Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2312/20.8T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: PROVA DE UM FACTO
VIOLAÇÃO DE DEVERES LABORAIS
DANOS PATRIMONIAIS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP202206082312/20.8T8PNF.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE; ALTERADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.
II - Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradicção ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
III - O processo disciplinar é condição processual para aplicação de uma sanção disciplinar, mas já não é para se apurar aqui, no âmbito das questões controvertidas em discussão, se houve violação dos deveres laborais. O exercício do poder disciplinar é uma faculdade que existe à entidade empregadora, não ficando a possibilidade de valoração de um determinada conduta do trabalhador face aos seus deveres laborais, quando tal se justifique no âmbito de um litígio com o empregador, como aqui acontece, dependente da prévia existência de procedimento disciplinar.
IV - Mostram-se verificados os pressupostos para constituir o autor na obrigação de indemnizar a Ré. A sua conduta voluntária e ilícita, consubstanciada na cobrança a clientes em operações de débito bancário de valores superiores aos que eram devidos, é-lhe imputável, pelo menos, a título de mera culpa por actuação negligente no exercício das suas funções, sendo a causa directa e necessária para a verificação de um dano para e entidade empregadora, em concreto, por esta se ter visto confrontada com a necessidade de dar resposta às reclamações daqueles clientes, efectuando “devoluções de quantias pecuniárias a 28 clientes que ascenderam a quantia não concretamente apurada, mas seguramente não inferior €400”.
V - Ainda que se admita que as pessoas colectivas, máxime as sociedades comerciais, poderão ter direito a indemnização por danos não patrimoniais, para que esse direito se constitua é ponto que haja um especial grau de gravidade do dano.
VI - Não resultando provado que a ideia formada pelos clientes a quem foram cobradas quantias em valor superior ao devido se tenha repercutido de algum modo, muito menos grave, na normal prossecução da actividade da Ré, nomeadamente, que tenha tido algum reflexo significativo na venda de combustíveis, nem que o conhecimento desse facto por funcionários daquela tenha provocado uma consequência directa para o sue bom nome, com repercussão real e aferível, não se provou a existência de danos não patrimoniais, “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 2312/20.8T8PNF.P1
SECÇÃO SOCIAL



ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo do Trabalho de Penafiel, AA instaurou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum, a qual veio a ser distribuída ao J4, contra “D...”, pedindo que seja julgada procedente e, em consequência, se condene a Ré a pagar-lhe a titulo de créditos salariais: a quantia de 6.294,39€, acrescida de juros de mora contados desde a data de caducidade do contrato (16/03/2020) até efectivo e integral pagamento; ser a Ré condenada nos juros de mora, entretanto já vencidos, no valor de 121,39€; ser a Ré condenada em custas e condigna procuradoria.
Para tanto, alega, em síntese, que foi admitido ao serviço da R por contrato de trabalho a termo certo e que tendo este caducado a R pagou os seus créditos salariais vencidos e indemnização.
Realizada audiência de partes, não foi possível a sua conciliação.
Regularmente notificada para o efeito, a ré contestou, no essencial impugnando a factualidade aduzida pelo A, alegando que este lhe causou danos – por furtos, ter recebido notas falsas, ter destruídos tickets de Multibanco e ter danificado o sistema de videovigilância -, mais alegando que tem direito a compensar os créditos do A com os seus, como fez. Nesse pressuposto, deduziu pedido reconvencional.
O A ofereceu articulado de resposta impugnando o aduzido pela R.

I.2 Findos os articulados foi proferido despacho saneador no qual foi dispensada a realização de audiência prévia, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova. Foi admitido o pedido reconvencional, mas até ao valor do pedido deduzido pelo A, não se admitindo a quanto ao mais.
Foi, ainda, fixado valor da acção em €6.415,78.
Realizou-se, depois, a audiência de discussão e julgamento.

I.3 Subsequentemente foi proferida sentença, fixando a matéria de facto provada e aplicando o direito aos factos, concluída com o dispositivo seguinte:
-«Nos termos expostos, julga-se a presente acção e a reconvenção parcialmente procedentes e, consequentemente:
A) Reconhece-se que ao A assiste um direito de crédito sobre a R no valor de €3.614,95 (três mil, seiscentos e catorze e noventa e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento.
B) Reconhece-se que à R assiste direito de crédito sobre o A pelo menos de no valor de € 3.614,95 (três mil, seiscentos e catorze e noventa e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento.
C) Declara-se o compensado o crédito do A no valor de € 3.614,95 (três mil, seiscentos e catorze e noventa e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento, com o crédito da R no valor de no valor de € 3.614,95 (três mil, seiscentos e catorze e noventa e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento.
D) Custas por A e R na proporção do decaimento (artigo 527º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
Registe e Notifique.
(..)».

I.4 Inconformado com esta sentença, o Autor interpôs recurso de apelação, o qual foi admitido e fixado o efeito e modo de subida adequados. Apresentou alegações, as quais sintetizou nas conclusões seguintes:
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Deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que:
1. Reconheça ao A. o crédito de 3.723,28€;
2. Consequentemente, condene a Ré no pagamento ao A. desta quantia, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data do vencimento do crédito, até efetivo e integral pagamento;
3. Absolver o A. do pedido reconvencional, reconhecendo-se que a Ré nenhum crédito tem sobre o A.;
4. Pelo que, não há qualquer compensação a efetuar com o crédito do A. sobre a Ré.

I.5 A Ré contra-alegou, concluindo como segue:
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…………………………………………………………………………..
……………………………………………………………………………

I.6 O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação teve visto nos autos, nos termos do art.º 87.º3, do CPT, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso, referindo, no essencial, que num caso e noutro podem levantar-se algumas dúvidas, e, na dúvida não deveriam dar-se como provados os factos 38 e 40, no mais acompanhando igualmente as alegações e conclusões de recurso.

I.7 Foram cumpridos os vistos legais e determinada a inscrição do processo para julgamento em conferência.

I.9 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], as questões colocadas para apreciação nos recursos consistem em saber se o tribunal a quo errou o julgamento quanto ao seguinte:
i) Na apreciação da prova, quanto aos factos provados 38 e 40;
ii) Na aplicação do direito aos factos:
- No cálculo da retribuição de férias vencidas em 01/01/2020, relativo ao trabalho prestado em 2019;
- No valor reconhecido como correspondente ao número mínimo de horas de formação não proporcionadas;
- Ao reconhecer à Ré, a título de danos patrimoniais, a quantia de 892,00€;
- Ao reconhecer à Ré o direito a ser indemnizada por danos não patrimoniais.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo fixou o elenco factual que segue:
1) A Ré explora o supermercado “I...” de Paços de Ferreira, dedicando-se, entre outros, ao comércio a retalho (cfr. código certidão permanente nº ....-....-....)
2) O autor foi admitido ao serviço da Ré em 17 de Março de 2018, em virtude da celebração de “contrato de trabalho a termo certo”, com termo a 16 de Setembro de 2018, renovável nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 149º, do Código do Trabalho, e mediante retribuição.
3) Tal contrato foi celebrado a tempo parcial e o Autor, ia prestar 20h semanais.
4) O Autor foi admitido ao serviço da Ré para desempenhar as funções de operador de supermercado ajudante do 1º ano, actividade que sob a direcção, autoridade, fiscalização e no interesse da Ré, lhe prestou ininterruptamente desde 17 de Março de 2018 até 16 de Março 2020, uma vez que, o contrato inicial se renovou sucessivamente por novos períodos até 16 de Março de 2020. Além disso,
5) Contratualmente, foi ajustado entre o A. e a Ré que:
1 - A segunda contratante obriga-se a prestar 40 horas de trabalho semanal, com intervalo para almoço e descanso a fixar entre os outorgantes de acordo com as disponibilidades do quadro de pessoal da empregadora.
2 – O horário de trabalho a fixar não é condição essencial da vinculação do trabalhador à empresa, pelo que esta poderá alterá-lo unilateralmente, desde que por motivos justificados com a organização do trabalho.
3 - O trabalhador acorda, desde já, sujeitar-se ao regime especial de adaptabilidade (art. 205º do Código de Trabalho), podendo o seu horário de trabalho ser definido em termos médios.
4 – A segunda outorgante declara, desde já, sujeitar-se ao regime do banco de horas individual (art. 208º-A do Código de Trabalho), podendo o período normal de trabalho ser aumentado até 2 horas diárias e atingir 50 horas semanais, até ao máximo de 150 horas por ano.
5 - O trabalhador desde já manifesta, sem reserva, a concordância à sua inclusão num horário de trabalho com turnos, num regime de laboração contínua, num regime de trabalho noturno e à prestação de trabalho suplementar, de acordo com as regras aplicáveis constantes da lei laboral vigente.
6 – A segunda outorgante obriga-se a cumprir as normas internas em vigor, na empresa, relativas ao registo de horário de trabalho.
6) No dia 01 de Outubro de 2019, Autor e Ré outorgaram um aditamento ao “contrato de trabalho a termo certo a tempo parcial”, segundo o qual “os outorgantes acordam que, com efeito, a partir da data da assinatura do presente aditamento, o trabalhador passará a laborar a tempo completo, em regime de 40 horas semanais”.
7) O referido aditamento alterou o contrato de trabalho, mais precisamente a cláusula sexta, segundo a qual “…o trabalhador passará a laborar a tempo completo, em regime de 40 horas semanais”.
8) Estabelece, ainda, a cláusula n.º 4 do referido contrato de trabalho que, o Autor foi contratado pelo prazo de 6 meses e o n.º 2 desse artigo 4º que, “o período de renovação poderá ser diferente do prazo inicial do presente contrato, por simples carta, da primeira contratante dirigida ao segundo contratante”. Ora,
9) Desde a data da sua admissão, o Autor sempre desempenhou as funções que se enquadram na categoria profissional de operador de supermercado - ajudante, inicialmente de 1º ano e, actualmente, exercia a função de operador de supermercado - ajudante de 2º ano, na secção de combustíveis.
10) O autor cumpria um horário de 40 horas de trabalho semanais.
11) A retribuição mensal base auferida pelo Autor, era actualmente de 635€ mensais, acrescido de 4,35€ diários a titulo de subsídio de alimentação, conforme se pode aferir pelo recibo de vencimento.
12) Em 2018, o vencimento mensal ilíquido era de 290,00€, acrescido de subsídio de refeição de 3€.
13) Em 2019 (até 01 de outubro), o vencimento mensal ilíquido era de 300,00€, acrescido de subsídio de refeição de 4,35€.
14) E, posteriormente, de 600,00€, acrescido de subsídio de refeição de 4,35€
15) O A. não trabalhou entre os dias 02 e 06 de Setembro de 2019 (5 dias), mas foram-lhe descontados esses dias no vencimento.
16) Em julho de 2019 o A recebeu a quantia de 259,09€ de subsídio de férias.
17) O A esteve em gozo de férias entre os dias 02 e 16 de março de 2020, ou seja, 11 dias.
18) O horário que o Autor cumpria, era rotativo, semanalmente, sendo que, numa semana trabalhava de segunda a sexta-feira das 7h30m às 14h00m e ao sábado das 7h30m às 12h00m e das 14h00m às 21h00m, tendo o descanso, obrigatório, nessa semana, ao domingo.
19) Na semana seguinte, trabalhava de segunda a sexta-feira das 14h00m às 21h00m, tendo o descanso obrigatório, nessa semana, ao sábado e, ao domingo trabalhava das 7h30m às 12h00m e das 14h00m às 21h00m.
20) E, assim, sucessivamente, ou seja, numa semana trabalhava 7 dias consecutivos e descansava 1 dia, na semana seguinte, trabalhava 5 dias consecutivos e um outro dia e descansava 1 dia.
21) Em cada sábado e em cada domingo, trabalhava sempre o total de 11h e 30m, sendo que, aos domingos, trabalhava mais 6 horas e 30m que o horário normal (11h:30m – 5h:00m = 6h:30m) e aos sábados, mais 4horas (11h:30m – 7h:30m = 4h:00m), que o horário normal, o que sucedeu nos dias:
i. Junho de 2019
1. 23/06/2019 – Domingo - + 6h30m
2. 29/06/2019 – Sábado - + 4h00m
ii. Julho de 2019
1. 07/07/2019 – Domingo - + 6h30m
2. 13/07/2019 – Sábado - + 4h00m
3. 21/07/2019– Domingo - + 6h30m
4. 27/07/2019– Sábado - + 4h00m extra
iii. Agosto de 2019
1. 04/08/2019 – Domingo - + 6h30m
2. 10/08/2019 - Sábado - + 4h00m
3. 18/08/2019 – Domingo - + 6h30m
4. 24/08/2019 – Sábado - + 4h00m
iv. Setembro de 2019
1. 01/09/2019 – Domingo - + 6h30m
2. 07/09/2019 – Sábado - + 4h00m
3. 15/09/2019 – Domingo - + 6h30m
4. 21/09/2019 – Sábado - + 4h00m
5. 29/09/2019 - Domingo - + 6h30m
v. Outubro de 2019
1. 05/10/2019 – Sábado - + 4h00m
2. 13/10/2019 – Domingo - + 6h30m
3. 19/10/2019 – Sábado - + 4h00m
4. 27/10/2019 - Domingo - + 6h30m
vi. Novembro de 2019
1. 02/11/2019 – Sábado - + 4h00m
2. 10/11/2019 – Domingo - + 6h30m
3. 16/11/2019 – Sábado - + 4h00m
4. 24/11/2019 - Domingo - + 6h30m
5. 30/11/2019 – Sábado - + 4h00m
vii. Dezembro de 2019
1. 08/12/2019 – Domingo - + 6h30m
2. 14/12/2019 – Sábado - + 4h00m
3. 22/12/2019 - Domingo - + 6h30m
4. 28/12/2019- Sábado - + 4h00m
viii. Janeiro de 2020
1. 05/01/2020 – Domingo - + 6h30m
2. 11/01/2020 – Sábado - + 4h00m
3. 19/01/2020 – Domingo - + 6h30m
4. 25/01/2020 – Sábado - + 4h00m
ix. Fevereiro de 2020
1. 02/02/2020 – Domingo - + 6h30m
2. 08/02/2020 – Sábado - + 4h00m
3. 16/02/2020 - Domingo - + 6h30m
4. 22/02/2020 – Sábado - + 4h00m
22) Trabalhou nos seguintes feriados:
i. 20/06/2019 – + 7h00m
ii. 15/08/2019 – + 6h30m
iii. 05/10/2019 – + 11h30m
iv. 01/11/2019 – + 6h30m
v. 08/12/2019 – + 11h30m
23) A Ré não encerra aos domingos e feriados e labora todos os dias da semana, entre as 8h30 e as 21h00 (com exceção dos dias 25 de dezembro e 01 de janeiro).
24) Os funcionários da R. trabalham em regime de horário rotativo.
25) O que era também o caso do A., cujo horário rotativo estava organizado por forma a trabalhar um domingo e folgar no seguinte, e assim sucessivamente,
26) Os funcionários da R. trabalham nos dias feriados (a não ser que coincidam com as folgas).
27) A Ré não proporcionou ao Autor, qualquer hora de formação certificada.
28) A partir de julho de 2019, o A. passou a exercer as suas funções de operador no posto de abastecimento de combustíveis da Ré.
29) Posto este que funciona em sistema de “self-service”, isto é, os clientes abastecem os seus próprios veículos e, posteriormente, deslocam-se à cabine (onde se encontra um funcionário/operador) situada junto à saída do Posto, destinada ao pagamento do preço correspondente.
30) Nessa qualidade, de operador do posto, cabia ao A., entre outras tarefas, a de receber os pagamentos dos clientes, bem como, todas as tarefas administrativas associadas, designadamente, operar a caixa registadora, os terminais de pagamento automático (TPA), depositar os valores recebidos, primeiramente na caixa central e depois no cofre, e tramitar a gestão de stocks dos combustíveis,
31) E, no final do turno, o A tinha de proceder ao fecho do caixa e dos TPA, imprimir o relatório respectivo e entregar todos os inerentes documentos (talões dos movimentos e de fecho dos TPA) na caixa central do supermercado.
32) O A. deitava fora os duplicados dos talões dos movimentos/pagamentos dos TPA do posto de abastecimento referentes às transacções efetuadas entre 19/06/2019 e 28/02/2020.
33) Talões estes que, conforme instruções expressas da Ré, e prática habitual na empresa, deveriam ter sido entregues diariamente pelo A. na caixa central.
34) Os duplicados dos talões dos movimentos dos TPA, sendo instrumentos/documentos de trabalho, são essenciais, e de suporte contabilístico, das transacções comerciais relativas à venda dos combustíveis,
35) São também elementos de apoio à gestão (controlo de fluxos financeiros, gestão de combustíveis) e, ainda, essenciais à tramitação de eventuais reclamações.
36) O custo da obtenção de novos duplicados junto da SIBS, para repor os destruídos pelo A., ascende à quantia de € 12 + IVA por movimento contabilístico disponível no terminal Sibs, € 21 + Iva por movimento contabilístico não disponível no terminal Sibs e € 0,07 + Iva por dia de consulta.
37) A A. foi confrontada com várias reclamações de clientes, pelo facto de durante 2019 e 2020 o A. lhes ter cobrado nos TPA quantias superiores aos combustíveis abastecidos.
38) A R. teve, assim, de efectuar devoluções de quantias pecuniárias a 28 clientes que ascenderam a quantia não concretamente apurada, mas seguramente não inferior € 400.
39) Para impedir o registo de imagem, o A. mexeu e desviou a câmara de videovigilância existente na cabine do operador do posto de abastecimento de combustíveis, descentrando a câmara
40) Em consequência do referido em 39), a câmara de videovigilância teve de ser intervencionada pela empresa de manutenção do equipamento, e com o que a R. despendeu 492,00€.
41) A imagem da R junto dos clientes que reclamaram e tiveram de ser reembolsados ficou prejudicada nos procedimentos de venda dos combustíveis e na fiabilidade da Ré enquanto revendedora, sendo que lhes foi inculcada a perceção de que os procedimentos de cobranças através dos equipamentos de TPA eram facilmente viciáveis e inseguros.
42) Também os funcionários da R que tomaram conhecimento desses factos ficaram com dúvidas quanto à fiabilidade dos procedimentos de cobranças da Ré.
43) O Autor não era o único trabalhador do posto de combustível, no período compreendido ente 27/07/2019 e 28/02/2020, pois apenas fazia um turno.
44) Quando a Ré tinha que devolver a um cliente algum montante, fruto de algum engano do Autor, por vezes essa quantia era-lhe descontada no seu vencimento.
45) A barra limitadora de automóveis da saída do posto esteve inoperacional.
46) O A recebeu notas falsas uma vez.
47) Por carta de 04 de maio de 2020, a Ré declarou compensar estes seus créditos com os créditos laborais do A. emergentes da cessação do contrato de trabalho.
Matéria de facto não provada:
a. O A recebeu formação certificada desenvolvida pela entidade patronal em 2018 e em 2019 de, respectivamente, 8 horas em cada ano.
b. Foram vários os dias em que o A teve dispensa de trabalho para prestação de provas de avaliação.
c. A R pagou ao A a retribuição correspondente a férias vencidas e não pagas em 01/01/2019, pelo trabalho prestado no ano de 2018 (de 17/03/2018 a 31/12/2018).
d. Durante o ano de 2019, o Autor gozou dias de férias relativamente ao ano de 2018, nem os gozou posteriormente.
e. O A recebeu retribuição correspondente a férias vencidas e não gozadas em 01/01/2020 relativo ao trabalho prestado no ano de 2019, no valor de 635,00€.
f. Foi pago ao A o subsídio de férias vencido em 01/01/2020, pelo trabalho prestado no ano de 2019, no valor de 635,00€.
g. Foram pagos os proporcionais de férias e subsídio de férias correspondente ao tempo prestado no ano da cessação do contrato.
h. Foi pago ao A o subsídio de natal, proporcional ao tempo de serviço prestado no ano de 2020 (ano de cessação do contrato), no valor de 132,28€.
i. O A. deu azo, durante o seu período de trabalho, a que tivessem sido cometidos vários furtos de combustíveis propriedade da Ré, no valor de 112,40€,
j. A Ré deu instruções que, decorridos que fossem 2 ou 3 dias das transacções efectuadas, o A poderia deitar os talões TAP ao lixo, pois que eram duplicados do montante que o cliente pagou, sem qualquer outra informação adicional.

II.2 IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
O recorrente A insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, em razão do Tribunal a quo ter considerado provados os factos 38 e 40.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A propósito do que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
Acresce dizer, que conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito [Cfr. acórdãos de 7-7-2016, processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha; e, de 27-10-2016, processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro Ribeiro Cardoso; (ambos disponíveis em www.dgsi.pt)].
O recorrente observou com a suficiência necessária os indicados ónus de impugnação, logo, nada obstando ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
II.2.1 Nos pontos 38 e 40 da matéria de facto assente, consta o seguinte:
- [38] A R. teve, assim, de efectuar devoluções de quantias pecuniárias a 28 clientes que ascenderam a quantia não concretamente apurada, mas seguramente não inferior €400.
- 40) Em consequência do referido em 39), a câmara de videovigilância teve de ser intervencionada pela empresa de manutenção do equipamento, e com o que a R. despendeu 492,00€.
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos em causa e aos que antecedem e os enquadram, o Tribunal a quo pronunciou-se como segue:
-« A convicção do Tribunal, quanto à factualidade provada resultou da prova produzida em audiência de julgamento analisada de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum.
[..]
As testemunhas BB – contabilista que trabalha em permanência no hipermercado da R -, CC – chefe de loja e responsável da caixa central, controlando toda a organização da loja -, DD – operador das bombas de combustível da R que foi substituído pelo A e que o A já havia antes substituído nas suas férias e faltas ocasionais -, EE – funcionário da caixa central desde Novembro de 2018 -, FF – operador da bomba de combustíveis da R há 14 anos e que foi nessas bombas colega de turno do A – descreveram com credibilidade e isenção quais as tarefas dos operadores de bomba de combustível da R desde que o A para lá foi trabalhar, confirmando o descrito em 30) e 31), 33) a 35), sendo certo que a testemunha DD confirmou ter dado uma breve formação quanto à abertura e fecho da bomba (pois que o demais já o A sabia, por força das substituições que aí realizava), negando ter dito ao A que poderia deitar fora os duplicados de talões dos TPAs e a testemunha FF também confirmou que até o A assumir o turno das bombas sempre juntou e entregou os talões de TPAs, apenas tendo deixado de o fazer por alturas do A ter ido trabalhar para as bombas, porque o A lhe disse que não era necessário e, quando deixou de enviar tais documentos, ninguém na caixa central lhe disse que estava a proceder mal. Também as testemunhas BB e CC referiram que a entrega dos talões TPAs era obrigatória desde sempre, nunca tendo deixado de o ser, mas referiram que a ida do A para o turno das bombas coincidiu com o início de funções de dois trabalhadores novos na caixa central – um dos quais a testemunha EE que também confirmou todas estas declarações -, que não se terão apercebido dessa falha de entrega dos talões dos TPAs por parte do A e da testemunha FF, razão pela qual a referida falha procedimental apenas foi detectada já próximo da cessação do contrato de trabalho do A e na sequência de um cliente ter apresentado uma queixa no sentido do A lhe ter cobrado dinheiro em excesso em relação ao abastecimento de combustível que tinha feito, momento em que a testemunha CC tentou verificar os talões dos TPAs, percebendo que os mesmos não existiam, tendo confrontado o A que referiu que os deitava fora com a justificação que não serviriam para nada. [..]
Note-se que estas testemunhas BB e CC ficaram firmemente convencidas que a destruição dos talões TPA pelo A, associadas ao facto do mesmo ter admitido perante as mesmas ter desviado a câmara de vigilância instalada no interior da cabine onde trabalhava para não registarem a sua imagem, e ainda ao facto de o A fazer vários fechos do terminal TPA – o que fizeram constar das listagens de fls. 196 vs e ss e 240 (que admitiram poderem conter algumas imprecisões, por confronto com os talões e relatórios de turno existentes a fls. 100 vs e ss) .–e terem tido conhecimento que o A cobrou importâncias a mais a pelo menos 28 clientes, se destinava a ocultar o facto de o A fazer suas importâncias cobradas a mais aos clientes. Na verdade, nenhum desses procedimentos era usual na R e a destruição de talões TPAs nas bombas passou a ser realizada pelo A e depois pelo seu colega de turno, após este lhe ter dito que esse era o procedimento correcto. Estes factos foram corroborados pelas testemunhas GG, EE, DD e FF. Por assim ser, não nos mereceram credibilidade as declarações do A, que negou tais factos, justificando o facto de fazer vários fechos do TPA com a avaria da máquina (o que não justificaria essa atitude, pois que, para além do mais, nenhum outro funcionário fazia inúmeros fechos e não foram perdidos dados, e nem o A o fazia quando trabalhava nas caixas do hipermercado).
A testemunha GG – operadora de caixa há 18 anos na R – também descreveu de modo geral os procedimentos adoptados nas caixas sitas no interior do supermercado e os procedimentos de substituição dos colegas que trabalham nas bombas, sendo que o legal representante da R nas declarações que prestou também referiu em moldes gerais os procedimentos usuais em vigor na R.
Para prova do vertido em 36), teve-se em conta o depoimento da testemunha BB e ainda o descrito nos documentos de fls. 44 v e 45, sendo certo que se desconhece ao certo o número concreto de movimentos que a R terá de apurar ou que quererá apurar.
O descrito em 37) foi confirmado pelas testemunhas BB, CC e EE, que disso tinham conhecimento directo, por força das funções que prestam
O vertido em 38) resultou igualmente provado por força das declarações das apontadas testemunhas BB, CC e EE, tendo-se ainda em conta os documentos juntos aos autos, com especial enfoque nas listagens de fls. 193 e ss, bem como os mapas de erros de caixa de fls. 68, e recibo de fls. 90, muito embora desses documentos não resultem ao certo todas quantias que a R terá de devolver a clientes por o A ter erros de cobrança, já que as próprias testemunhas em questão referiram que necessitariam de ter acessos a todos os talões de TPAs para saber as quantias concretas cobradas a mais pelo A a clientes.
[..]
O descrito em 39) resultou provado por força das declarações das testemunhas BB, CC e EE, que confirmaram ter estado numa reunião em que o A confirmou ter desviado a câmara, por entender que não tinham que o filmar, sendo que o terá feito na sequência da testemunha CC lhe ter dito que o tinha visto a fazer essa operação através da gravação de outra câmara. Tais testemunhas depuseram com isenção e credibilidade, pelo que não nos mereceu credibilidade a versão do A no sentido de em nada ter mexido. Por outro lado, também a testemunha FF referiu que percebeu que a câmara havia sido mexida, tendo-a endireitado, mas que, logo noutro dia, a câmara estava outra vez mexida, tendo-a endireitado, e depois, a dada altura, desistiu de a endireitar, por pensar que poderia ser intenção da R ter a câmara virada para uma parede. O testemunho de FF pareceu-nos espontâneo e isento, pelo que também nos mereceu credibilidade.
O descrito em 40) resultou provado por ter sido confirmado pelas testemunhas CC e BB, que confirmaram os documentos de fls. 45 v, 91 e ss, que comprovam a intervenção realizada e o seu preço. Muito embora a testemunha FF também tenha referido ter mexido na câmara, para a tentar centrar, desconhecendo-se quando é que a mesma terá ficado danificada, o certo é que se o A não tivesse em primeiro lugar mexido na câmara, não teria sido necessário a FF nela mexer, pelo que a mesma não se teria danificado, assim se provando que foi na sequência e como consequência do facto de o A ter mexido na câmara que a mesma ficou avariada.
[..]»
Começando pelo facto 38, alega o recorrente autor que os documentos de fls. 193 V e o mapa de erros de fls. 68 são documentos fabricados pela Ré, sem seu conhecimento e vagos, não dando a garantia de que os elementos deles constantes não pudessem ter sido feitos em qualquer altura. O doc. de fls. 90 é um recibo de um pedido feito à SIBS para demonstrar a ocorrência de um erro do A., mas que nada releva para demonstrar que efetivamente devolveu qualquer quantia a qualquer cliente. As testemunhas BB, CC e EE, alega que não conseguiram circunstanciar nenhuma das alegadas 28 reclamações, nomeadamente dizendo a quem, quando, quanto e do que reclamaram, limitando-se a responder, reproduzindo a informação que constava dos documentos.
Defende que esta prova não é suficiente para se extrair com segurança, clareza e transparência que a Ré, de facto devolveu cerca de 400€ a clientes e que com isso teve um prejuízo, devendo o facto considerar-se não provado.
Contrapõe a recorrida que dos depoimentos daquelas testemunhas, que revelaram ter conhecimento direto dos factos e foram isentos, credíveis, coerentes, sem hesitações, conjugados com os documentos juntos aos autos (fls. 193 verso e s.s., 68, 78 verso, 79 verso, 89 e 89 verso), cujo teor confirmaram e que, nalguns casos, eram inclusivamente da sua autoria ou por eles obtidos junto de terceiros (Banco/SIBS) ou nos sistemas informáticos (SAFT), 3ª) resultou, inequivocamente, provada a factualidade do ponto 38.
Começaremos por dizer que procedemos à audição integral dos testemunhos de BB, CC e EE, bem assim à análise dos documentos referidos pelo Tribunal a quo na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, também, invocados pelas partes.
As testemunhas em causa foram confrontadas com os aludidos documentos, um após outro, diremos mesmo exaustivamente por parte da ilustre mandatária da recorrente, merecendo destaque neste particular os testemunhos de CC, Chefe de Loja, e EE, Caixa Central, dado terem procedido directamente à devolução de quantias a clientes, em razão de lhes ter sido cobrado pelo autor valores superiores ao facturado, bem assim por terem sido autores de alguns desses documentos, nomeadamente as listagens elaboradas após contagem dos valores em cofre.
No essencial, referiram estas testemunhas que já se tinham apercebido, designadamente, por via de reclamações apresentadas por clientes, de diversas situações em que os valores cobrados e debitados por pagamento multibanco, estando o autor ao serviço e tendo realizado essas operações, era superior aos constantes das facturas dos produtos/combustíveis adquiridos. Inicialmente até pensaram poder tratar-se de erro dos clientes ou de incompetência do trabalhador autor, mas subsequentemente, já na fase final do contrato daquele, dado o elevado número de casos de reclamações que surgiram, acrescendo que os clientes traziam a factura e o talão da operação bancária, permitindo verificar pela hora e local que se reportavam à mesma operação, concluíram que a razão dessas diferenças em prejuízo dos clientes seria outra, ou seja, resultariam de acto intencional do autor, contribuindo para essa conclusão o facto daquele desviar a câmara de vigilância de modo a não incidir sobre ele e captada a sua imagem. Explicaram, também, que pelo dia e hora era possível determinar que a emissão desses documentos ocorrera durante o turno do autor.
Mais explicaram, que resultando claramente do confronto dos documentos que havias essas diferenças em montantes variáveis, p. ex, 2€, 5€ ou 10€, em cada um desses casos procederam à devolução da quantia cobrada em excesso, registando cada um desses pagamentos num “papelinho”, que colocavam no cofre. Quando procediam à contagem do cofre faziam uma listagem de valores e mencionavam o total do valor devolvido a esse título e a quantos clientes. Assim, por exemplo, na listagem de 27 de Março de 2020 (fls 193 e verso), consta a quantia de €121,21, a indicação de resultar do pagamento a 9 clientes e a menção do nome do autor, para referenciar a situação. A listagem mostra-se assinada por estas testemunhas.
Mas o mesmo procedimento foi utilizado em outras ocasiões, conforme explicaram perante os documentos com que foram confrontados (fls 194 e segts.), tendo explicado os registos de €43,41 - total pago a 4 clientes -, €29, 40 – 1 cliente -, etc.. Quanto a uma das situações, em que a diferença é elevada – cerca de €79 – não foi ainda realizada a devolução, dado o cliente ter informado que ia apresentar queixa nos tribunais.
Destes três testemunhos, conjugados com os documentos, resulta que a soma dos valores reclamados e devolvidos foi de centenas de euros, pelo menos mais de 400€. Não apuraram a totalidade dos casos dado que o Autor deitou fora os comprovativos das operações bancária que eram destinados à Ré e é necessário obtê-los da SIBS.
