Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1195/19.5PAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: NULIDADE
OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS À DESCOBERTA DA VERDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
IRREGULARIDADE
RELATÓRIO SOCIAL
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RP202302081195/19.5PAPVZ.P1
Data do Acordão: 02/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS (INTERLOCUTÓRIO E DA SENTENÇA) INTERPOSTOS PELOS ARGUIDOS
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É pressuposto da suscetibilidade de verificação da nulidade processual decorrente da omissão, em sede de julgamento, de diligências probatórias essenciais à descoberta da verdade (e, por isso, da respetiva apreciação), que estas últimas se reportem a elementos probatórios válidos e permitidos de acordo com o princípio a legalidade da prova, previsto desde logo no artigo 125.º do Código de Processo Penal.
II - No presente caso, a decisão que não admitiu a produção do meio de prova em causa por o considerar ilegítimo e, assim, proibido, não foi objeto de oportuna impugnação pela adequada via de recurso, pelo que se mostra materialmente prejudicada a viabilidade de estarmos perante uma nulidade processual decorrente de o mesmo ser essencial à descoberta da verdade.
III - A segunda parte da alínea d) do artigo 120.º, n.º 2, do Código de Processo Penal impõe, para que da nulidade ali prevista se possa falar, que a diligência (probatória, no caso) omitida seja essencial à descoberta da verdade, excluindo–se assim à partida, como possível causa de nulidade, a omissão de diligências que não revistam essa essencialidade ou indispensabilidade por referência àquele que seja o objeto do julgamento no caso concreto, isto é, à vinculação temática do tribunal aos factos juridicamente relevantes, tanto para a determinação da culpabilidade, como, quando for caso disso, da determinação da pena e da responsabilidade civil (artigo 124.º do Código de Processo Penal).
IV - Não é admissível a dedução de exceção de compensação relativamente a pedido de indemnização civil deduzido em sede de processo penal, pois que neste vigora a exigência da vinculação causal da demanda cível aos factos que consubstanciem a prática de um crime, não fazendo sequer conceptualmente sentido que o arguido/demandado possa retorquir contra o pedido que visa reparar ou compensar danos por si criminalmente causados, com uma exceção compensatória que não encontra sustento em factos que constituam afinal a prática de qualquer crime que seja objeto nos mesmos autos.
V - A falta de notificação expressa aos arguidos dos relatórios sociais elaborados para julgamento consubstancia mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
VI - Como de forma uniforme e pacífica tem vindo a ser considerado pela jurisprudência dos tribunais superiores, seria absurda, e em alguns casos mesmo absolutamente contraproducente à luz dos princípios da adequada imediação da prova e da celeridade processual, a exigência de que todas as provas – incluindo as documentais e periciais constantes do processo – tivessem que ser, num exercício mais próximo de uma mera atividade notarial, e mesmo quando não seja suscitado qualquer incidente relacionado com a respetiva valoração, reproduzidas uma a uma, em sede de audiência de julgamento – e se se pretender convocá-las para formar a convicção do tribunal.
VII - Donde, basta que tais elementos documentais existam no processo, com pleno conhecimento dos sujeitos processuais – que, assim, puderam inteirar-se da sua natureza, importância, conteúdo e valor probatório –, para que qualquer deles possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar pertinente sobre elas, bem como examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1195/19.5PAPVZ.P1

Tribunal de origem: Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

Consigna–se que, em conformidade com o disposto no art. 412º/5 do Cód. de Processo Penal, a presente decisão terá por objecto dois recursos apresentados pelos arguidos AA e BB:
A. o recurso interlocutório interposto do despacho judicial proferido em acta da sessão da audiência do julgamento do dia 07/07/2022, e
B. o recurso interposto da sentença condenatória.
*
No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 1195/19.5PAPVZ que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Póvoa de Varzim, em 28/07/2022 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:
«IV - DECISÃO:
Nestes termos, e ao abrigo das disposições legais supramencionadas, julgo a acusação dos autos principais totalmente provada e a acusação do apenso E não provada, pelo que, em consequência:
1. Condeno a Arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º n.º 1 alínea d), 2 alínea a), 4 e 5 do Código Penal:
a. na pena principal de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a um regime de prova a delinear pela D.G.R.S.P., o qual deverá conter expressamente a previsão de integração da Arguida em programa de agressores de violência doméstica (PAVD), desenvolvido por aquela entidade, entre outros que se entendam oportunos em função da avaliação de risco e necessidades desta situação em concreto;
b. nas penas acessórias de não contactar, por qualquer meio, com a Assistente CC, nem dela se aproximar a uma distância mínima de 300 metros e de não permanecer ou se aproximar da residência da Assistente naquela distância mínima, pelo período de 2 (dois) anos, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância pelo período de 1 (um) ano, dispensando-se o consentimento da Arguida;
c. subordina-se ainda o cumprimento da pena principal:
i. à obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a Assistente CC, nem dela se aproximar a uma distância mínima de 300 metros e de não permanecer ou se aproximar da residência da Assistente naquela distância mínima, pelo período de 2 (dois) anos;
ii. ao dever de efetuar o pagamento das indemnizações infra fixadas em prestações mensais, iguais e sucessivas de 50,00 EUR (cinquenta euros), até efetivo e integral pagamento, com início no mês seguinte à data do trânsito em julgado, por transferência bancária e até ao final do mês a que disser respeito;
iii. à obrigação de proceder à junção aos autos, de forma trimestral, dos comprovativos do pagamento das indemnizações fixadas.
2. Condeno o Arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º n.º 1 alínea d), 2 alínea a), 4 e 5 do Código Penal:
a. na pena principal de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a um regime de prova a delinear pela D.G.R.S.P., o qual deverá conter expressamente a previsão de integração do Arguido em programa de agressores de violência doméstica (PAVD), desenvolvido por aquela entidade, entre outros que se entendam oportunos em função da avaliação de risco e necessidades desta situação em concreto;
b. nas penas acessórias de não contactar, por qualquer meio, com a Assistente CC, nem dela se aproximar a uma distância mínima de 300 metros e de não permanecer ou se aproximar da residência da Assistente naquela distância mínima, pelo período de 2 (dois) anos, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância pelo período de 1 (um) ano, dispensando-se o consentimento do Arguido;
c. subordina-se ainda o cumprimento da pena principal:
i. à obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a Assistente CC, nem dela se aproximar a uma distância mínima de 300 metros e de não permanecer ou se aproximar da residência da Assistente naquela distância mínima, pelo período de 2 (dois) anos;
ii. ao dever de efetuar o pagamento das indemnizações infra fixadas em prestações mensais, iguais e sucessivas de 50,00 EUR (cinquenta euros), até efetivo e integral pagamento, com início no mês seguinte à data do trânsito em julgado, por transferência bancária e até ao final do mês a que disser respeito;
iii. à obrigação de proceder à junção aos autos, de forma trimestral, dos comprovativos do pagamento das indemnizações fixadas.
3. Absolvo a Arguida CC, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º n.º 1 do Código Penal.
Mais decido julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela Assistente CC no âmbito dos autos principais e improcedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo Assistente BB no apenso E, pelo que, em consequência:
1. Condeno a Demandada AA na obrigação de pagamento à Demandante CC:
a. da quantia de 651,15 EUR (seiscentos e cinquenta e um euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da notificação do pedido de indemnização cível até efetivo e integral pagamento;
b. da quantia de 2.500,00 EUR (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento;
2. Condeno o Demandado BB na obrigação de pagamento à Demandante CC:
a. da quantia de 651,15 EUR (seiscentos e cinquenta e um euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da notificação do pedido de indemnização cível até efetivo e integral pagamento;
b. da quantia de 2.500,00 EUR (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento;
3. Absolvo a Demandada CC do pedido contra si deduzido.
Condeno os Arguidos AA e BB nas custas processuais penais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s para cada um, nos termos das disposições conjugados do artigo 513.º n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal e do artigo 8.º n.º 9, por referência à tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
Sem custas processuais na parte cível, com exceção do pedido de indemnização cível no valor de 6.391,49 EUR (seis mil, trezentos e noventa e um euros e quarenta e nove cêntimos) formulado pela Assistente CC, condenando os Arguidos AA e BB e a Assistente CC, neste conspecto e na proporção do respetivo decaimento, em custas na percentagem de 49,30% para a Demandada AA, em 49,30% para o Demandado BB e em 1,40% para a Demandante CC, sem prejuízo do apoio judiciário de que todos beneficiam.
Notifique e registe.
Deposite (cfr. arts. 372.º n.º 5 e 373.º n.º 2 ambos do Código de Processo Penal).»
*
A. Do recurso interlocutório.

Previamente ao recurso interposto da decisão final, vieram os arguidos AA e BB a dar entrada no processo de recurso do despacho proferido em acta da sessão da audiência do julgamento do dia 07/07/2022, e que lhes indeferiu a arguição de nulidades por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade que haviam suscitado na sessão da audiência de julgamento do dia 17/06/2022.

Apresentam em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação:
A) O presente recurso vem interposto do despacho datado de 7 de Julho de 2022, com a Ref. n.º 438589582, em que o Tribunal a quo julgou improcedente as nulidades invocadas pelos Arguidos que dizem respeito à recusa por parte do julgador da produção de prova requerida, designadamente, a inquirição de uma testemunha e a visualização dos vídeos juntos aos autos na contestação dos Arguidos datada de 2 de Abril de 2022, com a Ref. Citius n.º 3186541, designadamente e identificados como documentos 12,18 a 20, juntos com os Requerimentos com as referências citius n.ºs 3186541 e 31865460.
B) A produção da prova requerida pelos Recorrentes revela-se essencial e necessária para a descoberta da verdade. A juncão dos vídeos por parte dos Recorrentes foi feita com a contestação, enquanto que a inquirição da testemunha surgiu no âmbito da audiência de julgamento e portanto, tal diligência foi requerida nos termos do artigo 340.º do Código de Processo Penal.
C) Sucede que, o Tribunal a quo indeferiu a produção da prova aqui em crise, na audiência de Julgamento do dia 17 de Junho de 2022, conforme Ata com a Ref. Citius n.º 437843518.
D) Face ao indeferimento do douto Tribunal, os ora recorrentes arguiram, de imediato, a nulidade de tal despacho, tendo a 1.ª instância se pronunciado sobre a mencionada arguição na audiência de julgamento de dia 7 de Julho de 2022.
E) Os Recorrentes invocaram a nulidade do despacho que indeferiu os mencionados requerimentos probatórios por tal ato constituir uma omissão de diligências que são essenciais para a descoberta da verdade, nos termos do artigo 120 n.º 2, Alínea d) do Código de Processo Penal.
F) O Tribunal a quo pronunciou-se, por despacho, na sessão de audiência de julgamento do dia 7 de Julho de 2022, mantendo a sua posição de indeferimento sobre as nulidades invocadas - falta de visualização dos vídeos juntos aos autos e falta de inquirição da testemunha DD.
G) Ora, os Recorrentes não se conformam com o entendimento do Tribunal a quo, que se traduz numa verdadeira limitação ao seu direito constitucionalmente consagrado de defesa, e denegação de justiça, que impede o mesmo de conhecer a verdade e veracidade dos factos das acusações.
H) No momento em que o despacho foi proferido oralmente pelo Tribunal a quo na 4.ª sessão de julgamento, no pretérito dia 7 de Julho de 2022, e conforme consta no parágrafo 58.º da Ata, os Recorrentes manifestaram, de imediato, a sua vontade em recorrer, comunicando que, no prazo legalmente estipulado, iriam juntar as suas motivações de recurso.
I) No entanto, o Tribunal a quo proferiu decisão final conforme sentença datada de dia 28 de Julho de 2022, com a Ref. Citius 437843518.
J) Caso os Venerandos Desembargadores considerarem este recurso totalmente procedente e, concomitantemente, reconhecerem a nulidade invocada, deverão os autos descer à primeira instância para ser produzida prova necessária e omitida, e, devendo a sentença ser considerada nula.
K) Apesar de o presente recurso se versar sobre direito, a verdade é que, é necessário, ainda que muito resumidamente, contextualizar os factos aqui em causa.
Historiando,
L) Os Recorrentes são casados e a Recorrida CC é mãe da Recorrente e sogra do Recorrente.
M) Com o falecimento do seu pai EE, era a Recorrente, ainda que com a ajuda do seu marido, quem cuidava, de todos os assuntos correntes da vida da aqui Recorrida CC, zelando pelo seu bem-estar.
N) Tanto assim é que, por vontade e a pedido da Recorrida CC, os Recorrentes foram residir com a mesma, no imóvel situado na Rua ..., ..., na Póvoa de Varzim.
O) Em 19 de Outubro de 2018, por sua livre vontade e iniciativa, foi celebrada uma escritura de partilha por morte do pai, em que foi adjudicado o referido imóvel à Recorrente AA, ficando a Recorrida CC, com o usufruto do mesmo.
P) Atendendo que o mencionado imóvel estava bastante degradado e a necessitar de obras para que fosse possível acolher com algum conforto três pessoas, os Recorrentes venderam o seu apartamento para adquirem solidez para o efeito, sendo que a Recorrida era sabedora de tal facto e assentiu no mesmo.
Q) No que concerne à primeira nulidade invocada, a falta de inquirição do Sr. DD, tal diligência toma-se relevante para a descoberta da verdade em sede de audiência de julgamento, na medida em que este, como empreiteiro, executou as mencionadas obras e, o seu nome foi mencionado pela Recorrente, nas suas declarações, não só por ser a pessoa mais cabal para descrever as condições em que a Recorrida residia antes das obras como para relatar os seus comportamentos durante o decorrer da mesmas, visto que, alegadamente, esta insultou e injuriou tanto a sua filha, como os trabalhadores da referida testemunha.
R) A pessoa indicada surgiu no âmbito da audiência de discussão e julgamento, através. das declarações da Recorrente, em instâncias do Sr. Dr. Juiz, esta esclareceu que: " (06 '29") Dentro de casa, porque a minha mãe vivia no meio dos ratos, tinha um sótão cheio de ratos e eu posso confirmar com o empreiteiro que fez as obras, sim mas eu estou a dizer para o senhor Doutor Juiz entender que a minha mãe vivia sem portas em casa, não tinha portas, só tinha porta de entrada e tinha um sótão onde ela colocava remédio para os ratos morrer. " (07'05 '').
S) Assim, não corresponde à realidade o afirmado no parágrafo 40.º do despacho recorrido, o Tribunal a quo indica que: "De resto, a pessoa indicada não é mencionada em qualquer auto ou termo do processo, nem foi nomeada por qualquer testemunha inquirida, nem sequer nas declarações dos Arguidos. "
T) Ademais, o paragrafo 41.º, o Tribunal de 1.ª instância recupera um trecho da acusação onde refere que, em suma, os Recorrentes mudaram as fechaduras das portas e obrigavam a Recorrida a viver num anexo da residência, mas que não possui condições de habitabilidade.
U) Assim, o Sr. DD pode esclarecer o Tribunal de 1.ª instância acerca dos trabalhos que realizou, do estado do imóvel, do modo como a Recorrida habitava e, se, efetivamente, assistiu a episódios de violência em que esta protagonizou contra a sua filha, aqui Recorrente.
V) Ora, o artigo 120.º n.º 2 na sua alínea d) do Código de Processo Penal dispõe que "constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legal, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. "
W) É entendimento pacífico da nossa jurisprudência que esta nulidade pode ser arguida na fase de julgamento quando, apesar da disponibilidade do julgador, este omite diligências necessárias para a descoberta da verdade.
X) A improcedência da nulidade invocada tem implicações no exercício do direito do contraditório constitucionalmente consagrado, dado que a versão dos arguidos, aqui Recorrentes, sobre o estado da habitação antes e depois das mencionadas obras assim como o estado em que a Recorrida vive (diga-se, tem acesso total a todas os cómodos do imóvel), nunca mereceu qualquer credibilidade, na fase de julgamento, pelo que apenas resta aos mesmos sindicar e provar a sua inocência mediante pedir que seja ouvida mais uma testemunha sobre estas questões.
Y) A omissão de tal diligência inibe os Arguidos de exercerem o seu direito de defesa e de verem ser apreciados pelo Tribunal factos que, constituem o núcleo essencial das questões que se prendem a ver resolvidas para a boa decisão da causa.
AA) Deve a presente nulidade ser considerada totalmente procedente, e concomitantemente, ser inquirida a pessoa indicada como testemunha pelos Arguidos, aqui Recorrentes, de modo a esclarecer tal questão pertinente e necessária para a descoberta da verdade.
BB) No que concerne à segunda nulidade invocada pelos Recorrentes, esclareça­ se que estes juntaram aos autos várias fotografias e vídeos que comprovam- sem margem para dúvidas - que a Recorrida tem acesso a todos os compartimentos da habitação e que, ao contrário do que a acusação pública refere, até é a mesma a agressora e não a vítima!!
CC) Logo, os vídeos juntos aos autos - designadamente os documentos 12,18 e 20 da contestação dos Recorrentes - são imagens recolhidas, em bruto, em que é audível_os insultos que a Recorrida dirige à sua filha, aqui Recorrente.
DD) Nesta altura, o Tribunal já tinha inquirido testemunhas que relataram estar presentes quando a Recorrida insultou e tentou agredir a Recorrente, mais concretamente, o FF, bombeiro de profissão numa ocorrência em que se deslocou ao imóvel em que os três residem.
EE) Sendo certo que, em momento algum, a Recorrente foi instigadora de tais comportamentos visualizados nos vídeos atendendo que, foi uma escolha da Recorrida continuar a insultar a sua filha após ter conhecimento que estava a ser filmada.
FF) O Tribunal a quo indeferiu a produção de tais vídeos em sede de audiência de julgamento e improcedeu a nulidade invocada, mas, tanto o julgador como a acusação os visualizou.
GG) No despacho recorrido, mais concretamente no paragrafo 52.º da página 5 da ata da 4.º sessão de julgamento, é possível ler-se o seguinte: "Ora, no caso concreto, os vídeos em causa são gravados, tendo logo no início se houve alguém a dizer e incitar ao insulto (alegadamente pela arguida AA), dirigido a outrem (alegadamente à Assistente CC), bem como se ouve arremessar de objetos de modo a provocar inquietação e discussão. "
HH) Atendendo que no despacho recorrido o julgador faz uma valorização daquilo que observou, a visualização dos mesmos em audiência de julgamento mostrava-se necessária face ao direito de defesa dos Arguidos.
II) Sendo que, como vítima de violência domestica, a filmagem dos comportamentos da Requerida, representa uma forma de se proteger da agressora. No entanto, mesmo com as mencionadas gravações, a Recorrida continuou a sua atividade criminosa.
JJ) Caso fosse dada oportunidade à Recorrente de explicar o contexto das gravações, e se o Tribunal a quo se focasse na gravidade das palavras que a Recorrida profere em tais momentos, entenderia que não existiu qualquer provocação por parte da vítima.
KK) Ao contrário do que é defendido pelo Tribunal a quo, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, tem admitido a reprodução de vídeos e a gravação de áudios como prova licita quando, não existe outro modo, de demonstrar os factos que consubstanciam a prática de um crime.
LL) A este propósito veja-se, o Venerando Ac. Do TR. Porto, Processo n.º 308/16, de 24 de Setembro de 2020: "I- Se a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas por outrem configurar um ilícito penal não poderá ser atribuído valor probatório à gravação, caso contrário será prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador. II - O preenchimento, em abstracto, dos elementos constitutivos de ilícito criminal pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da culpa e, em consequência, pode ser considerada a gravação das palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como válida a prova recolhida por esse meio. III - Entre nós tem sido entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. IV - É o que sucederá nos casos em que a necessidade de protecção da vida privada dos intervenientes se mostra mitigada, já que contende com circunstâncias em que a coberto do foro Íntimo do casal são praticados ilícitos criminais, tal como sucede, com frequência, nos crimes de violência doméstica. "
MM) No caso em apreço, estamos perante crimes de violência doméstica e ofensas à integridade física em contexto familiar, e portanto é necessário uma prudência e cuidado por parte do Julgador.
NN) Logo, a produção em sede de audiência de julgamento de toda a prova mostra-se da mais inteira necessidade e pertinência para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
OO) A gravação de imagem ou áudio representa um mecanismo de defesa que a vítima de violência dispõe para se proteger e conseguir provar os crimes de que é vítima.
PP) Assim, não se entende nem se compreende como é que o Tribunal a quo, indefere a produção de prova tão autêntica sobre os factos, improcedendo a nulidade invocada e já melhor esmiuçada em A), mas acaba por fazer um juízo de valor sobre aquilo que visualizou, sem o subjugar ao principio do contraditório.
QQ) Com o indeferimento dos requerimentos probatórios apresentados pelos Recorrentes, o julgador não só não assegurou nem desempenhou o seu papel inquisitório e de investigação pela descoberta da verdade, mas antes restringiu, gravemente, as garantias de defesa, impostas por aquelas normas constitucionais e internacionais e inerentes ao estatuto de qualquer arguido.
RR) O Tribunal a quo violou gravemente o consagrado nos artigos 2º e 32º da Constituição da República Portuguesa, no nº 3, do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, ainda, do nº 3, do artigo 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos.
SS) Face ao circunstancialismo exposto, requer-se a V. Exa. que revogue o despacho recorrido, e admita a produção de prova requerida pelos Recorrentes em sede de audiência de julgamento, e concomitantemente, considere a sentença proferida pelo Tribunal a quo nula por não ter apreciado todos os elementos probatórios aqui em causa, sendo que, a mesma foi elaborada estando o julgador ciente da interposição deste recurso, obrigando à repetição da audiência de julgamento.

A este recurso respondeu o Ministério Público, em 03/09/2022, concluindo da seguinte forma:
I - Do objecto do recurso ao qual respondemos
1. O objecto do recurso ao qual respondemos prende-se com a resolução das seguintes questões: x.) – saber se o recurso sobre a decisão que indeferiu o pedido de declaração de nulidade das decisões que rejeitaram as diligências de prova requeridas pelos arguidos é formalmente idóneo a produzir uma alteração do decidido quanto a tais diligências;
xx.) - saber se as diligências probatórias requeridas pelos arguidos eram efectivamente essenciais à descoberta da verdade;
xxx.) – saber se, ao indeferir tais diligências probatórias, o Tribunal a quo praticou um acto processual ferido de nulidade.
II - Das soluções encontradas
2. Da questão referida em x.) relacionada com a necessidade de saber se o recurso sobre a decisão que indeferiu o pedido de declaração de nulidade das decisões que rejeitaram as diligências de prova requeridas pelos arguidos é formalmente idóneo a produzir uma alteração do decidido quanto a tais diligências:
Os arguidos nunca recorreram dos despachos que indeferiram as diligências probatórias por eles peticionadas, os quais foram proferidos a 17 de Junho de 2022 (cfr. fls. 861 e 862 destes autos) e, por isso, transitaram em julgado em Julho de 2022 muito antes da interposição do recurso ora sob resposta (que apenas foi interposto em Agosto de 2022).
3. Embora os mesmos tenham tempestivamente invocado a nulidade de tais decisões, na medida em que o fizeram no acto processual (3ª sessão de julgamento) em que delas tomaram conhecimento por terem sido, então, notificados das respectivas decisões, o que acontece é que ignoraram por completo a obrigatoriedade de, não obstante a invocação da nulidade, e uma vez que a mesma foi indeferida, terem de recorrer das referidas decisões de indeferimento, sem prejuízo de também poderem recorrer do despacho que indeferiu os pedidos de nulidade.
4. Ao não o terem feito, e ao permitirem que tais decisões transitassem em julgado limitando-se a recorrer do despacho que declinou os pedidos de nulidade, permitiram, também, a nosso ver, a sanação da nulidade prevista no art. 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, que eventualmente as pudesse afectar visto que estamos a falar duma nulidade processual relativa, ou seja dependente de arguição pelo respectivo interessado.
5. Logo, o presente recurso deve ser declarado improcedente por impossibilidade do seu objecto na medida em que a nulidade que pretende ver declarada já se sanou por falta de reacção tempestiva contra os despachos de 17 de Junho de 2022 que dela poderiam estar feridos.
6. Da questão referida em xx.) relacionada com a análise sobre a essencialidade das diligências em causa para a descoberta da verdade:
As diligências probatórias peticionadas pelos arguidos e indeferidas pelo Tribunal recorrido não se mostram, no caso vertente, essenciais à descoberta da verdade.
7. Da audição da testemunha DD: Os arguidos AA e BB não terem indicado esta testemunha na contestação (quando o podiam ter feito pois já sabiam da sua existência), o que restringiu, desde logo, as circunstâncias legais de admissibilidade do seu depoimento em julgamento.
8. Da prova produzida não decorreu que a testemunha DD tenha presenciado qualquer facto relevante do objecto do processo, designadamente no tocante à factualidade imputada aos arguidos, sendo certo que os arguidos também não concretizaram no seu requerimento de pedido de prova suplementar que situações presenciou esta testemunha com interesse para o objecto do processo que justificasse a sua audição pelo Tribunal.
9. Embora resulte da prova produzida que a testemunha em apreço (DD) foi o empreiteiro das obras feitas na casa dos arguidos e da assistente a que a acusação pública se reporta, e embora a arguida tenha confirmado tal facto e aludido a que o mesmo conhecia o estado da casa antes das obras, o que é certo é que esta questão em particular assume um papel puramente secundário no âmbito destes autos.
10. Os factos imputados aos arguidos e discutidos nos autos não tem a ver com as obras na casa mas sim com a conduta de violência por estes alegadamente infligida à assistente CC que, diga-se, apenas se iniciou depois da conclusão das obras quando os três passaram a residir juntos na moradia identificada na acusação.
11. O Tribunal não descredibilizou a versão dos arguidos AA e BB no tocante ao assunto das obras na casa. O Tribunal retirou credibilidade à versão dos arguidos na parte em que os mesmos negaram os actos de violência física e psicológica dirigidos contra a assistente CC que a acusação lhes atribuiu.
12. Ou seja, independentemente do que a testemunha DD viesse dizer ao Tribunal sobre o estado da casa antes e depois das obras, tal facto em nada poderia alterar a falta de credibilidade extraída pelo Tribunal dos discursos dos arguidos no tocante às acções de violência que dirigiram contra a assistente, assim como em nada iria alterar os factos que compõem o objecto do processo e que se reconduzem aos elementos típicos do crime de violência doméstica colocando os arguidos AA e BB no papel de autores do crime e a assistente CC no papel de vítima.
13. Aliás, os factos controvertidos e criminalmente relevantes sob discussão neste processo surgem depois das obras terem sido concluídas quando os três protagonistas dos autos foram viver para a casa aqui em questão e, repita-se, em momento algum do processo a arguida AA ou qualquer outro interveniente processual (ou mesmo qualquer outro meio de prova) refere a testemunha DD como tendo sido alguém como conhecimento do que quer que fosse acerca da vida destas pessoas depois de terem ido morar para a casa em crise.
14. Os invocados insultos da assistente CC a DD, aos seus trabalhadores e à arguida AA durante as obras são meras alegações da defesa que não só não foram vertidas no requerimento do pedido da prova em questão, como também não foram referidos por ninguém ouvido em julgamento.
15. Da reprodução e utilização como prova dos vídeos juntos aos autos pelos arguidos BB e AA:
Recuperando em parte a argumentação expendida no segmento anterior, é nosso parecer que também a reprodução e utilização dos vídeos em causa como prova não constitui uma diligência essencial à descoberta da verdade, desde logo porque, também neste particular, se alcança que os arguidos não explicaram com substrato factual em que fundamento consistia essa essencialidade probatória quando formularam nos autos um requerimento no sentido da sua exibição e utilização como prova.
16. A realidade do vídeo não contende com aquela que os factos constantes da acusação e dados como provados ilustra, nem tão pouco é idónea a conferir credibilidade ao discurso dos arguidos na parte em que os mesmos negam as acções de violência que a matéria provada e prova produzida lhes imputa e que preenchem o crime de violência doméstica pelo qual foram condenados.
17. O vídeo em causa, embora retrate uma filmagem em que se pode ver a assistente CC a insultar a arguida AA, denota que houve um claro incitamento da primeira para o efeito. Do vídeo resulta claramente a ideia de que a arguida AA promove os insultos e inclusivamente não se abstém de gravar esse mesmo momento, ou seja capturando a imagem e voz da assistente sem o consentimento desta quando ambas trocavam palavras ainda sem ofensas verbais, sendo certo que nos parece evidente que a postura da arguida AA incita à ofensa e constitui por si só uma ofensa anterior ao insulto que recebe a seguir.
18. Como tal, também nós acompanhamos a posição do Tribunal recorrido quanto ao carácter ilícito deste vídeo pelo que, não tendo sido a gravação consentida pela assistente CC e opondo-se esta à visualização do mesmo, conforme decorre da acta de julgamento, não havia fundamento legal para utilizá-lo como prova.
19. Em suma, e concluindo, o vídeo em questão constitui prova proibida em processo penal pelo que não pode ser utilizado como prova mas, mesmo que assim não fosse, e devidamente compulsado o seu teor, não se vislumbra em que medida o mesmo poderia constituir um elemento probatório necessário à descoberta da verdade tendo em conta o objecto dos presentes autos submetido a julgamento.
20. Da questão referida em xx) relacionada com a análise sobre a verificação de alguma nulidade processual decorrente dos despachos de indeferimento das diligências probatória em causa:
A omissão de diligências reconduzível a um tal regime é apenas aquela que traduza o afastamento de diligências reputáveis como essenciais à descoberta da verdade material.
21. Porém, não havendo no caso vertente fundamento idóneo, legítimo e justificativo para a realização das diligências pretendidas, não ficou demonstrada nos autos a essencialidade para a descoberta da verdade material das referidas diligências.
22. Logo, não é possível concluir pela verificação de qualquer invalidade processual e, muito menos, pela violação do disposto nos arts. 118º, 120, nº 2, alínea d), 124º e 125º, do Código de Processo Penal.
23. Aqui chegados, e perante o conjunto de argumentos que aqui apresentamos, é imperativa a conclusão no sentido de que deve ser julgado inteiramente improcedente o recurso apresentado pelos arguidos, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido e os seus efeitos legais de onde resulta a rejeição da existência de qualquer nulidade processual e, bem assim, a rejeição das diligências probatórias requeridas pelos arguidos, prosseguindo os autos o seu curso com a admissibilidade e validade da sentença de primeira instância neles já proferida.

Nesta parte, e neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, acolheu a posição da resposta ao recurso pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando igualmente pela respectiva improcedência, referenciando o seguinte:
« Desde logo, se tem que levantar a questão sobre se o tribunal de recurso se pode pronunciar sobre o indeferimento da realização de diligências, ao abrigo do disposto no artigo 340,º do CPP, e sobre a nulidade arguida relativamente à prolação de tal despacho, prévio à decisão final.
Como bem refere o digno magistrado do Ministério Público em 1ª instância, os Recorrentes ao terem deixado transitar em julgado o despacho judicial que indeferiu as diligências por eles requeridas, ao abrigo do mencionado normativo, impossibilitaram que haja nova decisão sobre tal questão.
Se é verdade que os RR arguiram a nulidade, prevista no artigo 120.º, n.º2 d) do CPP, e a mesma foi dada como não verificada, recorrendo deste último despacho judicial, no entanto, não tendo os RR reagido, por via do recurso, ao primeiro despacho judicial, deixaram que o mesmo transitasse, sendo entendimento dominante na jurisprudência dos tribunais superiores que dessa forma fica o vício invocado sanado.
Conforme se dispõe no n.º 3 do artigo 410.º do CPP, «o recurso pode ter ainda fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada».
Pôs-se, desse modo, cobro à dúvida sobre a necessidade de antes da interposição do recurso ser arguida a nulidade.
Porém, e como decorre do já afirmado, a arguição da nulidade e o seu indeferimento não dispensa o recurso da decisão que indeferiu no caso concreto as diligências de prova consideradas indispensáveis para a descoberta da verdade.
A apreciação da necessidade de produção de prova complementar, nos termos do artigo 340.º do CPP, e requerida pelos arguido em sal defesa, teria que ser avaliada de acordo com a decisão que foi tomada a final pelo tribunal a quo e a forma como foi considerada ou não suficiente a prova produzida para a decisão final, sendo evidente que caso a decisão fosse absolutória o recurso agora interposto seria totalmente inútil.»

Cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, vieram os arguidos responder ao parecer emitido, mantendo, no essencial, a posição que já haviam evidenciado no recurso.

B. Do recurso da Sentença condenatória.

Inconformados com a Sentença condenatória proferida, dela recorreram, em 29/08/2022, os arguidos AA e BB, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1 - O presente recurso vem interposto da sentença condenatória, datada de 28 de Julho de 2022, com a Ref. n.º 4391267167, em que o Tribunal a quo decidiu condenar os aqui Recorrentes, cada um, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º n.º 1 alínea d), 2 alínea a), 4 e 5 do Código Penal: na pena principal de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a um regime de prova a delinear pela D.G.R.S.P. e ainda nas penas acessórias de não contactar, por qualquer meio, com a aqui Recorrida, nem dela se aproximar a uma distância mínima de 300 metros e de não permanecer ou se aproximar da residência desta naquela distância mínima, pelo período de 2 (dois) anos, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância pelo período de 1 (um) ano, dispensando-se o consentimento dos aqui Recorrentes .
2 - Tal pena foi subordinada ao cumprimento da pena principal das seguintes injunções: i. à obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a Assistente CC, nem dela se aproximar a uma distância mínima de 300 metros e de não permanecer ou se aproximar da residência da Assistente naquela distância mínima, pelo período de 2 (dois) anos; ii. ao dever de efetuar o pagamento das indemnizações infra fixadas em prestações mensais, iguais e sucessivas de 50,00 EUR (cinquenta euros), até efetivo e integral pagamento, com início no mês seguinte à data do trânsito em julgado, por transferência bancária e até ao final do mês a que disser respeito; iii. à obrigação de proceder à junção aos autos, de forma trimestral, dos comprovativos do pagamento das indemnizações fixadas;
3 - No tocante ao pedido de indemnização cível, o Tribunal de 1.º instância condenou ainda os Recorrentes, enquanto Demandados, e respetivamente, na obrigação de pagamento à Recorrida à quantia de 651,15 EUR (seiscentos e cinquenta e um euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da notificação do pedido de indemnização cível até efetivo e integral pagamento e da quantia de 2.500,00 EUR (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para as obrigações meramente civis, desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento;
4 - Na sentença recorrida, ainda que sobre a epígrafe “[q]uestão prévia - da compensação invocada na contestação dos Arguidos AA e BB”, o Tribunal recorrido escreve: “[n]o caso concreto, os Arguidos invocaram a compensação sem deduzirem reconvenção, o que poderia originar um convite ao aperfeiçoamento para o efeito”; fruto desta decisão, o Tribunal recorrido deu como não escritos os factos deduzidos nos itens 96.º a 98.º da contestação conjunta apresentada pelos Arguidos/Recorrente (fls…);
5 - Debruçando-nos no decidido pela primeira instância, facilmente se depreende que o Exmo. Sr. Juiz confundiu, antes de mais, dois conceitos civilísticos elementares: reconvenção e compensação; “[a] compensação constitui, no direito civil, uma causa de extinção das obrigações, o que inculca o seu tratamento processual como exceção perentória (art. 571-2), por outro lado, a compensação, enquanto o contra-crédito não excede o crédito do autor, situa-se no âmbito do pedido por este deduzido”;
6 - Em nossa humilde e franca opinião, seria um atentado jurídico que os Arguidos não pudessem invocar exceções dilatórias ou peremptórias nas suas contestações, pois isso resultaria numa injustiça com pouco ou nenhum sentido; a contestação não serve apenas para contradizer os factos vertidos no libelo acusatório, serve, também, para refutar o pedido de indemnização cível apresentado pela parte alegadamente lesada (contestação que, neste sentido, os arguidos lograram preconizar);
7 - Ao indeferir uma parte da contestação com o fundamento de inexistir pedido reconvencional, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre uma questão que lhe estava vedado pronunciar-se; tendo a sentença extravasado o objeto do processo, a mesma terá de ser considerada nula, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º n.º 1 al. c) do CPP.
8 - Por força do despacho proferido a 20-04-2022 (ref. 435708671) o Tribunal a quo decidiu o que se transcreve: “[p]or legal e tempestiva, admito a contestação apresentada pelos arguidos AA e BB, bem como o rol de testemunhas e prova documental que a acompanha”; este era, inequivocamente, o momento adequado para o Tribunal a quo levantar a questão da admissibilidade/legalidade do conteúdo vertido na contestação e nunca, mas nunca, na sentença condenatória, depois de decorrido todo um julgamento e depois de esgotados os seus poderes jurisdicionais sobre a matéria (n.º 1 e n.º 3 do art. 613.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP).
9 - Perante a inexistência de qualquer interposição recursiva, e por força da figura do caso julgado, o despacho com a ref. 435708671 firmou-se definitivamente no processo;
10 - Nos autos em apreço, decorreram uma série de atos, despachos judiciais, sessões de julgamento (atas com as seguintes referências: 436726056; 436928634; 437843518; 438589582; 439126716), nunca tendo o Tribunal a quo suscitado qualquer deficiência na contestação apresentada pelos Arguidos, nomeadamente alguma que obstasse ao seu conhecimento.
11 - Ao decidir pelo indeferimento/rejeição da contestação em sede de sentença, o Tribunal de primeira instância preteriu um princípio elementar do nosso ordenamento jurídico: o princípio do contraditório; sempre com todo o respeito, o ultraje ao princípio do contraditório perpetrado pelo Tribunal a quo desencadeou, como dissemos, uma verdadeira decisão- surpresa, isto porque não é de todo razoável ou sensata a crença de que os Arguidos (ora recorrentes) pudessem esperar que, com a prolação da sentença, o julgador fosse dar como não escritos determinados factos por aqueles aduzidos nas suas contestações (ainda para mais tendo em consideração o caso julgado formal indissociável do despacho que recebeu a contestação dos recorrentes (fls…) e que, no mesmo, fora decidida a absoluta legalidade da mesma;
12 - A preterição do princípio do contraditório - inequivocamente manifestada na sentença recorrida (fls…) - conduz igualmente à inexistência da decisão;
13 - Nas palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA, “[a] inexistência afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua sanação. É bem de ver que seria tecnicamente inconcebível, para além de profundamente iníquo, deixar sem tutela vícios do acto mais graves do que os que a lei prevê como constituindo nulidades.”
14 - Atendendo à decisão-surpresa proferida, deverá ser reconhecida procedente a inexistência que assola a sentença recorrida, ou, caso assim não se entenda, deverá ser reconhecida a nulidade da sentença prevista no art. 379.º n.º 1 al. c) do CPP, por excesso de pronúncia (pois não se afigurava lícito ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre uma questão que já tinha sido, oportunamente, objeto de apreciação por via de despacho transitado em julgado);
15 - Subsidiariamente, caso se entenda que decorre da lei processual penal a possibilidade de o juiz da primeira instância indeferir liminarmente uma contestação (ainda que de forma parcial) na sentença final, nomeadamente por via do art. 368.º n.º 1 do CPP, sempre esta interpretação da norma deverá ser entendida como inconstitucional - por violação do disposto nos ns.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa (inconstitucionalidade que expressamente se requer que seja reconhecida);
16 - Neste sentido, ao rejeitar, pelos errados fundamentos que carreou para a sentença, parte da contestação (itens 96.º a 98.º) apresentada pelos Arguidos, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 78.º n.º 1 do CPP (na medida em que inviabilizou uma defesa com cariz excetivo).
17 - No caso em apreço, verifica-se que a contestação fls (…) apresentada pelos Arguidos/ Recorrentes não se limitou a infirmar os factos de que eram acusados ou contar uma versão alternativa da história; ao invés, os Arguidos alegam factos cruciais suscetíveis de, per si, afastarem a sua responsabilidade penal; veja-se, por exemplo, o alegado no item 70.º, que foi desconsiderado pelo tribunal no elenco dos factos provados ou não provados, no qual é expressamente dito que os Arguidos não se encontravam naquela data e hora no local do facto imputado;
18 - Aliás, os Arguidos alegaram o local onde se encontravam, bem como indicaram a testemunha capaz de isso atestar; pela circunstância de o Tribunal a quo não ter apreciado o conteúdo da contestação conjunta apresentada pelos Arguidos/Recorrentes (fls…), não conseguimos depreender porque este álibi não foi, na sentença, considerado ou desconsiderado;
19 - Ademais, atendendo ao crime de que eram acusados (violência doméstica), afigurava-se imprescindível que o Tribunal recorrido explorasse toda a panóplia de factos alegados pelos arguidos/recorrentes na contestação (bem como todo o acervo probatório que a acompanhou), pois se, por um lado, alguns desses factos determinam a atenuação ou a exclusão da culpa, outros são mesmo causas de exclusão da ilicitude;
20 - Nos itens 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, da contestação apresentada pelos arguidos/recorrentes (fls…) é expressamente alegado que a assistente/recorrida pediu (consentiu) a instalação das câmaras de vigilância, uma vez que tinha receio de permanecer sozinha em casa;
21 - Efetivamente, o crime de violência doméstica revela uma construção jurídica complexa, na medida em que o bem jurídico tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de protecção da vítima pois visa proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua dignidade, privacidade e integridade moral como ser humano;
22 - Ora, invocando expressamente os arguidos a exclusão da ilicitude da conduta lesiva de um bem jurídico que o crime de que foram acusados tenciona acautelar, por estar dotado de extrema relevância, deveria, na esteira do que temos vindo a explanar, ter sido explorado na sentença recorrida (nomeadamente constando dos factos provados ou não provados [respeitantes à imputação penal e não à cível] o consentimento oferecido pela assistente);
23 - Todo o conteúdo exarado na contestação apresentada pelos Arguidos/Recorrentes está revestido de especial importância, são factos juridicamente relevantes, suscetíveis de influir na medida da pena e, por isso, são dotados de um efetivo interesse para a decisão (vide, entre outros, ac. do Tribunal da Relação de Évora: “- [o] tribunal deve pronunciar-se sobre os factos alegados na contestação com interesse para a decisão, não lhe sendo lícito, porque resultaram provados os factos da acusação, omitir pronuncia sobre os factos da contestação, seja com que argumento for. II - Com efeito, os factos alegados na contestação devem ser levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois que, naturalmente, foram entendidos pelo apresentante como factos relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa, pelo que tal omissão conduz à nulidade da sentença);
24 - Ignorando em absoluto o conteúdo da contestação apresentada pelos Arguidos/ Recorrentes, quer seja por via da nulidade do art. 379.º n.º1 al. a) do CPP (falta de enumeração dos factos provados ou não provados), quer seja pela nulidade do art. 379.º n.º 1 al. c) (por omissão de pronúncia), o certo é que a sentença encontra-se, por um motivo ou por outro, viciada; vícios esses que, expressamente, requeremos que sejam declarados;
25 - Vertendo para o conteúdo do facto dado como provado no item 15 da sentença ora posta em crise, nele o Tribunal recorrido fixou o seguinte: “[c]omo consequência direta e necessária das agressões infligidas, a Assistente sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no auto de relatório de perícia de fls. 32 e 33 dos autos principais, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais (…).”
26 - Ao remeter os factos dados como demonstrados para conteúdo aposto em documentos juntos aos autos, e ao não individualizar de forma taxativa os factos provados que suportam a condenação dos arguidos - impedindo-os, assim, de cabalmente os conhecer - o Tribunal a quo proferiu uma sentença que é nula, por força do disposto no art. 379.º n.º 1 al. a) do CPP (falta de fundamentação) (vide Tribunal da Relação de Lisboa: “I-[d]e acordo com as disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, a falta de enumeração dos factos provados e dos factos não provados gera a nulidade da sentença; II- A prova de factos feita numa sentença, por remissão para outras peças processuais ínsitas nos autos, no elenco dos factos provados (ou não provados), não é legalmente admissível; III- Para além da sentença ser fulminada com a nulidade, torna-a “opaca” por ficar imperceptível, em virtude da adopção desta deficiente técnica jurídica, a qual por nada valer, não concretiza os factos, logo não os enumera, tornando-os invisíveis logo insidicáveis; IV- O legislador foi muito preciso e claro quando, em analepse exige uma concreta enumeração de todos os factos que resultaram provados e não provados, quer estejam eles na acusação, na pronúncia, contestação e pedidos cíveis e contestações, para perfectibilizar uma decisão judicial, não se bastando sequer com as referências por pura e dura remissão, pois enumerar significa uma descrição especificada dos factos, que, como tal se consideram, sendo necessário indicá-los um a um”;
27 - Deverão ser dados como não escritos todos os factos que configurem matéria conclusiva e que se encontrem insertos no segmento da sentença recorrida respeitante aos factos dados como demonstrados, nomeadamente: o plasmado no item 69.º: “[…] postura comum em pessoas idosas que viveram a maior parte da sua vida nas suas casas de família, que muitas vezes os próprios construíram e onde cresceram os seus filhos […]”;
28 - Para prova dos factos vertidos nos pontos 42 a 71 da sentença recorrida, o Tribunal a quo socorreu-se dos relatórios sociais sobre a Assistente e Arguidos (fls. 779 - 787), os quais nunca foram notificados aos Arguidos;
29 - Ora, os referidos Relatórios Sociais foram relevantes na formação da convicção do Mmo. Juiz a quo – como consta dos factos provados elencados na sentença e da própria motivação de facto desta – e não pôde deixar de pesar na escolha das medidas das penas e das sanções acessórias;
30 - Esta questão ganha especial importância, porquanto, em relação à recorrente AA, foram dados como provados factos depreciativos da sua personalidade, como por exemplo o vertido no ponto 50: “[e]m setembro de 2019 foi diagnosticada com sintomatologia psicopatológica compatível com o diagnóstico de Perturbação de Adaptação com Humor depressivo e Ansiedade.”; já no que toca ao facto vertido no ponto 69.º - cuja prova teve como alicerce o relatório social que sobre a Assistente (e também Arguida) CC incidiu - diremos que o mesmo atesta um facto (falso) que funcionou em desfavor dos Arguidos/Recorrentes, pois do mesmo consta: “(…) não se sente bem a utilizar espaços que não são seus (…).”; da mesma forma, quanto às condições económico-financeiras apostas no ponto 70.º, que o Tribunal a quo deu como provadas - “(…) subsistindo da sua reforma, pensão de sobrevivência e renda um apartamento do qual é proprietária, tudo no valor de 700,00 € mensais” - os Arguidos/Recorrente também não tiveram oportunidade de refutar (o que realmente almejavam preconizar);
31 - Os relatórios sociais em questão (fls. 779-787) foram solicitados pelo Tribunal recorrido, por via de despacho judicial (ref. 434205058), a 09-03-2022, ou seja, antes do início do julgamento; aquando a realização da primeira sessão da audiência de julgamento, 17-05-2022 (vide ata com a ref. 436726056), os arguidos/recorrentes não foram, tal como se impunha, notificados do conteúdo dos relatórios sociais;
32 - Não tendo sido um relatório social solicitado pela primeira instância no decurso do julgamento, não estamos na presença do relatório social a que o art. 370.º do CPP alude, pois este, como expressamente a referida norma prevê, só se verifica perante as seguintes circunstâncias: “[o] tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessária (…).”; neste seguimento, teremos, então, que nos socorrer do preceituado no art. 355.º n.º 1 do CPP, o qual dita: “[n]ão valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”
33 - Assim sendo, ter-se-á que considerar, não obstante melhor entendimento em sentido contrário, os relatórios sociais como uma prova insuscetível de valoração - art. 355.º n.º 1 do CPP.; nas palavras de PINTO DE ALBUQUERQUE, “[a] inutilizabilidade da prova cuja produção na audiência não tenha tido lugar ou cuja produção na audiência fosse mesmo proibida constitui uma verdadeira proibição de prova”;
34 - Dito isto, tendo o Tribunal a quo dado como demonstrados os factos provados - nomeadamente os previstos nos pontos 42 a 71 - tendo, para o efeito, se socorrido de elementos (fls. 779 a 787) que nunca poderiam ser valorados como provas, tem como consequência a invalidada do ato em que se verifica, bem como os que dele dependerem e aquela puder afetar - art. 122.º n.º 1 do CPP (o que expressamente requeremos que seja reconhecido);
(…)
*
O recurso, em 01/09/2022, foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público, em 11/10/2022, concluindo da seguinte forma:
AA - Do objecto do recurso ao qual respondemos
1. O objecto do recurso ao qual respondemos prende-se com a resolução das seguintes questões:
i) - saber se a sentença proferida padece de nulidade por excesso de pronúncia relativamente à decisão nela contida de rejeição parcial da contestação apresentada pelos arguidos/ora recorrentes quando não o podia ter feito e, também, por referência ao momento em que o fez;
i.a ) – em complemento à questão antecedente saber se a admissibilidade legal da rejeição parcial da contestação no momento em que aqui ocorreu é inconstitucional por violação do princípio do contraditório [art. 32º da Constituição da República Portuguesa];
ii) - saber se a sentença proferida padece de nulidade por omissão de pronúncia relativamente à matéria factual alegada na contestação oferecida nos autos na medida em que o julgador a desconsiderou não colocando os factos que a constituem no segmento dos factos provados e não provados fixados na sentença;
iii) - saber se a sentença proferida padece de nulidade por ter remetido, relativamente ao completamento de parte da matéria factual dada com provada, para documentos juntos aos autos;
iiii) - saber se foi utilizada pelo julgador prova legalmente inadmissível para demonstração dos factos 42 a 71 da matéria provada na medida em que os mesmos se basearam nos relatórios sociais de fls. 779 a 787 que nunca foram notificados aos arguidos, ora recorrentes;
iiiii) – saber se o Tribunal incorreu em erro de julgamento da matéria de facto por errada apreciação da prova [impugnação ampla da matéria de facto], relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 5.) a 29.).
BB.1) Ponto prévio
2. Embora o recurso apresentado indique como um dos pedidos a condenação da arguida/assistente CC pela prática do crime que lhe foi imputado na acusação pública deduzida no apenso E.) destes autos, verificamos não haver na sua motivação e conclusões qualquer argumentação específica que a sustente, razão pela qual o recurso é a nosso ver nesta parte liminarmente inconsequente.
3. BB.2) Da questão de saber se a sentença proferida padece de nulidade por excesso de pronúncia relativamente à decisão nela contida de rejeição parcial da contestação apresentada
4. Os arguidos excepcionaram o instituto da compensação e o Tribunal A Quo decidiu, e bem, que em processo penal, e à luz do disposto no art. 78º do Código de Processo Penal - reforçado pela doutrina e jurisprudência citadas e identificadas pelo Tribunal na decisão em crise - é manifestamente inviável a compensação deduzida pelo arguido na medida em que esta depende de uma reconvenção que, por sua vez, é legalmente inadmissível.
5. Logo, outra não poderia ter sido a decisão, sendo certo que o julgador realizou uma correcta interpretação do disposto no art. 78º do Código de Processo Penal.
6. Independentemente do Tribunal A Quo o poder ou dever ter feito em momento anterior o que é certo é que o pedido dos arguidos era sempre ilegal e não podia, em momento algum, beneficiar da sanação da sua ilegalidade em função do tempo decorrido. Se tivesse decidido mais cedo as condições eram as mesmas, ou seja: os arguidos confrontar-se-iam com uma decisão contra a qual apenas poderiam reagir interpondo recurso, tal como agora fizeram.
BB.2.1) Da questão de saber se a admissibilidade legal da rejeição parcial da contestação em sede de sentença é inconstitucional por violação do princípio do disposto no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
7. Como atrás referimos, se o Tribunal tivesse decidido mais cedo as condições eram as mesmas, ou seja: os arguidos confrontar-se-iam com uma decisão contra a qual apenas poderiam reagir interpondo recurso, tal como agora fizeram. Ademais, não era de forma alguma aceitável e legalmente tolerável que o Tribunal, por estar a decidir uma questão mais tarde do que deveria ter feito, admitisse um segmento da contestação e o apreciasse numa operação de manifesta ilegalidade.
8. Não houve, portanto, qualquer decisão surpresa ou violação do princípio do contraditório, nem tão pouco se vislumbra em que medida a aceitação da decisão e linha de pensamento do Tribunal recorrido possa consubstanciar a validação de uma interpretação inconstitucional violadora das garantias de defesa do arguido plasmadas no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
BB.3.) Da questão de saber se a sentença proferida padece de nulidade por omissão de pronúncia relativamente à matéria factual alegada na contestação oferecida nos autos na medida em que o julgador a desconsiderou não colocando os factos que a constituem no segmento dos factos provados e não provados fixados na sentença
9. Ao analisarmos o teor da contestação em causa facilmente se verifica que a mesma consiste, na sua essencialidade, na negação dos factos da acusação pública que, segundo os arguidos, são falsos na sua quase totalidade.
10. No mais, a contestação é constituída por alegações puramente conclusivas, bem como por invocação de múltiplos factos que se distanciam do objecto da acusação pública e são, aliás, objecto de vários outros processos criminais pendentes que envolvem os intervenientes nestes autos, como aliás a própria contestação reconhece, em que os ora arguidos/recorrentes se queixaram contra a ora arguida/assistente CC.
11. Assim sendo, tendo o Tribunal recorrido ficado convencido da verificação da versão dos factos narrada na acusação pública dos autos principais e sendo a parte relevante da contestação formulada pelos arguidos a negação dos factos da mencionada acusação, parece-nos acertada a sua decisão proferida no caso vertente ao excluir dos factos provados ou não provados a versão plasmada na acusação deduzida pelos arguidos. Isto porque não faria sentido, quanto a nós, e poderia até tornar-se confuso a qualquer intérprete da sentença, dar como provado, a título de exemplo, que o arguido A agrediu o ofendido B com uma chapada na cara e como não provado que o arguido A não agrediu o ofendido B com uma chapada na cara.
12. Se o Tribunal recorrido tomasse uma decisão nesta sentença sobre tal factualidade no sentido de a dar como provada ou não provada estaria, quanto a nós, a colocar na matéria fixada, por um lado, factos que deveriam ser tidos como não escritos e, por outro lado, a consolidar factos que constituem o objecto nuclear de outros processos criminais pendentes podendo, por isso, criar força de caso julgado relativamente aos mesmos com o inerente risco de inutilizar esses processos ou de provocar contradição entre julgados, o que até poderia prejudicar a posição dos ora arguidos nesses autos.
13. Não houve, portanto, neste segmento da sentença, qualquer omissão de pronúncia ou qualquer nulidade ou outro tipo de invalidade processual susceptível de afectar o decidido.
BB.4) Da questão de saber se a sentença proferida padece de nulidade por ter remetido, relativamente ao completamento de parte da matéria factual dada com provada, para documentos juntos aos autos
14. A incompletude factual alegada pelos arguidos e pretensamente causadora da nulidade da sentença por eles invocada é a do ponto 15.) da matéria dada como provada que, por seu turno, corresponde ao parágrafo/artigo 15.) da acusação pública.
15. Uma leitura atenta dos factos em apreço dá de imediato nota de que as lesões principais são descritas no facto em discussão e só uma parte das mesmas é objecto de remissão para o documento de fls. 32 e 33 dos autos principais.
16. Logo, quanto muito o que teríamos seria a necessidade da eliminação da parte da remissão de onde resultaria um remanescente do facto perfeitamente integro no contexto geral dos factos, lógico, encadeável com os demais e pleno de eficácia para o preenchimento do crime. Esta pretensa incompletude não teria nunca a potencialidade de invalidar a sentença ou de obrigar à sua reformulação integral ou anulação integral com perda de significado e eficácia.
17. Seja como for, não nos parece que a técnica de remissão usada constitua qualquer erro processual ou produza qualquer invalidade ou consequência ao nível da alteração do facto pois o documento está no processo, está perfeitamente indicado, é perfeitamente associável ao facto sem qualquer esforço de análise e a remissão não diz respeito à estrutura e compreensão nuclear do facto posto em crise.
B.5) Da questão de saber se foi utilizada pelo julgador prova legalmente inadmissível para a demonstração dos factos 42 a 71 da matéria provada na medida em que os mesmos se basearam nos relatórios sociais de fls. 779 a 787 que nunca foram notificados aos arguidos
18. Dos autos não resulta a existência duma notificação formal de tais relatórios aos arguidos.
19. Porém, dos autos decorre que os relatórios sociais em apreço foram juntos a 11 de Maio de 2022, que a primeira sessão de julgamento teve lugar a 17 de Maio de 2022 e que os arguidos tinham já sido notificados do despacho do Tribunal que ordenou a realização e junção aos autos de tais relatórios em Março de 2022.
20. Na referida primeira sessão de julgamento o Tribunal recorrido proferiu despacho notificado aos arguidos ordenando o pagamento dos referidos relatórios e, ademais, informou-os novamente em despacho proferido nessa data que já tinha ordenado a junção aos autos dos referidos relatórios sociais.
21. Os relatórios são realizados na sequência do contacto da D.G.R.S. com os visados, onde se incluíam os arguidos/recorrentes.
22. As sessões de produção de prova em julgamento nestes autos ascenderam ao nº 4 e duraram desde Maio de 2022 até Julho de 2022, sucedendo, ainda, que desde 11 de Maio de 2022 os referidos relatórios sociais também estiveram sempre integralmente digitalizados no histórico electrónico do processo ao qual as ilustres defensoras dos arguidos sempre tiveram acesso.
23. Ora, perante todo este conjunto de circunstâncias, afigura-se-nos que os arguidos não podiam deixar de saber, pelo menos a 07 de Julho de 2022, aquando da última sessão de produção de prova em julgamento, que os relatórios sociais já tinham seguramente sido juntos aos autos.
24. Logo, não tendo nenhum dos arguidos invocado oportunamente nenhuma nulidade ou irregularidade processual relacionada com a inexistência da notificação que agora mencionam, entendemos que a invalidade processual resultante desta ausência de notificação formal se sanou pelo decurso do tempo.
25. Aqui chegados, e nesta ordem de ideias, afigura-se-nos que a livre apreciação do teor dos relatórios e sua valoração levadas a cabo pelo julgador foram plenamente legítimas e válidas à luz das regras da apreciação da prova em processo penal não havendo, portanto, qualquer reparo, correcção ou anulação que deva ou possa incidir sobre a factualidade resultante deste meio de prova.
26. Todavia, mesmo considerando os relatórios sociais em apreço como prova inutilizável ou inadmissível a consequência que daí resultará em nada poderá afectar o cerne da decisão proferida nos presentes autos pois a ausência dos factos que neles se estribam não colide com o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica imputado aos arguidos, nem tão pouco com os fundamentos das penas que lhes foram aplicadas ou com os fundamentos das medidas de coacção outrossim agravadas e fixadas em sede de sentença.
(…)

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, propugna pela improcedência do recurso, referenciando em síntese:
– Concorda-se no essencial com o que foi defendido e argumentado pelo Digno magistrado Ministério Público em 1ª instância, devendo a sentença recorrida ser mantida nos seus termos.
Quanto à questão prévia- da compensação invocada na contestação dos arguidos- nada há acrescentar ao que foi devidamente fundamentado em sede da sentença recorrida, sufragando-se o entendimento de que não é admissível em sede de processo penal, e ao abrigo do princípio da adesão, previsto no artigo 78.º do CPP, a reconvenção e a réplica, pelo que não só a decisão recorrida é correcta, como não padece de qualquer excesso de pronúncia, como é evidente.
– Na mesma linha do que bem se refere na resposta do M.ºP.º em 1º instância, os factos constantes da contestação, mesmo aqueles que não se limitam a negar os factos constantes da acusação, mas ainda acessórios ou alternativos à versão apresentada na acusação, só têm de ser trazidos aos factos dados como provados e não provados se forem imprescindíveis à boa decisão da causa, ou à determinação do grau de responsabilidades dos visados.
(…)
*
Foi, em 16/12/2022, cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*
II. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. nº 91/14.7YFLSB. S1)[1], e de 30/06/2016 (proc. nº 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:

II.A. Quanto ao recurso interlocutório, saber se se mostra verificada a nulidade processual prevista no art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal por via da não admissão de meios de prova essenciais à descoberta da verdade:
i) com relação à não admissão/visionamento das imagens vídeo,
ii) com relação à não admissão da prestação de depoimento como testemunha de DD.

II.B. Quanto ao recurso da decisão final:
1. saber se a sentença proferida padece de nulidade por excesso de pronúncia relativamente à decisão nela contida de rejeição parcial da contestação apresentada pelos arguidos/recorrentes;
2. saber se a sentença proferida padece de nulidade por falta de fundamentação em virtude da omissão de referência a matéria factual alegada na contestação apresentada nos autos pelos arguidos/recorrentes.;
3. saber se a sentença proferida padece de nulidade por, relativamente a parte da matéria de facto dada com provada, remeter para o teor de documentos juntos aos autos;
4. saber se a sentença elenca matéria de facto conclusiva que deva ser considerada não escrita;
5. saber se a sentença proferida padece de nulidade por haver sido utilizada prova legalmente inadmissível para sustentar os factos dos pontos 42. a 71. da matéria de facto provada, na medida em que os mesmos se basearam nos relatórios sociais elaborados nos autos e não notificados aos arguidos/recorrentes;
6. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal;
7. saber se a medida concreta da pena de prisão aplicada aos arguidos é excessiva;
8. saber se os valores das indemnizações em que os arguidos foram condenados são excessivos;
9. saber se estão reunidos os pressupostos da condenação da recorrida CC pelo crime de que vinha acusada e pelo pedido de indemnização civil correspondente.

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
*
II.A. Apreciação do recurso interlocutório

Cumpre apreciar em primeiro lugar o recurso, interposto pelos arguidos AA e BB, da decisão que julgou não verificada a oportunamente invocada nulidade processual das decisões de indeferimento da produção de meios probatórios requeridos pelos mesmos arguidos.

São as seguintes as incidências processuais relevantes a considerar para apreciação e decisão deste recurso:

1º, Os arguidos AA e BB formularam, durante a sessão de audiência de julgamento do dia 23/05/2022, e ao abrigo do disposto no art. 340º do Cód. de Processo Penal, um pedido de produção de prova suplementar que consistia na inquirição como testemunha de DD, alegando para o efeito que a sua inquirição era essencial à descoberta da verdade porquanto o mesmo realizou as obras na casa dos mesmos arguidos e da co–arguida/ assistente CC, que são mencionadas nos autos e assistiu a situações que a defesa entende ser necessário esclarecer para descobrir a realidade dos factos – tendo nesse acto, a após o Ministério Público e a assistente se haverem oposto ao requerido, o Mmo. Juiz a quo relegado para momento processual ulterior (após a produção da prova testemunhal arrolada pela defesa) a decisão sobre o requerido,

2º, Entretanto, na sessão de audiência de julgamento do dia 17/06/2022, os mesmos arguidos AA e BB requereram ainda a visualização em julgamento de vídeos que tinham apresentado com a contestação, alegando que a reprodução das imagens em questão eram uma prova necessária à descoberta da verdade atendendo a que muitos testemunhos produzidos nos autos são indirectos ; não há outros meios de prova directos dos factos em discussão para além das declarações dos principais intervenientes; e a defesa entende que estes últimos deverão pronunciar-se sobre o teor dos vídeos [segundo a contestação dos arguidos tais vídeos retratam uma situação em que é a arguida AA quem é insultada de “vaca”, “filha da puta” e “caveira”.

3º, Nesta mesma sessão, do dia 17/06/2022, o tribunal a quo veio então a decidir as questões assim suscitadas, tendo proferido a propósito duas decisões:
– a primeira, relativamente ao pedido de reprodução de tais vídeos, em que, após ter auscultado a posição da assistente expressa em acta pela sua mandatária no sentido de se opor à visualização por não ter consentido a gravação, decide nos termos do seguinte despacho:
« Atenta à oposição manifestada pela Sra. CC, uma vez que de tais vídeos decorre de uma gravação não consentida, pelo menos da sua voz, indefere-se o requerido, uma vez que se trata de prova inadmissível, por ter sido efetuada a respetiva gravação sem o consentimento da visada, em violação do disposto no artigo 199.º do Código Penal.»
– e a segunda, no que respeita ao pedido de inquirição da testemunha DD, indeferindo o requerido, o que fez nos termos do seguinte despacho:
«Concordando na integra com a douta promoção do Ministério Público, que consta já da ata da sessão de julgamento anterior
[e cujo teor, assinala–se, foi o seguinte:
«1 - Relativamente ao fundamento invocado como razão de ser da produção deste requerimento, relacionado com o facto desta testemunha ter presenciado situações que do ponto de vista da defesa são importantes para a descoberta da verdade, verificamos que, em primeiro lugar, em momento algum da produção de prova realizada até ao presente momento é possível retirar que esta testemunha tenha presenciado qualquer facto imputado na acusação, ou qualquer facto conexo com a acusação, tanto mais que a defesa não refere agora no seu requerimento, nem concretiza, que situações terão sido essas presenciadas pela testemunha.
Na verdade, resulta da prova até ao momento, das declarações da testemunha GG, que será pai da testemunha DD, que foi a testemunha DD que realizou as obras na habitação comum dos Arguidos, e nenhuma outra ligação aos factos nos é oferecida pela prova que até agora foi produzida em julgamento.
2 - Relativamente ao outro fundamento invocado, que tem a ver com o conhecimento do estado da casa antes da realização das obras, afigura-se-nos também que não é um argumento suficientemente válido pelo seguinte:
Mesmo admitindo que a casa pudesse estar em mau estado e a necessitar de obras, não pomos isso em causa, o que nos parece relevante é que, de acordo com a prova produzida até ao momento, a referida habitação estaria em condições mínimas de habitabilidade, ou seja, a casa tinha água, luz, estava habitável e, portanto, as obras aparentemente não eram condição indispensável para a subsistência da casa ou que, acautelasse eventual risco de desmoronamento, ou qualquer coisa desta natureza. Portanto, salvo melhor opinião, também neste particular, nos parece que não há fundamento suficientemente relevante para ouvir esta testemunha.
Por conseguinte, promovo o indeferimento do requerido e embora, em tese e no limite, se possa admitir que esta testemunha possa eventualmente vir depor sobre a questão do estado da casa, o que é certo é que relativamente ao ponto anterior, e que abordamos inicialmente, os tais factos que terá presenciado, aí não parece que haja nenhum tipo de fundamento. Por conseguinte em face do ora invocado, o Ministério Público promove o indeferimento requerido pela defesa.»],
entende o Tribunal que, efetivamente, a inquirição do Sr. DD não se mostra indispensável à descoberta da verdade, nem à boa decisão da causa, sendo que, caso assim fosse, já os Arguidos deveriam ter, em sede de contestação, arrolado a referida testemunha, o que não fizeram.
Por conseguinte, indefere-se o requerido.
Notifique.»

4º, A defesa dos arguidos, ao ser confrontada com os indeferimentos da produção suplementar de prova que peticionara, arguiu de imediato (na mesma sessão do dia 17/06/2022) a nulidade das duas referidas decisões por via das quais o tribunal a quo declinou a produção de prova em discussão, o que fez nos seguintes termos:
«Atendendo ao despacho do Mm.º Juiz relativamente ao indeferimento da audição do Sr. DD, vai-se arguir a nulidade, nos termos do art.º 120.º n.º 2 al. d) do CPP, uma vez que se entende que a audição do mesmo se torna essencial para a descoberta da verdade, pelo que se requer que o mesmo seja ouvido.
Em relação à questão dos vídeos, e como me adiantei há pouco, existe já vasta jurisprudência que entende que, quando está em causa um bem maior, e neste caso estamos a falar da vida e integridade física de uma pessoa, que as gravações podem ser usadas.
Aqui neste Tribunal já percebemos que é rara a testemunha que nos indica que viu alguma coisa, por exemplo no dia de hoje até tivemos, mas é raro, e portanto parece-nos que foram juntos a estes autos vídeos já com o cuidado de não mostrar a cara da D. CC, de preservar até um pouco da privacidade onde ela existe, mas é notório por todos nós que até já vimos o vídeo, conseguimos perceber que a voz é da Sra. que se apresentou aqui no Tribunal.
Nos vídeos é patente que não se trata de uma Sra. fragilizada, até trata mal a filha, pelos nomes que estão lá, até de modo muito audível e de modo muito agressivo e muito convicto do que está a fazer, e parece-nos que, atendendo que não existe, tirando agora a testemunha do Sr. FF e do filho da D. AA, em que dizem que até assistiram mesmo, não existe aqui ninguém neste Tribunal que diga ouviu, quer seja da D. AA para a D. CC, quer seja da D. AA para a D. CC, a agressões, parece-me que é importante, e nesse sentido, já existe vasta jurisprudência sobre isso. Até acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, nos quais é referido que, quando está em causa, no fundo, bens constitucionalmente protegidos e que têm de ser salvaguardadas, estas gravações, quando se revelam necessárias para a descoberta da verdade, podem ser usadas nos processos. Porquê? Porque esta é a única forma que esta filha tem de provar o que a mãe lhe está a fazer constantemente.
Se fosse uma questão de denegrir a imagem da mãe, nós tínhamos, e foram-nos cedidos vários vídeos, até vídeos com situações um bocado chocantes, do estado da casa de banho, e até por uma questão de tentarmos preservar a imagem da D. CC, e juntámos só o que entendíamos ser proporcional às duas questões que estão aqui em causa.
É verdade que é a imagem, mas a imagem até nem se vê muito, está de costas, mas é verdade que é a voz. Temos aqui neste Tribunal um casal a sofrer, injustamente acusado, um casal que não tem outra maneira de provar que, muitas vezes, o boneco que é aqui feito no julgamento não corresponde à vida real, e, portanto, expõe os vídeos que foram juntos, na necessidade que temos de provar a realidade.
Aqui já sabemos que as testemunhas até podem ser fabricadas, e podem dizer – estou a falar de uma forma genérica, não estou a acusar a outra parte de nada, atenção – mas ali foi vida real, não vimos nos vídeos a Sra. D. AA a dizer faz, ou acontece; não, pelo contrário, vimos uma reação, essa Sra. tinha a plena noção que estava a ser filmada e continuou.
Aliás, ouvimos o Sr. Bombeiro, uma pessoa estranha, a Sra. não se coagiu, não se inibiu de continuar a insultar e até a tentar agredir a mãe. Estamos a falar de um processo principal, mas temos aqui um processo apensado e o Tribunal tem conhecimento que há outros processos, e considero que se a D. CC tem possibilidade de chamar aqui novamente testemunhas, entre outros requerimentos probatórios, deve ser dada a possibilidade ao Sr. BB, como Arguido e por uma questão de justiça até, a possibilidade para que o Tribunal consiga ver as situações que eles passam.
O Sr. BB é uma pessoa mais pacata e não pegou logo no telemóvel como a D. AA, porque esta já estava desesperada, e esta foi a única maneira de – vejamos, nós também sabemos a questão da idade, é mãe, uma pessoa mais velha, pode-se entender como uma pessoa mais vulnerável, mas também tem que se perceber que isso não é o que acontece na realidade.
E, portanto, estes vídeos são obrigatórios a sua produção, e em nada é embarra com o direito de personalidade, porque o direito de personalidade é, na minha opinião e na opinião dos acórdãos que depois posso juntar por requerimento (pois não os temos aqui), mas de qualquer maneira, temos o direito de personalidade e da privacidade (que agora está muito em voga), mas temos aqui a vida, a integridade física, a honra; temos uma Sra. que neste momento voltou a precisar de tratamento psicológico; temos um Sr. que ainda há pouco tempo, há cerca de duas semanas, voltou a parar ao Hospital com toda esta situação.
E, portanto, parece-nos de mais elementar justiça que os vídeos sejam reproduzidos, até posso dar aqui um exemplo, se calhar muito mais sonante, que aqui um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no Processo N.º 308/16, de 24.09.2020, que nos diz: - ”Entre nós tem sido entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação atua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.”
Porquê? Este acórdão explica muito bem a questão aqui dos direitos fundamentais, e nós aqui somos quase todos juristas, entre a privacidade e o direito à vida, o que pesa na balança é a vida, a integridade, porque tem havido situações e a Sra., por exemplo a que o bombeiro FF nos falou que a Sra. tentou agredir com um prato, a verdade é que há pouco tempo foi com um guarda chuva, o que irá suceder se ninguém pára esta escalada? Por isso é importante ouvirmos e vermos a D. CC na sua normalidade.
Portanto, é o que se afigura, e considerarmos que existe aqui uma nulidade, nos termos do artigo 120.º n.º 2 alínea d). É isto que entendemos, porque se trata da omissão de diligências que se podem reputar essenciais para a descoberta da verdade, que é o direito à integridade física e à vida, e haver aqui alguma justiça para a descoberta da verdade. »

5º, Sobre a nulidade assim invocada relativamente às anteditas decisões, o tribunal a quo veio a pronunciar-se no dia 07/07/2022, afirmando, então, a inexistência de qualquer nulidade e rejeitando por isso a sua declaração, o que fez por despacho cujo teor é o seguinte
«Na última sessão da audiência de julgamento, na sequência do despacho de indeferimento da inquirição do Senhor DD e do despacho de indeferimento de visualização dos vídeos juntos aos autos, vieram os Arguidos AA e BB arguir a nulidade de ambos os despachos, nos termos do disposto no artigo 120.º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não se verificar qualquer nulidade quanto aos referidos despachos, promoção essa subscrita na íntegra pela Ilustre Mandatária da Arguida/Assistente CC.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 120.º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal o seguinte:
“2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
Quanto ao segundo aspeto, estamos perante nulidade devida pela omissão de atos processuais na fase de julgamento e de recurso.
A título exemplificativo, conforme refere João Conde Correia, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo I”, Almedina, 2019, p.1253-1254, devem considerar-se essenciais à descoberta da verdade diligências probatórias tais como a tomada de declarações a residentes fora da comarca (art. 318.º n.º 1 alínea b), o adiamento da audiência (art. 328.º n.º 3 alínea a) e c), a falta do assistente, de testemunhas, de peritos, de consultores técnicos ou das partes civis (art. 331.º n.º 2), a presença do arguido (art. 332.º n.º 5 e 334.º n.º 3), a realização de perícia sobre o estado psíquico do arguido (art. 351.º n.º 1) ou a omissão de informar o arguido daquilo que se passou na sua ausência (art. 332.º n.º 2).
Acrescenta o referido comentador que “diligências que, embora importantes, estejam na disponibilidade do julgador (art. 340.º), não estão aqui, como é óbvio, incluídas”.
Também Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 3.ª Ed., 2009, p. 306, ensina que a omissão posterior de diligências que se pudessem reputar essenciais para a descoberta da verdade consubstancia nulidade quando se omite a prática de atos processuais probatórios que a lei classifica como prova essencial, indispensável, absolutamente indispensável e estritamente indispensável na fase de julgamento e de recurso. Por outro lado, diligências essenciais podem não ser diligências probatórias stricto sensu, como acontece, por exemplo, com a falta de informação ao arguido sobre o que se passou na sua ausência da audiência.
Volvendo ao caso em apreço:
Em relação à primeira nulidade arguida quanto ao indeferimento da inquirição do Senhor DD, não estamos perante diligência que se pudesse reputar essencial para a descoberta da verdade, uma vez que a sua inquirição não se demonstra indispensável para o efeito, nem para a boa decisão da causa.
Na verdade, está em causa nas acusações públicas deduzidas a imputação da prática de um crime de violência doméstica perpetrado pelos Arguidos AA e BB contra a Assistente CC, bem como a imputação de um crime de ofensa à integridade física simples perpetrado pela Arguida CC contra o Assistente BB.
Ora, em sede de contestação, os Arguidos AA e BB não arrolaram o Senhor DD como testemunha, o que poderiam ter feito.
Acresce que dos elementos constantes dos autos e da prova produzida não resulta que o mesmo tenha presenciado qualquer facto imputado nas acusações, ou qualquer facto conexo com a acusação, tanto mais que os Arguidos não referiram no seu requerimento, nem concretizaram, que situações terão sido essas presenciadas pela testemunha.
Pelo contrário, apenas a testemunha GG, pai do Senhor DD, mencionou que o filho realizou as obras na habitação comum dos Arguidos e, questionado expressamente quanto ao seu filho lhe ter confidenciado assistir a algum problema durante a realização das obras, o mesmo respondeu negativamente.
De resto, a pessoa indicada não é mencionada em qualquer auto ou termo do processo, nem foi nomeada por qualquer testemunha inquirida, nem sequer nas declarações dos Arguidos.
Também relativamente ao estado da habitação comum dos Arguidos antes das obras realizadas, já constam dos autos vários elementos de prova (tais como fotografias) e foi produzida diversa prova quanto ao estado da mesma, antes e depois, por diversas testemunhas, para além de que na acusação apenas consta o seguinte: “Quando foram viver com a assistente, os arguidos fizeram obras de beneficiação na residência, colocando câmaras de vigilância para, além do mais, controlarem aquilo que a assistente fazia. Após a realização das obras, mudaram as fechaduras das portas e acabaram por impedir a assistente de entrar em casa, obrigando-a a viver num anexo da residência, mas que não possui condições de habitabilidade, tendo dividido o quintal com redes e fechado, a cadeado, o galinheiro, impedindo a assistente de alimentar as galinhas. Além disso, queimaram a roupa da assistente e retiraram a mobília dela do interior da residência, colocando-a, a monte, num barraco, não a deixando usar a casa de banho, obrigando-a a sair de casa para tomar banho em casa da outra filha ou da irmã, onde também, por vezes, dorme, com receio dos arguidos”.
Ora, acresce que tal facto (estado da habitação comum antes das obras) não é referido na acusação, nem interessa para apurar se houver lugar à prática do crime de violência doméstica, pelo que também aqui não há fundamento suficientemente relevante para ouvir o Senhor DD.
Por conseguinte, por falta de fundamento legal, julgo improcedente a suscitada nulidade.
Em relação à segunda nulidade arguida quanto ao indeferimento de visualização dos vídeos juntos aos autos, não estamos perante diligência que se pudesse reputar essencial para a descoberta da verdade, pois o vídeo em causa não retrata qualquer dos factos relatados nas acusações públicas.
Mais, a sua visualização e valoração pelo Tribunal é proibida por lei, por contender com o direito à imagem e à voz da Assistente CC, gravação essa efetuada sem o consentimento da visada, em violação do disposto no artigo 199.º do Código Penal.
Com efeito, dispõe o artigo 167.º n.º 1 do CPP, com a epígrafe “Valor probatório das reproduções mecânicas”, que as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
Acresce que, de acordo com o artigo 125.º do mesmo diploma legal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (o que não é o caso).
Invocam ainda os Arguidos AA e BB o Ac. do TR Porto, Processo n.º 308/16, de 24/09/2020, cujo sumário consta que: - ”Entre nós tem sido entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação atua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.”
Na verdade, este Tribunal está a par das novas correntes jurisprudenciais que, de forma paulatina, vêm admitindo a possibilidade de aceitação em juízo das chamadas “provas proibidas”.
Contudo, não é essa a regra e as exceções são diminutas, sob pena de subversão das normas supramencionadas.
A título de exemplo e dependendo sempre do caso em concreto, a ilicitude penal pode demonstrar-se afastada por causas de justificação, tais como a legítima defesa ou o estado de necessidade, pela prossecução de interesses legítimos ou utilizando um critério geral de ponderação de interesses.
Ora, no caso concreto, os vídeos em causa são gravados, tendo logo no início se houve alguém a dizer e incitar ao insulto (alegadamente pela Arguida AA), dirigido a outrem (alegadamente à Assistente CC), bem como se ouve arremessar de objetos de modo a provocar inquietação e discussão.
Assim, a gravação é em causa não foi efetuada tendo em vista a proteção de quem gravava contra uma agressão atual.
Aliás, o Acórdão citado tinha que ver com a gravação das palavras proferidas por outrem, designadamente gravação realizada por vítima de violência doméstica no domicílio conjugal, sem o conhecimento e autorização do Arguido, tendo-se concluído que a autora da gravação atuava ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, sendo assim prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador. Ou seja, um quadro fáctico e jurídico totalmente diverso do presente.
Em segundo lugar, a gravação em causa nem sequer diz respeito aos factos constantes das acusações públicas, pelo que, para além de prova proibida conforme se referiu por falta de fundamento para excluir a ilicitude, também tal diligência não é pertinente, nem suficientemente relevante para apreciação dos factos em causa.
Por conseguinte, por falta de fundamento legal, julgo improcedente a suscitada nulidade.»

Inconformados com esta última decisão judicial, que não declarou as nulidades processuais invocadas, vêm, pois, os arguidos AA e BB interpor o presente recurso da mesma, pedindo, pois, a sua revogação e consequente substituição por uma outra decisão que declare as nulidades invocadas.
Como já se relatou supra, e aqui se sintetiza, propugnam os arguidos/recorrentes que que se mostra verificada a nulidade processual prevista na parte final da alínea d) do art. 120º/2 do Cód. de Processo Penal, e que afecta aquelas anteriores decisões de indeferimento por as mesmas haverem obstado à produção de meios de prova que reputam (os recorrentes) essenciais para a descoberta da verdade.

E primeiro aspecto primordial a clarificar é que, na verdade, estamos perante o recurso da decisão de não verificação da nulidade prevista no aludido art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal, com relação a duas anteriores decisões do tribunal recorrido, proferidas com relação a dois distintos requerimentos de produção de meios probatórios.
O que significa que, em bom rigor, o que está em última análise em causa é a apreciação e decisão sobre se se verifica (ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido) a nulidade processual em causa com relação a duas decisões do tribunal a quo em sede de julgamento : uma relativa à requerida admissão e visionamento de determinadas imagens gravadas em suporte vídeo, e outra relativa à requerida admissão a depor como testemunha de determinada pessoa (DD).
Esta nota prévia é tanto mais relevante quanto se constata que a apreciação e decisão a adoptar nesta sede quanto é diferente relativamente a cada uma das situações em causa.
Assim, impõe–se a respectiva apreciação separadamente.

II.A.i) De saber se é nula a decisão de não admissão/visionamento das imagens vídeo.

Começando, pois, pela decisão do tribunal a quo de não admitir e visionar – e, assim, valorar probatoriamente – as imagens gravadas em suporte vídeo juntas pelos arguidos AA e BB aos autos, não pode merecer acolhimento a pretensão destes últimos, de ver reconhecida a nulidade processual de tal decisão, pelo simples motivo de que a arguição de tal nulidade se mostra em bom rigor materialmente prejudicada.
Na verdade, cumpre realçar a constatação de que tal decisão, adoptada pelo tribunal recorrido no dia 17/06/2022, assentou, não numa apreciação sobre a essencialidade de tal putativo meio de prova, mas sim na liminar circunstância de considerar ser esse um meio de prova proibido – em conjugação com o disposto no art. 199º do Cód. Penal, onde se tipifica criminalmente a captação ou utilização de gravações e fotografias ilícitas –, logo, insusceptível por essa via de produção e valoração nos autos.
É verdade que, a jusante de tal decisão, tanto os arguidos (na sua arguição da nulidade de tal decisão), como o Ministério Público (na sua pronúncia quanto a tal arguição), como inclusive o tribunal recorrido (na sua decisão de rejeitar essa nulidade) – e agora os dois primeiros em sede de recurso –, discorrem também, além de sobre a questão de estarmos ou não perante prova proibida, sobre as circunstâncias pelas quais consideram (ou não) que tal meio de prova seria “essencial para a descoberta da verdade”, por reporte à definição da parte final do art.120º/2/d) do Cód. de Processo Penal – onde, precisamente, se estipula que «Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais … A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade».
Tal, porém, não permite que se perca de vista a primordial materialidade da decisão que rejeitou a produção do suposto meio probatório em causa, e que foi, repete–se, ser o mesmo um meio de prova proibido. São, na verdade, planos de análise muito diversos, por um lado o da admissibilidade legal de determinado objecto de análise como meio probatório, e por outro lado o do relevo probatório de um meio de prova válido – o segundo dos planos mencionados pressupõe necessariamente a certificação do primeiro.
A decisão do tribunal a quo quanto à produção e valoração probatória das imagens vídeo aqui em causa circunscreve–se tão só ao primeiro dos planos de análise, determinando a sua não verificação.
E, se assim é, não se mostra afinal configurada nesta parte a adopção pelo tribunal recorrido de qualquer decisão susceptível sequer de enquadramento no regime da nulidade que foi oportunamente arguido relativamente à mesma, pois que, independentemente da discussão e debate sobre a essencialidade para a descoberta da verdade de determinado meio probatório, é suposto que esse meio probatório se configure como legalmente válido e processualmente permitido.
Na verdade, e como facilmente se compreenderá, só pode discutir–se a relevância probatória de um meio de prova que possa ser validamente produzido.
Ou, dito de outro modo, é pressuposto da susceptibilidade de verificação da nulidade processual decorrente da omissão, em sede de julgamento, de diligências probatórias (no caso) essenciais à descoberta da verdade (e, por isso, da respectiva apreciação), que estas últimas se reportem a elementos probatórios válidos e permitidos de acordo com o princípio a legalidade da prova, previsto desde logo no art. 125º do Cód. de Processo Penal (onde exactamente se estipula que «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»). Aliás, desde logo se constata inclusive que do art. 340º/3 do Cód. de Processo Penal resulta expressamente que “Sem prejuízo do disposto no art. 328.º, n.º 3, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou respectivo meio forem legalmente inadmissíveis”.
Ora, constata–se que no presente caso, e nesta parte, a decisão que não admitiu a produção do meio de prova em causa por o considerar ilegítimo e, assim, proibido, não foi objecto de oportuna impugnação pela adequada via de recurso – pelo que, decorrido que se mostra (há muito) o prazo que seria permitido para esse efeito (recorde–se datar a decisão do dia 17/06/2022), tal decisão mostra–se definitiva nos seus efeitos e nos presentes autos.
Ou seja, mostra–se definitivamente assente que o pretendido meio de prova em causa – as referidas imagens em suporte vídeo – não é um meio de prova processual permitido legalmente, sendo assim proibida a sua produção e utilização enquanto tal.
E, dessa forma, fica materialmente prejudicada a viabilidade de estarmos perante uma nulidade processual decorrente de o mesmo ser essencial à descoberta da verdade e omitida a sua produção, pois que tais produção e correspondente valoração, independentemente desse juízo de essencialidade probatória e ex ante do mesmo, são (por via de decisão judicial definitivamente fixada) desde logo proibidas.
Donde, improcede a invocação da nulidade em causa nesta parte do recurso.

II.A.ii) De saber se é nula a decisão de não admissão da prestação de depoimento como testemunha de DD.

Diversamente do que acabamos de ver suceder com relação à não admissão como meio de prova das imagens de vídeo a que se reporta também o recurso, no que tange à não admissão da requerida (pelos arguidos/recorrentes) inquirição como testemunha, e em sede de audiência de julgamento, do identificado DD, julga–se processualmente adequada a arguição de nulidade processual da decisão em causa com base no já citado art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal – sendo certo, e ainda por reporte a quanto se decidiu no ponto anterior, que a requerida prestação de depoimento testemunhal em causa se configura aqui como um meio probatório perfeitamente válido e legalmente admissível.
Neste sentido tem decidido de forma predominante a jurisprudência, podendo citar–se, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27/04/2009 (proc. 12/03.2TAFAF.G1)[3], onde se resume que «O exercício do poder de apreciação do condicionalismo legal inscrito no n.º1 do artigo 340º do Código de Processo Penal, isto é, o juízo de necessidade ou desnecessidade da diligência de prova requerida parece-nos insindicável por via de recurso directo: a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta, antes, uma nulidade relativa (sanável) prevista no artigo 120º, n.º2, alínea d), do CPP, a arguir “antes que o acto esteja terminado” (art. 120º, n.º3, al. a), que servirá de eventual fundamento de recurso (cfr. art. 410º, n.º3 do CPP)», ou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/10/2012 (proc. 202/12.7TBPRG.P1)[4], onde se escreve que «No que concerne à omissão de actos processuais, nomeadamente diligências probatórias, na fase do julgamento, a lei sanciona com nulidade sanável somente a omissão de diligência que se possa reputar essencial para a descoberta da verdade, nos termos do artigo 120.º n.º 2 al. d) do Código Processo Penal».
No mesmo sentido, mencionem–se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14/11/2012 (proc. 15722/10.0TDPRT.P1)[5], do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/02/2013 (proc. 475/08.0SZLSB.L1-5)[6], do Tribunal da Relação do Porto de 08/01/2014 (proc. 1170/09.8JAPRT.P2)[7], do Tribunal da Relação do Porto de 24/09/2014 (proc. 206/12.0GDOAZ.P1)[8], do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/01/2016 (proc. 59/12.8GDVVD.G1)[9], e do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/10/2018 (proc. 2528/16.1T9AMD.L1-5)[10] – no qual, ademais, se consigna que «Contrariamente ao que acontece quanto às nulidades de sentença, as quais podem e devem ser arguidas em recurso (art. 379.º, n.º 2, do CPP), a nulidade aqui em acusa, porque respeitante à prova a produzir em audiência de julgamento, deveria ter sido arguida pela parte interessada, no caso a defesa, antes do encerramento da produção da prova (art. 360.º, n.º 1), ou seja, antes das alegações orais, na medida em que se trata de nulidade cometida em acto ao qual os arguidos assistiam, nos termos da alínea a) do n.º 3, do mesmo artigo 120.º».
In casu, mostra–se também salvaguardada a tempestividade da arguição da nulidade em causa, em conformidade precisamente com o exigido nesta alínea a) do nº3 do art. 120º do Cód. de Processo Penal.
Vejamos então.

A lei processual penal consagrou em matéria de invalidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – cfr. nºs 1 e 2 do art. 118° do Cód. de Processo Penal.
As nulidades dividem-se em dois grandes grupos: as nulidades insanáveis (previstas no art. 119° do Cód. de Processo Penal e ainda as que como tal forem cominadas noutras disposições legais) e as nulidades sanáveis, ou dependentes de arguição, previstas no art. 120° do mesmo Código.
A nulidade que vem invocada nesta parte do presente recurso é, pois, aquela prevista na alínea d) do n°2 do citado art. 120º do Cód. de Processo Penal: a omissão, em fase de julgamento, de diligência que possa reputar-se essencial para a descoberta da verdade.
Como já vimos, resulta de tal disposição legal que «Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais … A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade». A segunda parte desta alínea d) do art. 120º/2 do Cód. de Processo Penal abrange, pois, a omissão de actos ou diligências processuais na fase de julgamento e de recurso, já que para a fase de inquérito ou instrução se dirige a primeira parte da mesma alínea. Aliás tal decorre inequivocamente da expressão «omissão posterior de diligências» ali inserida. Assim, verifica-se esta nulidade quando se omite a prática de actos processuais que possam classificar–se como «essenciais» nas fases de julgamento e de recurso.
No caso concreto, a alegação dos recorrentes reporta-se à omissão pelo tribunal de julgamento, de uma diligência de produção de determinado meio de prova (testemunhal) por eles requerida e que, no seu entender devia ter sido ordenada, por a reputarem essencial para a descoberta da verdade.
Porque o que está aqui em causa é a ponderação da necessidade de produção de um meio de prova em fase de julgamento, a previsão do art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal deve ser conjugada com outros normativos processuais que regem em tal fase processual.
Um deles é o artigo 340º do Cód. de Processo Penal, o qual no seu nº1 estipula que “O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa” ; também o nº4 do mesmo artigo 340º estipula que haverá indeferimento “se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) O requerimento tem finalidade dilatória”.
Este normativo é, pois, um afloramento do princípio da verdade material ou da investigação, que deve presidir à actividade do julgador, impondo que o mesmo persiga a verdade material dos factos sujeitos à sua apreciação. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um autêntico poder-dever por parte do tribunal na indagação exaustiva de todos os factos relevantes para um exame crítico e ponderado do que é objecto de julgamento. Como realça João Conde Correia, em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, ed. 2021, pág. 1253, «Malgrado a estrutura acusatória do processo, o tribunal tem o poder/dever, seja na fase de julgamento (art. 340º), seja na fase de recurso (Paulo Pinto de Albuquerque, 2007, p. 314), de «esclarecer e instruir autonomamente - i. é, independentemente das contribuições da acusação e da defesa - o "facto" sujeito a julgamento, criando, ele próprio as bases necessárias à sua decisão» (Jorge de Figueiredo Dias, 1974, p. 72). Se não o fizer, o acto será inválido, podendo ser anulado».
No entanto essa indagação está desde logo condicionada ao princípio da vinculação temática do tribunal aos factos juridicamente relevantes, tanto para a determinação da culpabilidade, como, quando for caso disso, da determinação da pena e da responsabilidade civil (124º do Cód. de Processo Penal).
Ou seja, e em resumo, o juízo sobre a essencialidade ou indispensabilidade de produção de determinada diligência de prova que cabe ao tribunal, está vinculado aos princípios da objectividade, necessidade, adequação e viabilidade da obtenção prova – além de, não se olvide, antes de tudo isso ao princípio da legalidade decorrente dos já acima (ponto II.A.i.) enunciados arts. 125º e 340º/4 do Cód. de Processo Penal, do qual decorre que só é ponderável a produção de meios de prova legalmente admissíveis.

Resulta, portanto, deste regime de produção de prova superveniente em sede de julgamento que, verificados os demais pressupostos processualmente previstos, existe a possibilidade extraordinária de – nomeadamente – o tribunal de julgamento determinar a produção de um meio de prova (nomeadamente uma inquirição como testemunha) não indicada em sede de acusação ou de contestação, desde que tal se «afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa» – porém, a nulidade decorrente da rejeição dessa diligência (quando requerida), exige a consideração mais restritiva de que tal acto seria essencial à descoberta da verdade.
Na verdade, não se perca de vista que a segunda parte da alínea d) do art. 120º/2 do Cód. de Processo Penal, impõe, para que da nulidade ali prevista se possa falar, que a diligência (probatória, no caso) omitida seja essencial à descoberta da verdade, excluindo–se assim à partida, como possível causa de nulidade, a omissão de diligências que não revistam essa essencialidade ou indispensabilidade.
Que não estamos perante uma mera questão de semântica, mas da definição de um verdadeiro critério material de verificação da nulidade em causa, realçam–no, de forma expressiva, as palavras de Paulo Pindo de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal à luz da CRP e da CHDH”, ed.2007, a pág. 314 (nota 8. ao art. 120º), quando refere que «A Lei n.º 48/2007, de 29.8, equipara substancialmente a prova "essencial", "indispensável", "absolutamente indispensável" e "estritamente indispensável" e diferencia-a da prova "necessária" e da prova "conveniente" para a descoberta da verdade (ver anotação ao artigo 340). Portanto, verifica-se esta nulidade quando se omite a prática de actos processuais probatórios que a lei classifica como prova "essencial", "indispensável", "absolutamente indispensável" e "estritamente indispensável" na fase de julgamento e de recurso». E, a propósito da variabilidade de conceitos utilizados pela lei processual penal para caracterizar diversos meios de prova nela dispersamente previstos, adianta e reitera, com acentuado a–propósito (ob. citada, pág. 841 – notas 24. a 26. ao art. 340º) que «Esta prolixidade de expressões não favorece a segurança jurídica e encobre uma identidade substantiva dos critérios. Com efeito, a lei Portuguesa reconhece apenas três critérios materiais de admissibilidade da prova, que são:
a. A prova "essencial", "indispensável", "absolutamente indispensável" ou "estritamente indispensável",
b. A prova "necessária", "previsivelmente necessária" ou "absolutamente necessária", "útil", "de interesse", "relevante" ou "de grande interesse" (ou, na formulação negativa, a prova "inadequada", "de obtenção impossível ou muito duvidosa" ou "com finalidade meramente dilatória", "irrelevante" ou "supérflua"),
c. A prova "conveniente".
A diferença entre estes três tipos de critérios é fundamental em termos práticos. A omissão da prova do primeiro tipo constitui uma nulidade sanável nos termos do artigo 120, n.° 2, al. d)

No caso em apreço o tribunal a quo tendo sido requerida a inquirição como testemunha de determinado cidadão – DD –, indeferiu a inquirição, ao abrigo do artigo 340º/1 do Cód. de Processo Penal, por não a considerar essencial à descoberta da verdade.
E a verdade é que não se considera que os recorrentes hajam demonstrado, através de razões bastantes, que a audição daquela pessoa pudesse ser um elemento de prova indispensável ou essencial à descoberta da verdade material.

E assim e considera porque, como já acima vimos, a indagação sobre a essencialidade da produção de determinada diligência probatória está intrinsecamente condicionada aquele que seja o objecto do julgamento no caso concreto, isto é, à vinculação temática do tribunal aos factos juridicamente relevantes, tanto para a determinação da culpabilidade, como, quando for caso disso, da determinação da pena e da responsabilidade civil (124º do Cód. de Processo Penal).
O que significa que tal juízo deve estribar-se em critérios objectivos, não podendo, por isso, avaliar-se em função de convicções pessoais dos intervenientes processuais – neste sentido também os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24/10/2012 (proc. 202/12.7TBPRG.P1)[11], de 14/11/2012 (proc. 15722/10.0TDPRT.P1)[12] e de 08/01/2014 (proc. 1170/09.8JAPRT.P2) [já citado].
No caso, os recorrentes propugnam que a diligência probatória em causa se torna «relevante» (sic) para a descoberta da verdade, para demonstrar dois aspectos em especial: o estado em que se encontraria a casa de habitação da co–arguida (e assistente) CC antes das obras de remodelação levadas a cabo pelos arguidos/recorrentes, e os comportamentos adoptados pela mesma CC no decurso do período em que tais obras decorreram – sendo que DD, a pessoa que se pretendia ouvida como testemunha, terá sido o empreiteiro encarregue de executar as obras em questão.
Pois bem, a primeira nota que não pode deixar de se realçar – assinalada, aliás, pelo tribunal recorrido na sua decisão – é a de que, percorridas as duas acusações públicas deduzidas (nos autos principais e no ora designado Apenso E), e bem assim a acusação particular deduzida pela assistente CC (nos autos principais), o que ali está em causa é a imputação da prática de um crime de violência doméstica perpetrado pelos arguidos/recorrentes AA e BB contra a co–arguida/assistente CC, bem como a imputação a esta última de um crime de ofensa à integridade física simples perpetrado contra o arguido (e também nessa parte assistente) BB.
E mesmo na contemplação de que os factos em causa se mostram aludidos em sede de contestação pelos arguidos/recorrentes, o juízo sobre a essencialidade do meio probatório em causa não pode deixar de depender do respectivo relevo para a configuração dos elementos relevantes da responsabilidade imputada aos mesmos arguidos.
Como se constata pelo despacho recorrido, foi nessa perspectiva que o tribunal a quo centrou a sua decisão.
Ora, os recorrentes não alegaram sequer que a indicada putativa testemunha haja assistido a qualquer facto relevante dos imputados em qualquer das acusações, mormente a deduzida contra a co–arguida CC – pelo contrário, da sua alegação resulta claro que assim não terá sucedido.
Aliás, e em especial no que tange ao comportamento da co–arguida CC no decurso das aludidas obras, pese embora o mesmo seja aludido em sede de contestação dos arguidos ora recorrentes, a verdade é que tal circunstancialismo não se revela essencial para decidir sobre aquele que é, na verdade, o objecto do julgamento – reiterando–se que à aludida co–arguida não vem imputada a prática criminal de qualquer outro acto que não uma agressão física ao arguido BB.
E no que tange ao estado da habitação comum dos arguidos antes das aludidas obras realizadas, o despacho recorrido desde logo realça – e julga–se com acerto – que da acusação deduzida contra os arguidos AA e BB apenas consta a este propósito o seguinte: “Quando foram viver com a assistente, os arguidos fizeram obras de beneficiação na residência, colocando câmaras de vigilância para, além do mais, controlarem aquilo que a assistente fazia. Após a realização das obras, mudaram as fechaduras das portas e acabaram por impedir a assistente de entrar em casa, obrigando-a a viver num anexo da residência, mas que não possui condições de habitabilidade, tendo dividido o quintal com redes e fechado, a cadeado, o galinheiro, impedindo a assistente de alimentar as galinhas. Além disso, queimaram a roupa da assistente e retiraram a mobília dela do interior da residência, colocando-a, a monte, num barraco, não a deixando usar a casa de banho, obrigando-a a sair de casa para tomar banho em casa da outra filha ou da irmã, onde também, por vezes, dorme, com receio dos arguidos”.
Ou seja, em bom rigor, o estado da habitação comum antes das obras não é sequer objecto de referência em sede de acusação, muito menos relevando para apurar se houver lugar à prática do crime de violência doméstica nos termos configurados em sede da mesma acusação pública.
Além disso, e sendo também certo que tal aspecto se mostra igualmente referenciado em sede de contestação dos arguidos, o tribunal a quo veio ainda a considerar que do processo já constam vários elementos de prova (tais como fotografias, juntas pelos próprios arguidos/recorrentes em sede da mesma contestação), além de haver sido produzida diversa outra prova (designadamente testemunhal), quanto ao mesmo, quer antes, quer depois dessas obras.
E, percorrido o processo e a objectiva prova produzida em audiência, julga–se que assim na verdade sucede.

O que, tudo, no entender do tribunal recorrido, determinou não se revelar essencial à descoberta da verdade – e não apenas no que respeita ao objecto das acusações, mas inclusive com relação a quanto foi alegado pelos arguidos em sua defesa.
No necessário exercício de ponderação da essencialidade do meio de prova requerido em causa, o tribunal a quo não deixou de, como se lhe impunha, efectuar um inevitável juízo de prognose quanto à respectiva relevância, tudo, como vimos, por reporte aos pressupostos da responsabilidade imputada aos arguidos. Exercício para o qual não deixou também de contribuir a ponderação de quanto resultava dos demais elementos probatórios produzidos nos autos e em sede de audiência, e que poderiam vir a ser valorados na decisão final.
E em resultado desse exercício – que já é, note–se, efectuado no âmbito do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do Cód. de Processo Penal – o tribunal de primeira instância extraiu a convicção de que tal relevância essencial não se verificava.
E julga–se que assim bem decidiu, pois que o meio de prova em causa, pese embora legalmente admissível e válido, e bem assim adequado e (à partida) viável na sua produção, não se mostra indispensável ou absolutamente necessário para permitir a demonstração de factos com determinante relevo para a decisão sobre o objecto sobre o qual estava incumbido o tribunal incumbido de apreciar.

Não se mostra, assim, configurada a nulidade processual prevista na segunda parte do art, 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal, confirmando–se por isso a decisão recorrida também nesta parte.
*
Improcede, pois, integralmente o recurso interlocutório interposto nos autos pelos arguidos AA e BB.
*
II.B. Apreciação do recurso da decisão final

Comecemos por elencar o teor da decisão recorrida nos segmentos relevantes para a apreciação do presente recurso – isto é, no que tange à questão prévia apreciada, à matéria de facto considerada na sentença, e à motivação da decisão sobre a matéria de facto.

a. Após o relatório, a sentença aprecia como questão prévia a inadmissibilidade da contestação deduzida pelos arguidos/recorrentes na parte da mesma em que se requer a eventual operação de compensação face ao pedido de indemnização civil deduzido pela co–arguida CC – o que faz nos seguintes termos:
«Questão Prévia – Da Compensação invocada na contestação dos Arguidos AA e BB:
Em sede de contestação conjunta, os Arguidos AA e BB, além do mais, excecionaram o instituto da compensação, caso venham a ser condenados, porquanto a Assistente CC tem destruído objetos dentro da habitação comum, tais como o carro, portão e rodapés da casa, prejuízos esses que ascendem à quantia global de 2.496,31 EUR (dois mil, quatrocentos e noventa e seis euros e trinta e um cêntimos).
No Código de Processo Penal, no artigo 71.º, o legislador consagrou, como regra, o princípio da adesão da ação cível de indemnização à ação penal, significando a unidade de causa entre as duas ações, pelo que as Partes cíveis se sujeitam ao regime da ação penal.
Daqui decorre que é a ação cível que acompanha a ação penal e não esta que se submete às incidências possíveis do processo civil, sendo tal a prevalência da ação penal que o Tribunal pode remeter as Partes para os Tribunais comuns quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização cível inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal (artigo 82.º n.º 3 do CPP). Esta especificidade implica necessariamente diferenças assinaláveis de regime. Ora, dispõe o artigo 78.º do Código de Processo Penal que:
“1 - A pessoa contra quem for deduzido pedido de indemnização civil é notificada para, querendo, contestar no prazo de 20 dias.
2 - A contestação é deduzida por artigos.
3 - A falta de contestação não implica confissão dos factos”.
Uma das diferenças prende-se necessariamente com a possibilidade de dedução de reconvenção [único meio possível de invocar a compensação no âmbito do processo civil com o novo CPC – vide artigo 266.º n.º 2 alínea c], o que não é admissível no âmbito do processo penal e do P.I.C. nele deduzido.
No caso concreto, os Arguidos invocaram a compensação, sem deduzirem reconvenção, o que poderia originar um convite ao aperfeiçoamento para o efeito. Contudo, tal convite seria inútil, porquanto a dedução de reconvenção nos presentes autos não é admissível.
Tal como referido no Ac. TR Lisboa de 21/12/2000, Relator: Des. Goes Pinheiro, Proc. n.º 0058519: “Na ação cível enxertada na ação penal não é admissível a reconvenção, porquanto os articulados estão reduzidos à petição e contestação e, por outro lado, só à pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime é reconhecida legitimidade para deduzir, em processo penal, pedido de indemnização civil, sendo que este tem, necessária e exclusivamente, de se fundar na prática do crime que constitui o objeto da ação penal”. Em sentido idêntico já se pronunciou o mesmo TR Lisboa, no seu Ac. de 29/03/2001, in CJ, XXVI, 2, p. 134.
Também na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3.ª Ed. atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 228 (anotação n.º 15), defende que “Não é admissível réplica, nem reconvenção, pois ambas retardam intoleravelmente o processo penal” e, acrescentamos nós, no caso concreto nada têm que ver com o objeto da ação penal em que o pedido de indemnização cível foi enxertado, pois a Assistente CC não vem acusada da prática de qualquer ato ofensivo contra o património dos Arguidos AA e BB.
Por conseguinte, indefere-se liminarmente a contestação dos Arguidos nesta parte, considerando-se não escritos os artigos 96.º a 98.º da mesma.
Notifique.»

b. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:
«II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
2.1. Factos provados:
Produzida a prova e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:
Da acusação pública (fls. 489-493):
1. Os Arguidos BB e AA, doravante designados apenas por BB e AA, são casados um com o outro desde 12 de abril de 1981.
2. A Arguida AA é filha da Ofendida, ora Assistente, CC, nascida a .../.../1939.
3. A Assistente, desde que faleceu o marido, EE, no dia 16 de fevereiro de 2013, vivia sozinha na residência do casal, na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim.
4. No dia 19 de outubro de 2018, perante a Notária HH, no Cartório em Vila do Conde, foi celebrada uma escritura de partilha por morte de EE, na qual a propriedade da residência, sita na Rua ..., ..., na Povoa de Varzim, foi adjudicada à Arguida AA, ficando a Assistente CC com o usufruto desse imóvel, tendo prescindido, aquando da partilha, do dinheiro que tinha a receber a título de tornas a favor da Arguida AA, com o encargo desta cuidar e tratar dela, na saúde e na doença, prestando-lhe todos os serviços de que ela carecesse.
5. A Assistente tinha, à data da celebração da escritura, setenta e nove anos de idade e conta, atualmente, com oitenta e três anos. Encontra-se, ainda, autónoma para as atividades da vida diária, todavia padece, entre outras doenças, de hipoacusia (tendo melhorado após operação realizada), diabetes mellitus e hipertensão arterial, o que, aliado à sua idade, torna a Assistente bastante vulnerável.
6. No mês de agosto de 2019, os Arguidos foram viver, juntamente com a Assistente, na referida residência, na Rua ..., em ..., Póvoa de Varzim.
7. Passados cerca de três meses de viverem juntos, os conflitos começaram a surgir, sendo frequentes as discussões entre os Arguidos e a Assistente, nas quais os Arguidos insultavam e ameaçavam a Assistente.
8. Quando foram viver com a Assistente, os Arguidos fizeram obras de beneficiação na residência, colocando câmaras de vigilância para, além do mais, controlarem aquilo que a Assistente fazia. Após a realização das obras, mudaram as fechaduras das portas e acabaram por impedir a Assistente de entrar em casa, obrigando-a a viver num anexo da residência, mas que não possui condições de habitabilidade, tendo dividido o quintal com redes e fechado, a cadeado, o galinheiro, impedindo a Assistente de alimentar as galinhas. Além disso, queimaram a roupa da Assistente e retiraram a mobília dela do interior da residência, colocando-a, a monte, num barraco, não a deixando usar a casa de banho, obrigando-a a sair de casa para tomar banho em casa da outra filha ou da irmã, onde também, por vezes, dorme, com receio dos Arguidos.
9. A Arguida AA, com uma frequência quase diária, insulta a Assistente, sua mãe, de: “puta, filha da puta, bêbada, fanada e porca”, ameaçando-a com a seguinte expressão: “eu vou para a cadeia, mas você vai para o cemitério”.
10. Por seu lado, o Arguido BB também a insulta, embora com menor frequência, apelidando-a de: “puta, bêbada e de porca”, ameaçando-a, ainda, que a mata.
11. Em data em concreto não apurada dos meses de novembro ou dezembro de 2019, quando ainda dormia no seu quarto no interior da residência, os Arguidos, durante a noite, bateram, com força, na porta e nas paredes do quarto, ameaçando a Assistente que a iam matar.
12. No dia 24 de novembro de 2019, cerca das 18h00, na residência na Rua ..., ..., na Póvoa de Varzim, o Arguido BB travou-se de razões com a Assistente por causa desta ter, alegadamente, com uma vassoura, desviado uma das câmaras de vigilância.
13. Na sequência dessa discussão, o Arguido BB desferiu três empurrões à Assistente e, de seguida, pegou numa cadeira em plástico e, com ela, desferiu uma pancada na cabeça da Assistente, atingindo-a na sobrancelha direita.
14. Logo após a agressão, no dia 24 de novembro de 2019, pelas 19h21, a Assistente deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital ....
15. Como consequência direta e necessária das agressões infligidas, a Assistente sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no auto de relatório de perícia de fls. 32 e 33 dos autos principais, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, nomeadamente escoriações na sobrancelha direita, que foram causa direta e necessária de três dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
16. No dia 5 dezembro de 2019, cerca das 17h00, na sequência de mais uma discussão, a Arguida AA partiu diversos objetos em porcelana da Assistente e apelidou-a de: “puta e de bêbada.”.
17. No dia 20 de dezembro de 2019, cerca das 18h00, quando passava pelo corredor exterior da residência que dá acesso ao quintal e aos anexos, os Arguidos AA e BB atiraram, cada um deles, na direção da Assistente, um vaso em plástico, sendo que um dos vasos acertou nas costas da Assistente e outro na perna esquerda, causando-lhe dores, sem, contudo, causar qualquer lesão visível ou que carecesse de tratamento.
18. No dia 10 de maio de 2020, cerca das 12 horas, no pátio da residência, a Arguida AA e a Assistente travaram-se de razões, tendo a Arguida insultado a Assistente, com os seguintes impropérios: “vaca, puta, tu não és minha mãe, és madrasta, badalhoca”, tendo ainda a Arguida lhe atirado com diversos vasos de plantas, sendo que um deles acertou na zona da canela da perna esquerda da Assistente, causando-lhe dores.
19. No dia 24 de maio de 2020, cerca 18h15, no interior da residência, por causa da fatura da eletricidade e sobre quem iria assumir o pagamento, os Arguidos BB e AA discutiram com a Assistente.
20. Na sequência dessa discussão, a Arguida AA agarrou, com as duas mãos e com força, o pescoço da Assistente, ao mesmo tempo que a empurrou para o jardim, onde o Arguido BB lhe atirou um vaso em louça em formato de sapo, atingindo-a no pé direito.
21. Logo após a agressão, no dia 24 de maio de 2020, pelas 19h07, a Assistente foi assistida no Serviço de Urgência do Hospital ..., onde foi suturada no pé direito.
22. Como consequência direta e necessária das agressões infligidas, a Ofendida sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no auto de exame de fls. 24 e 25 do apenso C e relatório de perícia de fls. 909 a 911 dos autos principais, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, nomeadamente traumatismo da face, pescoço e pé direito, que foram causa direta e necessária de vinte e três dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral pelo período de dezasseis dias.
23. No dia 17 de julho de 2021, cerca das 16h00, a Arguida AA estava a regar e, quando a Assistente caminhava na direção do anexo onde reside, a Arguida, de forma voluntária, dirigiu a mangueira na direção da Assistente, molhando-a.
24. No dia 8 de setembro de 2021, no anexo da residência, quando a Assistente estava a preparar o jantar, a Arguida AA dirigiu-se a ela e, sem qualquer motivo, insultou-a de: “porca, badalhoca, vai colocar os dentes, pareces uma caveira, puta, vais querer morrer e não poder”, tendo, de seguida, lhe dado um empurrão.
25. A Arguida AA, apesar de se ter vinculado contratualmente a cuidar da Assistente, sua mãe, não tem a mínima intenção de o fazer.
26. Ao agredirem a Assistente, com quem à data viviam, da forma acima descrita, bem sabiam a relação de parentesco que tinham com ela, bem como a sua idade e os problemas de saúde de que padecia que a tornam mais frágil e vulnerável, agindo os Arguidos com o propósito conseguido de molestarem o seu corpo e lhe causarem as lesões e as dores verificadas.
27. Ao insultarem e ameaçarem a Assistente, agiram os Arguidos com o objetivo de a humilhar e vexar, causando-lhe sofrimento psíquico e emocional, bem como medo e inquietação, perturbando o seu estado emocional e o seu bem- estar, movidos pelo intuito de poderem usufruir da residência sem a terem de partilhar com a Assistente.
28. Ao atuarem dentro da residência onde a Assistente à data vivia, bem sabiam os Arguidos que ampliavam o sentimento de receio da Assistente uma vez que violavam o espaço reservado da sua vida privada e o seu caráter securitário.
29. Os Arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente, perfeitamente conhecedores do caráter proibido e criminalmente punido das suas condutas.

Do pedido de indemnização cível (fls. 522-524):
30. Os Arguidos colocaram câmaras de vídeo no exterior e interior da residência comum, sem autorização da Assistente CC, a qual passou a ser filmada sem a sua autorização, passando os Arguidos a controlar toda a sua vida pessoal e íntima, bem como todos os seus passos, idas à casa de banho e demais atividade da Assistente dentro da sua habitação.
31. Não obstante o declarado em sede de escritura de partilha referido no facto provado n.º 4, os Arguidos não prestaram, nem prestam à Assistente quaisquer cuidados, tendo ambos passado a insultar e a maltratar física e psicologicamente a Assistente.
32. A Assistente viu-se forçada a almoçar na cozinha de um dos anexos, o qual possui parcas condições de salubridade, bem como se viu forçada a deixar de pernoitar na sua própria casa com receio constante, temendo que os Arguidos atentassem contra a sua vida durante a noite, por força das condutas perpetradas por aqueles e já mencionadas nos factos provados da acusação pública, passando a pernoitar na casa da sua irmã II.
33. O Arguido BB mexe e aponta para os próprios genitais, em sinal de desrespeito pela Assistente CC.
34. Por força das condutas dos Arguidos e melhor descritas nos factos provados da acusação pública, a Assistente ficou impedida de ter acesso aos seus pertences, galinhas e próprio terreno para cultivo.
35. Foi-lhe igualmente retirada a antena da televisão e, por vezes, os Arguidos fecham a água, eletricidade e botija de gás, inclusive enquanto a Assistente toma banho.
36. Com receio de ir à casa de banho em determinadas ocasiões, tais como quando apenas o Arguido BB se encontra no interior da residência comum, a Assistente opta por fazer as suas necessidades fisiológicas no quintal traseiro da habitação.
37. A Assistente encontra-se a beneficiar de acompanhamento psicológico no E..., tendo inclusive já manifestado ideias de suicídio, fruto da atuação dos Arguidos e de não ter acesso completo à sua habitação, às suas roupas e pertences.
38. Os Arguidos procederam ao pagamento conjunto e dividido por três das despesas com água e eletricidade até novembro de 2019, inclusive, após o que o deixaram de fazer, compelindo assim a Assistente a proceder ao pagamento de todos os gastos de água e de eletricidade, cujas faturas vêm em seu nome e cujos gastos e consumos eram e são maioritariamente feitos pelos Arguidos.
39. Entre junho de 2020 e dezembro de 2021, a Assistente CC efetuou o pagamento da quantia global de 994,78 EUR (novecentos e noventa e quatro euros e setenta e oito cêntimos), a título de despesas de eletricidade, bem como da quantia global de 307,52 EUR (trezentos e sete euros e cinquenta e dois cêntimos), a título de despesas de água.
40. Em consequência da atuação dos Arguidos, a Assistente sentiu-se triste, chorosa, envergonhada, ofendida, com dores nas zonas atingidas, com medo e humilhada na sua honra e consideração.
41. A Assistente era uma pessoa alegre, extrovertida, feliz, autónoma, socialmente ativa e com vitalidade, encontrando-se a viver, em consequência das condutas dos Arguidos, em estado de depressão e tensão, muito nervosa, perturbada, com insónias, bastante receosa, descuidada consigo e desmotivada, tendo deixado ainda de receber amigas na sua casa.

Mais se provou quanto à Arguida AA:
42. AA provém de um núcleo familiar de modesto estrato socioeconómico, sendo o pai operário da construção civil e a mãe a aqui Arguida CC.
43. A Arguida concluiu a 4.ª classe antiga.
44. Exerce funções de costureira na empresa K... desde 1983.
45. Casou-se em 1981 com o Arguido BB, de cujo relacionamento nasceram dois filhos, já maiores de idade.
46. Na dimensão conjugal mantém relação estável do ponto de vista afetivo e relacional, subsistindo um quadro de gestão económica de caráter restritivo, agravado pela incapacidade temporária para o trabalho da própria.
47. A Arguida encontra-se com certificado de incapacidade temporária para o trabalho há cerca de 1 (um) ano, devido a tendinite no ombro decorrente da atividade que desenvolve, auferindo mensalmente a quantia de 600,00 EUR (seiscentos euros).
48. É proprietária da residência comum dos sujeitos processuais, moradia com dois andares, de tipologia T2 e quintal traseiro com vários anexos.
49. Encontra-se medicada com antidepressivos e ansiolíticos desde pelo menos 2010, prescritos em consulta particular.
50. Em setembro de 2019 foi diagnosticada com sintomatologia psicopatológica compatível com o diagnóstico de Perturbação de Adaptação com Humor depressivo e Ansiedade.
51. A Arguida tinha o sonho de viver na casa dos seus pais, razão pela qual evidencia dificuldade em se afastar da residência comum, não obstante vigorar sobre a mesma o direito de usufruto a favor da sua mãe e aqui Arguida CC.
52. A Arguida não tem antecedentes criminais.

Mais se provou quanto ao Arguido BB:
53. BB provém de um agregado familiar numeroso e economicamente carenciado, cuja dinânmica aparentemente se caraterizava pela sua estruturação afetiva, sendo o pai operário da construção civil e a mãe padeira.
54. O Arguido tem o 4.º ano de escolaridade.
55. Iniciou atividade profissional aos 14 (catorze) anos na área da construção civil, onde trabalhou de forma regular e ininterrupta, inclusive em França e na Alemanha, onde esteve cerca de 8 (oito) anos.
56. Casou-se em 1981 com a Arguida AA, de cujo relacionamento nasceram dois filhos, já maiores de idade.
57. Na dimensão conjugal mantém relação estável do ponto de vista afetivo e relacional, subsistindo um quadro de gestão económica de caráter restritivo, agravado pela incapacidade temporária para o trabalho do cônjuge.
58. O Arguido aufere mensalmente a quantia de 635,00 EUR (seiscentos e trinta e cinco euros) a título de remuneração salarial.
59. Apresenta patologia da coluna lombar, decorrente de acidente de trabalho.
60. No mesmo acidente sofreu traumatismo do ombro esquerdo que motivou cirurgia no Centro Hospitalar ....
61. O Arguido não tem antecedentes criminais.

Mais se provou quanto à Arguida CC:
62. CC provém de um agregado familiar economicamente carenciado, aparentemente estruturado em termos afetivos, sendo o pai pedreiro e mãe trabalhadora de lavoura por conta de outrem.
63. A Arguida CC não frequentou a escola, sendo analfabeta.
64. Iniciou atividade profissional aos 10 (dez) anos na agricultura, com a sua mãe e irmãos, tendo posteriormente exercido atividade como operária fabril numa conserveira de forma regular e contínua.
65. Casou-se com 20 (vinte) anos, de cujo relacionamento nasceram duas filhas, a também Arguida AA e JJ.
66. Os Arguidos AA e BB integraram o seu agregado familiar quando casaram em 1981 e durante o período de 14 (catorze) anos.
67. Desde 2019 que voltou a haver lugar à coabitação entre os três Arguidos, atendendo à idade avançada da Arguida CC, que não queria continuar a viver sozinha, na condição de cuidarem de si.
68. Na vigência da coabitação, os conflitos são recorrentes numa dinâmica agressiva, inexistindo comunicação entre os coabitantes.
69. Tem vindo a pernoitar na casa da irmã II, no entanto, não se sente bem a utilizar espaços que não são seus e demonstra uma vontade incontornável e inflexível de permanecer na sua casa, independentemente do risco que corre, mesmo sendo este um risco para a sua vida (postura comum em pessoas idosas que viveram a maior parte da sua vida nas suas casas de família, que muitas vezes os próprios construíram e onde cresceram os seus filhos).
70. A Arguida CC tem o usufruto da residência comum dos Arguidos, subsistindo da sua reforma, pensão de sobrevivência e renda de um apartamento do qual é proprietária, tudo no valor global de 700,00 EUR (setecentos euros) mensais.
71. A Arguida não tem antecedentes criminais.
*
2.2. Factos não provados:
Produzida a prova e discutida a causa não resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:
A. Nas circunstâncias de tempo e lugar dos factos provados n.º 12 a 15, na sequência de uma discussão iniciada pela Arguida CC, esta ofendeu corporalmente o Assistente BB, picando-o no braço direito com um objeto (garfo ou faca) e desferindo-lhe pancadas nos ombros com um banco de cozinha.
B. Mercê das agressões mencionadas nos factos não provados anteriores, sofreu o Assistente, direta e necessariamente, dores nas regiões anatómicas atingidas, não lhe tendo sido causada, porém, qualquer lesão.
C. A Arguida CC agiu voluntária, livre e conscientemente, com o propósito de agredir fisicamente o Assistente BB, bem sabendo que a sua conduta era legalmente proibida e constituía crime.
D. O Assistente BB, por força das agressões mencionadas nos factos não provados anteriores, passou a evidenciar cada vez mais dificuldades na execução da sua atividade profissional, razão pela qual a respetiva entidade patronal o colocou a executar outros serviços, de modo a que este não agudizasse a lesão que aquele padecia no ombro direito.
E. O Assistente BB teve de tomar analgésicos durante um mês e ainda hoje padece de sequelas no local da lesão, sempre que mexe com maior vigor o braço direito.
F. Nos dias e semanas que se seguiram às agressões mencionadas nos factos não provados anteriores e por causa delas, o Assistente BB ficou perturbado, agitado, ansioso e com dificuldades em dormir.
G. Padece de fortes dores no local onde sofreu as agressões com as mudanças de tempo e de temperatura, tendo de aplicar três vezes ao dia naquela zona pomada “Voltaren-Emulgel” e tomar “Brufen 600”.
H. Por causa das agressões, igualmente deixou de fazer determinadas tarefas em casa, tais como fazer a cama, mudar móveis, vestir-se e conduzir, necessitando da ajuda do cônjuge e aqui Arguida AA.
I. A conduta da Arguida CC foi causa direta e necessária dos danos causados e trouxe ao Assistente BB grande amargura, tendo este ficado perturbado, triste e abalado nas semanas que se seguiram ao evento.»

c. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
«2.3. Motivação da decisão de facto:
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, bem como das declarações dos Arguidos/Assistentes e das testemunhas inquiridas, todos produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, prova esta que foi concatenada entre si e apreciada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, plasmada no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Para dar como provados os factos supra elencados relativos à acusação pública deduzida no âmbito dos autos principais, o Tribunal atendeu, em primeiro lugar, às declarações dos próprios Arguidos AA e BB.
Com efeito, a Arguida AA confirmou a factualidade constante dos pontos 1- 4, 5 (com exceção das doenças, que disse desconhecer em pormenor), 6, 7 (não tendo, contudo, admitido os insultos e ameaças à Assistente CC), 8 (referindo, porém, que usou a mobília da mãe para lenha com a autorização desta e negando que tenha queimado a roupa da mãe). Quanto à demais factualidade, a Arguida nega que tenha feito qualquer tipo de mal (agressão, insulto, ameaça) à sua mãe.
Por outro lado, o Arguido BB confirmou igualmente os factos mencionados no parágrafo anterior. Contudo, admitiu que já insultou a Assistente CC, mas que nunca a ameaçou, confirmando apenas parcialmente o facto provado n.º 10.
Por seu turno, foi inquirida a Assistente CC, cujas declarações se revelaram igualmente fundamentais, porquanto a grande maioria dos factos ocorreu dentro da sua habitação, cujo agregado familiar é composto apenas pela própria e pelos dois Arguidos. Situação comum no fenómeno da violência familiar, de tão difícil prova, por nunca quase terem outros espectadores, que não a vítima e o(s) agressor(es).
Deste modo, o Tribunal valorou também as declarações da Assistente CC, que, não obstante a sua idade avançada (oitenta e três anos) e analfabetismo, apresentou um discurso coerente, espontâneo, fluente e detalhado.
Acresce que os demais elementos documentais, relatórios periciais e depoimentos testemunhais consolidam a versão dos factos denunciados pela Assistente.
Concretizando:
A propósito do facto provado n.º 8, bastante elucidativas são as fotografias dos anexos, quintal, residência comum, câmaras de vigilância e aloquetes, todos constantes de fls. 332- 356, 389-392 e 642-644, denotando uma convivência entre todos os sujeitos processuais assaz difícil e obviamente geradora de conflito e discórdia.
Quanto à factualidade provada constante dos pontos 9 a 11, a Assistente relatou-a, tendo ainda sido lidas as suas declarações prestadas durante a fase de inquérito, nos termos do disposto no artigo 356.º do CPP (auto de inquirição de fls. 83-84 e 457-459 dos autos principais). Ver ainda o aditamento de fls. 195 dos autos principais, onde consta uma expressão utilizada pela Arguida AA, igualmente confirmada pela testemunha KK (amigo da Assistente CC), não por conhecimento direto, mas confidenciado pela Assistente àquele à data da ocorrência dos factos.
Também a testemunha LL, vizinha dos Arguidos e Assistente, de forma isenta e sem qualquer interesse na causa, num discurso bastante credível, confirmou os insultos dirigidos parte a parte, entre a Arguida AA e a Assistente CC, bem como as discussões diárias após o início da convivência em comum.
Em relação aos factos provados n.ºs 12 a 15, para além das declarações da Assistente CC, a testemunha II (irmã da Assistente e vizinha muito próxima da habitação comum dos Arguidos e Assistente) confirmou que viu o Arguido BB a sair da cozinha da habitação comum e dirigir-se à cozinha dos anexos onde se encontrava a Assistente CC, levantando um banco, tendo a testemunha lhe dito “vai bater na tua mãe ou no teu pai que ela é minha irmã”. Após, visualizou as lesões provocadas na cabeça da Assistente CC.
A testemunha LL (vizinha já suprarreferida) também ouviu a Assistente CC pedir socorro, tendo contactado com a mesma e visto-a cheia de sangue na zona da cabeça. Também confirmou parte substancial do facto provado n.º 8.
Ademais, a fotografia de fls. 87 do apenso A, o auto de denúncia de fls. 3-4, o relatório de avaliação do dano corporal de fls. 32-33, o auto de notícia de fls. 44 e o diário clínico de fls. 59 (todas dos autos principais) demonstram à saciedade as lesões físicas que resultaram das agressões em causa e o respetivo nexo de causalidade, reforçando ainda mais toda a factualidade dada como provada.
No que diz respeito às situações descritas nos pontos 16, 17 e 18, o Tribunal valorou igualmente o auto de notícia de fls. 9-10 dos autos principais, o auto de denúncia fls. 3 do apenso B e o auto de denúncia de fls. 3 do apenso D, que melhor circunscrevem no tempo e no espaço estes factos.
Quanto à factualidade provada constante dos pontos 19 a 22, a convicção do Tribunal sai reforçada quer pelos fotogramas de fls. 211-213 e 834-836, quer pela demais prova produzida, tais como o relatório para a polícia do Centro Hospitalar de fls. 184, o auto de notícia de fls. 3-6 do apenso C, o relatório pericial inicial de fls. 24-25 do apenso C e o relatório final de avaliação do dano corporal de fls. 909-911 dos autos principais, o qual concluiu pela observação de lesões e nexo de causalidade compatível entre o relatado e o observado.
Neste particular, refira-se ainda o depoimento da testemunha JJ (filha da Assistente e irmã da Arguida AA), a qual se deslocou à habitação comum dos sujeitos processuais e viu a mãe ferida no pé, “mal falava, só chorava” (sic), tendo posteriormente ajudado a fazer o curativo na zona afetada. Também a testemunha MM (neta da Assistente e sobrinha da Arguida AA) confirmou que viu a avó nessa altura com marcas no pescoço.
Finalmente, a factualidade provada (pontos 23 e 24) sai também reforçada pela leitura das declarações da Assistente prestadas durante a fase de inquérito, nos termos do disposto no artigo 356.º do CPP (auto de inquirição de fls. 457-459 dos autos principais), que a Assistente confirmou na íntegra. Aliás, a testemunha MM (neta da Assistente e sobrinha da Arguida AA) referiu que uma vez recebeu a avó e aqui Assistente CC em sua casa, toda molhada e muito nervosa, tendo a mesma lhe dito que a Arguida AA lhe terá dado uma “mangueirada enquanto regava o jardim” (sic).
Importa também frisar que a testemunha GG (irmão da Assistente e tio da Arguida AA) relatou muitos dos factos aqui em causa, ainda que não os tenha presenciado, porquanto tem sido o grande apoio e suporte da irmã e aqui Assistente CC, no fundo corroborando muitas das situações de violência física, emocional, insultos e ameaças que a Assistente tem vivenciado ao longo do período de coabitação com os Arguidos.
Pelo contrário, as testemunhas arroladas pela defesa dos Arguidos demonstraram pouco ou nenhum conhecimento acerca dos factos objeto da acusação pública. Aliás, o próprio filho dos Arguidos, NN, demonstrou um certo alheamento quanto a esta situação (motivado provavelmente pela divisão entre ser a favor da avó, que o criou desde pequeno, ou a favor dos seus pais, seus progenitores). Também a testemunha FF (tripulante de ambulâncias nos Bombeiros Voluntários ... e que acudiu numa das situações) apenas teve contacto uma vez com a família em causa, não conseguindo sequer concretizar em que altura tal aconteceu.
Dito isto, em jeito de conclusão, todos estes elementos de prova supra enunciados, concatenados entre si, demonstram coerência e consistência, permitindo ao Tribunal afirmar de forma segura e convicta que os Arguidos efetivamente têm praticado ao longo do tempo diversos atos de agressão física, insultado e ameaçado a Assistente CC.
Sobre a intencionalidade no agir dos Arguidos (factos 25 a 29), o Tribunal apenas se pode firmar em factos externos, muitos deles instrumentais ou meramente indiciários e, caldeando-os através das regras da experiência comum, encontrar uma justificação ou razão que dê sentido lógico e humano às condutas.
No presente caso, a versão trazida aos autos pela acusação mostra-se credível, coerente e coaduna-se com aquilo que resulta da prova, bem como das regras da experiência comum.
Com efeito, os Arguidos, por já não pretenderem cuidar e tratar da Assistente na doença e em tudo o que ela necessite, nem conseguirem viver sob o mesmo teto e habitação devido às constantes discussões e discórdias, agrediram-na, insultaram-na e ameaçaram-na, de modo a afastá-la e perturbá-la, o que fizeram de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de poderem usufruir da residência sem a terem de partilhar com a Assistente.
Sobre os factos relativos ao pedido de indemnização cível, o Tribunal levou em linha de conta as declarações da Assistente, os depoimentos de todas testemunhas da acusação, os quais foram unânimes nas questões relativas às alterações comportamentais da Assistente e ao medo que a mesma tem de pernoitar na sua própria residência. Refira-se, particularmente, as emoções verbalizadas pela Assistente e os depoimentos esclarecedores da testemunha LL (vizinha) e das testemunhas JJ e MM (filha e neta da Assistente, respetivamente), que relataram estes factos.
Foram também devidamente valorados os registos clínicos, fotografias e relatórios periciais já supra elencados, a par do relatório de Avaliação de Risco elaborado pelo E... (instituição que tem acompanhado a Assistente e tentou a aproximação familiar entre os sujeitos processuais e cessação de conflitos, o que não foi possível) de fls. 801-803 e ainda as faturas de eletricidade e água de fls. 526-547.
Quanto a este último aspeto das despesas de eletricidade e água, os Arguidos não juntaram qualquer elemento de prova consistente com a realização de um pagamento parcial das contas em causa. Pelo contrário, juntaram apenas faturas da aquisição de botijas de gás a fls. 687-689, 691-693, 695-696 e 698 (o que não foi peticionado pela Assistente, pelo que não está em causa no pedido de indemnização cível formulado) e a única testemunha que abordou a questão, OO (cabeleireira e confidente da Arguida AA), referiu que, uma vez, a Arguida AA lhe pediu para trocar umas notas, de modo a liquidar a quota-parte nas despesas domésticas, o que, por si só, é manifestamente insuficiente para dar como provado que os pagamentos efetivamente ocorreram. Na verdade e em sentido oposto, a Assistente CC foi perentória no sentido de que após a agressão com o banco de cozinha (e o que tal originou, com a intervenção do INEM e da Polícia), não mais os Arguidos contribuíram para as despesas domésticas, o que é verosímil e se coaduna com as regras da experiência comum, consubstanciando-se também um ato de violência económica sobre a vítima.
Sobre as condições socioeconómicas da Assistente e dos Arguidos, o Tribunal teve em consideração as informações constantes do relatório social sobre a Assistente (fls. 779-781) e dos relatórios sociais para determinação da sanção (fls. 782-784 e 785-787), ambos elaborados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Equipa .... Atendeu ainda ao relatório de Avaliação de Risco elaborado pelo E... de fls. 801-803 e às informações clínicas de fls. 276-277, ao relatório de entrevista social de fls. 301- 304 e ao depoimento da testemunha NN (filho dos Arguidos AA e BB), que declarou que a Arguida AA tinha o sonho de um dia vir a morar na residência dos respetivos pais.
Em relação à inexistência de antecedente criminais, o Tribunal levou em linha de conta os Certificados de Registo Criminal dos Arguidos (fls. 739-741).
*
Quanto aos factos não provados A a C da acusação pública de fls. 108 do apenso E, toda a prova produzida e já suprarreferida apontou no sentido diametralmente oposto, isto é, provou-se que foi o Assistente BB quem agrediu com um banco de cozinha a Arguida CC, o que foi percecionado diretamente também pela testemunha II (irmã da Assistente e vizinha muito próxima da habitação comum dos Arguidos e Assistente).
Acresce que no relatório inicial de fls. 18 a 20 e no relatório final pericial de avaliação do dano corporal de fls. 37 a 38 é referido, nas respetivas conclusões, o seguinte: “Na ausência de lesões, o perito não tem elementos para se pronunciar medico-legalmente sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física”, ou seja, o relatório elaborado pelo perito é esclarecedor quanto à não apresentação de lesões da alegada agressão, o que é compatível com a versão da acusação pública de fls. 489-493, porquanto o Assistente BB foi o agressor e não a vítima.
Finalmente, nenhum outro meio de prova comprovou ou corroborou a denúncia efetuada pelo Assistente BB, sendo que a única testemunha arrolada na acusação pública (a aqui também Arguida AA) admitiu que não esteve presente na residência comum nessa altura.
Em relação à factualidade não provada constante dos pontos D a I, uma vez que não foi dada como provada qualquer agressão física perpetrada pela Arguida CC contra o Assistente BB, inexistindo assim seja qualquer ação agressora, seja qualquer lesão verificada, deram-se igualmente como não provados os factos atinentes ao pedido de indemnização cível conexo com a acusação pública de fls. 108 do apenso E.
*
Desde já se consigna que a demais matéria de facto alegada na contestação conjunta dos Arguidos não é relevante para a boa decisão da causa, ou diz respeito a situações a analisar noutros processos, ou já se encontra englobada em toda a matéria de facto supra analisada (provada e não provada). »
(…)

Vejamos, então, as questões suscitadas no recurso.

II.B.1. De saber se a sentença proferida padece de nulidade por excesso de pronúncia relativamente à decisão nela contida de rejeição parcial da contestação apresentada pelos arguidos/recorrentes.

A primeira questão que se mostra suscitada em sede de recurso tem a ver com a circunstância de, em sede de apreciação de “Questão prévia” na sentença recorrida, como acima já se enunciou e transcreveu haver o tribunal a quo proferido a decisão de indeferir a contestação dos arguidos/recorrentes na parte da mesma em que na mesma manifestavam apresentar a excepção de compensação relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos pela co–arguida/assistente CC (pois que na verdade, e como resume a decisão agora em causa, na aludida contestação os ora recorrentes, «além do mais, excecionaram o instituto da compensação, caso venham a ser condenados, porquanto a Assistente CC tem destruído objetos dentro da habitação comum, tais como o carro, portão e rodapés da casa, prejuízos esses que ascendem à quantia global de 2.496,31 EUR») – considerando-se não escritos os artigos 96.º a 98.º da mesma.

Invectivam os arguidos/recorrentes AA e BB a sentença recorrida desde logo nesta parte, considerando, em súmula, que com tal decisão o tribunal recorrido incorreu num excesso de pronúncia que, nos termos e para os efeitos do art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal, torna a sentença nula. Na verdade, propugnam, desde logo em virtude de a contestação em causa haver sido objecto de oportuna decisão de admissão sem qualquer ressalva e que não foi objecto (tal decisão) de impugnação, deverá considerar–se que tal admissibilidade da integralidade da contestação se mostra salvaguardada pela força de caso julgado formal no processo, não podendo ser revertida em sede de sentença.
Além disso, aditam que ao decidir como o fez, o tribunal a quo desrespeitou também o princípio do contraditório, produzindo uma verdadeira decisão–surpresa, inadmissível processualmente, e que assim deve ter–se por «inexistente».
Subsidiariamente, e caso se defenda que tal decisão poderia ser adoptada ao abrigo designadamente do disposto no art. 368º/1 do Cód. de Processo Penal, propugnam a desconformidade de tal entendimento com quanto resulta dos nºs 1, 2 e 5, pressupõe–se (pela lógica intrínseca do alegado) – pois que o recurso não o menciona expressamente – que do art. 32º da Constituição da República Portuguesa

Não se julga, contudo, que assista razão aos recorrentes.

Resulta dos termos do disposto no art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal que é nula a sentença, designadamente, «Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Como decorre do teor da disposição em causa, o normalmente denominado excesso de pronúncia em sede de sentença corresponde conceptualmente como que ao reflexo espelhado da omissão de pronúncia ali também prevista.
Assim, enquanto esta última se verifica quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei lhe impõe que conheça (ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar), já o excesso de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste num abuso ou exagero material da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas, e da formulação do objecto da decisão e das respostas que a decisão fornece. Quando se configura a existência de excesso está subjacente uma pronúncia do tribunal que vai para além das questões que lhe são propostas.
O excesso de pronúncia significa, fundamentalmente, que o tribunal tomou posição ou decidiu sobre matérias sobre que não lhe era legítimo poder fazê–lo – seja porque os sujeitos processuais interessados não as submetem à apreciação do tribunal (cfr. art. 660º/2 do Cód. de Processo Civil), seja porque não são de conhecimento oficioso – isto é, questões de que o tribunal apenas pode conhecer por via de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida –, e quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

Ora, no presente caso, dir–se–á que a situação configurada é precisamente a oposta.
A inadmissibilidade da contestação na parte relativa à pretendida excepção de compensação, agora em causa, é questão sobre a qual o tribunal recorrido não poderia deixar de se pronunciar. E assim é pelos motivos exactamente invocados na decisão recorrida, e ligados directa e imediatamente à circunstância de estarmos perante um passo/incidente processual que não é admissível em sede de processo penal.

Ao contrário do propugnado pelos recorrentes, não é na verdade admissível a dedução de excepção de compensação relativamente a pedido de indemnização civil deduzido em sede de processo penal, inexistindo, da parte do tribunal recorrido, qualquer «confusão» entre reconvenção e compensação.
Pelo contrário : como claramente decorre do disposto no art. 266º/1 do Cód. de Processo Civil, a reconvenção é o meio processual pelo qual o réu pode «deduzir pedidos contra o autor», prevendo–se no nº2 do mesmo artigo quais os casos em que a reconvenção é admissível ; ora, em conformidade com a alínea c) desta última disposição, um dos casos em que é admissível a dedução de reconvenção é precisamente «Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor».
Ou seja, não só não estamos perante qualquer confusão, como a invocação de uma compensação creditória é, precisamente, um dos casos excepcionais em que é admissível reconvenção – esta é, aliás, a forma processualmente adequada a operar aquela excepção.
Sucede que em processo penal os articulados no âmbito da demanda cível que aí seja enxertada estão limitados a dois : o pedido (a formular pelo lesado, ou em sua representação, nos termos do art. 77º do Cód. de Processo Penal) e a contestação (a deduzir pelo demandado nos termos do art. 78º do Cód. de Processo Penal).
O que bem se compreende se atendermos a que em processo penal vigora a exigência da vinculação causal da demanda cível aos factos que consubstanciem a prática de um crime – ou seja, o pedido de indemnização civil deduzido em sede de processo criminal tem de ter na sua base uma conduta criminosa que determina o funcionamento do princípio da adesão previsto no art. 71º do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.».
Ou seja, o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também fundamentadores da responsabilidade penal e pelos quais o arguido é acusado, ou por outras palavras, só os factos fundamentadores da ilicitude penal podem servir de fundamento à ilicitude civil a apreciar em processo penal.
O que significa, desde logo, que o pedido indemnizatório pressupõe que no respectivo processo penal seja exercida a acção penal com dedução de acusação e imputação de qualquer crime ao arguido ou arguidos; só assim não será quando em contrário exista disposição excepcional.
Ora, se assim é, facilmente se compreenderá que, sendo o demandado necessariamente arguido da (imputada) prática de actos criminalmente relevantes e que se revelam lesivos dos interesses do demandante, não faça sequer conceptualmente sentido que possa, em sede de processo penal, retorquir contra o pedido que visa reparar ou compensar esses danos por si criminalmente causados, com uma excepção compensatória que não encontra sustento em factos que constituam afinal a prática de qualquer crime que seja objecto nos mesmos autos.
Note–se que no caso concreto que ora nos ocupa, os factos dos quais alegadamente derivaria o crédito indemnizatório dos recorrentes AA e BB, e a compensar no pedido de indemnização civil deduzido pela co–arguida CC, não são sequer objecto de qualquer imputação criminal a esta última que seja objecto do julgamento dos autos – sendo que, caso o fossem, sempre deveriam os ora recorrentes fazer valer os seus direitos indemnizatórios também por via de adequado e autónomo pedido nos autos.
Acresce que o princípio da adesão obrigatória da acção cível ao processo penal, consagrado no acima citado e transcrito art. 71º do Cód. de Processo Penal, impõe além do mais que o processamento do pedido cível enxertado está sujeito à disciplina e regime adjectivos, da acção penal, com as regras e especificidades nesta previstas. A acção indemnizatória civil está, assim, subordinada ao processo penal, quer nos casos de adesão obrigatória quer naqueles em que o lesado usa a acção penal por opção.
E é por todo este conjunto de considerações, e retomando quanto se vinha analisando, que bem se percebe que em processo penal se reduzam os articulados no âmbito da demanda cível, que aí seja enxertada, ao pedido e à contestação (a deduzir pelo demandado nos termos do art. 78º do Cód. de Processo Penal).
O que, logo à partida, inviabilizaria liminarmente, no presente caso, a possibilidade de a demandante/co–arguida CC responder àquela excepção de compensação reconvencional pretendida, pois que não lhe é permitido apresentar réplica à contestação – sendo esse o meio procedimental próprio, previsto em sede de processo civil, para deduzir tal resposta, pois que, como vimos, a excepção de compensação só pode ali ser deduzida por via de reconvenção (cfr. arts. 584º e 585º do Cód. de Processo Civil).
Ou seja, a vingar a visão das coisas propugnada pelos recorrentes nesta parte, a excepção de compensação em causa seria objecto de apreciação pelo tribunal sem ser dada sequer a possibilidade de contraditório, aí sim, por parte da pessoa contra quem é deduzida.
Neste exacto sentido – de que na acção cível enxertada em procedimento penal os articulados estão reduzidos à petição e contestação, não sendo assim admissível reconvenção nem qualquer articulado posterior à contestação, e de que só à pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime é reconhecida legitimidade para deduzir, em processo penal, pedido de indemnização civil, pois que este tem necessariamente de se fundar na prática do crime que constitui o objecto da acção penal –, ratificam–se inteiramente quer as referências jurisprudenciais aos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/12/2000 (proc. n.º 0058519)[[13]] e de 29/03/2001 (proc. 141/00)[14], quer aquela doutrinal a Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, ed. 2007, pág. 232), assim como também se secunda inteiramente a consideração que, com a–propósito, o tribunal recorrido adita realçando que «no caso concreto nada têm que ver com o objeto da ação penal em que o pedido de indemnização cível foi enxertado, pois a Assistente CC não vem acusada da prática de qualquer ato ofensivo contra o património dos Arguidos AA e BB».
Ainda no mesmo sentido, podem citar–se Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal Anotado", 1996, pág. 184, que, em anotação ao art. 78°, refere «De notar que, em face da regulamentação estabelecida, esgotam-se com os trâmites previstos as faculdades de que o arguido e as pessoas demandadas se podem socorrer. Deve, assim, entender-se que não são aqui admissíveis pedidos reconvencionais» ; também Simas Santos e Leal-Henriques, citado no segundo aresto jurisprudencial acima referido, a partir do seu “Código de Processo Penal Anotado”, 1999, pág. 421, ao considerarem não ser admissível a contestação por reconvenção, dado que esta, por constituir novo pedido, e citando Rui Sá Gomes, “Apontamentos de Direito Processual Penal”, ed. da A.A.F.D.LX.-1992, pág. 227, «ultrapassa os fins e os fundamentos da admissibilidade do pedido de indemnização civil no processo penal» ; ou ainda Luis Lemos Triunfante, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, ed. 2021, Tomo I, pág.866.

Assenta–se, pois, em que bem decidiu o Mmo. Juiz a quo quanto ao aspecto substantivo da questão, isto é, à inadmissibilidade da contestação na parte em que se requeria operar uma compensação indemnizatória.

Retomando por esta via ao estritamente alegado nesta parte do recurso, considera–se, pois, que ao assim decidir, o tribunal recorrido não incorreu em qualquer excesso de pronúncia, mas antes procedeu à devida decisão sobre uma questão que se lhe impunha apreciar.
Salvo o devido respeito, não pode ser aqui acolhida a alegação segundo a qual estamos, in casu, face a uma violação de uma situação de “caso julgado” formal – recorde–se, entendem os recorrentes que, tendo sido oportunamente admitida a contestação apresentada, teria ficado em definitivo assente nos autos a admissibilidade da integralidade das consequências jurídico–processuais nela propugnadas.
Na verdade, não pode beneficiar da tutela de caso julgado formal a admissibilidade de um passo processual que não se mostra sequer previsto legalmente, e cuja aceitação nos respectivos efeitos consubstanciaria uma nulidade processual nos termos previstos, aí sim, na alínea c) do nº1 do art. 379º do Cód. de Processo Penal – pois que excesso de pronúncia em sede de sentença ocorreria caso o tribunal apreciasse e decidisse sobre a materialidade da aludida excepção por compensação indemnizatória, questão essa que, como vimos, se mostra inclusive de inviável existência em processo penal.
O que significa que a admissão liminar da contestação deduzida pelos arguidos AA e BB ao pedido de indemnização civil contra si apresentado pela co–arguida CC apenas pode considerar–se reportada à respectiva tempestividade e legitimidade, e bem assim aos efeitos processuais legalmente tutelados da mesma, não impedindo a sua ulterior rejeição parcial caso se verifique algum obstáculo à consideração de qualquer questão naquela indevidamente suscitada.

Em suma, não se julga verificada a alegada nulidade processual da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos dispostos no art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal.

E, em similares termos, também o aludido reconhecimento da inadmissibilidade processual legal em causa não pode enquadrar–se enquanto decisão–surpresa para os sujeitos processuais, mormente os ora recorrentes.
A decisão na presente situação é a que legalmente se impõe peremptoriamente, seja adoptada no momento de apreciação liminar da contestação, seja, como o faz no caso o tribunal recorrido, enquanto questão prévia em sede de sentença, designadamente ao abrigo do previsto no art. 368º/1 do Cód. de Processo Penal.
Não foi, assim adoptada qualquer decisão que deva ter–se por inesperada ou com que os sujeitos processuais não pudessem contar, sendo que – mais importante – da mesma não decorre prejudicado qualquer direito processual que aos ora recorrentes assista e que seja objecto de tutela nos presentes autos.
Pelo que não é a falta de contraditório prévio à inevitável decisão em causa que a torna «inexistente», sendo que contra a mesma sempre está assegurado o direito de reacção nomeadamente pela via de recurso – como no caso sucedeu.

Também em face de tudo quanto fica exposto, não se considera que a apreciação em causa pelo tribunal recorrido em sede de questão prévia na sentença, nos termos do art. 368º/1 do Cód. de Processo Penal (onde se estipula, a propósito da arquitectura da sentença penal, que “O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão”), se revele desconforme com o que resulta imposto nos nºs 1, 2 e 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, como vem subsidiariamente invocado.
Concede–se, sem dificuldade, que o tribunal a quo poderia ter dirimido a questão em momento processual anterior – nomeadamente logo aquando do despacho liminar sobre a contestação apresentada, não a admitindo na parte da excepção por compensação.
Porém, e como acima se disse, aquela admissão liminar da contestação deduzida pelos arguidos AA e BB ao pedido de indemnização civil contra si apresentado não pode ter por efeito a ratificação de um incidente processual que é legalmente inadmissível, e cuja admissão material redundaria em nulidade processual – pelo que, sob tal perspectiva, não pode considerar–se que já haja nos autos recaído anterior decisão definitiva.
Também não se considera que haja sido violado qualquer direito de defesa dos recorrentes relativamente a qualquer direito que seja susceptível de tutela jurídico–processual nos presentes autos – pelo contrário, a própria inadmissibilidade de reconvenção encontra a sua razão de ser, além de tudo o mais, na necessidade de evitar o retardamento da decisão criminal, o que respeita ao direito do arguido em ser “julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa” prevenido no nº2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
No mesmo sentido, igualmente não se vislumbra qualquer violação das garantias de contraditório dos arguidos, sendo que com relação àquele que é o objecto da demanda indemnizatória enxertada contra si deduzida, se mostra intocada a sua reacção processual de defesa contra a mesma.
Não se julga, pois, que a interpretação da norma prevista no art. 368º/1 do Cód. de Processo Penal nos termos considerados nos autos, se revele desconforme com os aludidos preceitos constitucionais.

Face a tudo quanto fica dito, improcede esta parte do recurso interposto pelos arguidos AA e BB, confirmando–se a decisão recorrida no correspondente segmento.

II.B.2. De saber se a sentença proferida padece de nulidade por falta de fundamentação em virtude da omissão de referência a matéria factual alegada na contestação apresentada nos autos pelos arguidos/recorrentes.

Invocam seguidamente os arguidos/recorrentes que o conteúdo da contestação por eles oportunamente apresentada nos autos, reveste especial importância, não se limitando a infirmar os factos de que eram acusados ou a contar uma versão alternativa da história, mas antes elencando factos juridicamente relevantes, porque susceptíveis de afastarem a sua responsabilidade penal, nomeadamente por se traduzirem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, ou de determinarem a atenuação desta – logo, factos dotados de um efectivo interesse para a decisão.
Ora, alegam, ao ignorar – não se pronunciando quanto a tais factos – o conteúdo da contestação apresentada pelos arguidos/recorrentes, a sentença mostra–se afectada de invalidade processual «quer seja por via da nulidade do art. 379.º n.º1 al. a) do CPP (falta de enumeração dos factos provados ou não provados), quer seja pela nulidade do art. 379.º n.º 1 al. c) (por omissão de pronúncia)».

Vejamos

A enumeração, em sede de decisão recorrida, dos factos provados e não provados revela quais os factos que foram efectivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo probatório.
Num caso – como aquele que é, afinal, o aqui vertente e nesta parte – em que os recorrentes entendem assumirem relevância para a decisão da causa determinados factos, por si alegados em sede de contestação, não considerados pelo tribunal recorrido em sede de sentença, essa sua pretensão assim configurada é passível de reacção pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa.
Como de forma expressiva se referencia no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/12, de 20/06/2012 (proc. 268/12)[15], «o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento (…). Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)».
Ou seja, o mecanismo processual adequado a sindicar a omissão de consideração em sede de sentença de factos que o recorrente repute de essenciais à decisão da causa, será a invocação da nulidade da mesma sentença, prevista no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, por preterição das menções referidas no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal.
E verificada a nulidade em causa, cumprirá à instância de recurso declará–la e determinar o seu suprimento – o que, reunidos que se mostrem no caso todos os elementos necessários para o efeito, poderá ser levado a cabo pela mesma 2ª instância, desde logo nos termos do disposto no art. 379º/2 do Cód. de Processo Penal, onde exactamente se prevê que «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º».
Realça–se que, podendo embora a supressão da invalidade em causa pela instância de recurso passar pela adição à matéria de facto do facto em falta, ao abrigo do poder que nesse sentido é atribuído nos termos do art. 431º/1/a) do Cód. de Processo Penal, tal só poderá ser levado a efeito precisamente de acordo com a exigência nesta última disposição processual plasmada, pois que ali se prevê que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada – só o pode ser, salientamos nós – se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base.

Assim devidamente emoldurada em termos processuais a alegação do recorrente vejamos, pois, se lhe assiste razão, e se se verifica a nulidade da sentença recorrida por omissão da consideração de determinados factos que revistam relevo para a decisão da causa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 379º/1/a) e 374º/2 do Cód. de Processo Penal.

Temos, pois, que de acordo com o disposto no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Por seu lado, em face do disposto no art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa – resultando do nº 4 do art. 339º do Cód. de Processo Penal que a discussão da causa tem exactamente por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
Quanto ao critério de acordo com o qual deve aferir–se se determinado facto é ou não relevante para a decisão da causa, temos desde logo o vislumbre do mesmo no art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» –complementando o nº2 que «Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil».
É este critério da relevância de determinado facto que se encontra também presente, por exemplo, no art. 283º/1/3/b)c) ou no art. 308º/1 do Cód. de Processo Penal, quando se definem os pressupostos de que depende, respectivamente, a dedução de acusação pelo Ministério Público ou a prolação de decisão instrutória de pronúncia ; ou ainda no já aludido art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal quando se define o âmbito necessário do exercício de deliberação probatória por parte do tribunal de julgamento.
Como se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/10/2011 (proc. 586/07.9GBAND.C1)[15], «Sendo o objecto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. art.º 339º, n.º 4, do C. Proc. Penal) e estando o Tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. art.º 374º, n.º 2, do mesmo Código), esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. art.ºs 368º e 369º, do mesmo Código).» ; podendo ainda citar–se, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/01/2017 (proc. 218/12.3TAFAR.E1)[17], onde se consigna que «I - O cumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do C. P. Penal, não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e, bem assim, aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto (seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena). II - Esta mesma regra deve aplicar-se à contestação do arguido, só devendo ser incluídos, na factualidade constante da sentença (provada ou não provada), os factos relevantes da contestação».
De fora da apontada obrigação de enumeração dos factos provados e não provados ficam, pois, todos aqueles que são acessórios ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, e bem assim aqueles que se mostram prejudicados com a solução dadas a outros, por apenas os contrariarem, ou seja, representarem mera infirmação, negação, de outros já constantes do elenco dos factos provados ou não provados.

No presente caso, e percorrido o elenco da fundamentação de facto da sentença recorrida, facilmente se constata que o mesmo não alude nem elenca expressamente – isto é, através da sua menção especifica nos termos que vinham alegados – aos argumentos de facto aludidos pelos recorrentes na sua contestação, oportunamente apresentada nos autos.
Aliás, denotando claramente não ignorar tal circunstância, o tribunal a quo, na própria sentença e logo após encerrar o segmento do elenco da matéria de facto provada e não provada, adianta a sua justificação para tal procedimento, referenciando (como já se transcreveu) expressamente o seguinte : «Desde já se consigna que a demais matéria de facto alegada na contestação conjunta dos Arguidos não é relevante para a boa decisão da causa, ou diz respeito a situações a analisar noutros processos, ou já se encontra englobada em toda a matéria de facto supra analisada (provada e não provada). ».
E a verdade é que, em última análise, aceita–se a explicação aqui exarada – pelo menos na perspectiva da não essencialidade da matéria de facto em causa para a decisão sobre o objecto amplo (como acima caracterizado) do julgamento dos autos –, e que a decisão assim adoptada não justifica a censura recursória ora em apreciação.

Aliás, se bem se atentar, pese embora aludindo no seu recurso à relevância de «toda a panóplia de factos alegados pelos arguidos/recorrentes na contestação», a verdade é que os ora recorrentes acabam por especificamente aludir tão apenas à omissão de duas circunstâncias de facto de entre toda a sua alegação em sede de contestação: a circunstância (alegada no ponto 70. da contestação) de a arguida AA não se encontrar no dia 05/12/2019, no local e à hora em que lhe é imputado na acusação uma actuação de destruição de objectos e agressão verbal perpetrada sobre a (nesta parte) ofendida/assistente CC ; e a circunstância (alegada nos pontos 40. a 43. da contestação) de que foi a mesma ofendida quem pediu (consentiu) a instalação das câmaras de vigilância que, nos termos da acusação, vinha imputada aos arguidos «para, além do mais, controlarem aquilo que a assistente fazia».
O que bem acaba por se compreender – tal como legitima a decisão do tribunal a quo nesta parte –, se atentarmos a que, na sua praticamente integralidade, na contestação conjunta os arguidos/recorrentes explanam todo um conjunto argumentativo que, ou visa meramente repudiar e negar os factos de que eram acusados, ou apresentar uma versão complementar dos mesmos sustentada, contudo, em circunstâncias em grande parte deslocadas em termos de localização e cronologia dos factos acusados, sem ligação com estes últimos, e reportados a alegados comportamentos da própria ofendida, ou à contextualização das circunstâncias que, na sua perspectiva, levaram o arguidos a ir viver conjuntamente com aquela – do que, tudo, resulta a alegação de ser a imputada ofendida a real agressora, e os imputados ofensores as verdadeiras vítimas.
Trata–se, porém, de uma argumentação que não colide nem altera a configuração típica, ilícita e culposa de tudo quanto nesse sentido se imputava em sede de acusação, e cuja eventual demonstração não teria a virtualidade de afastar aquela mesma configuração.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/05/2020 (proc. 825/18.0PBMAI.P1)[18], «I - A jurisprudência do STJ firmou-se há muito no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, mas apenas desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, isto é, desde que tenham efectivo interesse para a decisão. II - Segundo tal jurisprudência, a decisão já não deverá conter factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.».
No mesmo sentido, além dos arestos já acima citados, podem mencionar–se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/10/2011 (proc. 36/06.8GAPSR.S1)[19], do Tribunal da Relação de Évora de 18/01/2013 (proc. 10/09.2GBODM.E1)[20], ou do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/03/2014 (proc. 811/12.4JACBR.C1)[21].

Assim, no que tange à argumentação de facto da contestação que apenas visava apresentar uma versão alternativa dos factos acusados ou negar esta última, a consideração como provados destes últimos afasta só por si a viabilidade e necessidade de aquela alternativa proposta da contestação ser mencionada no elenco da matéria de facto. Como já vimos, a exigência legal da enumeração na sentença dos factos provados e não provados «não se configura, porém, como imposição de inclusão de factos sem relevância para a decisão da causa ou de factos que decorram implicitamente de outros mencionados e/ou os contrariem» – cfr. o agora mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/01/2013 (proc. 10/09.2GBODM.E1).
Assim, se por exemplo o Tribunal dá como provado que A se apoderou de um determinado bem de B, não precisa que dar como não provado que A não se apoderou de determinado bem de B ; de igual modo, se o Tribunal dá como não provado que A agrediu B, não precisa dar como provado que A não agrediu B.
Nesta exacta perspectiva desde logo se inserem, aliás, os factos expressamente invocados, nesta parcela do recurso, como omitidos do elenco factual da sentença.

Na verdade, e por um lado, mostrando–se provado que «No dia 5 dezembro de 2019, cerca das 17h00, na sequência de mais uma discussão, a Arguida AA partiu diversos objetos em porcelana da Assistente e apelidou-a de: “puta e de bêbada.”.» (cfr. ponto 16. da matéria de facto provada), essa consideração é liminarmente de sinal contrário às alegadas (no ponto 70. da contestação) não presença da mesma arguida naquela ocasião e não prática de tal facto.

Similar é a conclusão no que respeita ao segundo segmento de facto expressamente invocado pelos recorrentes como ausente do elenco da matéria de facto é, como vimos, o do alegado (em sede de contestação, nos seus pontos 40. a 43.) consentimento – ou mesmo pedido – da aqui ofendida CC para serem instaladas as câmaras de vigilância mencionadas na acusação, e por via das quais imputava a acusação visarem os arguidos «para, além do mais, controlarem aquilo que a assistente fazia» ; e ainda o de que tais câmaras foram colocadas em locais que em nada afectavam a assistente de modo a “violar” a sua intimidade/privacidade.
Também em sede de sentença, pelo tribunal a quo vieram a ser dados como assentes os seguintes factos, imputados, respectivamente, em sede de acusação e de pedido de indemnização civil deduzido pela assistente CC:
«8. Quando foram viver com a Assistente, os Arguidos fizeram obras de beneficiação na residência, colocando câmaras de vigilância para, além do mais, controlarem aquilo que a Assistente fazia (…).
30. Os Arguidos colocaram câmaras de vídeo no exterior e interior da residência comum, sem autorização da Assistente CC, a qual passou a ser filmada sem a sua autorização, passando os Arguidos a controlar toda a sua vida pessoal e íntima, bem como todos os seus passos, idas à casa de banho e demais atividade da Assistente dentro da sua habitação.».
Trata–se também, de forma evidente, de factualidade de sinal oposto ao alegado, e que prejudica objectivamente a viabilidade da sua demonstração em simultâneo – sob pena de o decidido incorrer em contradição na sua fundamentação.
Também se adita, já agora, que ademais sempre se revelaria irrelevante a consideração da alegada autorização da assistente para a instalação daquelas câmaras, pois que isso não afastaria que concomitantemente pudesse demonstrar–se estarem os arguidos animados do intuito típico de que vinham acusados

E em qualquer dos casos acresce que, em sede de motivação da decisão sobre estes factos em concreto, o tribunal a quo explica as razões, ligadas à valoração que efectua dos elementos de prova dos autos, em que assenta aquela conclusão, denotando haver ponderado esta matéria de prova que foi trazida à sua apreciação – sendo de realçar que se tal exercício de julgamento se mostra ou não adequadamente efectuado, é questão que, respeitando a eventual erro de julgamento, é diversa da sua omissão.

E é isso o que aqui fundamentalmente releva.
Como adita o supra mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/01/2013 (proc. 10/09.2GBODM.E1, «A exigência legal da enumeração na sentença dos factos provados e não provados visa permitir que a decisão, em processo penal, demonstre que o tribunal considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída na acusação, ou na pronúncia, e na contestação ou resultante da discussão da causa e com relevância para a decisão».
Ora, no presente caso, visto o elenco dos factos provados e não provados, e bem assim a motivação e o exame crítico da prova, é claro que o Tribunal a quo ponderou as diversas posições apresentadas relativamente aos factos, tendo optado, fundamentadamente, por uma delas, estruturando a decisão com correcto cumprimento das regras a que alude o art. 374º do Cód. de Processo Penal.
Não se reconhece, pois, que a decisão recorrida se mostre afectada por preterição de pronúncia sobre factos constantes da contestação dos recorrentes, não estando assim preenchidos os requisitos da nulidade processual prevenida na alínea a) do nº1 do art. 379º do Cód. de Processo Penal, improcedendo assim, e nesta parte, o recurso interposto.

II.B.3. De saber se a sentença proferida padece de nulidade por, relativamente a parte da matéria de facto dada com provada, remeter para o teor de documentos juntos aos autos.

Vêm de seguida os arguidos/recorrentes propugnar mostrar–se a sentença recorrida afectada ainda e sempre da nulidade prevista no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, por falta de fundamentação devida à preterição das menções referidas no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal no que tange à descrição da matéria de facto.
Alegam nesta parte que o conteúdo do ponto 15. da matéria de facto provada, «ao remeter os factos dados como demonstrados para conteúdo aposto em documentos juntos aos autos, e ao não individualizar de forma taxativa os factos provados que suportam a condenação dos arguidos - impedindo-os, assim, de cabalmente os conhecer».

Liminarmente se dirá que não assiste qualquer razão aos recorrentes, pela sucinta razão de que não é, de todo, rigorosa a sua alegação.

Assim, no aludido ponto 15. da matéria de facto provada, o tribunal recorrido não fixa simplesmente que «como consequência direta e necessária das agressões infligidas, a Assistente sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no auto de relatório de perícia de fls. 32 e 33 dos autos principais, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais (…).»
O que no aludido ponto 15. – na sua integralidade e não na versão obliterada pelos recorrentes, aditando–se agora um sublinhado na parte que estes últimos substituíram pelo grafismo “(…)” – é o seguinte (lido na sequência do ponto 14. para melhor compreensão):
14. Logo após a agressão, no dia 24 de novembro de 2019, pelas 19h21, a Assistente deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital ....
15. Como consequência direta e necessária das agressões infligidas, a Assistente sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no auto de relatório de perícia de fls. 32 e 33 dos autos principais, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, nomeadamente escoriações na sobrancelha direita, que foram causa direta e necessária de três dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
Ou seja, e em contrário daquilo que vem alegado em sede de recurso, e como bem divisa a Digna Procuradora–Geral Adjunta no seu parecer, nesta parte da sentença recorrida o tribunal a quo acaba por explicitar quais afinal as lesões que aqui estão em causa – sendo que, diga–se, compulsado o elemento clínico ali mencionado, nenhumas outras do mesmo resultam verificadas.

Aliás, adita–se, assim exactamente também sucede com relação ao ponto 22. (curiosamente não colocado em crise nesta parte do recurso) da mesma matéria de facto provada, onde, usando fórmula descritiva similar, se consigna o seguinte:
21. Logo após a agressão, no dia 24 de maio de 2020, pelas 19h07, a Assistente foi assistida no Serviço de Urgência do Hospital ..., onde foi suturada no pé direito.
22. Como consequência direta e necessária das agressões infligidas, a Ofendida sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no auto de exame de fls. 24 e 25 do apenso C e relatório de perícia de fls. 909 a 911 dos autos principais, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, nomeadamente traumatismo da face, pescoço e pé direito, que foram causa direta e necessária de vinte e três dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral pelo período de dezasseis dias.
Também neste caso, compulsados os elementos clínicos em questão, inexiste registo ou menção a qualquer outra lesão física para além daquelas que o ponto da matéria de facto em causa acaba por descrever expressamente.

Concede–se, sem dificuldade, que não será a melhor técnica descritiva em sede de enunciação da matéria de facto, mesclar aquilo que são puros factos (as lesões físicas sofridas pelo ofendido em determinada circunstância) com a referência aos elementos de prova (como o são, aqui, os elementos clínicos em causa) que sustentem a respectiva demonstração, e que deverão constar a jusante, na parte da motivação da decisão adoptada sobre a matéria de facto – como, diga–se aliás, vêm adequadamente a constar.
Uma coisa são os factos, outra, o meio probatório que os demonstra, sendo que, na esteira de quanto já a cima se enunciou, tal como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015 (proc. 447/14.5GFSTB.E1)[22], «No acervo de factos dados como provados na sentença só têm de constar aqueles que constituem o objeto do processo, nestes se compreendendo os que integram os elementos típicos do crime imputado ao arguido e os que relevam para a determinação da medida da pena».
Porém, no caso resulta claro que a sentença recorrida procurou, nesta parte, apenas antecipar a autoridade clínica em que se alicerçou ademais a detecção daquelas lesões.
Sendo que, de todo o modo – e isso é que mais relevantemente importa realçar – neste particular segmento o resultado do exercício da fundamentação da sentença está nos antípodas da obscuridade ou omissão descritiva dos factos necessários ao cabal esclarecimento da decisão adoptada e à sua integral apreensão e compreensão pelos seus destinatários – mormente os sujeitos processuais e a instância de recurso, não prejudicando nem o direito ao contraditório dos primeiros, nem o dever de sindicância da segunda.
Contrariamente ao alegado, os factos relevantes em causa – a natureza e características das lesões sofridas naquelas circunstâncias pela assistente CC – mostram–se enunciados e enumerados especificadamente em sede de matéria de facto provada.
Donde, no caso, e como bem assinala o Ministério Público na sua resposta ao recurso, a técnica de remissão aqui usada não é susceptível de produzir qualquer invalidade ao nível da incerteza sobre os factos em causa.

Destarte, também por esta via não se vislumbra que a decisão recorrida se mostre afectada da nulidade processual prevista na alínea a) do nº1 do art. 379º do Cód. de Processo Penal, improcedendo assim, e também neste segmento, o recurso interposto.

II.B. 4. De saber se a sentença elenca matéria de facto conclusiva que deva ser considerada não escrita.

Alegam ainda os arguidos/recorrentes, que na matéria dada como provada se encontram factos que consubstanciam matéria conclusiva e, por isso, deverão ser considerados como não escritos.

Vejamos.
O dever de fundamentação dos actos decisórios vem plasmado desde logo no art. 97º/4 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
Neste contexto, e indo directamente de encontro à alegação dos recorrentes, é verdade que o facto conclusivo é um “não-facto”, excluído da apreciação do tribunal, que deve ficar fora do elenco dos factos provados e não provados, só sendo susceptíveis de imputação processual, com aptidão para serem judicialmente apreciados, factos que possam ser discutidos com respeito pelos princípios do contraditório e da legalidade. Como se escreveu nomeadamente no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/09/2015 (proc. 775/13.7GDGDM.P1)[23] «As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas».
Donde, em sede de julgamento, também apenas os factos imputados que respeitem tal configuração podem ser objecto de discussão e decisão, pois que, no âmbito do respeito pelas garantias da defesa e do princípio do contraditório, deve assegurar–se que o facto em discussão seja identificável pela defesa, podendo assim ser plenamente contraditado – o que encontra reflexo nos termos em que se impõe a descrição da matéria de facto em sede de decisão final no âmbito do dever de fundamentação da mesma.

Adentrando directamente no caso dos autos, invoca o recorrente verificar–se, na perspectiva agora em análise, um anómalo exercício de fundamentação de facto por parte da sentença recorrida por inclusão no respectivo elenco de factos de índole conclusiva.
Não obstante, pese embora aluda à existência de «vários factos» com tal característica, acaba por enunciar tão apenas aquele plasmado no ponto 69. da matéria de facto provada, e na parte do mesmo em que se alude – por reporte à pessoa da assistente/co–arguida CC – a uma “…(postura comum em pessoas idosas que viveram a maior parte da sua vida nas suas casas de família, que muitas vezes os próprios construíram e onde cresceram os seus filhos)».

Para melhor compreensão do alegado, recorda–se o teor integral do aludido ponto 69. da matéria de facto provada em sede de sentença, com sublinhado aposto no trecho objecto de crítica nesta parte:
69. [a assistente CC] Tem vindo a pernoitar na casa da irmã II, no entanto, não se sente bem a utilizar espaços que não são seus e demonstra uma vontade incontornável e inflexível de permanecer na sua casa, independentemente do risco que corre, mesmo sendo este um risco para a sua vida (postura comum em pessoas idosas que viveram a maior parte da sua vida nas suas casas de família, que muitas vezes os próprios construíram e onde cresceram os seus filhos).

Entendem os recorrentes que estamos perante um facto conclusivo, e julga–se efectivamente que nesta parte lhes assiste razão.

Na verdade, considera–se que o trecho final do ponto da matéria de facto provada aqui em causa contém um juízo valorativo, que se poderá (ou não) extrair de factos concretos, objectivos e precisos que sejam objecto de prova, mas que não se pode confundir com estes últimos.
Ali (naquele segmento) se consubstancia, em bom rigor, uma apreciação de cariz marcadamente subjectivo, extrapolando de um sentimento que foi verbalizado pela assistente, uma categorização da sua situação de acordo com parâmetros sociológicos – mas em termos que não consubstanciam em si mesmos qualquer facto concreto e objectivável.
Ora, é bem verdade, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2018 (proc. 13/16.0GTCTB.C1)[24], que «Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis» ; porém, e a este respeito, diga–se que o Supremo Tribunal de Justiça tem-se já pronunciado no sentido de que devem ter-se como não escritos os “factos” conclusivos ou de natureza meramente jurídica – vajam–se por exemplo os Acórdãos de 05/02/2009 (proc. 08P3629)[25], de 23/09/2009 (proc. 238/06.7TTBGR.S1)[26] e o de 15/11/2011 (proc. 342/09.0TTMTS.P1.S1)[27] que «As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do acervo factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, e, quando isso não suceda e o tribunal se pronuncie sobre as mesmas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita».

Em face do exposto, tem efectivamente de considerar–se como não escrito aquele trecho final do ponto 69. da matéria de facto provada – o qual passará, assim, a ter a seguinte redacção:
69. Tem vindo a pernoitar na casa da irmã II, no entanto, não se sente bem a utilizar espaços que não são seus e demonstra uma vontade incontornável e inflexível de permanecer na sua casa, independentemente do risco que corre, mesmo sendo este um risco para a sua vida.

É esta, contudo – tal a inocuidade do segmento em causa –, a única consequência processual a retirar do exposto, em nada a alteração ora determinada influindo na decisão jurídica (quer em sede criminal, quer indemnizatória) sobre o objecto dos autos.

Procede, assim, esta parte do recurso interposto.

II.B.5. De saber se a sentença proferida padece de nulidade por haver sido utilizada prova legalmente inadmissível para sustentar os factos dos pontos 42. a 71. da matéria de facto provada, na medida em que os mesmos se basearam nos relatórios sociais elaborados nos autos e não notificados aos arguidos/recorrentes.

No passo seguinte do seu recurso, vêm os arguidos AA e BB referenciar que para prova dos factos vertidos nos pontos 42. a 71. da matéria de facto provada na sentença recorrida, o Tribunal a quo se socorreu dos relatórios sociais elaborados sobre as pessoas da assistente CC e deles próprios, arguidos.
Ora, prosseguem, pese embora os ditos relatórios sociais em questão (juntos a fls. 779 a 787 dos autos) hajam sido solicitados pelo tribunal recorrido por via de despacho judicial (refª 434205058) em 09/03/2022, ou seja, antes do início do julgamento, esses relatórios nunca foram, tal como se impunha, notificados aos arguidos.
Donde, mais propugnam, ter-se-á que considerar que os ditos relatórios sociais consubstanciam uma prova insusceptível de valoração, desde logo nos termos do disposto no art. 355º/1 do Cód. de Processo Penal – o que tem como consequência a invalidade do acto em que se verifica, bem como dos que dele dependerem e aquela puder afectar, nos termos do art. 122º/1 do Cód. de Processo Penal, o que requerem seja reconhecido.

Vejamos.
A alegação que nesta parte vem efectuada pelos recorrentes analisa–se, pois, em dois planos complementares, que a sustentam: por um lado, a falta de notificação processual dos aludidos relatórios sociais, e por outro a alegação de que os mesmos serão meio de prova insusceptível de valoração nos termos do art. 355º do Cód. de Processo Penal.
De tudo concluem pela verificação de uma nulidade processual que afectaria o próprio julgamento e, nessa decorrência, a sentença proferida.

Começa por se realçar que é verdade que a matéria de facto vertida nos pontos 42. a 52. (quanto à arguida AA), 53. a 61. (quanto ao arguido BB) e 62-. a 71. (quanto à assistente CC) assentam designadamente no teor dos relatórios sociais juntos aos autos a fls. 785 e segs., 782 e segs. e 779 e segs., respectivamente – como, aliás, na própria motivação decisão de facto na mesma sentença se consigna.
É também certo que dos autos não resulta a indicação de que os aludidos relatórios sociais, após a sua junção aos autos, hajam sido especificamente notificados aos arguidos.

Ora, é indiscutível que o objectivo do relatório social (de junção facultativa a partir da entrada em vigor da Lei 59/98, de 25 de Agosto), é a recolha de informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, sendo elaborado por serviços de reinserção social, com o objectivo de recolher dados visando auxiliar o tribunal na avaliação da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei, muito em especial para a «correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada» como pode ler–se no nº1 do art. 370º do Cód. de Processo Penal.
E assim sucedeu nos autos, pois que os relatórios sociais elaborados o foram com base, essencialmente, em entrevistas com os próprios sujeitos processuais objecto dos mesmos.
Enquanto elemento susceptível de demonstrar factos com interesse para a decisão da causa, o relatório social está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, podendo e devendo o tribunal valorá–lo, e desde que tal elemento seja do conhecimento (naturalmente prévio à decisão do tribunal) do arguido para, querendo, poder exercer o contraditório (cfr. arts. 323º/f) e 327º/2 do Cód. de Processo Penal).
Sucede que, como acima já se enunciou, a lei processual penal só determina a nulidade do acto quando tal sanção for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – cfr. nºs 1 e 2 do art. 118° do Cód. de Processo Penal.
Ora, a falta de notificação aqui em causa, não estando prevista como nulidade processual (sanável ou insanável), consubstancia assim mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123º/1 do Cód. de Processo Penal – isto é, a mesma deve ser arguida pelo interessado no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo, ou intervindo em algum acto nele praticado.
Neste sentido podem citar–se nomeadamente o Acórdão do STJ de 25/05/2009 (proc. 09P0094)[28], onde se conclui que « o seu [do relatório social elaborado nos autos] teor não foi notificado, por isso que se trata de uma simples irregularidade processual, que se tem por sanada por não ter sido arguida dentro do prazo legal, ou seja nos três dias seguintes ao da intervenção no processo, desde logo do dia inicialmente indicado para o julgamento-art.º 123.º n.º 1 , do CPP», e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/02/2016 (proc. 109/15.6PFCBR.C1)[29] e do Tribunal da Relação de Lisboa (proc. 454/19.1PEAMD.L1-5)[30].
Ora, no presente caso, constata–se, como nota o Ministério Público na sua resposta ao recurso, que os autos certificam que :
– os arguidos foram oportunamente – em Março de 2022 (cfr. fls. 557 e segs.) – notificados do despacho do Tribunal que ordenou a realização e junção aos autos dos relatórios sociais,
– depois, os mesmos relatórios sociais foram juntos aos autos no dia 11/05/2022 (cfr. fls. 779 e seguintes), ou seja, ainda antes sequer da primeira sessão da audiência de julgamento, que teve lugar a 17/05/2022 (cfr. fl. 804), que decorreu desde logo com a presença dos arguidos,
– e desde aquela data (11/05), os referidos relatórios sociais estiveram sempre integralmente digitalizados no histórico electrónico do processo ao qual as Ilustres Defensoras dos arguidos/recorrentes sempre tiveram acesso,
– acrescendo que nessa primeira sessão de julgamento, em 17/05, o Tribunal a quo proferiu inclusive despacho, notificado aos arguidos, ordenando o pagamento dos referidos relatórios (cfr. fl. 806),
– inclusive o tribunal proferiu ainda na mesma sessão um outro despacho em que, a propósito da requerida junção de vários elementos documentais aos autos, consigna expressamente que já tinha ordenado a junção aos autos dos referidos relatórios sociais (cfr. fls. 808),
– ademais, as sessões de produção de prova em julgamento nestes autos ascenderam a um total de quatro – 17 e 23 de Maio, 17 de Junho e 7 de Julho de 2022 –, tendo decorrido sempre, naturalmente, com a presença dos arguidos.
Ora, perante todo este conjunto de circunstâncias, afigura-se-nos que os arguidos não podiam deixar de saber, logo aquando da primeira sessão da audiência de julgamento – ou, no limite a que alude a resposta do Ministério Público, pelo menos a 7 de Julho de 2022, aquando da última sessão de produção de prova em julgamento –, que os relatórios sociais já tinham sido juntos aos autos.
O que significa que a irregularidade em causa deveria ter sido suscitada logo que os arguidos intervieram naquele acto processual, ou no prazo de três dias a contar dessa intervenção, o que não sucedeu – sendo certo ser indiscutível, repete–se, que os arguidos tinham conhecimento da elaboração dos relatórios em causa.
É assim inevitável a conclusão de que, não tendo sido tempestivamente arguida, a irregularidade em causa se mostra desde logo sanada, não se mostrando por tal via invalidados quaisquer termos processuais, em especial, a sentença.

Ainda se aditará complementarmente que, atento todo o conjunto e de eventos processuais agora elencados – não sendo a menos relevante a constatação do facto, absolutamente evidente, de que os relatórios em causa são realizados na sequência do contacto da DGRSP com os visados, onde se incluíam os arguidos/recorrentes (pelo menos no tocante aos relatórios que lhes dizem respeito) –, e a respectiva cronologia, não se crê que a inexistência de uma notificação formal dos aludidos relatórios sociais aos arguidos signifique que dos respectivos conteúdos os mesmos não tenham tido conhecimento – sendo, note–se, que em sede de recurso não se mostra invocada em específico essa falta de conhecimento material.

Prosseguindo agora para o segundo plano de análise suscitado pela petição recursória nesta parte, vêm os recorrentes concluir, sempre com relação ao teor dos aludidos relatórios sociais, haver sido desrespeitada a regra de delimitação da apreciação probatória imposta pelo art. 355º/1 do Cód. de Processo Penal, e segundo a qual «Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».
Apreciando, desde logo se dirá nesta parte que a literal interpretação que os recorrentes efectuam do citado art. 355º/1 do Cód. de Processo Penal não merece, salvo o devido respeito, acolhimento.
Na verdade, e como de forma uniforme e pacífica tem vindo a ser considerado pela jurisprudência dos tribunais superiores, seria absurda, e em alguns casos mesmo absolutamente contraproducente à luz dos princípios da adequada imediação da prova e da celeridade processual, a exigência de que todas as provas – incluindo as documentais e periciais constantes, do processo – tivessem de ser, num exercício mais próximo de uma mera actividade notarial, e mesmo quando não seja suscitado qualquer incidente relacionado com a respectiva valoração, reproduzidas uma a uma, em sede de audiência de julgamento – e se se pretender convocá-las para formar a convicção do tribunal.
Acresce, aliás, recordar, a propósito exactamente em especial do teor dos relatórios sociais elaborados no âmbito de processo penal, que o nº4 do art. 370º do Cód. de Processo Penal prevê inclusive que «A leitura em audiência do relatório social ou da informação dos serviços de reinserção social só é permitida a requerimento».
Assim, exigência a que se reporta o citado art. 355º do Cód. de Processo Penal prende-se apenas com a necessidade de obviar a que concorram para a formação da convicção do julgador provas que não tenham sido apresentadas e juntas ao processo pelos intervenientes ou por determinação oficiosa do tribunal, mas já não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais, todas as provas documentais constantes dos autos. Donde, basta que existam no processo, com pleno conhecimento dos sujeitos processuais – que, assim, puderam inteirar-se da sua natureza, importância, conteúdo e valor probatório –, para que qualquer deles possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar pertinente sobre elas, bem como examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios. Neste sentido, tais provas são examinadas em audiência, sob a presidência dos princípios da imediação e do contraditório, podendo concorrer sem reservas para a formação da convicção do tribunal.
Neste sentido, e além de muitos outros, vejam–se os Acórdãos do S.T.J. de 21/01-1998 (proc. n.º 97P1095)[31] e de 10/11/2010 (proc. 347/06.2GBVLG-A.S1)[32]; do Tribunal da Relação do Porto de 09/01/2013 (processo n.º 220/08.0GBETR.P1)[33] e de 19/04/2006 (proc. 0416166)[34]; do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/11/2017 (proc. 1176/16.0PBCBR.C1)[35]; do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/03/2013 (proc. 746/11.8PBGMR.G1)[36] e de 25/09/2017 (proc. 727/16.5PBGMR.G1)[37]; e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/12/2011 (proc. 440/08.7GBSXL.L2-9)[38] e de 28-06-2011 (proc. 737/07.3PLLSB.L1-5)[39].
Aliás, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 87/99, de 09/02/1999 (proc. 444/98)[40],] já emitiu um juízo de não inconstitucionalidade, por não violarem o disposto no art. 32º/5 da Constituição da República Portuguesa, dos preceitos ínsitos no art. 355º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que os documentos juntos aos autos até à fase de julgamento não têm de ser lidos em audiência de julgamento, considerando-se os mesmos examinados desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.
Donde, também os relatórios sociais referenciados pelo tribunal a quo na motivação sobre a decisão da matéria de facto, além de materialmente válidos, eram susceptíveis de valoração também de acordo com o disposto no citado art. 355º/1 do Cód. de Processo Penal, o qual se mostra respeitado, não procedendo o entendimento contrária manifestado em sede de recurso.
Não se verifica, portanto, também qualquer valoração não admitida de meios de prova nem, em conformidade, qualquer nulidade processual.

Improcede, pois, integralmente também esta parte do recurso interposto pelos arguidos.

(…)
*
III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em:

1. julgar improcedente o recurso interposto pelos arguidos AA e BB em 07/08/2022, mantendo–se a decisão recorrida, proferida na sessão da audiência de julgamento do dia 07/07/2022 (que indeferiu a arguição de nulidades por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade que haviam suscitado na sessão da audiência de julgamento do dia 17/06/2022),

Custas da responsabilidade dos recorrentes, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este).

2. julgar improcedente o recurso interposto pelos arguidos AA e BB da sentença proferida, e, em conformidade, e – com a ressalva das modificações da decisão da matéria de facto (com a alteração dos pontos 8., 9. e 69. dos factos provados, e o aditamento dos pontos J. e K. aos factos não provados), nos termos que antecedem e que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, modificações que, todavia, se revelam totalmente irrelevantes no que tange às configurações jurídico–penal e indemnizatória da conduta dos mesmos arguidos – confirmar em tudo o mais a decisão recorrida

Custas pelos recorrentes, fixando–se a taxa de justiça em 4 U.C.s (art. 513º do Cód. Processo Penal e art. 8º/9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III anexa ao mesmo).
*
Porto, 8 de Fevereiro de 2023
Pedro Afonso Lucas
Donas Botto
Paula Guerreiro

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)

___________________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Cruz Bucho, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[4] Relatado por Maria dos Prazeres Silva, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[5] Relatado por Joaquim Gomes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[6] Relatado por José Adriano, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[7] Relatado por Elsa Paixão, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[8] Relatado por Fátima Furtado, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[9] Relatado por Dolores Silva e Sousa, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[10] Relatado por José Adriano, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf [11] Relatado por Maria dos Prazeres Silva, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[12] Relatado por Joaquim Gomes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[13] Relatado por Goes Pinheiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[14] Relatado por Almeida Semedo, disponível em Col. Jur., ano XXVI, tomo 2, pág. 134
[15] Relatado por Cura Mariano, acedido em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120312.html e em que se decidiu «Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida»
[16] Relatado por José Eduardo Martins, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[17] Relatado por João Amaro, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[18] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[19] Relatado por Raúl Borges, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[20] Relatado por Carlos Berguete Coelho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[21] Relatado por Belmiro Andrade, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[22] Relatado por Alberto Borges, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[23] Relatado por Maria Luísa Arantes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[24] Relatado por José Eduardo Martins, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[25] Relatado por Rodrigues da Costa, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[26] Relatado por Bravo Serra, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[27] Relatado por Pinto Hespanhol, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[28] Relatado por Armindo Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[29] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[30] Relatado por Cid Geraldo, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[31] Relatado por Martins Ramires, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[32] Relatado por Pires da Graça, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[33] Relatado por Maria dos Prazeres Silva, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[34] Relatado por Paulo Valério, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[35] Relatado por Olga Maurício, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[36] Relatado por Ana Teixeira e Silva, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[37] Relatado por Jorge Bispo, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[38] Relatado por João Carrola, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf [39] Relatado por Joaquim Moura, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[40] Publicado no D.R. série II-A, de 01/07/1999.