insolvência apresentado no processo, seriam factos idóneos e suficientes para ilidir a presunção de culpa grave e afastar a qualificação como culposa da insolvência (conclusão 25.ª) e deduz-se que essa seria a matéria de facto objecto da pretendida ampliação.
O plano de insolvência foi rejeitado pelos credores e não é difícil perceber porquê: não passava de uma declaração de intenções da insolvente de pagamento das dívidas, sem explicar com que meios.
Os recorrentes alegaram que a insolvente, depois de dois meses de paralisação da actividade provocada pelo arresto de máquinas nas suas instalações, tornou-se proprietária de novas máquinas, voltando à laboração, o que lhe permitiria solver as suas dívidas à Segurança Social (a quem nunca pagou) e à Administração Tributária, mas esses factos foram considerados não provados.
De resto, não se vislumbra como é que um simples pedido dirigido àquelas entidades para autorizar o pagamento em prestações de avultadas dívidas (tendo em conta a dimensão da insolvente) possa ser determinante para inverter a decisão de qualificar a insolvência como culposa. Além de não ter sido alegado na oposição deduzida (e por isso não consta, quer dos factos provados, quer do elenco dos não provados), nem sequer se pode dizer que esse facto tem conexão com uma das soluções plausíveis da questão de direito.
Concluindo, impõe-se a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão em matéria de facto e não há fundamento para a pretendida ampliação.

2. Fundamentos de direito
A sentença recorrida contém uma exaustiva e cuidada fundamentação jurídica da decisão proferida, pelo que podemos focar-nos, exclusivamente, nas questões suscitadas pelos recorrentes que, como se aludiu, defendem que ilidiram a presunção de culpa grave, porquanto «o pedido de pagamento em prestações e o plano de insolvência apresentado visavam a continuidade da empresa no pressuposto que a mesma seria viável e libertaria meios financeiros suficientes para pagar as suas dívidas» e «a desejada continuidade da devedora posicionava-a ao abrigo da al. b) do nº 3 do artigo 3º do CIRE, desobrigando-a de se apresentar à insolvência no prazo previsto no nº 1 do artigo 18º.» (conclusões 23.ª, 24.ª e 25.ª).
Além disso, sustentam que a recorrente D… deve ser ilibada porque «sempre esteve afastada destas atividades e era desconhecedora da situação económico-financeira» (conclusão 22.ª).
Começando pela questão da qualificação da insolvência, diremos que na densificação do conceito, relativamente indeterminado, de insolvência culposa, o legislador recorreu à técnica[8] que consiste em fixar uma noção geral seguida de um elenco de situações ou exemplos-padrão que, uma vez verificada(o)s, fazem presumir (ilidível ou inilidivelmente) a insolvência com carácter culposo.
Assim, de acordo com a noção geral ínsita no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, a verificação da insolvência culposa requer:
- uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e
- que essa actuação tenha criado ou agravado a situação de insolvência (nexo de causalidade).
No entanto, basta que ocorra alguma das situações enumeradas no n.º 2 daquele artigo para que se presuma, inilidivelmente, a insolvência com carácter culposo.
A única forma de evitar essa qualificação é, pois, procurar que não se demonstre a ocorrência de alguma dessas situações (ou, a ter ocorrido, que não foi nos três anos imediatamente anteriores ao início do processo de insolvência).
Na primeira instância concluiu-se pela verificação dessa presunção e a conclusão está assim fundamentada:
«De acordo com os Pareceres de Qualificação apresentados, a conduta imputada aos Requeridos enquadrar-se-á nas condutas típicas previstas nas alíneas a), b) d), e), f) g) h) e i) do n.º 2 e alíneas a) e b) do n.º 3, do artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Contudo, cotejando os factos alegados e aqueles que resultaram efetivamente provados em julgamento, cremos que apenas será possível concluir pelo preenchimento das condutas típicas previstas nas alíneas e), g) e i) do n.º 2, do preceito legal citado e, ainda, na alínea a), do n.º 3, do mesmo preceito legal.
Com efeito, resulta da factualidade apurada que a Devedora começou a incumprir a sua obrigação de pagar as contribuições devidas ao Instituto da Segurança Social, no mês de janeiro de 2017, incumprimento que repetiu de forma reiterada e sucessivamente, nos meses de fevereiro a dezembro de 2017, prosseguindo nos meses de janeiro a dezembro de 2018 e, ainda, de janeiro a dezembro de 2019. Ou seja, a sociedade “B…, Lda.”, incumpriu o seu dever de pagar as contribuições devidas ao longo de 3 anos, consecutivamente (facto provado em E), até atingir um montante global de 102 571,75 euros.
Assim, não se poderá dizer que atravessou um período de dificuldades financeiras em que atrasou os pagamentos à Segurança Social, para logo retomar os pagamentos devidos, ainda que, com uma falha ou outra, caso em que se poderia entender que perspetivava vir a obter uma melhoria da sua situação patrimonial e que poderia repor os valores em divida, pois quem permanece ao longo de três anos consecutivamente a não pagar as contribuições devidas à segurança Social, manifestamente está em situação de incumprimento generalizado de dividas à Segurança Social, pelo que tem o dever de se apresentar à Insolvência, (cfr. artigo 20.º, n.º 1, alínea g) 11), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Mas, igualmente, foi acumulando dividas para com a Autoridade Tributária, desde 26.04.2019, quando incumpriu pela primeira vez, e foi reiterando sucessivamente ao longo de todo o ano de 2019 os seus incumprimentos, situação que manteve ao longo dos meses de 2020, até á declaração de insolvência, deixando de pagar os tributos devidos a título de IVA, vencido em 26.04.2019, no montante de 2.083,94 euros, vencido em 23.05.2019, no montante de 2.077,33 euros, vencido em 23.07.2019, no montante de 2.060,93 euros, vencido em 27.08.2019, no montante de 1.538,95 euros; vencido em 23.10.2019, no montante de 1.583,08 euros, vencido em 27.11.2019, no montante de 3.304,92 euros, vencido em 24.12.2019, no montante de 1.988,07 euros, vencido em 22.01.2020, no montante de 2.676,52 euros, vencido em 24.02.2020, no montante de 6.541,48 euros; vencido em 30.04.2020, no montante de 2.553,01 euros, vencido em 05.06.2020, no montante de 5.165,45 euros, e ainda, o IRC vencido em 02.09.2019, no montante de 27,74 euros; IRS vencido em 20.02.2020, no montante de 194,51 euros, custas e coimas, até atingir um montante global de 38.844,11 euros de dividas tributárias (facto provado em D).
Donde é possível dizer que a Insolvente prosseguiu ao longo de todo o ano de 2018 e ao longo de todo o ano de 2019, prosseguindo ainda nos meses de 2020, mesmo depois da sua declaração de insolvência, uma exploração deficitária, a qual certamente não podia ser desconhecida dos Requeridos.
Mas também se pode concluir por tal exploração deficitária se analisarmos os valores inscritos nas Declarações de IES apresentadas pela Devedora junto da Autoridade Tributária, e bem assim, o teor do seu Balancete Geral acumulado a 31.12.2019, de onde resulta que no final do exercicio de 2016 a Insolvente tinha um passivo declarado por si, no montante de 21.743,88 euros e tinha capitais próprios negativos no valor de -6.799,87 euros, sendo que a sua situação não melhorou no ano de 2017, já que acumulou um passivo de total do passivo 89.249,89 euros, mantendo o capital próprio negativo, no valor de -5.845,32 euros, para no final do ano de 2018 acumular um passivo de 121.893,39 euros, com capital próprio negativo no valor de -69.692,21 euros (factos provados em M, N e O).
Donde, face a tal realidade contabilística outra coisa não podia a Devedora ter feito, senão apresentar-se à Insolvência, logo que conhecidos os resultados do exercicio de 2017, o que sempre terá ocorrido pelo menos aquando da aprovação das contas deste exercicio.
Todavia, os responsáveis pela “B…, Lda.” não a apresentaram à Insolvência, como lhes era exigido, antes continuaram a prosseguir a sua atividade, acumulando mais dividas e descapitalizando a sociedade, o que significa que, efetivamente, prosseguiram com uma exploração deficitária, por vários meses, e até mais de dois anos, quando o seu responsável, no caso o requerido E…, por ser quem tudo decidia e ser reconhecidamente “ o patrão”, além de ser a pessoa que contactava com o Técnico de Contas Certificado da Devedora (factos provados em 6, e 14), não podia deixar de saber que tal exploração estava a conduzir a Devedora para uma situação de insolvência irreversível.
(…)
Mas, também se poderá afirmar que existiu falta de colaboração reiterada com o Sr. Administrador de Insolvência por parte dos Requeridos já que estes não lhe entregaram os elementos de contabilidade da Insolvente e teve de ser por intervenção do Tribunal que tais elementos foram fornecidos os autos, após diversas insistências feitas já no decurso deste incidente de qualificação, como resulta à evidencia das atas de julgamento, das notificações feitas à Devedora e ao seu Técnico de Contas Certificado e ainda dos Ofícios remetidos à Autoridade Tributária para obtenção de documentos que cabia à Devedora e aos seus representantes terem entregado voluntariamente ao Sr. Administrador de Insolvência, atempo da elaboração do seu Parecer de Qualificação, (factos provados em 19, 20 e 21), donde se mostra também incumprido reiteradamente o dever de colaboração com o Sr. Administrador de Insolvência, o que leva a que se mostre também verificada a presunção inilidível prevista na alínea i), do n.º 2, do artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».
É particularmente notória a verificação das circunstâncias integradoras da presunção juris et de jure de insolvência culposa previstas nas alíneas g) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, a ponto de os recorrentes nem sequer esboçarem uma tentativa de as negarem.
Estando verificadas, pelo menos, duas das situações-padrão elencadas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, tinha de se concluir, como (bem) se concluiu na primeira instância, pela insolvência culposa da “B…, L.da”.
O que os recorrentes põem em causa é a verificação, no caso, da circunstância, que faz presumir a existência de culpa grave, prevista na alínea a) do n.º 3 do mesmo preceito legal.
Isto porque, no seu entendimento, «a desejada continuidade da devedora posicionava-a ao abrigo da al. b) do nº 3 do artigo 3º do CIRE, desobrigando-a de se apresentar à insolvência no prazo previsto no nº 1 do artigo 18º».
Aquele n.º 3 contém uma presunção (ilidível) de culpa grave quando os administradores de facto ou de direito incumprem determinados deveres, interessando aqui o dever de requerer a declaração de insolvência (alínea a)), que decorre do invocado artigo 18.º, n.º 1, do CIRE.
Para se aquilatar da consistência do argumento dos recorrentes para afastar a presunção, importa lembrar o teor de algumas normas legais do CIRE com pertinência para o caso.
Considera-se em estado de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º 1).
O n.º 2 do mesmo artigo estatui que as pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo.
Já assim não será quando, entre outras situações, se verifique que o activo da pessoa colectiva ou do património autónomo é superior ao passivo, de acordo com uma avaliação a efectuar nos seguintes termos:
n.º 3, al. b): Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
«O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la» (artigo 18.º, n.º 1,).
«Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 20.º[9]» (artigo 18.º, n.º 3).
Também neste ponto, é manifesto que os recorrentes não têm razão, desde logo, porque a empresa da insolvente era, completamente, desprovida de património. Que assim era, revela-o a circunstância de o AI não ter identificado quaisquer bens que pudessem ser apreendidos para a massa insolvente.
Afirmar o desejo de continuidade, no caso, é querer prosseguir uma exploração, claramente, deficitária e acumular dívidas.
Cabe realçar que, tendo sido constituída no final de Setembro de 2016, a insolvente não pagou as quotizações para a Segurança Social logo a partir de Janeiro de 2017, o que deixa perceber que a intenção era, desde o início, não pagar.
Aliás, este caso situa-se na linha do que pode considerar-se uma conduta-padrão: primeiro, deixa-se de pagar à Segurança Social; depois, não se pagam os impostos; de seguida, são os fornecedores a não verem satisfeitos os seus créditos e, por último, deixa-se de pagar os salários aos trabalhadores.
Os recorrentes, inquestionavelmente, tinham o dever de requerer a insolvência da sociedade de que eram gerentes e incumpriram esse dever, assim agravando a situação de insolvência.
Nenhuma censura merece a decisão de qualificar a insolvência como culposa e com culpa grave.
Resta, então, apreciar se a recorrente D… (não) deve ser afectada por essa qualificação (já que, em relação ao gerente de facto, nem sequer essa questão é colocada).
Os recorrentes alegam que esta não passava de uma “testa de ferro” do “patrão” E…, sempre esteve afastada das atividades da empresa e era desconhecedora da situação económico-financeira da insolvente.
Os factos provados apontam no sentido de que, efectivamente, a recorrente D… foi usada para criar uma sociedade comercial que, no fundo, era uma réplica da “M…, L.da”, declarada insolvente, e para contornar o obstáculo resultante dos impedimentos que recaíam sobre o referido E….
Mas, daí até concluir-se que a gerente D… era completamente alheia ao que se passava com a “B…, L.da”, designadamente quanto à sua situação económico-financeira, vai um passo que não é possível dar sem tropeçar.
Na sentença recorrida, a questão foi assim apreciada e decidida:
«Importará ainda considerar o círculo de pessoas a afetar pela qualificação de insolvência atento o teor dos Pareceres apresentados pela credora, pelo Sr. Administrador de Insolvência e pelo Ministério Público, que se circunscreve às pessoas que, nos últimos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, foram gerentes de direito e/ou de facto da sociedade “B…, Lda.”, os aqui Requeridos D…, para o caso de esta não ter logrado afastar a presunção decorrente de, por ser a gerente de direito da sociedade, desde a sua constituição em 23.09.2016 até ao inicio do processo de insolvência, também ser considerada sua gerente de facto, e ainda o requerido E… que, embora nunca tenha sido gerente de direito da Insolvente, vem-lhe imputada a gerência de facto da Insolvente desde a sua constituição até ao inicio do processo de insolvência.
Assim, e no que respeita à gerência de direito, importa considerar o período de três anos anteriores à data do inicio do processo de insolvência, que ocorreu em 21.04.2020. E neste período, mostra-se assente que a Requerida D… foi a única gerente de direito da sociedade Insolvente desde a sua constituição em 23.09.2016, mantendo-se nesse cargo até ao início do processo de insolvência, enquanto o requerido E… nunca foi gerente de direito da sociedade Insolvente, (factos provados em B).
Porém, vindo imputada a gerência de facto ao requerido E…, desde a constituição da sociedade (apesar de não ser gerente de direito) até ao inicio do processo de insolvência, importará agora verificar se, de facto, assim foi, isto é, se este requerido foi efetivamente o único gerente de facto desde a constituição da sociedade e, se por tal circunstância, a Requerida D… nunca foi a gerente de facto, ou seja, se a Requerida logrou afastar a presunção existente de também ter sido gerente de facto da insolvente no período a considerar para efeitos de qualificação.
No tocante à Requerida D… cremos que não logrou afastar integralmente a presunção contra si existente de que, sendo a única gerente de direito desde a constituição da sociedade até ao inicio do processo, também era gerente de facto, pois, ficou provado que também praticou atos de gerência, já que foi esta Requerida quem procedeu à abertura de contas bancárias em representação da Insolvente, assinando os papéis necessários para este efeito, sendo tais contas movimentadas com a sua assinatura, por isso assinava cheques que eram sacados sobre as contas da sociedade e recebeu os cartões para movimentar a conta a crédito/débito, que entregou depois ao requerido E… para que este os pudesse utilizar. Mas também recebia no seu telemóvel os códigos necessários à realização de movimentos em homebanking, que fornecia ao Requerido E… e à funcionária do escritório para que efetuassem pagamentos em nome da sociedade (factos provados em 1 a 5).
Assim, não poderá afirmar-se que a Requerida apenas ficou gerente de direito, no papel, aquando do ato de constituição da sociedade, já que continuou a praticar atos que necessariamente são de gerência, ainda que, tais atos sejam instrumentais da atuação do Requerido E… como gerente de facto da insolvente.
Pois, proceder à abertura de contas bancárias em nome de uma sociedade, em três instituições bancárias, e ser a sua assinatura a movimentar tais contas, nomeadamente assinando os cheques sacados sobre tais contas e recebendo no seu telemóvel os códigos remetidos pelas instituições bancárias a introduzir para validar operações em homebanking são inegavelmente atos de gerência.
Donde, contrariamente ao que havia sido alegado na sua oposição, a Requerida D… não logrou afastar a presunção de que, sendo a única gerente de direito da Insolvente também era gerente de facto, pois que inegavelmente praticou atos de gerência ao longo do período em que exerceu as funções de gerente de direito.»
Nenhuma reserva ou reparo nos merece esta apreciação e, apenas, sublinhamos que, esse papel foi, voluntária e conscientemente, assumido pela D… e que esta, muito dificilmente, seria desconhecedora, pelo menos, nos seus traços gerais, da situação económico-financeira da insolvente, em particular, no que concerne às dívidas à Segurança Social e à Administração Fiscal.
Hoje em dia, o cidadão comum sabe, porque tem acesso fácil à informação, que a não entrega à Segurança Social do valor das quotizações deduzidas nos salários, bem como a não entrega dos valores de certos impostos, como o IVA e o IRS (de retenção na fonte), pode gerar responsabilidade criminal e por isso não é crível que a gerente de direito da insolvente se mantivesse completamente alheada do que fazia (ou deixava de fazer) o “patrão” E….
É, ainda, do conhecimento geral que a atribuição de certas prestações da Segurança Social (subsídio de desemprego, subsídio de doença, etc.) depende da existência de efectivas contribuições e por isso a não entrega dessas quotizações seria do conhecimento geral dentro da empresa[10].
Em conclusão, não podem restar dúvidas de que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência fez com que se agravasse a situação de insolvência da “B…, L.da” (com óbvio prejuízo para os seus credores) e esse incumprimento tem relevante conexão substancial com uma actuação gravemente culposa dos aqui recorrentes, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida, especialmente na parte que os declarou afectados pela qualificação culposa da insolvência, com culpa grave.
Cabe, aliás, referir que a recorrente D… sempre seria afectada pela qualificação da insolvência como culposa, pois tem prevalência na jurisprudência o entendimento de que a previsão do artigo 186.º, n.os 1 e 2, do CIRE não visou excluir os administradores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto, pois que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se impunham ao gerente da insolvente (artigo 64.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais), pelo que a invocação de que, como gerente de direito, estava afastada do dia-a-dia da sociedade, não a dispensava dos seus deveres para com a sociedade.

III - Dispositivo
Pelas razões vindas de expor, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por E… e D… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes (artigos 303.º e 304.º do CIRE e 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 22.11.2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_________________
[1] Não descortinamos qualquer comunicação do AI a alterar/corrigir o seu parecer, pelo que a afirmação do digno Magistrado do Ministério Público de que esse parecer é no sentido de se considerar a insolvência culposa dever-se-á a lapso.
[2] Notificada por expediente electrónico elaborado no dia seguinte.
[3] Como se decidiu no Ac. STJ de 30.06.2020 (processo n.º 1008/08.3TBSI.E1.S1), «III - A cominação para a falta de especificações constantes das als. a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC é a rejeição da impugnação da decisão de facto, não havendo lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento nos termos do n.º 3 do art. 639.º do CPC».
[4] No Ac. STJ de 16.12.2020 (processo n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1) fala-se em dois ónus que recaem sobre o recorrente que impugna a decisão sobre matéria de facto: «Um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC; e
Um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.».
[5] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, pág. 163, em nota de pé de página).
Esta especificação serve para delimitar o objecto do recurso e por isso tem de constar das conclusões.
[6] Assim, por mais recente, o Ac. STJ de 17.11.2020 (processo n.º 846/19.6 T8PNF.P1.S1)
[7] A.S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª edição, 307.
[8] Também usada noutros diplomas legais, como o Código Penal.
[9] As obrigações referidas neste preceito são as tributárias, as quotizações para a Segurança Social, as dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato e as rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência.
[10] Quando se quer esconder esse facto, acaba por ser um segredo de Polichinelo.