O documento 68, como refere o recorrente autor, é de facto um mapa de erros elaborado pela Ré, onde consta o apanhado das situações detectadas, nada provando só por si. Contudo, a prova é conjugada e valorada no seu todo, pelo que o mesmo assume relevância enquanto meio probatório, face às explicações daquelas testemunhas. É certo, também, que as testemunhas não identificaram os clientes, nem quando procederam às devoluções, mas não vimos razões validas para desconsiderar os seus testemunhos directos e os registos que fizeram pessoalmente, nos termos acima referido, permitindo quantificar o valor das devoluções a que procederam. De resto, como as próprias testemunhas elucidaram em respostas à ilustre mandatária do recorrente, o objectivo era resolver o problema com os clientes que iam surgindo a apresentar reclamação, devolvendo a quantia cobrada em excesso, fazer um apontamento do valor devolvido em cada caso, inscrevendo simplesmente o valor, a data e o nome do autor num papel que ia para o cofre e justificava a saída daquele valor, com esse procedimento sendo possível ao realizar a contagem apurar o total dos valores que entretanto tinham devolvido.
A audição dos testemunhos, repete-se, inquiridos à exaustão pela ilustre mandatária do recorrente autor, revela terem respondido objectivamente, sem contradições ou hesitações, evidenciando isenção.
Como regra, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art.º 607.º n.º 5, CPC). Pode dizer-se ser pacificamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, que a livre apreciação da prova não consente que o julgador forme a sua convicção arbitrariamente, antes lhe impondo um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global, o qual deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferidos segundo regras da experiência, atendendo aos princípios de racionalidade lógica e considerando as circunstâncias do caso.
O resultado desse processo deve ter respaldo na prova produzida e tal deve decorrer, em termos suficientemente claros e objectivos, da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Esse resultado não pressupõe uma certeza absoluta, que seria praticamente inatingível na demanda pela reconstituição de uma determinada realidade passada, objectivo da produção e julgamento da prova. Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida” [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436].
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradicção ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
No caso em concreto, pelas razões apontadas, não vimos qualquer razão válida para pôr em causa o juízo de livre apreciação da prova formado pela Senhora Juíza ao dar como provado o ponto 38 da matéria assente, nesta parte improcedendo a impugnação.
Prosseguindo para o facto 40, alega o recorrente que mesmo que se conclua que ele mexeu e desviou a câmara de vigilância, tal não significa que exista uma consequência direta e necessária entre a esse facto e o dano na câmara. Não era o único funcionário com acesso à cabine, não foi o único que mexeu na câmara, não se sabe quem mexeu primeiro na câmara nem se foi a sua acção que provocou os danos na câmara, pois, o sr. FF mexeu pelo menos duas vezes na câmara. Não existe, igualmente, prova de quando a câmara se danificou, sendo certo que esta só foi intervencionada dois meses após a saída do A., ou seja, em 30/04/2020.
Contrapõe a recorrida que o A. confessou às testemunhas CC, BB e EE ter sido ele quem desviou a câmara, sob a “justificação” de que o não poderiam filmar. A testemunha FF “pôs a câmara direita” por duas vezes, foi porque ela foi desviada. Para além de ter desviado a câmara, foi ele que deu causa a que a testemunha FF lhe tivesse também mexido, por duas vezes, para a tentar centrar. É público e notório, resultando das regras da experiência comum, que os equipamentos eletrónicos fixos, especialmente as câmaras de CCTV que são muito frágeis, são danificados pelo manuseamento não profissional e com movimentos para as quais não foram previstos e concebidos (desviar e descentrar), sendo evidente o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Diremos, desde já, que assiste razão ao recorrente.
Da prova produzida apenas resultou demonstrado com a segurança necessária, que o autor mexeu na câmara, pelo menos duas vezes, para a desviar da direcção em que o seu foco estava dirigido e desse modo ficar fora da área de captura da imagem. Daí não pode deduzir-se, pese embora não se saiba se terá ficado danificada por efeito dessas acções, como se fosse uma consequência directa e necessária, “que se o A não tivesse em primeiro lugar mexido na câmara, não teria sido necessário a FF nela mexer, pelo que a mesma não se teria danificado”, para se concluir que assim se provou “que foi na sequência e como consequência do facto de o A ter mexido na câmara que a mesma ficou avariada”.
Note-se, desde logo, que nenhuma testemunha pode asseverar o momento em que a câmara ficou avariada, nem tão pouco qual a razão que esteve na base dessa avaria, ou seja, se foi apenas o mexer na câmara para a direccionar para um ponto diferente. Na verdade, nem sequer ficou apurado com rigor qual a avaria e o que poderia ter-lhe dado causa, acrescendo, como refere o recorrente, que a intervenção técnica no equipamento só teve lugar dois meses depois da cessação do contrato de trabalho.
É inegável que o autor mexeu na câmara indevidamente, que é um equipamento frágil e que a testemunha FF também lhe mexeu para repor a posição para onde deveria estar direcionada, mas isso não é suficiente, em termos de lógica elementar, para dar como provado que “Em consequência do referido em 39), a câmara de videovigilância teve de ser intervencionada pela empresa de manutenção do equipamento, e com o que a R. despendeu 492,00€.”.
Dito de outro modo, a prova não é de todo suficiente para sustentar com a segurança necessária aquela conclusão, criando uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade desse facto ser certo, obstando a que se considere o facto provado.
Assim, nesta parte procede a impugnação, em consequência considerando-se o ponto 40 não provado.

II.3 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
O recorrente insurge-se contra a sentença por alegado erro na aplicação do direito aos factos, quanto ao seguinte:
- No cálculo da retribuição de férias vencidas em 01/01/2020, relativo ao trabalho prestado em 2019;
- No valor reconhecido como correspondente ao número mínimo de horas de formação não proporcionadas;
- Ao reconhecer à Ré, a título de danos patrimoniais, a quantia de 892,00€;
- Ao reconhecer à Ré o direito a ser indemnizada por danos não patrimoniais.
II.3.1 No que respeita à retribuição de férias vencidas em 01/01/2020, relativo ao trabalho prestado em 2019, na fundamentação da sentença, quanto a esta parte lê-se o seguinte:
-«[..]
Peticiona o a créditos emergentes de retribuição e subsídio de férias. A esse propósito, preceitua o CCT [..]:
[..]
Importa ainda atentar à Cláusula 62.ª:
Subsídio de férias
1- A retribuição do período de férias corresponde à que o trabalhador receberia se estivesse em serviço efectivo.
[..]
Por último reza assim a Cláusula 64.ª:
Efeitos da cessação do contrato de trabalho
1- Cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição correspondente a um período de férias, proporcional ao tempo de serviço prestado até à data da cessação, bem como ao respectivo subsídio.
2- Se o contrato cessar antes de gozado o período de férias vencido no início do ano da cessação, o trabalhador tem ainda direito a receber a retribuição e o subsídio correspondentes a esse período, o qual é sempre considerado para efeitos de antiguidade.
Tendo presente que ficou provado que o a recebeu o subsídio de férias relativas ao trabalho prestado em 2018, vencido no ano de 2019, mostrasse procedente a excepção de pagamento a esse propósito deduzida pela R, pelo que não lhe é devida nenhuma importância a esse propósito.
Todavia é-lhe devida remuneração de férias que não gozou durante o ano de 2019, pelo trabalho prestado em 2018, no valor de €300,00.
Reclama o A ainda retribuição e subsídio de férias relativas ao ano de 2019, vencidas em 1/1/2020, assistindo-lhe o direito a €635,00 de subsídio de férias, acrescido de €259,77 de 11 dias de retribuição férias não gozadas [..]».
Defende o recorrente que estando em causa a retribuição de 11 dias úteis de férias não gozados, o valor devido é de 317,499€ e não 259,77€ como lhe reconheceu a sentença.
A Ré nada disse a este propósito.
Assiste razão ao recorrente. Se a um período de 22 dias úteis de férias corresponde a retribuição que o trabalhador receberia se estivesse em serviço efectivo, ou seja, no caso, €635,00, logo, aos 11 dias úteis de férias não gozados há-se corresponder metade, obtendo-se o valor indicado pelo recorrente - 317,499€ - e não os 259,77€ fixados na sentença.
Assim, nesta parte assiste razão ao recorrente, cabendo reconhecer-lhe o direito a 317,499€ - e não os 259,77€ - a título de retribuição de 11 dias úteis das férias vencidas em 1/1/2020 , que não gozou.
II.3.2 Segue-se a questão relativa ao valor pecuniário reconhecido como correspondente ao número mínimo de horas de formação não proporcionadas.
Na fundamentação da sentença, quanto a esse pedido do autor, o tribunal a quo pronunciou-se como segue:
-« Por último, peticiona o A que lhe seja pago crédito emergente de formação profissional não prestada.
Reza assim o artigo 131.º CT, n.º 2 o trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de trinta e cinco horas de formação contínua. Nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, a formação referida no número anterior pode ser desenvolvida pelo empregador, por entidade formadora certificada para o efeito ou por estabelecimento de ensino reconhecido pelo ministério competente e dá lugar à emissão de certificado e a registo na Caderneta Individual de Competências nos termos do regime jurídico do Sistema Nacional de Qualificações.
Resulta do artigo 132.º do Código do Trabalho de 2009, que “[a]s horas de formação previstas no n.º 2 do artigo anterior, que não sejam asseguradas pelo empregador até ao termo dos dois anos posteriores ao seu vencimento, transformam-se em crédito de horas em igual número para formação por iniciativa do trabalhador” (n.º 1) e “[o] crédito de horas para formação que não seja utilizado cessa passados três anos sobre a sua constituição” (n.º 6).
Tendo em conta tais preceitos legais, o crédito de horas da formação relativo aos anos de 2017 e ss que não foi assegurada pela R à A., transforma-se em crédito de horas em igual número para formação por iniciativa do trabalhador, pelo que não assiste direito à A, desde já, o direito a receber qualquer quantia a esse título.
Nestes termos, e pelo exposto, temos de considerar que o A trabalhou para a R de Março de 2018 a Março de 2020, tendo direito a 70 h de formação certificada, que não lhe foi ministrada, pelo que lhe assiste o crédito de 70 h x €3,46, num total de €242,20».
A notar, desde já, que o segundo parágrafo deste extracto está descontextualizado e não tem seguramente a ver com o caso, o que se deve, certamente, a lapso no aproveitamento de fundamentação de um outro processo.
Alega o recorrente que deveria ter-lhe sido reconhecido o valor de 292,80€, correspondente ao número mínimo de horas de formação que não lhe foram proporcionadas, e não 242,20€, conforme lhe foi reconhecido na sentença, já que, ao contrato do A. aplica-se a Lei 93/2019 de 04 de Setembro, que alterou o art. 131º nº2 do Código do Trabalho, reconhecendo o direito a quarenta horas de formação contínua em cada ano, tendo direito a 80h, e não a 70h, como ali referido. Mais alega que o valor hora, por referência ao montante de 635,00€ era de 3,66€ e não de 3,46€, conforme referido na sentença.
A recorrida nada disse também quanto a este ponto.
O recorrente tem razão também quanto a este ponto. A Lei n.º Lei 93/2019 de 04 de Setembro, alterou o n.º2, do art.º 131.º do CT, para passar a constar “O trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de quarenta horas de formação contínua ou, sendo contratado a termo por período igual ou superior a três meses, a um número mínimo de horas proporcional à duração do contrato nesse ano”.
A alteração entrou em vigor no primeiro dia útil do mês seguinte ao da publicação daquela Lei [art.13.º1] e, de acordo com o disposto no art.º 11.º 1, no que a este ponto concerne, é aplicável ao contrato de trabalho em causa, pese embora tenha sido celebrado antes da entrada em vigor da lei, dado não estarem em causa condições de validade e efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.
Por outro lado, sendo certo que o cálculo do valor da retribuição horária obedece à formula estabelecida no art.º 271.º do CT - (Rm x 12):(52 x n) – feito o devido cálculo com base na retribuição mensal de €635, ou seja, a vigente à data da cessação do contrato de trabalho, momento em que se constituiu o direito do autor “a receber a retribuição correspondente ao número mínimo anual de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionado” [art.º 134.º CT], o valor obtido é de €3,66, e não €3,46.
Para o efeito, nomeadamente para preenchimento do factor n, tenha-se em conta estar provado que o A. cumpria um horário de 40 horas de trabalho semanais [facto 10], bem assim que o tribunal a quo concluiu na fundamentação da sentença – na apreciação da questão relativa ao trabalho suplementar, fora do objecto do recurso-, sem que contra tal se insurjam as partes, logo, tendo tal consideração transitado em julgado, que “[V]istos estes factos, teremos de concluir que o A estava sujeito ao regime de adaptabilidade por força de acordo por si celebrado com a R e que teria de prestar trabalho com duração média semanal de 40 h, por reporte a um período de 4 meses”.
Assim, efectuado o cálculo, conclui-se que o valor correspondente a 80 horas de formação é de 292,80€, e não de €242,20.
II.3.3 Avançando para a discordância pelo facto do Tribunal a quo ter reconhecido à Ré, a título de danos patrimoniais, o direito a indemnização no valor de 892,00€, na fundamentação da sentença lê-se o seguinte:
-« Da reconvenção
A ré alicerça a sua reconvenção no facto de o A lhe ter provocado danos, tendo destruído talões de TPA e tendo cobrado importâncias a mais aos clientes, que não entregou à R e que esta teve de restituir aos clientes, danificou equipamento de videovigilância da R, dando ainda azo a que tivessem ocorrido furtos, e causou danos na sua imagem.
Os factos aduzidos pela R devem ser enquadrados à luz do regime da responsabilidade civil contratual e mais concretamente atento o disposto no art.º 128º, n.º 1, c), e), f) g), e 2 CT, e no que respeita à violação do direito à imagem da Atendo ainda presente o disposto no art. 483º, nº 1 do Cód. Civil.
Quanto a este último preceito e na esteira de Antunes Varela (in «Das Obrigações em Geral», 8ª edição, Vol. I, págs. 533 e 534), entendemos serem cinco os ingredientes ou pressupostos que se encontram por detrás da eclosão da responsabilidade aquiliana. Procuremos, pois, dissecá-los sucintamente. Assim, em primeiro lugar, exige-se que haja um facto voluntário do agente, ou seja, um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana, pois só quanto a factos dessa índole tem cabimento a ideia de ilicitude e o requisito da culpa. Depois, requer-se que tal facto seja ilícito, entendendo-se a ilicitude como reprovação da conduta do agente no plano geral e abstracto em que a lei se coloca numa primeira aproximação à realidade. Na maior parte dos casos, a ilicitude documenta-se na violação de um direito absoluto de outrem. O terceiro requisito vem a traduzir-se na existência de um nexo de imputação subjectiva, denotador da específica ligação psicológica do agente com o facto lesivo e tradutor do grau de censurabilidade que merece tal comportamento. Em seguida, impõe-se que esteja presente um dano, enquanto desvalor que o facto ilícito inflige em bens jurídicos pessoais e patrimoniais, jurídico-civilmente tutelados. Por fim, é preciso que exista um nexo de causalidade, que se revela no juízo de imputação objectiva do dano ao facto de que emerge.
No caso dos autos, por não se ter provado nexo de causalidade entre a conduta do A e os furtos de que a R alegou ter sido vítima, nenhuma responsabilidade poderá ser imputada ao A, improcedendo a pretensão da R nessa parte.
No que respeita à destruição dos talões TPA, certo é que se demonstrou que assiste o direito à R de obter duplicados desses talões junto da SIBS, mas ainda é incerto se a R o fará e se virá a solicitar à SIBS todos ou apenas parte dos aludidos talões, sendo o crédito da R ainda ilíquido.
Quanto ao facto de o A ter cobrado quantias em excesso a clientes que a R teve de restituir e que ascenderam a não menos de €400,00, é evidente que a R tem o direito a haver tal quantia do A.
O mesmo se dirá quanto à quantia de €492,00 gasta pela R para reparar a câmara de vigilância que se danificou na sequência da acção perpetrada pelo A.».
Alega o recorrente, no essencial, que não estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil. A Ré, apenas alegou na Reconvenção que o A. violou o dever de zelo e diligência, falta de vigilância e negligência na tramitação dos pagamentos, existindo incumprimento dos seus deveres laborais, mas não fundamenta o pedido reconvencional em qualquer conduta violadora de qualquer específica regra do contrato de trabalho.
Prossegue, defendendo que não basta a mera violação pelo trabalhador, dos deveres laborais, sendo necessário apreciar a conduta em concreto, não sendo exigível ao trabalhador médio não ter erros. Tanto assim é que a Ré nunca moveu ao A. qualquer processo disciplinar por esses erros.
Conclui que não demonstrou a Ré que à luz da normal execução do contrato, que a ligava ao A., a sua conduta foi ilícita, censurável e, portanto, dolosa, ou que evidencia-se uma culpa grave ou mera negligência por referência ao padrão do bom pai de família, nos termos do Art.º 487 nº2 do C. Civil.
Mais alega que a Ré não demonstrou, igualmente, que os danos existentes na câmara e que ascendem à quantia de 492,00€, foram consequência direta e necessária da ação do A., faltando assim o nexo de causalidade entre a conduta do A. e o dano.
Contrapõe a recorrida que as devoluções de mais de 400,00€ que teve de efetuar a clientes não consubstanciaram um “errozinho”, mas sim conduta gravíssima e esses montantes não foram “descontados” no vencimento do Recorrente.
Relevam para a apreciação deste ponto os factos seguintes:
30) Nessa qualidade, de operador do posto, cabia ao A., entre outras tarefas, a de receber os pagamentos dos clientes, bem como, todas as tarefas administrativas associadas, designadamente, operar a caixa registadora, os terminais de pagamento automático (TPA), depositar os valores recebidos, primeiramente na caixa central e depois no cofre, e tramitar a gestão de stocks dos combustíveis,
31) E, no final do turno, o A tinha de proceder ao fecho do caixa e dos TPA, imprimir o relatório respectivo e entregar todos os inerentes documentos (talões dos movimentos e de fecho dos TPA) na caixa central do supermercado.
32) O A. deitava fora os duplicados dos talões dos movimentos/pagamentos dos TPA do posto de abastecimento referentes às transacções efetuadas entre 19/06/2019 e 28/02/2020.
33) Talões estes que, conforme instruções expressas da Ré, e prática habitual na empresa, deveriam ter sido entregues diariamente pelo A. na caixa central.
34) Os duplicados dos talões dos movimentos dos TPA, sendo instrumentos/documentos de trabalho, são essenciais, e de suporte contabilístico, das transacções comerciais relativas à venda dos combustíveis,
35) São também elementos de apoio à gestão (controlo de fluxos financeiros, gestão de combustíveis) e, ainda, essenciais à tramitação de eventuais reclamações.
37) A A. foi confrontada com várias reclamações de clientes, pelo facto de durante 2019 e 2020 o A. lhes ter cobrado nos TPA quantias superiores aos combustíveis abastecidos.
38) A R. teve, assim, de efectuar devoluções de quantias pecuniárias a 28 clientes que ascenderam a quantia não concretamente apurada, mas seguramente não inferior €400.
Vejamos, começando por deixar o necessário enquadramento jurídico.
Com a celebração do contrato de trabalho o trabalhador assume uma obrigação principal, a de prestar a sua actividade ao empregador, executando o trabalho de harmonia com as instruções daquele a quem compete o poder de direcção, ou seja, o de «(..) estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem» [art.º 97.º do CT 09].
Mas para além dessa obrigação principal, sobre o trabalhador recaem ainda outras obrigações «(..) conexas à sua integração no complexo de meios pré-ordenados pelo empregador” [António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14.ª Ed., Almedina, 2009, pag. 236].
Esses deveres acessórios estão previstos nas diversas alíneas do art.º 128.º do CT 09, em enumeração exemplificativa, entre eles constando, no que ao caso importa, os designados deveres de zelo e diligência, obediência e lealdade, a que se referem, respectivamente, as alíneas c), e) e f) do n.º 1, daquele artigo. Começa o n.º 1 por dizer que “Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve”, para depois naquelas alíneas constarem os deveres do trabalhador realizar o trabalho com zelo e diligência, cumprindo as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias” e, “Guardar lealdade ao empregador (..)”.
Subjacente a esses deveres está o princípio orientador geral da boa fé no cumprimento dos contratos, no Código do Trabalho constante do art.º 126.º n.º1, nos termos seguintes:
-“O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações”.
A Professora Maria do Rosário Palma Ramalho, a par de parte da doutrina nacional a esse propósito - como assinala - distingue entre os “deveres acessórios integrantes da prestação principal e os deveres acessórios independentes da prestação principal”. Na primeira dessas categorias, inclui “aqueles deveres do trabalhador que estão estreitamente ligados à prestação principal”, entre eles destacando “(..) o dever de obediência, os deveres de assiduidade e pontualidade, o dever de zelo e diligência na realização do trabalho e o dever de promover a melhoria da produtividade da empresa”. E, na segunda, que também designa por “deveres acessórios autónomos”, por não dependerem da prestação de trabalho, assinala merecerem especial referência “(..) o dever de lealdade, em geral e nas manifestações específicas do dever de sigilo e de não concorrência, os deveres de respeito e urbanidade, o dever de custódia e os deveres atinentes à disciplina na organização, em geral e especificamente em matéria de higiene, segurança e saúde” [Direito do Trabalho, Parte II, 3.ª Ed., Almedina, 2010, pp. 412].
Prossegue a mesma autora, assinalando que em sede de apresentação geral dos deveres acessórios do trabalhador deve ter-se em conta a dimensão pessoal de alguns desses deveres, bem como a dimensão organizacional, o que se aplica, entre outros, aos deveres de lealdade e de respeito e urbanidade, para depois explicar que “A dimensão pessoal de alguns deveres dos trabalhadores decorre do envolvimento integral da sua personalidade no contrato de trabalho e explica também a imposição ou limitação de condutas pessoais ao trabalhador, em determinados parâmetros, bem como o relevo geral da confiança pessoal entre as partes no contrato de trabalho” [op. cit. pp.413].
Mais adiante, debruçando-se em concreto sobre o dever de obediência a mesma autora escreve “Apesar de não ter merecido um destaque especial na lei (art.º 128.º n.º1 al. e) e n.º2 do CT), o dever de obediência é o dever acessório mais importante do trabalhador, a par do dever de lealdade”, mais adiante concretizando que o “(..) trabalhador deve obediência não apenas às directrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua actividade labora (ou seja, ao poder directivo), mas também às directrizes emanadas do poder disciplinar prescrito, em matéria de organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho, ou outras” [Op. cit. pp.414/ 415].
E, quanto ao dever de lealdade, faz notar que “Embora seja referido na lei sem particular destaque [art.º 128.º n.º 1 al. f], o dever de lealdade é, a par do dever de obediência, o mais importante dos deveres acessórios do trabalhador”. Prossegue a análise deste dever, escrevendo que “Em sentido amplo, o dever de lealdade é o dever geral de conduta do trabalhador no cumprimento do contrato (…) O dever de lealdade do trabalhador entronca, em primeiro lugar, no dever geral de cumprimento pontual dos contratos. Nesta perspectiva, o dever de lealdade do trabalhador tem como destinatário o empregador, contraparte no contrato de trabalho, e não é mais do que a concretização laboral do princípio da boa-fé, na sua aplicação ao cumprimento dos negócios jurídicos, tal como está vertido no art.º 762.º n.º 2 do CC. É também neste sentido que deve ser compreendida a referência ao dever de comportamento do trabalhador e do empregador segundo as regras da boa fé no cumprimento dos seus deveres e no exercício dos seus direitos, que consta do art.º 126.º, n.º 1 do CT». Assinalando, ainda, que para além dessa dimensão obrigacional, o dever de lealdade tem uma outra “(..) que decorre dos dois elementos do contrato de trabalho que o tornam singular no panorama dos contratos obrigacionais: o elemento do envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo; e a componente organizacional do contrato”, e concluir que “(..) a componente organizacional do contrato de trabalho justifica que o dever de lealdade do trabalhador não se cifre apenas em regras de comportamento para com a contraparte mas também na exigência de um comportamento correcto do ponto de vista dos interesses da organização (..) para além da lealdade ao empregador, enquanto contraparte num negócio jurídico, releva também a lealdade à empresa ou à organização do empregador” [Op. Cit. pp. 420/424].
Considerados estes princípios, pode afirmar-se que a conduta do trabalhador consubstancia uma violação dos deveres de zelo e diligência, de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução e disciplina do trabalho, bem assim de lealdade à sua entidade empregadora. Por um lado, contrariando frontalmente as instruções da Ré “deitava fora os duplicados dos talões dos movimentos/pagamentos dos TPA do posto de abastecimento referentes às transacções efetuadas entre 19/06/2019 e 28/02/2020”, obstando, para além do mais, ao controle e tramitação de eventuais reclamações (factos 34,35 e 36], conduta que só pode reputar-se de voluntária e dolosa. Por outro, não permitindo os factos provados afirmar que o autor cobrou intencionalmente a clientes -nos TPA-, quantias superiores aos combustíveis abastecidos, ou seja, a título doloso, o certo é que vista objectivamente, quer pela multiplicidade de vezes em que ocorreu quer pelos valores envolvidos, tal conduta consubstancia, pelo menos, uma actuação altamente negligente e culposa na execução do contrato de trabalho.
A violação desses deveres decorrentes do vínculo contratual, são ilícitas e culposas, já que praticadas pelo menos com negligência. E, contrariamente ao que parece querer defender o recorrente, não obsta a esta conclusão o facto da Ré não lhe ter movido processo disciplinar por essas situações em que cobrou indevidamente aos clientes quantia superior ao do valor dos combustíveis adquiridos. O processo disciplinar é condição processual para aplicação de uma sanção disciplinar, mas já não é para se apurar aqui, no âmbito das questões controvertidas em discussão, se houve violação dos deveres laborais. O exercício do poder disciplinar é uma faculdade que existe à entidade empregadora, não ficando a possibilidade de valoração de um determinada conduta do trabalhador face aos seus deveres laborais, quando tal se justifique no âmbito de um litígio com o empregador, como aqui acontece, dependente da prévia existência de procedimento disciplinar.
A responsabilidade civil é uma das fontes das obrigações, concretamente, da obrigação de indemnizar, podendo essa responsabilidade revestir natureza contratual ou extracontratual.
Interessa-nos aqui a responsabilidade civil extracontratual, regulada nos art.ºs 483.º e segts. do CC, mais precisamente, a responsabilidade por factos ilícitos. É pacificamente aceite que para haver responsabilidade por factos ilícitos, com a consequente obrigação de indemnizar, é necessário que se verifiquem os pressupostos seguintes:
i)Um facto voluntário do agente; ii) ilicitude desse facto; iii) nexo de imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa; iv) a verificação de um dano; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário do agente, em regra consiste em acção, mas pode consistir em omissão (art.º 486.º).
A ilicitude do facto pode traduzir-se na violação de direitos subjectivos relativos ou absolutos de outrem ou, também, na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Traduzindo-se num juízo de valor emitido pela lei sobre o facto, a ilicitude não tem de ser provada. É matéria que cabe dentro da esfera do conhecimento oficioso do Tribunal [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pp. 474].
A culpa lato sensu é susceptível de abranger o dolo e a culpa stricto sensu ou mera negligência. Agir com culpa significa “actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo” [Pires de Lima e Antunes Varela, Op. cit. pp. 474].
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil). O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa, por referência a um agente normal.
O dano pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme seja ou não susceptível de avaliação pecuniária. Assim, verifica-se a existência de um dano quando haja um prejuízo resultante da lesão de um bem, direito ou interesse juridicamente protegido. A existência de um dano é pressuposto essencial da obrigação de indemnização. Não existindo dano não há fundamento para a obrigação de indemnizar e, logo, não tem cabimento falar-se de responsabilidade civil, qualquer que tenha sido a natureza e efeitos da conduta do agente.
Existe nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente do facto ilícito e culposo e o dano sofrido pelo lesado quando possa afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.
No domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito de indemnização reclamado recai sobre quem se arroga nesse direito, de acordo com as regras gerais de repartição do ónus da prova [n.º 1 do art.º 342.º do CC].
A única excepção a esta regra respeita à prova da actuação culposa, mas apenas no caso de haver presunção legal. É o que decorre do disposto no n.º1 do art.º 487.º do CC, onde se dispõe “É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo presunção legal de culpa”.
No caso, mostram-se verificados os pressupostos para constituir o autor na obrigação de indemnizar a Ré. A sua conduta voluntária e ilícita, consubstanciada na cobrança a clientes em operações de débito bancário de valores superiores aos que eram devidos, é-lhe imputável, pelo menos, a título de mera culpa por actuação negligente no exercício das suas funções, sendo a causa directa e necessária para a verificação de um dano para e entidade empregadora, em concreto, por esta se ter visto confrontada com a necessidade de dar resposta às reclamações daqueles clientes, efectuando “devoluções de quantias pecuniárias a 28 clientes que ascenderam a quantia não concretamente apurada, mas seguramente não inferior € 400”.
Assim, nesta parte não se reconhece razão ao recorrente.
Diversamente acontece quanto à quantia de € 492,00 gasta pela R para reparar a câmara de vigilância, dado ter procedido a impugnação da matéria de facto quanto ao ponto 40, não estando provado, como assumiu o Tribunal a quo, que Em consequência do referido em 39), a câmara de videovigilância teve de ser intervencionada pela empresa de manutenção do equipamento, e com o que a R. despendeu 492,00€.”.
Concluindo, esta linha de argumentação procede apenas parcialmente, em consequência apurando-se que o valor da indemnização devida à Ré a título de danos patrimoniais, ao invés dos €892,00 fixados pelo Tribunal a quo, é antes de €400,00.
II.3.4 A última linha de argumentação do recorrente sustenta a discordância do recorrente com a sentença, em razão do Tribunal a quo ter entendido que «assiste à R o direito ao bom nome, imagem e reputação, pelo que deve ser indemnizada a título de danos não patrimoniais [pelo A] em quantia de € 3.500, que se nos afigura razoável e proporcional».
O Tribunal a quo, após referir que “existem duas posições jurídico-doutrinais” a propósito da possibilidade de atribuição de indemnização por danos não patrimoniais a pessoas colectivas, passou a ilustrar essa afirmação citações da doutrina e jurisprudência, para concluir de imediato com a afirmação que segue:
Concordamos com a última das posições apontadas, pelo que entendemos que assiste à R o direito ao bom nome, imagem e reputação, pelo que deve ser indemnizada a título de danos não patrimoniais pela R em quantia de €3.500, que se nos afigura razoável e proporcional».
Defende o recorrente, no essencial, que não assiste à Ré o direito a ser indemnizada por danos não patrimoniais, pois da lesão do seu bom nome, imagem e reputação, não resultou um dano de natureza não patrimonial. Não é qualquer violação que gera a obrigação de indemnizar a título de danos não patrimoniais, tem que ser uma lesão séria e grave, de tal forma que comprometa a capacidade de prossecução do seu fim (no caso venda de combustíveis), sendo que a Ré não alegou e também não foi produzida prova demonstrativa que o “ilícito” praticado pelo A., atingiu ou diminuiu, de forma séria e grave, a sua capacidade (em abstrato) de prossecução do seu fim (atingir o lucro).
Tinha a Ré que ter alegado e provado que o A. colocou em causa o seu prestígio e credibilidade, a tal ponto que afetou gravemente a sua capacidade de prossecução do seu fim, não sendo o dano avaliável em dinheiro. Para existir um dano na Ré, a ofensa ao bem jurídico tem que se “materializar” em algo mais concreto, o que não foi sequer alegado, não tendo por isso o Tribunal “a quo” factos suficientes para dar como provado a existência de um dano patrimonial.
Contrapõe a recorrida que é muitíssimo grave, e fortemente atentatória da imagem do comerciante, que os seus clientes tenham sido objeto de cobranças irregulares, gerando inúmeras reclamações e devoluções, o que - resulta das regras da experiência comum - acarreta a perda de clientes, relatos e propalação sistémica dos episódios na comunidade, que geraram um enorme dano para a sua reputação, imagem e fiabilidade. Nessa consideração, pugna pela manutenção do decidido.
Como é sabido, a obrigação de indemnizar por danos não patrimoniais dependerá sempre da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, para além do facto ilícito e culposo, a verificação de danos não patrimoniais com gravidade bastante para serem merecedores da tutela do direito (art.º 496º nº 1 do CC) e o respectivo nexo de causalidade.
Sobre o que se deve entender por danos não patrimoniais, elucida Antunes Varela que, ao lado dos danos pecuniariamente avaliáveis “há outros prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização” [Das Obrigações em geral, Vol. I., 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1980, p. 496].
O Código Civil admite a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, mas limitando-a àqueles “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” [art.º 496.º/1 CC].
Em anotação ao artigo 496.º do CC, Pires de Lima e Antunes Varela, observam que “[A] gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, deixando igualmente nota, em linha com o entendimento da jurisprudência do STJ que sinalizam, que “[O]s simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos morais” [Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 499].
Como referiu o Tribunal a quo, a doutrina e a jurisprudência estão divididas quanto à questão de saber se as pessoas colectivas, como as associações, fundações e sociedades, poderão ter direito a indemnização por danos não patrimoniais. A propósito desta divergência, António Pinto Monteiro [A tutela dos direitos de personalidade no Código Civil. Revista Jurídica Portucalense, 9–23. Obtido de https://revistas.rcaap.pt/juridica/article/view/24985], observa que “Há decisões que recusam atribuir às pessoas colectivas — “maxime” às sociedades comerciais — a indemnização por danos não patrimoniais, por se entender que da ofensa ao seu bom nome e reputação apenas poderá resultar “um dano patrimonial indirecto, isto é, o reflexo negativo que, na respectiva potencialidade de lucro, opera aquela ofensa”9; mas há outras decisões que, pelo contrário, concedem às pessoas colectivas a indemnização por danos não patrimoniais, normalmente com base na tutela dos direitos de personalidade de que gozam10”, mais adiante referindo que “Vem prevalecendo, todavia, na doutrina e na jurisprudência, a opinião segundo a qual também as pessoas colectivas podem gozar de alguns direitos de personalidade. É o caso, desde logo, do direito ao bom nome, tutelado por lei (art. 484º). Mas outros direitos vêm sendo atribuídos pela jurisprudência portuguesa às pessoas colectivas, como os direitos à imagem e à reputação”.
Na opinião deste autor, «não se pode nem se devem colocar as pessoas colectivas no mesmo plano das pessoas humanas. Não só a lei civil, mas a própria Constituição da República Portuguesa, recorde-se, determina que as pessoas colectivas gozam — mas só gozam — dos direitos que forem “compatíveis com a sua natureza”. Ora, parece-nos que a reparação pecuniária por danos não patrimoniais não se adequa à natureza das pessoas colectivas. Não se pode pretender para estas a concessão dos mesmos direitos de que gozam os seres humanos: é a própria dignidade da pessoa humana a reclamar diferenciações [Op. cit, p.20/21]».
Em contraponto, ilustrando o entendimento maioritário, na fundamentação do Acórdão do STJ de 12-02-2008 [Proc.º 07A4618, Conselheiro Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi], lê-se o seguinte:
-«[..]
O art. 484° do Código Civil expressa:
“Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
Do preceito citado decorre uma especial protecção ao direito de que gozam as pessoas colectivas sejam elas associações, fundações ou sociedades.
No fundo trata-se de proteger direitos que poderíamos considerar semelhantes ao direito de personalidade, mesmo sabendo que as pessoas colectivas, atento o princípio da especialidade, se não podem comparar a “indivíduos”, pessoas humanas – cfr. art. 70º, nº1, do Código Civil – não padecem, diríamos, de sofrimento moral em sentido lato.
Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 486, escrevem:
“ Exista ou não, por parte das pessoas singulares ou colectivas, um direito subjectivo ao crédito e ao bom-nome, considera-se expressamente como antijurídica a conduta que ameace lesá-los, nos termos prescritos.
Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade”.
Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português” – Tomo III – 2004, pág. 105, escreve:
“A desonra de uma pessoa colectiva repercute-se sobre as pessoas que lhe sirvam de suporte ou que, para ela, trabalhem ou actuem.
Reacções individuais seriam impensáveis; assim, há que reagir em modo colectivo.
A pessoa colectiva ficará encartada nos direitos competentes, sendo certo que os bens em jogo são, sempre, verdadeiros bens de personalidade, atingidos de modo mediato.
O artigo 484º do Código Civil, sensível à problemática, tutela, com indemnização, a ofensa do crédito ou do bom-nome das pessoas colectivas.
Naturalmente qualquer transposição da tutela de personalidade para pessoas colectivas deve sempre ser feita tendo em conta os fins a que elas se destinem e a natureza da situação envolvida”.
A ofensa ilícita do bom nome, reputação, ou crédito de pessoa colectiva constitui o agente no dever de indemnizar, verificados os requisitos do art. 483º, nº1, do Código Civil – aplicáveis à responsabilidade extracontratual – e, não discriminando a lei entre pessoas colectivas de fim lucrativo (sociedades) ou não lucrativo (mormente, associações e fundações), descabido é considerar que só a violação do direito destas importa ilicitude.
Questão de maior complexidade é saber se o dano causado por imputações violadoras do direito acautelado, no citado normativo, é de natureza patrimonial ou moral.
Os danos patrimoniais são lesões no património tangível de pessoas físicas ou colectivas, passíveis de indemnização, seja por restauração natural, ou indirectamente, por dinheiro; danos não patrimoniais, na clássica definição, são os que lesam interesses insusceptíveis de avaliação pecuniária.
Atentemos na peculiaridade do caso.
As sociedades comerciais como a Ré operam no mercado visando a obtenção de lucros, mediante actividade que desenvolvem no âmbito do seu escopo social.
A obtenção de lucros implica uma actuação proficiente, prestigiada, sendo para tanto da maior relevância, que a sociedade disponha no mercado de bom-nome, prestígio, ou seja, que tenha uma actuação negocial honrada, capaz de incutir confiança nos seus fornecedores, clientes e demais entidades com quem tem que lidar (entes públicos, bancos, etc.).
A manifestação dessas qualidades que constitui a sua reputação, está ligada, visa a obtenção de clientela, pois, só através de negócios bem sucedidos a sociedade prospera no mundo negocial.
Qualquer ofensa àqueles valores imateriais constitui lesão no seu vital interesse de obtenção de lucros, por via do aumento, senão na conservação da clientela, ou seja, o interesse protegido é também de índole patrimonial.
O interesse contemplado no art. 484º do Código Civil é evitar que actos ilícitos afectem o bom-nome e reputação das sociedades comercias se repercutam na vida empresarial da empresa, mormente, causando perdas negociais; uma empresa sob suspeita de práticas ilícitas corre o risco de perder clientela.
Esta questão foi alvo de decisões díspares deste Supremo Tribunal, como o Acórdão da Relação nos dá conta.
No Acórdão deste Supremo de 30.11.2004 – in www.dgsi.pt – Proc. 05B16161, foi decidido que, em caso de ofensa ao bom-nome e reputação de uma sociedade, a indemnização de que era credora o era por dano patrimonial, revogando-se a decisão que atribuíra compensação por dano não patrimonial.
Aí pode ler-se:
“Há, no entanto, em ordem a resolver o problema, que distinguir, nestes casos, entre o bem jurídico atingido e o dano que resulta da lesão.
Ora, as sociedades comerciais operam no mundo dos negócios com o objectivo do lucro.
É próprio da sua natureza que o bom-nome, a reputação e a imagem comercial lhes interessam na justa medida da vantagem económica que deles podem tirar.
Toda a ofensa ao bom nome comercial acaba por se projectar num dano patrimonial revelado pelo afastamento da clientela e na consequente frustração de vendas (e perda de lucros) por força da repercussão negativa no mercado que à sociedade advém por causa da má imagem que se propaga.
Sofrem, deste modo, “danos patrimoniais indirectos que, embora atinjam valores ou interesses não patrimoniais (o bom nome...a reputação...) todavia se reflectem no seu património (diminuindo, por exemplo, a sua clientela).
Assim, para as sociedades comerciais, a ofensa do crédito e do bom-nome produz, portanto (como a própria recorrente parece admitir) um dano patrimonial indirecto, isto é, o reflexo negativo que, na respectiva potencialidade de lucro, operou aquela. Os prejuízos estritamente morais implicados nas ofensas ao bom-nome e reputação apenas calham aos indivíduos e às pessoas morais, para os quais a dimensão ética é importante, independentemente do dinheiro que poderá valer.” (sublinhámos).
No mesmo sentido sentenciou este Tribunal – Acórdão de 27.11.2003, in www.dgsi.pt.
Mais recentemente, em Acórdão de 8.3.2007, Proc. 07B566, in www.dgsi.pt. também do Supremo Tribunal foi entendido que o dano indemnizável era o dano não patrimonial.
Com o devido respeito, entendemos, que a violação do direito ao bom nome e reputação de uma sociedade constitui o lesante, verificados os requisitos da responsabilidade civil delitual – art. 483º, nº1, 562 e 566º do Código Civil – na obrigação de indemnizar por danos não patrimoniais.
Com efeito se se considerar que práticas difamatórias de que são alvo sociedades comerciais só serão indemnizáveis se houver repercussão patrimonial na sua vida negocial, maxime, se houver perda de clientela, poderia ficar civilmente impune um facto que a lei considera gerador de responsabilidade civil – art. 484º do Código Civil.
A doutrina francesa de há muito admite a utilização da via indemnizatória para a protecção dos direitos análogos aos direitos de personalidade reconhecidos às pessoas colectivas.
“As pessoas morais são também investidas de direitos análogos aos direitos da personalidade.
Elas são somente privadas dos direitos cuja existência está ligada necessariamente à personalidade humana” – “Revue Trimestrielle de Droit Civil”, 1971, vol. 69/445.
“A protecção dos atributos morais da personalidade para a propositura de acção de responsabilidade não está reservada somente às pessoas físicas.
Aos grupos personalizados tem sido admitido o uso dessa via para proteger seu direito ao nome ou para obter a condenação de autores de propostas escritas ou actos tendentes à ruína da sua reputação.
A pessoa moral pode mesmo reivindicar a protecção, senão de sua vida privada, ao menos do segredo dos negócios” – “Traité de Droit Civil”, Viney, “Les Obligations”, “La Responsabilité”, 1982, vol. II/321).
[..]
Em caso de sociedades comerciais, factor deveras relevante para fixação do “quantum” compensatório, em caso de dano não patrimonial é a repercussão que a imputação maléfica tem na vida empresarial o que, desde logo, é aferível pela sua situação no mercado antes e depois dos factos».
No mesmo sentido, no Ac. do STJ de 09-07-2014 [Proc.º 366/12.OTVLSB.L1.S1; Conselheiro João Bernardo, disponível em www.dgsi.pt], afirma-se o seguinte:
[..]
A Constituição da República Portuguesa estabeleceu um leque particularmente vasto de direitos de personalidade.
Da sua sistematização e redação vê-se claramente a preocupação com as pessoas físicas, bem explícita logo no texto do artigo 2.º.
Mas, no artigo 12.º, n.º2, não ignorou a questão dos direitos e deveres das pessoas coletivas, estatuindo que “gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”.
No Acórdão Comingersoll S.A. contra Portugal, de 6.4.2000 (que se pode ver no sítio do respectivo tribunal) o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem escreveu (pontos 34 e 35):
“O Tribunal teve igualmente em atenção a prática dos Estados membros do Conselho da Europa na matéria. Apesar de ser difícil descortinar uma norma comum precisa, a prática jurisdicional em vários destes Estados demonstra que a possibilidade de reparar o eventual dano não patrimonial sofrido por uma pessoa moral não pode ser afastado.
Consequentemente o Tribunal não pode excluir, atendendo à sua própria jurisprudência e à luz desta prática, que pode ter lugar, relativamente a uma sociedade comercial, um dano não patrimonial demandando uma reparação pecuniária.
…Deve-se constatar que a eficácia do direito garantido pelo artigo 6.º da Convenção exige que seja concedida também por dano não patrimonial uma reparação monetária, incluindo a uma sociedade comercial.”
O Código Civil inclui a Secção relativa aos “Direitos de personalidade” no Capítulo I, com o título “Pessoas Singulares”.
Mas, dispõe no artigo 160.º, que a “capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins” e que se excetuam “os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular.”
Já na Secção referente à responsabilidade civil, o artigo 484.º determina a proteção do crédito ou do bom nome de qualquer pessoa singular ou coletiva, impondo ao violador a responsabilidade pelos danos causados, sem que distinga entre estes.
A lume veio também o artigo 187.º do Código Penal tipificando a ofensa da credibilidade, prestígio ou confiança que sejam devidos a, entre outras, pessoa coletiva, doutrina que havia sido fixada, quanto às sociedades, pelo Assento de 24.2.1960 (BMJ, n.º 94, 107).
8 . Neste quadro tem vindo a ser afirmado, doutrinária e jurisprudencialmente, o entendimento de que as pessoas coletivas são sujeitos ativos de direitos de personalidade ou estruturalmente idênticos e de que, da sua violação, pode emergir compensação por danos não patrimoniais.
Assim, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, 2004, 103 e seguintes, Maria Veloso, Cadernos de Direito Privado, n.º 18, 29, Pedro Dias, O Dano Moral, 39 e, entre outros, os Ac.s deste Tribunal de 12.2.2008, processo n.º 07A4618 e 12.9.2013, processo n.º 372/08.9TBBCL.G1.S1., ambos com texto disponível em www.dgsi.pt.
Não vemos razões para nos afastarmos deste entendimento, largamente maioritário. Nem mesmo para, considerando o escopo de lucro das sociedades comerciais, exigir o atingimento, ainda que potencial deste. Não obstante estas visarem efetivamente a obtenção de lucros, paralelamente a estes caminha, além de outros, o bom nome que pode constituir um valor a se. E tanto assim é, que muitas sociedades contribuem altruisticamente para realidades sociais, ambientais, etc., outras havendo, como alguns clubes desportivos, em que valores intensos de índole afetiva estão presentes.
9 . Da abertura do caminho compensatório, logo resultam, porém, especificidades. A pessoa coletiva não tem dores, não sofre e aí por diante. Ademais a estruturação da nossa sociedade em bases personalistas (veja-se o mencionado artigo 2.º da CRP) leva a que não possa deixar de se reconhecer “a menor densidade ética dos valores imateriais ligados às sociedades comerciais em relação aos sujeitos particulares…” (Maria Veloso, Estudo citado, 44).
Mesmo relativamente às pessoas singulares, as ofensas à honra ou ao crédito vêm sendo encaradas de modo muito mais tolerante e, consequentemente, lícito, em especial no que tange à comunicação social. Pela mão do TEDH mas já com amplo recebimento na ordem interna, têm-se admitido a licitude de ofensas com alguma intensidade (Cfr-se, por todos, no referido sítio, o Ac. deste Tribunal de 30.6.2011, processo n.º 1272/04.7TBBCL.G1.S1).
A fasquia relativa à gravidade merecedora da tutela da direito reportada ao nosso caso deverá ser colocada em ponto elevado».
Navegando na esteira desses arestos, no sumário do Acórdão do TRG de 17-12-2018 [Proc.º 4592/15.1T8VNF.G1, Desembargador Heitor Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt], sintetiza-se a posição aí seguida nos termos seguintes: “São passíveis de ressarcimento os danos morais das pessoas colectivas decorrentes de actos ilícitos que atinjam o seu bom nome e reputação, que pela sua gravidade sejam merecedores da tutela do direito (art. 494º do C. C.), gravidade que deve ser aferida em função da natureza da ofensa, do objecto social da pessoa colectiva e de outras circunstâncias reveladas pelo caso, e de molde a considerar-se objetivamente uma ofensa idónea a refletir-se negativamente na vida societária, v.g. na potencialidade de obtenção do lucro (tratando-se de sociedades comerciais).”.
Atentando no elenco da matéria de facto, com relevo para este ponto provou-se o seguinte:
41) A imagem da R junto dos clientes que reclamaram e tiveram de ser reembolsados ficou prejudicada nos procedimentos de venda dos combustíveis e na fiabilidade da Ré enquanto revendedora, sendo que lhes foi inculcada a perceção de que os procedimentos de cobranças através dos equipamentos de TPA eram facilmente viciáveis e inseguros.
42) Também os funcionários da R que tomaram conhecimento desses factos ficaram com dúvidas quanto à fiabilidade dos procedimentos de cobranças da Ré.
Ainda que tendamos a acompanhar os argumentos do entendimento maioritário, no caso não se revela necessário tomar posição concreta quanto a esta controvérsia. Com efeito, ainda que se admita que as pessoas colectivas, máxime as sociedades comerciais, poderão ter direito a indemnização por danos não patrimoniais, como ressalta dos arestos citados, para que esse direito se constitua é ponto que haja um especial grau de gravidade do dano. Para aferição dessa gravidade, as palavras do Ac. do STJ de 12-02-2008, «factor deveras relevante para fixação do “quantum” compensatório, em caso de dano não patrimonial é a repercussão que a imputação maléfica tem na vida empresarial o que, desde logo, é aferível pela sua situação no mercado antes e depois dos factos”. E, com brevidade e eloquência, na síntese do Ac. do STJ de 09-07-2014: “1. As sociedades comerciais podem ser compensadas por danos não patrimoniais. 2. A sua natureza leva, no entanto, a que surjam especificidades. 3 . Entre elas, a maior exigência quanto à gravidade merecedora da tutela do direito do que a relativa às pessoas singulares».
Ora, na nossa perspectiva, daqueles dois únicos factos provados não pode retirar-se que a conduta do autor tenha provocado danos com gravidade suficiente para justificar a atribuição de indemnização por danos morais à Ré. É certo, como provado no facto 41, que a imagem da R junto dos clientes que reclamaram e tiveram de ser reembolsados ficou prejudicada nos termos ali descritos, mas daí não resulta que essa ideia formada por esses clientes se tenha repercutido de algum modo, muito menos grave, na normal prossecução da actividade daquela, nomeadamente, que tenha tido algum reflexo significativo na venda de combustíveis. De resto, note-se, nem sequer resulta que essa “imagem”, formada pelos clientes, tenha passado para além do plano individual de cada um deles, ou seja, que tenha havido divulgação, nem mesmo que algum desses clientes tenha deixado de abastecer combustíveis naquele local.
Provou-se, também, que os funcionários da R que tomaram conhecimento desses factos ficaram com dúvidas quanto à fiabilidade dos procedimentos de cobranças da Ré, mas também daquele não se retira uma consequência directa para o bom nome da Ré, com repercussão real e aferível no normal desenvolvimento da sua actividade.
Neste quadro, cremos que não se provou a existência de danos não patrimoniais, “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” e, logo, contrariamente ao decidido, deveria esse pedido reconvencional da Ré ter sido julgado improcedente.
Assim, quanto a este ponto procede o recurso.
II.3.5 Atenta a procedência do recurso quanto a parte das questões suscitadas pelo recorrente, cabe retirar as consequências para a decisão final.
O Tribunal a quo concluiu que “[O]s créditos do A ascendem, por isso, ao montante de €3.614,95”, nesse cômputo estando englobados todos os créditos reclamados, uns que foram objecto do recurso e outros que não foram objecto de discordância.
Reconheceu-se razão ao recorrente quanto ao valor da retribuição a título de retribuição de 11 dias úteis das férias vencidas em 1/1/2020, que não gozou, assistindo-lhe o direito a 317,499€ - e não os 259,77€. Reconheceu-se- lhe também razão quanto ao valor correspondente a 80 horas de formação, que é de 292,80€, e não de € 242,20.
Assim, como veio o recorrente defender, o valor total dos seus créditos é de €3.723,28 e não de 3.614,95€, importando alterar a alínea A), do dispositivo da sentença em conformidade.
No que concerne ao pedido reconvencional da Ré, reconheceu-se razão ao recorrente quando a não assistir àquela o direito ao valor de 492,00€ elativos à reparação da câmara de videovigilância, em consequência apurando-se que o valor da indemnização devida a título de danos patrimoniais, ao invés dos €892,00 fixados pelo Tribunal a quo, é antes de €400,00.
E, por último, reconheceu-se-lhe também razão quanto à sua condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais no montante de €3.500,00,
Por conseguinte, impõe-se altera os pontos B) e C), do dispositivo da sentença. O primeiro, para reconhecer à Ré um direito de crédito no valor de €400,00, acrescido dos juros de mora nos termos que ali foram fixados. O segundo, para declarar compensado o crédito da Ré, naquele valor, ficando o autor credor do remanescente, ou seja, da diferença após deduzido ao seu crédito de €3.723,28 o crédito de €400,00 da Ré.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
i) Parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
ii) Parcialmente procedente o recurso, em consequência revogando-se e alterando-se a sentença - na parte recorrida –, passando o dispositivo a ser conforme segue:
-«[..] julga-se a presente acção e a reconvenção parcialmente procedentes e, consequentemente:
A) Reconhece-se que ao A assiste um direito de crédito sobre a R no valor de €3.723,28 (três mil, setecentos e vinte e três euros e vinte e oito cêntimos cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento.
B) Reconhece-se que à R assiste direito de crédito sobre o A no valor de €400,00 (quatrocentos euros), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento.
C) Declara-se o compensado o crédito da Ré no valor de €400,00 (quatrocentos euros), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento, em consequência permanecendo o Autor credor da diferença após deduzido aquele crédito ao seu crédito de €3.723,28, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos contados desde 16/3/2020 à taxa supletiva legal até efectivo e integral pagamento, condenando-se a Ré no respectivo pagamento deste valor remanescente.
D) No que demais foi pedido na acção pelo A. contra a Ré e no pedido reconvencional por esta contra aquele, vão absolvidos.
Custas da acção e do recurso, a cargo de Autor e Ré, na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527.º/2 CPC).

Porto, 8 de Junho de 2021
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira