Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8994/19.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: DEFINIÇÃO E ÂMBITO DOS TEMAS DE PROVA
CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS CONCRETIZADORES
FACTOS COMPLEMENTARES
FACTOS INSTRUMENTAIS
CONDIÇÕES DA SUA ATENDIBILIDADE
OPORTUNIDADE DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RP202111238994/19.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A indicação dos temas de prova não é um acto inócuo e desprovido de utilidade. No entanto, o novo CPC adoptou uma solução que passa, já não pela concretização de factos, mas por uma indicação genérica e eventualmente conclusiva da matéria controvertida sobre a qual há-de incidir a instrução da causa, que apenas deve ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas.
II - Sem prejuízo de casos em que solução diversa seja mais adequada, a obterem tratamento à luz do princípio de adequação processual, a indicação dos temas de prova deve prevenir qualquer tipo de excesso na vinculação temática do tribunal, facultando, pelo contrário, que a decisão sobre a vertente fáctica da causa, no termo da audiência de julgamento, expresse a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou, para assegurar a adequação da sentença à realidade.
III - Os limites da factualidade a considerar não derivam dos termos em que foram elencados os temas de prova, mas antes da causa de pedir invocada pelo autor e das excepções arguidas pelo réu.
IV - No que toca à definição da causa de pedir e das excepções, o tribunal está vinculado à alegação das partes. Estabelecida a causa de pedir em função da alegação suficiente dos factos essenciais, o juiz pode importar para a decisão outros que resultem da instrução da causa: se forem instrumentais, pode fazê-lo sem mais –art. 5º nº 2 , al. a); se forem complemento ou concretização daqueles essenciais, o seu aproveitamento exige que sobre eles a parte tenha tido oportunidade de se pronunciar – art. 5º nº 2, al. b).
V – Deve entender-se que a parte teve oportunidade de se pronunciar sobre um facto se o mesmo foi alvo de discussão em audiência de julgamento, tendo sido sobre ele inquirida testemunha, sob instância dos mandatários de ambas as partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N. 8994/19.6T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia - Juiz 1

REL. N.º 632
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 – RELATÓRIO

B…, casado, enfermeiro, portador do CC …….., com o NIF ………, intentou acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra C…, casada, portadora do CC …….. …., com o NIF ………, pedindo que seja decretado o divórcio e dissolvido o casamento entre ambos celebrado em 7 de Setembro de 2002.
Fundamentando a sua pretensão, alegou que estão definitivamente desavindos desde Setembro de 2018 e que no dia 17 de Fevereiro de 2019, cessou qualquer comunhão de vida conjugal entre eles, pois deixaram de partilhar o leito, a mesa, os cuidados de casa de família e deixou de haver economia familiar. Mais alegou que, ao tempo da entrada da acção, iria abandonar a casa de família sem intenção de restabelecer a vida em comum ou manter o vínculo conjugal, pois que a degradação do seu relacionamento com a ré originou a ruptura definitiva do casamento, como resultaria dos factos alegados. Invocou o disposto na al. d) do art. 1781º e o art. 1782º do C.Civil.
A ré foi citada e frustrou-se a tentativa de conciliação que teve lugar.
A ré contestou por impugnação e peticionou a condenação do autor como litigante de má-fé.
O processo foi saneado e, fixando o objecto do litígio e organizando os temas de prova, consta do correspondente despacho o seguinte excerto:
“Identificação do objecto do litígio
1 – Pedido formulado pelo autor
A decretação do divórcio entre o autor e a ré, com a consequente dissolução do casamento entre ambos celebrado.
2 – Causa de pedir
Complexa, composta pelos factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a rutura definitiva do casamento.
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Temas de prova
Constituem os temas da prova a comprovação pela ré de comportamentos susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência e bem assim da litigância de má-fé do autor.”
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O processo prosseguiu para julgamento, tendo culminado da prolação da sentença sob recurso que julgou a acção procedente e decretou o divórcio entre as partes, com o seguinte fundamento:
“Da factualidade dada como provada, em 3 a 8, é incontroverso que ficou demonstrada a separação de facto entre o autor e a ré e a inexistência de comunhão de vida conjugal entre ambos há mais de um ano consecutivo.
E ficou provado, igualmente, que não existe, por banda do autor, o propósito de restabelecer tal comunhão de vida (vide facto provado em 8).
Daqui resulta, pois, que estão integralmente preenchidos os requisitos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, estabelecidos nos artigos 1781.º, alínea a) e 1782.º.”
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É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pela ré C…, que o termina alinhando as seguintes conclusões:
1ª - Sustentamos a nossa impugnação relativa à matéria de facto nos depoimentos, todos gravados no “H@bilus Media Studio”, conforme consta da acta da audiência de 20 de Maio de 2021, das testemunhas D…, E…, F… e G…. Identificaremos no local próprio as passagens e respectivos tempos, dos trechos que reputamos relevantes. Ainda no documento junto com a petição sob o nº1.
2ª – Os factos alinhados nos pontos 3 e 4 da respectiva relação da douta sentença não deveriam ter sido considerados provados.
3ª – Quanto ao facto do ponto nº 3, apenas a testemunha D…, mãe do autor, versou a matéria em causa, mas o seu depoimento foi incoerente, parcial, denotando animosidade para com a ré, com relato completamente desconforme à normalidade dos factos, de acordo com as regras da experiência comum.
4ª – Quanto ao facto nº 4, temos que nenhuma das testemunhas aludidas referiu o carácter ininterrupto de autor e ré terem deixado de dormir na mesma cama.
5ª - Portanto, o primeiro deverá ser excluído da relação dos provados e o segundo manter-se, mas dele retirado o determinativo temporal “e até agora”.
6ª – Em sentido inverso, deverão dados como provados, em parte, os factos constantes das alíneas N) e Q) da relação dos não provados.
7ª – Quanto ao primeiro, resultante do alegado nos arts 21.º a 23.º da contestação, com base no depoimento de E…, considerada, bem, como tendo deposto por forma a merecer credibilidade, sempre teremos de haver como demonstrado que o autor agrediu sua mulher na cara por altura de Outubro de 2018.
8ª – Quanto ao segundo, provindo do alegado nos arts 42.º e 107.º da contestação, parece-nos amplamente demonstrado, com base nos depoimentos da mesma E…, de G… e da própria F…, bem como pela fotografia, que, ademais, esta reconheceu como sua, junta com a petição sob o nº 1.
9ª - Pelo que, deverão ser aditados à matéria provada os seguintes factos.
- Por altura de Outubro de 2018, quando estavam na residência do casal, o autor agrediu a ré na cara;
- Em de Junho de 2019, descobriu que o autor mantinha uma relação de intimidade com outra mulher, F…, com quem, no fim-de-semana de 25 de Agosto de 2019, na ausência da ré, pernoitou na morada do casal.
10ª – Foi fixado como objecto do litígio, “a decretação do divórcio entre o autor e a ré, com a consequente dissolução do casamento entre ambos celebrado”, qualificando a causa de pedir como “complexa, composta pelos factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a rotura definitiva do casamento”.
11ª – Como temas de prova “a comprovação pela ré de comportamentos susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência”.
12ª - A instrução tem por objecto os temas da prova enunciados, os quais vão balizar o âmbito da matéria de facto que, a final, será objecto de apreciação à face do direito aplicável – art. 410.º do Código de Processo Civil.
13ª - Os temas da prova asseguram às partes saber com o que contam quanto à instrução, permitem- lhe estruturar a estratégia e adequar os meios probatórios ao seu dispor na medida da matéria em discussão e são a garantia de que o que neles não se enquadra nunca poderá servir de base fáctica à decisão.
14ª - Salvo o devido respeito, a Meritíssima Juíza a quo extravasou claramente os temas de prova que havia fixado, baseando a decisão na separação de facto por período superior a um ano, facto que não é enquadrável nos termos da prova enunciados.
15ª – A ré não pôde ter em conta tal facto na escolha dos meios de prova e na tarefa de inquirição das testemunhas.
16ª - A douta sentença acabou por constituir uma decisão-surpresa, por fundamentada em factos de ponderação imprevisível, face à delimitação previamente introduzida.
17ª – O excesso da decisão verificou-se relativamente aos factos alegados na petição e também quanto ao enquadramento jurídico ali construído, já que o autor invocou o fundamento do art. 1781.º, alínea d), não o da alínea a), do Código Civil.
18ª – Sem prescindir, rememorando a impugnação à matéria de facto, a prova produzida nunca poderia ter permitido a demonstração desse facto fulcral à sustentação do decidido, já que, como dissemos, não houve um único depoimento do qual pudesse ter resultado o carácter ininterrupto da separação.
19ª – Pelo que não há que ponderar acerca do princípio da actualidade, conforme a previsão do art. 611.º, nº 1, do Código de Processo Civil, mas, ao contrário, conforme a norma do nº 2 do mesmo artigo, considerar o facto não atendível.
20ª - Os factos provados, com a correcção que requeremos, são insuficientes para sustentar a dissolução do vínculo conjugal, com base na ruptura definitiva do casamento.
21ª – Nem o seria o do ponto 3 da relação dos provados, ainda que se mantivesse, pois não resulta dele em quem teria radicado a tal discussão entre a ré e a mãe do autor e a completa indefinição da expressão “falou-lhe mal dele”.
22ª – Não ignoramos a evolução legislativa na disciplina do casamento e da sua dissolução, nem propugnamos por solução diversa da imposta pelo direito constituído.
23ª – Porém, por enquanto, para que o divórcio seja decretado, é necessário que sejam provados os factos que constituam os fundamentos legais, que continuam a existir, no caso, porque foi o fundamento invocado, quaisquer factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento – art. 1781.º, alínea d), do Código Civil.
24ª - Não resultaram provados factos que permitam concluir por tal situação de ruptura.
25ª – Ao decidir como decidiu, sempre salvo o devido respeito, que é muito, a Meritíssima Juíza a quo não fez a correcta apreciação da prova produzida, à luz dos respectivos critérios, e a sua decisão violou as normas dos arts 1781.º e 1782.º do Código Civil, 410.º e 611.º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto e pelo douto suprimento que se pede e espera, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, nessa conformidade:
1 - Deverá ser alterada a decisão relativa à matéria de facto:
- Excluindo-se da relação dos provados o facto como tal considerado sob o nº 3 da respetiva relação,
- Corrigindo-se o facto sob o nº 4 da mesma relação, dele ser retirando o determinativo temporal “e até agora”
- Acrescentando-se à matéria da facto provada que por altura de Outubro de 2018, quando estavam na residência do casal, o autor agrediu a ré na cara e, em Junho de 2019, descobriu que o autor mantinha uma relação de intimidade com outra mulher, F…, com quem, no fim-de-semana de 25 de Agosto de 2019, na ausência da ré, pernoitou na morada do casal,
2 -Deverá ser revogada a douta sentença recorrida, sendo a acção julgada improcedente, por não provada, com todas as consequências legais,
Tudo como será de inteira JUSTIÇA.
Não se mostra junta resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Cumpre decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, as questões a decidir dirigem-se à qualificação dos factos descritos nos itens 3 e 4 como provados, pois que a ré entende não o estarem, e à qualificação da matéria descrita nas als. N) e Q) como provada, em vez de não provada, bem como, sucessivamente, à apreciação da eventual nulidade da sentença por excesso de pronúncia (embora a apelante assim o não qualifique), por ter baseado a decisão em factos que não havia incluído nos temas de prova e com um fundamento jurídico diverso do invocado pelo autor.
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A decisão sobre a matéria controvertida resultou nos termos seguintes:
“- Factos Provados
1 – O autor B… e a ré C… contraíram casamento católico entre si, no dia 7 de setembro de 2002, sem convenção antenupcial.
2 – A partir de 2018 começaram a ser frequentes as discussões entre autor e ré, sobretudo devido a um desentendimento daquele com o cunhado, casado com a irmã da ré, que eram sócios numa sociedade e por causa de dívidas.
3 – No dia 23 de março de 2019, a ré teve uma discussão com a mãe do autor, falou-lhe mal dele e desde então impede os filhos de irem a casa dos avós paternos, que deles cuidavam desde pequenos e, à data, todos os dias, os recebiam vindos da escola e lhes davam de jantar.
4 – Pelo menos, desde dia não concretamente apurado do mês de abril de 2019 e até agora, que autor e ré deixaram de dormir na mesma cama, tendo o autor continuado a dormir no quarto de casal e a ré passado a dormir com os filhos.
5 – A partir de então, a ré deixou de fazer comida para o autor e deixou de comer à mesa com ele.
6 – E desde então a ré não mais cuidou da roupa do autor e deixou de haver economia familiar.
7 – O autor não tem intenção de manter o vínculo matrimonial ou de restabelecer a vida em comum.
8 – O autor deixou de viver na casa de morada de família no dia 19 de Março de 2020.
9 - Pelo menos em Agosto de 2019, a ré soube que o autor mantinha uma relação de intimidade com outra mulher, F…. (facto aditado em resultado da apreciação do recurso sobre a decisão da matéria de facto).
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- Factos não provados
(…)
A) – O autor e a ré cessaram a vida em comum no dia 17 de fevereiro de 2019.
B) – Em consequência de uma discussão entre autor e ré, ocorrida em 30 de setembro de 2018, estiveram sem falar até ao fim de janeiro, embora partilhassem o mesmo leito e comessem à mesma mesa.
C) – Fizeram uma tentativa para reatarem a vida normal de casados que se manteve por umas escassas 5 a 6 semanas, até ao aniversário dos filhos, registando-se uma ou outra discussão entre ambos.
D) – Em 17 de fevereiro de 2019 ocorreu uma nova discussão, em frente aos filhos, iniciada pela ré, acusando o autor de falta de colaboração na festa de aniversário dos filhos, o que não era verdade.
E) – A ré recusou a colaboração que várias vezes o autor ofereceu ao longo da semana e no próprio dia, justificando que “tinha tudo tratado”.
F) – A partir desta data, a ré passou a propagar pela sua família que o cônjuge a tratava mal, desconsiderava-o na frente dos familiares, acusando-o de ser contra a família dela, dizia mal dele aos filhos de ambos, os quais passaram a ser proibidos de estar com o pai.
G) – Quando o autor está em casa, a ré e os filhos comem dentro do quarto e nele guardam as suas coisas, incluindo comida.
H) – Em alternativa, como quase sempre acontece, a ré passou a chegar a casa, a partir das 22 horas, com os filhos e vão logo diretamente para o quarto, os quais mal tempo têm de cumprimentar o pai.
I) – É o autor que tem que tratar da limpeza da casa, excepto, no quarto onde se aquartelou a ré com os filhos.
J) – Entretanto, a meados deste ano, apanhando o autor fora de casa, e estando acompanhada dos seus dois filhos, a ré deixou as portas de entrada da casa, com as chaves por dentro conseguindo, desta forma, que as portas não pudessem ser abertas pela parte exterior.
K) – O autor, bem insistiu, batendo à porta e enviando duas mensagens para que a ré, para que lhe abrisse a porta, sem, todavia, o ter conseguido. Foi à polícia local, regressou, voltou a tentar o contacto com a ré e a bater à porta insistentemente, mas teve de partir os vidros de uma janela para poder entrar em casa.
L) – A tudo isto os filhos presenciaram entre choro e estupefação e pânico, provocado pelo estrondo dos vidros duplos a partirem.
M) – Desde 17 de fevereiro de 2019, que a ré afasta os filhos tanto quanto possível da presença com o pai, mesmo nas festas que vai fazendo com eles e que são do desconhecimento do autor.
N) – No dia 30 de setembro de 2018, o autor desferiu um estalo na cara da ré, agarrou-a pelo pescoço, apertou-lhe o pescoço e disse que a matava.
O) – O autor adulterou datas e factos, para tentar justificar um período de separação de facto que sabe não existir.
P) – Bem sabe o autor que é totalmente falso que desde 17 de fevereiro de 2019 tenham, nomeadamente, passado a dormir separados, ou que desde aquela data a ré tenha deixado de cozinhar para si ou de comer com este ou de lhe tratar da roupa ou de arrumar a casa.
Q) – O autor omite a sua relação extraconjugal que dura há largos meses com F… e que segundo o próprio admitiu é anterior ao pedido de divórcio que dirigiu à ré.
R) – A alegação de factos falsos e a omissão de outros, a par com a tentativa de imputar à ré certas condutas falsas, causam-lhe grande perturbação e desgosto.
S) – A ré vê a sua familiar ruir única e exclusivamente por vontade do autor, seu marido, que, ao invés de assumir a sua relação extraconjugal tenta deturpar a verdade dos factos e imputar à ré comportamentos violadores dos deveres inerentes à relação matrimonial, que sabe serem falsos.
T) – Os factos alegados na petição inicial causam grande perturbação, vergonha e revolta.
U) – A má fé do autor tem provocado danos irreversíveis, na imagem da ré, na sociedade e na sua auto-estima.
V) – O autor alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a boa decisão da causa.
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A apelante começa por pretender a alteração de alguns pontos da decisão da matéria de facto, especificando-os, apontando o sentido da mudança e referindo os meios de prova cujos conteúdos o justificam, no estrito cumprimento do regime prescrito nos nºs 1 e 2 do art. 640º do CPC.
Deve, pois, apreciar-se o seu recurso também nessa parte.
No respeitante aos factos provados, a apelante defende que deve deixar de ter-se por provado o descrito sob o item 3º (“No dia 23 de março de 2019, a ré teve uma discussão com a mãe do autor, falou-lhe mal dele e desde então impede os filhos de irem a casa dos avós paternos, que deles cuidavam desde pequenos e, à data, todos os dias, os recebiam vindos da escola e lhes davam de jantar.”), pois que apenas se lhe referiu a testemunha D…, mãe do autor, mas o seu depoimento não deve ter-se por isento e credível; e o item 4º (“Pelo menos, desde dia não concretamente apurado do mês de abril de 2019 e até agora, que autor e ré deixaram de dormir na mesma cama, tendo o autor continuado a dormir no quarto de casal e a ré passado a dormir com os filhos”), porquanto nenhum testemunha a continuidade da situação de autor e ré terem deixado de dormir na mesma cama, pelo que dali se deve remover a expressão “e até agora”.
Tal como aponta a apelante e fica claro na fundamentação exposta pelo tribunal recorrido, a matéria do item 3º resulta unicamente da ponderação do depoimento de D…, mãe do autor. Vista a acta da audiência e ouvido o seu depoimento, constata-se que D… logo anunciou estar de relações cortadas com a ré. E a sua posição altamente crítica e discordante sobre a actuação da ré no âmbito do fim do relacionamento com o seu filho é por demais evidente. Tal como o é a densidade emocional subjacente ao acto de prestação do depoimento, onde aquela revolta chega a prejudicar a própria audição das questões, que várias vezes têm de lhe ser repetidas. Para além disso, ouvido esse depoimento, torna-se ainda clara a circunstância de a testemunha tender a transpor para perguntas sobre um acto concreto todo um histórico de mau relacionamento da ré para com o seu filho, tornando-se clara a sua parcialidade.
Sem prejuízo de tudo isso, nenhum elemento nos leva a entender que o depoimento em questão não seja verdadeiro em relação à pluralidade de factos contida no item 3º, incluindo quanto à precisão da data que, sendo sábado, marcou também o inicio de uma nova fase da vida da testemunha, cessando o acompanhamento diário dos netos, que desde sempre assegurava e passando a conviver com eles apenas quando estão com o autor.
Entendemos, por isso, inexistirem razões para divergir da decisão recorrida, nesta parte.
Quanto ao item 4º, e à pretensão de exclusão do elemento de cessação definitiva de partilha do leito entre o autor e a ré, traduzido pela expressão “e até agora”, apesar de esta, ora apelante, referir que nenhuma testemunha o afirmou especificamente, não podemos deixar de concordar com o juízo do tribunal a quo, inferindo essa circunstância dos termos da evolução do relacionamento entre as partes, crescentemente degradados a partir de fins de Março de 2019, como claramente resulta dos depoimentos de E…, irmã da ré, e de H…, primo do autor.
Como refere a decisão em crise, considerando os termos conflituais desse relacionamento, que culminaram com a saída do lar, por parte do autor, em Março de 2020, como dado por provado no item 8º, é das regras de experiência comum e resulta do normal acontecer que a partilha do leito conjugal não seja reatada quando tudo o mais no relacionamento se degrada: cessam os momentos de convivência entre ambos e com os familiares de cada um, as férias são passadas separadamente com os filhos, deixa de haver autorização para a partilha de bens do uso normal de cada um (o carro do autor, segundo E…). E ainda mais quando a ré imputava ao autor o seu envolvimento com outra mulher, como resulta das mensagens trocadas entre ambos, por telemóvel, e expostas nos autos. Por isso, só pode ter-se como definitiva essa cessação da partilha do leito, que a própria irmã da ré, conhecedora da evolução desse relacionamento com o autor, mencionou.
Sucessivamente, defende que, revertendo-se o juízo negativo sobre a matéria incluídas nas als. N) e Q), deve dar-se por provado que:
- Por altura de Outubro de 2018, quando estavam na residência do casal, o autor agrediu a ré na cara;
- Em de Junho de 2019, descobriu que o autor mantinha uma relação de intimidade com outra mulher, F…, com quem, no fim-de-semana de 25 de Agosto de 2019, na ausência da ré, pernoitou na morada do casal.
Em relação à referida agressão, apesar de isso ter sido relatado por E…, certo é que ela própria refere que apenas o sabe por a própria ré lho ter contado. Na ausência de outra prova e em face do seu reduzido significado para a decisão a proferir, não há como dar por provada tal matéria.
No que se refere à matéria da al. Q), resulta evidente da troca de mensagens por telemóvel, entre a ré e o autor, que ele próprio não rejeitou, em Agosto de 2008, que mantinha um relacionamento com outra mulher, cuja fotografia a ré lhe expôs: F… (fls. 41 e 42 do suporte físico, doc. 1 junto com a contestação). Nessa troca de mensagens, o autor afirmou que F… o não desprezava e o acompanhava em alguns sonhos, não rejeitando a acusação de que com esta se envolvia sexualmente, nos seguintes termos:
- Ré: “…mas mt de metes debaixo dela”
- Autor: “Tu própria sabes que a conheço desde março ou abril…”
- Ré: “Não me tapas os olhos.”
- Autor: “Nem preciso, nem quero”.
Sem prejuízo disso, os depoimentos de E…, ao dizer ter visto F… em casa do autor e da ré, que é vizinha da sua, e de G…, ao declarar ter visto uma mulher nessa casa, bem como a referência a que o autor teria saído de casa no dia seguinte, com uma carteira de senhora, são insuficientes para concluir que esta ali possa ter pernoitado no fim-de-semana de Agosto de 25 de Agosto de 2019, facto este mais amplo e que ninguém mostrou saber com um mínimo de certeza.
Assim, a este propósito, dar-se-á apenas por provado que “Pelo menos em Agosto de 2019, a ré soube que o autor mantinha uma relação de intimidade com outra mulher, F…”, o que se aditará ao elenco dos factos provados, sob o item 9º. Desde já se insere tal elemento no lugar próprio, assinalando-se a alteração graficamente.
Procederá, pois, nesta parte, a pretensão da recorrente.
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Fixada que está a matéria de facto a considerar e sendo certo que da alteração introduzida nenhum efeito advém para a motivação e para o sentido da decisão que julgou procedente a pretensão de divórcio do autor, importa passar a apreciar a questão suscitada pela apelante sobre a alegada falta de sintonia entre o fundamento jurídico da solução decretada, consistente no disposto nos arts. 1781º, al. a) e 1782º do Código Civil, e o conteúdo do despacho de fixação dos temas de prova que, ainda que menos claramente redigido, se traduzia na adopção, pela ré, de comportamentos susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência.
O problema não se coloca em função do enquadramento jurídico conferido aos factos apurados, pois, como se sabe, nessa matéria não está o tribunal vinculado por qualquer circunstância, maxime respeitante ao posicionamento das partes. É o que resulta do nº 3 do art. 5º do CPC. Daí, por exemplo, a irrelevância da afirmação de que o autor invocou a regra da al. d) do art. 1781º e não a da al. a), do C. Civil.
O problema põe-se, isso sim, em razão do aproveitamento, para a causa, de factos que, segundo os temas de prova fixados em acto processual próprio, não pareceriam estar sob discussão e julgamento, mas que foram dados por provados, tendo sido sobre eles que foi estruturada a decisão positiva sobre do pedido do autor.
A própria sentença enfrentou expressamente este problema, ao referir que o autor não deixara de invocar, como fundamento do seu pedido, a separação de facto, ao remeter para o art. 1782º do C. Civil.
Sendo isso verdade, pois que o autor alegou que ao tempo do início da acção se encontrava a sair de casa de morada da família, já tendo outro local para se instalar, bem como invocou a tutela da sua pretensão pelo disposto no art. 1782º do C. Civil (1- “Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer”), não pode esquecer-se também que, ao fixar os temas de prova, o tribunal mencionou os comportamentos da ré “… susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência…”, sem prejuízo de, a título de causa de pedir, ter enunciado que era “Complexa, composta pelos factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a ruptura definitiva do casamento”.
A indicação dos temas de prova, no momento próprio do processo, mais exactamente na fase da condensação, não é um acto inócuo e desprovido de utilidade. Veja-se, por exemplo, que os depoimentos testemunhais devem versar, com precisão, sobre a matéria dos temas de prova, tal como dispõe o art. 516º do CPC.
No entanto, diferentemente de soluções processuais anteriores, (v.g. a que compreendia a especificação e questionário e a que previa a indicação dos factos assentes e a organização da base instrutória) o novo CPC adoptou uma solução que antes vinha sendo proposta e que passa, já não pela concretização de factos, mas por uma indicação genérica e eventual ou “aparentemente conclusiva da matéria controvertida sobre a qual há-de incidir a instrução da causa, que apenas deve ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas” (Ac. do TRL de 23/4/2015, proc. 185/14, citado por Lebre de Freitas, CPC Anotado, 3ª ed., Vol. 2º, pg. 670). Em qualquer caso, como se explica no CPC Anotado (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, vol. I, em anotação ao artigo 596º), dependendo da complexidade do processo em causa, a indicação dos temas de prova pode ter maior concentração, se isso for entendido como facilitador da instrução da causa. Porém, por regra, isso tenderá a ser evitado, por forma a prevenir qualquer tipo de excesso na vinculação temática do tribunal, facultando, pelo contrário, que a decisão sobre a vertente fáctica da causa, no termo da audiência de julgamento, “expresse o mais facilmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.” (ob. e loc. cit.)
Conclui-se, em suma, que os limites da factualidade a considerar não derivam dos termos em que foram elencados os temas de prova, mas antes da causa de pedir invocada pelo autor e das excepções arguidas pelo réu. Tais limites encontram a sua consagração legal no art. 5º do CPC, ao dispor sobre os poderes de cognição do tribunal.
Aí se dispõe que, no que toca à definição da causa de pedir e das excepções, o tribunal está vinculado à alegação das partes (nº1). Porém, estabelecida a causa de pedir em função da alegação suficiente dos factos essenciais, o juiz pode importar para a decisão outros que resultem da instrução da causa: se forem instrumentais, pode fazê-lo sem mais – nº 2, al. a); se forem complemento ou concretização daqueles essenciais, o seu aproveitamento exige que sobre eles a parte tenha tido oportunidade de se pronunciar – nº 2, al. b).
Aplicando o que vem de expor-se ao caso sub judice, sem prejuízo da redução dos temas de prova ao que fossem comportamentos da ré violadores dos referidos deveres conjugais, o tribunal não deixara de assinalar que a causa de pedir era complexa e composta, além da pela relação jurídica de conjugalidade estabelecida entre as partes, pelos “factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a ruptura definitiva do casamento”.
A enunciação, nesses termos, da causa de pedir nesta acção, que bem poderiam ter sido os usados para designar os temas de prova, assinalou devidamente o que haveria de discutir-se na acção, referindo-o como uma generalidade de factos que, nos termos legais, pudessem ser aptos a traduzir o comprometimento da vida em comum e a ruptura definitiva do casamento. Ora, entre estes, o próprio autor havia assinalado, na p.i., a separação de facto, por referência ao art. 1782º do C. Civil.
Conclui-se, assim, que a decisão sobre a matéria relativa à separação de facto ocorrida a partir de 19 de Março de 2020, bem como sobre a sua irrevogabilidade, por ausência definitiva da intenção do autor em manter ou restabelecer a vida em comum, que o tribunal deu por provada sob os itens 7º e 8º do rol de factos provados, consubstancia a importação, para a decisão, de factos que não estavam claramente alegados na p.i., mas que são complemento e concretização daqueles que identificaram a causa de pedir reconhecida pelo tribunal. Reconduzem-se à mesma causa de pedir, não a modificando ou sequer ampliando; concretizam a separação de facto mencionada e complementam a cessação de observância de deveres conjugais entre as partes, que a decisão também menciona, embora sem daí extrair qualquer efeito.
Por conseguinte, enquanto factos subsumíveis à categoria referida na al. b) do nº 2 do art. 5º do CPC, os mesmos podem servir de base à decisão desde que as partes sobre eles tenham tido a oportunidade de se pronunciar.
Tal como resulta da fundamentação enunciada na decisão em crise, mas se constata pela audição do depoimento de E…, irmã da ré e conhecedora dos termos do relacionamento mantido entre as partes, bem como da sua progressiva degradação, depoimento esse também invocado pela apelante para a alteração da decisão sobre a matéria de facto, essa matéria foi debatida na audiência de julgamento, tendo essa testemunha esclarecido que foi precisamente a 19/3 de 2020 que o autor abandonou a casa de morada da família e que, tendo tratado de refazer a sua vida com outra pessoa, jamais mostrou interesse em estabelecer qualquer acordo com C…, sua mulher, assim se demonstrando o fim definitivo do seu casamento. Tal declaração, iniciada ao minuto 13’40’’, teve continuidade já sob a instância do Il. Mandatário da ré, sendo ao min. 15´15´´ que foi discutido esse carácter definitivo do abandono do lar, pelo autor.
Nestas circunstâncias, não podemos deixar de concluir que a matéria em questão não só foi passível de obter pronúncia por parte da ré, ora apelante, como efectiva e objectivamente foi incluída na discussão da causa, não podendo ter-se como surpresa a sua inclusão nos itens 7º e 8º dos factos provados, nos termos em que foi feita.
Cumpre, pois, concluir pela não verificação da nulidade de excesso de pronúncia na decisão recorrida, quer por ter considerado tais factos no segmento correspondente da decisão, quer por neles ter acabado por fundar a procedência da pretensão do autor.
À luz de tal ordem de razões não poderá, assim, proceder a apelação.
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A sentença recorrida concluiu pela aplicação do regime do art. 611º, nº 1 do CPC, no tocante à relevância do tempo de separação decorrido desde 19/3/2020 até ao momento de julgamento, a partir daí concluindo pela verificação de uma situação de separação de facto por mais de um ano consecutivo, situação essa integrada ainda pela factualidade descrita nos itens 3º e ss.
No presente recurso, essa solução não se mostra questionada no que toca à aplicação do princípio da actualidade da decisão, resultante daquele art. 611º. Com efeito, a apelante discutiu, isso sim, a possibilidade de consideração dos factos correspondentes, descritos nos itens 7º e 8º, mas, quanto a essa questão, já se rejeitou a sua razão.
Inexistem, pois, outras questões a apreciar, sendo certo que a alteração introduzida na matéria de facto provada nenhuma mudança pode determinar na decisão proferida.
Resta, em suma, concluir pela confirmação dessa decisão, na improcedência da presente apelação.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação, na confirmação da decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Porto, 23 de Novembro de 2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda