Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
324/19.3T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE
SUBSÍDIO DE NATAL
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
Nº do Documento: RP20190923324/19.3T8AMT.P1
Data do Acordão: 09/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º702-A, FLS.174-179)
Área Temática: .
Sumário: I O montante equivalente ao salário mínimo nacional mensal é o adequado como referência a considerar quando indagamos qual o mínimo do montante a excluir do rendimento disponível, e destinado ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
II Tal montante tem um sentido quantitativo, independente da natureza dos montantes auferidos pelo devedor e que para aquele quantitativo contribuem.
IIIOs subsídios de férias e de natal, tal como outras prestações retributivas auferidas pelo devedor, integram ou não o rendimento indisponível consoante se contenham no ou excedam o valor fixado como indisponível.
IV Se a sentença considera que os subsídios de natal e de férias devem ser entregues ao fiduciário, mas ao mesmo tempo fixa um rendimento indisponível que é superior ao rendimento do devedor, mesmo somado daqueles subsídios, há que revogar essa determinação de entrega e respeitar a própria decisão na parte – não objeto de recurso -, que fixou o montante correspondente ao rendimento indisponível.
[Responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 324/19.3T8AMT.P1

Recorrente – B…
Fiduciária – C…
Credores – Banco D…, SA e outros
Sumário (da responsabilidade do relator):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

Relator: José Eusébio Almeida;
Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

1 – Relatório
1. A ora recorrente, B…, apresentou-se à insolvência e, no requerimento inicial, além do mais, requereu a Exoneração do Passivo Restante.

2. Conforme sentença de fls. 16 e ss., foi declarada a sua insolvência e, mais adiante, a Administradora da Insolvência declarou não se opor ao pedido de exoneração do passivo restante.

3. O tribunal recorrido, a fls. 31 e ss., pronunciou-se sobre aquele pedido de exoneração do passivo restante, fazendo-o nos termos que, com relevância para a apreciação deste recurso, ora se sintetizam:
“(...) III - FUNDAMENTAÇAÞO DE FACTO:
A) Factos Provados:
1. A insolvente nasceu em 08-08-1977 e eì solteira.
2. E… nasceu no dia 25-09-2005 e eì filho da insolvente e de F….
3. G… nasceu no dia 30-01-2017 e eì filha da insolvente e de H….
4. A devedora trabalha numa pastelaria e aufere o salário mínimo nacional.
5. O agregado familiar da insolvente eì constituído pela própria, pelo companheiro e pelos dois citados filhos.
6. Vivem, de favor, em casa de familiares do companheiro.
(...)
Da fixação do quantitativo do rendimento indisponível:
Decorre do estatuído no item i) da aliìnea b) do n.º 3 do artigo 239.º do C.P.C. que a fixaçaÞo do montante do rendimento indisponível deve ser efectuada por apelo ao conceito indeterminado do “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, em homenagem ao principio da dignidade da pessoa humana constitucionalmente tutelado (artigo 1.º da C.R.P.).
A este propósito, importa ter presente, como salienta o Acordão do Tribunal da RelaçaÞo de Coimbra de 12/03/2013, rel. Sílvia Pires (Proc. n.º 1254/12.5TBLRA-F.C1, in www.dgsi.pt) que “(...) a realidade diz-nos que as necessidades de um agregado familiar não são integradas por necessidades iguais para todos os seus membros, porque tem que se tomar em consideraçaÞo que o custo marginal de uma pessoa extra varia na medida em que o tamanho da família aumenta, ou na medida em que as necessidades dos diferentes membros podem ser distintas”, motivo pelo qual é necessário recorrer, dentro do possível, à objetivação dos critérios para a fixaçaÞo do rendimento disponível.
Para o efeito, devemos atender ao referencial proporcionado pela recente jurisprudência constitucional acerca dos limites de aplicaçaÞo do regime coercivo previsto no artigo 189.º da O.T.M., que se considera poder impor a fixaçaÞo de um montante impenhorável superior ao valor do R.S.I., mas inferior ao salário mínimo nacional, por referência á necessidade de tutela dos superiores interesses do credor de alimentos, enquanto para a generalidade dos credores já deverá ter-se como critério da penhorabilidade o salário mínimo nacional, o qual nesse caso jaì se considera salvaguardar suficientemente a dignidade da pessoa humana, como alias se encontra previsto no artigo 738.º do C.P.C..
Se assim è, e valendo tal critério para as execuçoÞes instauradas por um qualquer credor, não se compreende que por via de regra não deva ser esse o valor mínimo de referência para o processo de execuçaÞo universal, como é o processo de insolvência (artigo 1.º, n.º 1, do C.I.R.E.).
De todo o modo, não podemos desconsiderar que resulta das regras da experiência e da normalidade que todas as famílias têm despesas correntes (v.g. com agua, eletricidade, gás, condomínio, conservação de automóveis e impostos, etc.), pelo que apenas deverão relevar nesta sede os encargos que se apresentem como despesas extraordinárias.
Posto isto, perante a situaçaÞo da insolvente e a composiçaÞo do seu agregado familiar, entende-se justificado fixar como rendimento indisponível um montante correspondente a 1,5 vezes o salário mínimo nacional (Á míngua de outras circunstâncias extraordinárias que não foram carreadas para os autos, atendeu-se, na esteira do já citado Acordado do Tribunal da RelaçaÞo de Coimbra de 12/03/2013, á denominada “Escala da O.C.D.E.”, de acordo com a qual, para determinaçaÞo da capitação dos rendimentos do agregado familiar, o índice 1 eì atribuído ao 1.º adulto e o índice 0,7 aos restantes adultos, enquanto a cada menor se atribui o índice 0,5, critério também seguido para efeitos de atribuiçaÞo das prestaçoÞes sociais, como o R.S.I. Observe-se que no caso de apenas um dos progenitores ser declarado insolvente, e dada a igual obrigaçaÞo de cada um deles contribuir com os alimentos dos menores, a cada menor atribui-se o índice de 0,25), de forma ser salvaguardado o principio da dignidade da pessoa humana, sendo certo que, “(...) por força da submissão ao instituto da exoneraçaÞo do passivo restante aquilo a que o devedor tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno e os subsídios de ferias e de Natal não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno (...) pelo que têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência”, como se concluiu no acordado do Tribunal da RelaçaÞo de Guimarães de 26/03/2015, rel. Helena Melo (Proc. n.º 952/14.3TBGMR.G1. No mesmo sentido, vide os Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 13/05/2014, rel. Luís Cravo, Proc. n.º 1734/10.7TBFIG-G.C1 e de 11/02/2014, rel. Carlos Moreira, Proc. n.º 467/11.1TBCND-C.C1, todos in www.dgsi.pt).
Como se defendeu no Ac. da R.G. de 26-11-2015 in www.dgsi.pt, Proc. n.º 3550/14.8T8GMR.G1: “Trata-se de prestaçoÞes, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta doutrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuiçaÞo), duas vezes no ano – no período de férias e no natal – a fim de que se usufrua de forma plena esses dois períodos festivos (de ferias e de natal).
Visam tais subsídios ser um “plus”, um aumento de rendimento, que vai proporcionar a quem os usufrui - no caso do subsídio de ferias -, o seu gozo efetivo, com um melhor aproveitamento do tempo livro sem trabalhar, proporcionando-lhe o descanso merecido no final de um ano de trabalho.
No caso do subsídio de natal, visa o mesmo proporcionar ao seu titular o usufruto pleno da época natalícia, com os inerentes gastos da época em questão.
Trata-se (...) em ambos os casos, de um “extra”, de um acréscimo de rendimento que visa proporcionar ao seu titular um acréscimo de bem estar, com as inerentes despesas nos períodos de ferias e de natal.
Ora, não se pode olvidar que por força da submissão do devedor ao instituto da exoneraçaÞo do passivo restante aquilo a que ele tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores - e os subsídios em causa não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do requerente, pelo que os mesmos têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Este sacrifício imposto ao devedor tem, no entanto, o reverso (que deve por ele ser aceite e compreendido) que eì de o libertar das suas dividas, decorrido esse período, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.
Ou seja, trata-se de um sacrifício que lhe eì imposto, mas que tem como fim uma causa justa e equilibrada, tendo em conta os interesses em jogo.”.
Vale isto, alem do mais, por dizer que se entende que o subsídio de Férias e o subsidio de Natal devem ser sempre objecto de cessão e, por isso, entregues ao Sr. Fiduciário. (...)
V - DECISÃO:
Termos em que, considerando o exposto, se decide admitir liminarmente o pedido de exoneraçaÞo do passivo restante formulado pela devedora B… e, consequentemente:
a) Determina-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), os rendimentos disponíveis que a devedora venha a auferir se consideram cedidos á Sra. Administradora da Insolvência, o qual se nomeia para exercer as funçoÞes de fiduciário – cfr. artigos 239.º, n.ºs 1 e, 2 e 240.º do C.I.R.E.
b) Determina-se que o rendimento disponível integre todos os proveitos que advenham a qualquer titulo ao devedor no período da cessão, com exclusão dos direitos previstos no n.º 3 do artigo 239.º do C.I.R.E., e com a ressalva de que se considera não dever considerar-se integrado no rendimento disponível o montante correspondente a 1,5 vezes o salário mínimo nacional, o qual se destina ao sustento da devedora e do seu agregado familiar – cfr. artigo 239.º, n.º 3, do C.I.R.E. (...)”.
2 – Do recurso
1. Não se conformando com a decisão “quanto à fixação do quantitativo do rendimento disponível na parte em que decide que o subsídio de férias e o subsídio de natal devem ser sempre objeto de cessão e entregues ao Senhor Fiduciário” a devedora veio interpor recurso de apelação e apresentou as seguintes

Conclusões:
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2. Não houve resposta ao recurso.

3. O recurso foi recebido nos termos legais (“Por legal e tempestivo, admito o recurso interposto pela devedora, o qual é de apelação, sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo”) e os autos subiram a esta Relação.

4. Na Relação, ponderando a natureza urgente do processo e a simplicidade da questão a resolver, com o acordo dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, foram dispensados os Vistos. Nada obsta ao conhecimento do mérito da apelação.

5. O Objeto do Recurso, definido pelas conclusões da apelante, traduz-se em saber:
- Se a decisão recorrida, ao considerar que os quantitativos auferidos pela devedora e equivalentes ao subsídio de férias e ao subsídio de natal serão sempre objeto de cessão, violou o disposto nos artigos 239.º n.º 3 b i) do CIRE e 1.º, 59 n.º 1 a) e 67 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e
- Se, independentemente dessa eventual conclusão, sempre aqueles quantitativos terão de fazer parte do rendimento indisponível, uma vez que este foi fixado em valor superior ao valor do salário mínimo nacional acrescido dos subsídios.

3 - Apreciação do objeto do recurso
3.1 – A matéria de facto consta da decisão recorrida, foi já transcrita no Relatório, e não foi objeto de qualquer impugnação. Remete-se para a mesma (1.3).

3.2 – Apreciação jurídica
Conforme resulta do disposto no artigo 235 do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE) é possível conceder-se ao devedor, caso ele seja uma pessoa singular, "a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste".

A exoneração do passivo restante é um instituto que tem origem no Direito inglês e que, fundamentalmente, no dizer de Catarina Serra[1] implica "que depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor sejam afetados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por essa via, durante tal período". Pretende a lei, deste modo, "libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de "aprendida a lição", ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua atividade económica ou empresarial", ou seja, e dito doutro modo, “dar a oportunidade de (re)começar do zero, de um fresh start”.

Como refere Assunção Cristas[2], uma vez “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objetivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações”.

A aludida concessão de uma nova oportunidade ao devedor justifica-se – tal como refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[3] – “porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como nas perdas de rendimento resultantes de desemprego, doença, ou divórcio, nos trabalhadores subordinados, ou o lançamento de um novo negócio, que se revelou não rentável, nos trabalhadores independentes”.

A razão de ser desta inovação – que apareceu pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico em 2004[4], quando “o legislador assumiu o problema do sobreendividamento”[5] - "prendeu-se, por um lado, com a adoção de modelos testados em modelos jurídicos diferenciados e, por outro, com a possibilidade de se reintegrar na atividade económica os devedores singulares"[6].

Em sede processual, se o pedido de exoneração do passivo restante não for liminarmente indeferido (artigo 238 do CIRE) será então proferido despacho inicial a determinar “que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência” (chamado período de cessão) “o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade” (fiduciário) – artigo 239, n.º 2 do CIRE – integrando “o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão” (no que ora importa) “Do que seja razoavelmente necessário para: O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” – artigo 239, n.º 3, alínea b), i), do CIRE.

A interpretação do sentido da exclusão prevista no citado artigo 239, nº 3, alínea b, i) do CIRE tem obtido um entendimento jurisprudencial alargado. Como refere o Acórdão desta Relação de 24.01.2012[7] “haverá que atender a um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar) e a um limite máximo, obtido de forma objectiva (o valor equivalente a três salários mínimos nacionais). II - Tal exclusão surge como reflexo do princípio da dignidade humana, que exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna. III- Esse limite, que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, corresponde ao salário mínimo nacional”[8].

O Acórdão da Relação de Lisboa de 11.10.2016[9] decide em sentido semelhante, e nele se sumaria, além do mais, o seguinte: 1. O que ressalva como diferença entre o que estabelece o CIRE e o que estabelece o CPC é que, contrariamente ao regime do CPC que estabelece para a impenhorabilidade dos rendimentos do executado, um limite mínimo objectivo indexado ao salário mínimo nacional, já a norma do CIRE não estabelece qualquer limite mínimo objectivo, recorrendo apenas a um conceito indeterminado: O que se considere razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado. 2. Parece-nos, todavia, razoável, que o montante equivalente a um salário mínimo nacional constitua o limite mínimo de exclusão[10].

Feitas as considerações precedentes e regressando de imediato ao concreto e relevante objeto desta apelação, podemos constatar que o tribunal recorrido, não obstante ter fixado no dispositivo da sua decisão, e como ressalva ao rendimento disponível, “1,5 vezes o salário mínimo nacional”, igualmente determina que – e é desta parte que expressamente apela a recorrente -, “o subsídio de Feìrias e o subsídio de Natal devem ser sempre objecto de cessaÞo e, por isso, entregues ao Sr. Fiduciário”. Acrescente-se que, como os factos fixam e a apelante chama à discussão nas suas alegações, “A devedora trabalha numa pastelaria e aufere o salaìrio miìnimo nacional”.

A primeira constatação é a seguinte: como resulta claro do que ficou dito no parágrafo precedente, e na comparação entre a decisão e o facto revelador da remuneração da apelante, foi fixado um montante de rendimento, excluído da cessão, um rendimento indisponível, superior à totalidade do rendimento auferido pela devedora, aqui recorrente, o que, à partida – e embora conhecendo outras decisões que seguiram esse caminho – não fará sentido[11], pois há que admitir que a decisão correspondente ao despacho liminar não tem de ser imutável, antes podendo acompanhar o que dite uma eventual alteração das circunstâncias que a determinaram[12] e porque significará, quase sempre, aqui em concreto, e logo no próprio despacho inicial, que nenhum valor irá ser pago aos credores.

O que acabámos de dizer releva no caso presente, porquanto, se acompanhamos o entendimento do tribunal recorrido no sentido de os subsídios de natal e de férias fazerem parte da cessão, ou seja, não serão rendimento indisponível, também teremos de constatar que, perante casos em que o rendimento indisponível fixado é superior ao rendimento auferido pelo devedor, e sendo este rendimento fruto de trabalho dependente (no qual aqueles subsídios são rendimento devido ao trabalhador), verifica-se, numa singela perspetiva aritmética, a contradição ou eventual impossibilidade dos termos equacionados.

Podemos simplificar, avançando a seguinte constatação: os subsídios de férias ou de natal (tal como, eventualmente, outras atribuições patrimoniais) serão excluídos da indisponibilidade quando – apenas quando -, o montante singelo do rendimento do devedor já alcança o montante fixado como rendimento indisponível.
Explicando-nos melhor.

Em primeiro lugar, entendemos que o valor do salário mínimo nacional enquanto equivalente ao sustento minimamente digno é uma referência e é uma referência mensal[13]: o salário mínimo nacional, esse valor de referência, em sede de CIRE, não se confunde com o crédito do trabalhador subordinado.

As fórmulas de cálculo do valor hora ou do rendimento anual, utilizáveis, desde logo, no direito laboral (para efeitos vários como por exemplo o cálculo das horas extraordinárias ou da indemnização por acidente de trabalho) não têm qualquer sentido operacional para o valor mensal que se considerou ser a referência operativa para a ponderação do mínimo de dignidade de sustento do devedor.

Assim, e em segundo lugar, teremos de considerar, respeitando outros entendimentos jurisprudenciais[14], que o salário mínimo nacional, enquanto referência ou padrão mínimo para a estipulação – pelo tribunal e olhando às particularidades de cada caso concreto - do (mínimo) rendimento indisponível do devedor, ou seja, não sujeito a cessão ao fiduciário (artigo 239, n.º 2 e n.º 3, alínea b), ii) do CIRE) é o salário mínimo nacional mensal, legalmente fixado, e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por 14 daquele valor[15].

Sustentar-se o contrário, e sabendo-se que os subsídios de natal e férias são pagos apenas, legal e habitualmente, duas vezes em cada ano (desde logo atendendo à finalidade dos mesmos) equivaleria a reconhecer-se, algo contraditoriamente, que o devedor ficaria com um rendimento indisponível abaixo do mínimo (de sustento digno) durante a maioria dos meses.

Em acórdão proferido a 7.05.2018[16] já esta Secção Cível decidiu, conforme sumariado, que “III - Os subsídios de férias e de Natal devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário” e ficou escrito no corpo do acórdão, também além do mais, o seguinte: “Quanto à consideração dos valores recebidos a título de 13º e 14º mês como rendimento disponível não se vê que belisque o direito às férias ou à subsistência e dignidade humana. Os subsídios de férias e de Natal, sendo um complemento da retribuição com a finalidade de ajudar ao gozo de férias e auxiliar nas despesas, normalmente acrescidas na quadra natalícia, nem por isso devem ser considerados imprescindíveis à satisfação das necessidades básicas da insolvente e, nesse sentido, como foi decidido, devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário”.

Diríamos até, sem que tal choque com a conclusão avançada no acórdão acabado de citar, que a questão relevante, num caso como o presente e nos semelhantes, não é uma questão de qualidade, mas de quantidade. Ou seja, o salário mínimo nacional, sempre que utilizado como referência e como equivalente ao mínimo de subsistência é, tão-só mas relevantemente, um valor, um montante, uma quantidade.

E, por sua vez, os subsídios de férias e de natal (como os prémios de produtividade, as ajudas de custo quando ultrapassam o valor das despesas tidas pelo trabalhador[17], as comissões e outras atribuições patrimoniais[18]) são “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”, incluídos ou não na cessão (239, n.º 3 e n.º 3, alínea b) i). Incluídos ou excluídos em razão da quantidade, não da qualidade, pois esta, em todos aqueles casos é a qualidade de “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”.

Que assim é - ou para que melhor se entenda que é assim -, basta substituir o conceito pela quantidade, pelo valor que em dado momento representa o salário mínimo. Efetivamente, se ficar estabelecido que o rendimento indisponível mensal é de 600,00€ (em vez de se dizer que é de um salário mínimo nacional) ninguém sustentará que o rendimento indisponível fixado foi de 700,00€ (600 X 14/12). Igualmente, se se fixasse o rendimento indisponível em 900,00€ (salário mínimo e meio), ninguém leria ali 1050,00€ (600 X 14/12 X 1.5)

Em suma, não nos mereceria crítica a decisão recorrida na parte em que considera que os subsídios de férias e de natal devem ser entregues ao fiduciário. Mas merece, no entanto. Com efeito, e como se foi adiantando, fixou-se um rendimento indisponível no montante mensal equivalente a salário mínimo e meio e o rendimento auferido pela devedora é no montante mensal de um salário mínimo.

Ora, como é bem de ver, 14/12 (1,166) é menor que 1,5. Se a devedora só tem que ceder o que acresce a 1,5 do salário mínimo mensal nacional e os subsídios, obviamente, são rendimento, eles estão incluídos, neste caso, no rendimento indisponível[19].

Note-se que, sobre a decisão de fixar em um salário mínimo e meio o rendimento indisponível já se formou caso julgado, é questão que já não cabe na apreciação deste tribunal de recurso.

Com efeito, e como é sabido, no nosso sistema processual civil são proibidas a reformatio in pejus e a reformatio in melius, significando as mesmas que o tribunal de recurso está adstrito “ao objeto da impugnação balizado pelo recorrente e, por outro lado, a estabilidade do segmento não impugnado do respetivo julgado”[20]. Assim, o julgamento do recurso “não pode agravar a posição do recorrente”, mas igualmente proíbe a atribuição a este “de uma vantagem ou benefício (em quantidade ou qualidade) de grau superior ao impetrado no recurso”[21].

Em suma – e voltando ao objeto do recurso que oportunamente definimos (2.5) -, podemos dizer que a decisão recorrida, ao considerar que os quantitativos auferidos pela devedora e equivalentes ao subsídio de férias e ao subsídio de natal serão sempre objeto de cessão, não violou o disposto nos artigos 239.º n.º 3 b i) do CIRE e 1.º, 59 n.º 1 a) e 67 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

No entanto, sempre aqueles quantitativos, relativos aos subsídios de natal e de férias, terão de fazer parte do rendimento indisponível, uma vez que este foi fixado em valor superior ao valor do salário mínimo nacional acrescido dos subsídios.

Nessa parte – e diríamos, no efeito prático pretendido pela apelante – o recurso é procedente.

As custas são a cargo da apelante, atento o proveito (artigo 527, n.º 1, parte final, do CPC), sem embargo do regime previsto no artigo 248 do CIRE.
4. Decisão
Por todas as razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a presente apelação interposta pela recorrente B… e, em conformidade, no mais mantendo o decidido, determina-se (cfr. alínea b) da sentença) “que o rendimento disponível integre todos os proveitos que advenham a qualquer título ao devedor no período da cessão, com exclusão dos direitos previstos no n.º 3 do artigo 239 do CIRE, e com a ressalva de que se considera não integrado no rendimento disponível, qualquer que seja a sua origem, nomeadamente subsídios de férias e de natal, o montante correspondente a 1,5 vezes o salário mínimo nacional, o qual se destina ao sustento da devedora e do seu agregado familiar”.

Custas pela apelante, nos termos dos artigos 527, n.º 1, parte final, do CPC e 248 do CIRE.

Porto, 23.09.2019
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
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[1] O Regime Português da Insolvência, 5.ª edição, Almedina, 2012, págs. 154/155.
[2] "Exoneração do devedor pelo passivo restante", in THEMIS – Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, O Novo Direito da Insolvência, Almedina, 2005, págs. 165/182, a pág. 167.
[3] Direito da Insolvência, 8.ª Edição, Almedina, 2018, pág. 364.
[4] Como se enuncia no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica (...). O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.
[5] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, Almedina, 2011, pág. 15.
[6] José Gonçalves Ferreira, A Exoneração do Passivo Restante, Coimbra Editora, 2013, pág. 39.
[7] Relator: Desembargador Rodrigues Pires; Processo n.º 1122/11.8TBGDM-B.P1 (dgsi).
[8] Exatamente no mesmo sentido se decidiu e sumariou no Acórdão de 12.06.2012, relatado pelo mesmo Desembargador no Processo n.º 51/12.2TBESP-E.P1 (dgsi).
[9] Relatora: Desembargadora Carla Câmara; Processo n.º 1855/14.7TCLRS-7 (dgsi).
[10] Também, entre muitos outros, o Acórdão da Relação de Évora de 4.12.2014 (Relatora, Desembargadora Cristina Cerdeira, Processo n.º 1956/11.3TBSTR-I.E1, dgsi), assim sumariado: “II - Na determinação do rendimento indisponível a que alude a subalínea i) da al. b) do nº. 3 do artº. 239 do CIRE, o legislador estabeleceu dois limites: um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; um limite máximo, obtido através de um critério quantificável e objectivo (o equivalente a três salários mínimos nacionais), o qual, excepcionalmente, poderá ser excedido em casos que o justifiquem (...). VIII - O salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna, cabendo ao tribunal fazer uma apreciação casuística das situações submetidas a escrutínio.
[11] Acórdão desta Relação de 11.11.2013 (Relator, Desembargador Augusto de Carvalho, Processo n.º 767/12.3TBMCN-C.P1, dgsi) e da Relação de Coimbra de 12.01.2016 (Relatora, Desembargadora Maria João Areias, Processo n.º 612/15.8T8GRD-C.P1, dgsi), onde se deixou escrito: “(...) as decisões judiciais não são proferidas com base em ficções ou cenários prováveis, mas com base nos dados respeitantes à atual situação económico-social dos insolventes. E, face aos rendimentos atualmente auferidos pelo agregado (...) deverão ficar dispensados de efetuar qualquer cessão enquanto tal situação se mantiver. Se os seus rendimentos vierem a ser aumentados, os insolventes são obrigados a dar conhecimento imediato de tal alteração (...). Como tal, não se descortina qual o interesse ou utilidade em o juiz fixar hipoteticamente qual o montante que asseguraria o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nomeadamente num valor equivalente ao do salário mínimo nacional para cada um, quando os rendimentos dos insolventes não o atingem”.
[12] Cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 27.10.2009 (Relator, Desembargador Ramos Lopes, Processo n.º 304/09.7TBPVZ-B.P1, dgsi) onde ficou escrito: “Também a situação relativa ao estado de saúde da recorrente foi relevada e atendida, pois que expressamente se fez constar que qualquer agravamento daquele, com direto reflexo nas despesas, poderá vir a ser considerado, mediante requerimento fundamentado da devedora” e de 2.06.2011 (Relator, Desembargador Teles de Menezes, Processo n.º 347/08.8TBVCD-F.P1, dgsi), onde ficou dito “admitimos que a alteração do circunstancialismo que esteve na origem da fixação do montante necessário para o sustento minimamente digno do devedor, como o agravamento das despesas por via da doença ora invocada, possa ser aduzida subsequentemente na 1.ª instância, mediante requerimento fundamentado daquele, em moldes de permitir a sua apreciação pelo tribunal competente”. Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 15.12.2011 (Relatora, Desembargadora Conceição Saavedra, Processo n.º 350/10.8TJLSB-E.L1-7, dgsi) não deixa de se dizer: “Tal não significa que o montante em questão não possa vir a ser ajustado em momento posterior, a pedido da devedora, ponderadas que sejam outras despesas relevantes e atendíveis que devam ser excluídas da cessão, nos termos e para os efeitos da subalínea iii) da al. b) do nº 3 do art. 239 do C.I.R.E. Contudo, de momento, e no quadro fáctico existente acima descrito, razão não se alcança para modificar a decisão proferida quanto ao valor excluído do rendimento disponível da insolvente”.
Não desconhecemos, acrescente-se, o que se fez constar no sumário do Acórdão da Relação de Évora de 30.04.2015 (Relator, Desembargador Jaime Pestana, Processo n.º 151/14.4TBLLE.E1, dgsi): “No âmbito do pedido de exoneração do passivo restante, uma vez proferido despacho liminar, fica esgotado o poder jurisdicional para o efeito de apreciação do montante fixado naquele despacho a título de rendimento disponível minimamente digno para o devedor”. Parece-nos, todavia e com o devido respeito que esta conclusão não corresponderá a um princípio geral, mas às vicissitudes do caso ali apreciado, porquanto não deixa de se escrever, além do mais, que “A alegação singela de que carece de espaço habitacional maior e que, por isso, arrendou uma casa pelo valor mensal de 350,00 Euros, traduz uma opção de facto consumado que desacompanhada de qualquer alegação tendente a demonstrar a impossibilidade, ou pelo menos, a extrema dificuldade em obter habitação a preços mais baixos, se nos afigura insuficiente para alterar o quantum fixado no despacho liminar a título de sustento minimamente digno” (sublinhado nosso).
[13] Acórdão da Relação de Coimbra de 28.03.2017 (Relator, Desembargador Emídio Santos, Processo n.º 178/10.5TBNZR.C1, dgsi), com o seguinte sumário: Quando o apuramento do rendimento disponível se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, do CIRE, o período de referência a ter em conta em tal apuramento é o de um mês” e onde se deixou escrito, além do mais: “(...) nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família? A resposta é a seguinte: Em primeiro lugar, em tais hipóteses, não há rendimento disponível, logo não há cessão de rendimentos. Em segundo lugar, não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família (...). Daí que não tenha amparo no artigo 239.º, n.º 2, e no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), ambos do CIRE, a pretensão dos recorrentes no sentido de que o apuramento do seu rendimento disponível se faça no fim de cada ano do período de cessão”.
[14] Acórdão da Relação de Lisboa de 27.02.2018 (Relatora, Desembargadora Higina Castelo, Processo n.º 1809/17.1T8BRR.L1-7, dgsi), com este sumário “II – Na ausência de prova sobre despesas concretas, o devedor insolvente deve manter na sua disponibilidade, para seu sustento, resguardada da cessão ao fiduciário, pelo menos, quantia equivalente à retribuição mínima garantida, que corresponde, anualmente, à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por catorze” e, desta Relação, de 22.05.2019 (Relatora, Desembargadora Maria Cecília Agante, Processo n.º 1756/16.4T8STS-D.P1, dgsi), assim sumariado: “II - Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano e constituindo a remuneração mínima anual 14 vezes aquele montante, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze”.
[15] Acórdão da Relação de Lisboa de 22.03.2018 (Relator, Desembargador Pedro Martins, Processo n.º 24815/15.6T8LSB-2, dgsi): onde ficou escrito: “O SMN que tem sido utilizado é o SMN sem mais nada. Os dados invocados pelo insolvente referem-se, no entanto, a SMN mensalizados. Assim, por exemplo, o SMN português de 2017 aparece com o valor de 649,83€ (= 557€ x 14 meses = 7798€: 12 meses). Mas o SMN é o SMN e a sua atribuição por 14 meses em vez de 12 meses é irrelevante para a questão. Ou seja, o SMN é o valor da retribuição mínima mensal garantida e não o valor desta multiplicado por 14 meses e dividido por doze”. Acórdão da Relação de Coimbra de 16.10.2018 (Relator, Desembargador Emídio Santos, Processo n.º 1282/18.7T8LRA-C.C1, dgsi) com o seguinte sumário: “III - A variação, em cada mês, do montante dos rendimentos do devedor não implica a alteração do âmbito da exclusão ditada pela subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE; a modificação do âmbito dessa exclusão justifica-se quando haja alteração do que é necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Assim, não tem amparo no CIRE a pretensão do devedor no sentido de, nos meses em que recebe subsídio de férias e subsídio de Natal, autonomizar estas prestações, em relação à pensão de reforma, para efeitos da aplicação da exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º”.
[16] Processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1, relatado pelo Desembargador Augusto Carvalho e no qual intervieram como adjuntos os desembargadores que, na mesma qualidade, ora intervêm nestes autos.
[17] Como se sumaria no acórdão desta Secção, proferido a 30.05.2018 (Relator, Desembargador Carlos Gil, Processo n.º 447/11.2TBPNF.P1, dgsi): “I - A natureza remuneratória ou compensatória de certa prestação não se pode firmar apenas no nome que a entidade pagadora lhe dá, antes deve resultar de uma qualificação atribuída a certa realidade de facto. II - Só se pode concluir que certa importância tem a natureza de ajudas de custo desde que se comprove que se destinou a reembolsar o trabalhador de despesas concretas que suportou por causa ou por força do exercício da sua atividade profissional. III - A circunstância de valores denominados de ajudas de custo terem sido pagos ao longo dos doze meses do ano de 2016, com referência a todos os dias de trabalho de cada um desses meses, com um valor uniforme, aponta, com segurança, no sentido de não terem essa natureza compensatória”.
[18] Desde logo porque o artigo 258, n.º 3 faz presumir que qualquer prestação do empregador ao trabalhador constitui retribuição – João Leal Amado, Contrato de Trabalho – Noções Básicas, 2.ª Edição, Almedina, 2018, págs. 256/260.
[19] Uma situação semelhante à que apreciamos foi decidida pela Relação de Guimarães em 23.05.2019 (Relator, Desembargador António Sobrinho, Processo n.º 4211/18.4T8VNF.G1, dgsi), com o seguinte sumário: “Desde que os subsídios de férias e de natal a receber pela devedora, englobados nos rendimentos totais desta, não ultrapassem objetivamente um salário mínimo nacional e meio fixado como o montante necessário ao sustento digno da insolvente, estão excluídos do rendimento disponível para o fiduciário”.
[20] No caso presente, olhando apenas formalmente a decisão recorrida e a separação distintiva que resulta da comparação entre o dispositivo da sentença e o conteúdo desta poderíamos questionar se efetivamente, afinal, o objeto do recurso não se coloca – não o coloca a recorrente – fora da parte decisória, propriamente dita. E, assim vistas as coisas, partindo da ideia consensual de que “não há recurso de fundamentos apenas” (cfr. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Volume III, Lisboa, AAFDL, 2012, pág.14), sermos levados a questionar a própria admissibilidade da apelação. Entendemos, no entanto, que a “deslocalização” da determinação impugnada (exclusão dos subsídios do rendimento indisponível e sua entrega ao fiduciário) não faz desta um fundamento da decisão, mas um verdadeiro conteúdo decisório, que permite a impugnação.
[21] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil. Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 469.