Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10076/05.9YYPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
VALOR MÍNIMO
Nº do Documento: RP2021041510076/05.9YYPRT-B.P1
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A venda em processo executivo visa obter a maior receita possível com respeito pelas condições de concorrência e contraditório.
II - Na modalidade da venda por negociação particular não é necessário fixar o preço mínimo, porque as regras da venda em hasta pública não lhe são aplicáveis de forma literal ou analógica.
III - Caso não exista oposição entre todos os interessados podem estes acordar em fixar esse valor, num montante inferior ao que resultaria do preço mínimo.
IV - Por acordo das partes, pode determinar-se agora a publicitação da venda particular no sistema E... se o regime desta só entrou em vigor em 2016, e a fase da venda se iniciou em 2012 (hasta pública) e 2013 (venda particular), tendo sido obtido até à data apenas duas propostas no valor de 41% e 63% do valor patrimonial do bem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 10076/05.9YYPRT-B.P1

Sumário:
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1. Relatório
B…, S.A., interpôs a presente execução para pagamento de quantia certa contra C… e OUTROS, com o valor processual de 16.619,16 euros.
No decurso dessa execução frustrou-se a venda por hasta pública e a proposta apresentada no decurso da venda por negociação particular foi recusada, numa primeira vez por um credor reclamante, na segunda pelos executados.
Foi depois, requerida a redução do valor mínimo de venda do imóvel penhorado nos autos, em 25% e, não se conformando com o mesmo, veio a exequente interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.

2. Foram formuladas as seguintes conclusões
1. Face à necessidade de se ajustar o preço do imóvel penhorado nos autos ao seu efetivo valor comercial, ainda que abaixo dos 85% do valor base inicial, o Banco Recorrente veio requerer nos autos a redução do valor mínimo de venda para €70.200,00, correspondente ao valor da melhor proposta obtida até ao momento e o prosseguimento da mesma com publicitação na plataforma www.e-leiloes.pt.
2. Sucede que, o tribunal “a quo” indeferiu a pretensão do ora Recorrente por entender que não foram apresentados motivos bastantes que justifiquem tal redução.
3. Posição que, salvo o devido respeito, o recorrente não aceita e que apenas contribuirá para que a instância fique eternamente à espera de uma proposta que, invariavelmente, não surgirá, como os presentes autos bem demonstram.
4. Acresce que, não se pode sequer aceitar que tal prerrogativa – a redução do valor mínimo da venda abaixo dos 85% previamente fixados – não seja de admitir por lei.
5. Em boa verdade, a Jurisprudência mais recente, quer da Relação do Porto (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/03/2019, Proc.1399/15.0T8AGD-B.P1), quer da Relação de Coimbra (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/02/2019, Proc.1594/09.0TBFIG-D.C1), tem vindo a entender que a venda de imóvel na modalidade de negociação particular não está, por via de regra e salvo casos de patente e intolerável exiguidade, sujeita à fixação de um preço mínimo, designadamente o fixado para a venda por propostas em carta fechada.
6. Em qualquer caso, existe sempre a possibilidade de, na falta de acordo das partes, o tribunal decidir, sempre que necessário, pela redução do valor mínimo para a venda do bem penhorado, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da cobrança da dívida exequenda – arts. 6º e 7º, aqui aplicáveis por força do art. 551º, nº1, desde que salvaguardado o respeito pelo princípio da proporcionalidade consagrado no art. 735º, todos do CPC.
7. Foi neste entendimento que o Recorrente requereu em 19.12.2019 que fosse publicitada a venda por negociação particular na plataforma www.e-leiloes.pt, anunciando-se como valor mínimo de venda o De €70.200,00, correspondente à melhor proposta obtida até ao momento.
8. Sendo certo que os presentes autos demonstram que esse será o valor realista, justo e sensato, para que a venda do bem penhorado se possa efetivar, sob pena de se poder estar a adiar ad eternum, a realização de um ato que há muito poderia e deveria estar concretizado.
9. O que se torna ainda mais evidente se tivermos em conta que o legislador pretende que as diligências para pagamento – entre as quais a venda – se concluam no prazo máximo de 3 meses, conforme dispõe o artigo 796º, nº1, CPC.
10. Assim, e com o devido respeito, a decisão recorrida viola o artigo 796º, nº1 do CPC e interpreta erradamente o art. 816º, nº2, do CPC ao estender o ali disposto à venda por negociação particular, o que na prática a esvazia de conteúdo, na medida em que nenhuma autonomia em termos de negociação é permitida ao encarregado da venda.
11. Abstendo-se ainda de aplicar os arts. 6º e 7º, aqui aplicáveis por força do art. 551º, nº1, desde que salvaguardado o respeito pelo princípio da proporcionalidade consagrado no art. 735º, todos do CPC,
12. Constando do processo que o imóvel aguarda venda por negociação particular desde… 09.04.2013.
13. Razão pela qual, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita o prosseguimento da venda por negociação particular pelo valor mínimo de €70.200,00, com publicitação na plataforma www.e-leiloes.pt, atendendo a que a venda por negociação particular decorre sem resultado desde 09.04.2013.

Não foram apresentadas contra-alegações.

3. Questões a decidir
Saber se, no caso concreto, o preço mínimo da venda deve ser fixado no valor peticionado pelo exequente.

4. Motivação da decisão de facto
1. em 19.12.2012 foi penhorado o imóvel designado pelas letras AE descrito na conservatória sob o nº 2663 AE, conforme auto cujo teor se dá por reproduzido.
2. Foi determinada e realizada a venda desse bem na modalidade de proposta em carta fechada com o valor base de 110.000,00 euros conforme despacho de 14.1.2013.
3.O Sr. encarregado da venda informou que não foi apresentada qualquer proposta.
4. A exequente apresentou o seu requerimento no qual pediu a redução do preço da venda em 25% para 70.250,00 euros.
5. Em 2013 iniciou-se a venda particular o imóvel, sendo que em 12.12.2017 o Sr. agente de execução informou que a única proposta apresentada foi de 41.500,00 euros.
6. Essa proposta foi rejeitada pela D… credor reclamante.
7. Em 1.4.2019 foi determinado, por despacho, que se proceda a diligências de venda para obter melhor preço por 3 meses.
8. Foi apresentada, em 3.4.2019, proposta de compra do imóvel pelo valor de 70.200,00 euros.
9. Os executados vieram rejeitar essa proposta por alegadamente ser inferior ao valor de mercado.
10. A exequente veio requerer que a venda por negociação particular fosse publicitada no site E…, pelo valor mínimo correspondente à melhor proposta apresentada.
11. Esse requerimento foi indeferido pelo seguinte despacho “indefere-se a redução do preço mínimo por não terem sido apresentados motivos bastantes que justifiquem essa redução”.
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5. Motivação juridica
Nos presentes autos estamos na fase da venda há nove (9) longos anos.
As modalidades da venda estão previstas no art. 811, do CPC que dispõe “1 - A venda pode revestir as seguintes modalidades: a) Venda mediante propostas em carta fechada; b) Venda em mercados regulamentados; c) Venda direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens; d) Venda por negociação particular; e) Venda em estabelecimento de leilões; f) Venda em depósito público ou equiparado; g) Venda em leilão eletrónico”.
Por seu turno, o art. 818, nº 3, do CPC dispõe que “ O valor de base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores: a) Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos; b) Valor de mercado”.
Ora, no presente caso o valor patrimonial tributário nunca foi alcançado e o valor de mercado, apurado através da venda por negociação patrimonial, foi no máximo 70.200, euros.
Logo, a própria tramitação dos autos demonstra que é esse, de acordo com a verdade processual adquirida o valor de mercado do imóvel.
Por isso, com base nessa norma deveria ser esse o valor fixado.
Acresce que, se dúvidas houvesse, a reforma do processo civil de 2013 acentuou a intenção legislativa de dar primazia às questões substanciais sobre as formais, colocando os meios processuais, na medida do possível, no seu papel instriumental ao serviço das reais necessidades dos utentes. Basicamente procura-se uma maior eficácia, entendida como a tentativa de atingir o fim último da acção, com o cumprimento das regras processuais, através da menor actividade possível e em tempo útil.
Podemos, por isso dizer que “Na actual situação de uma justiça cronicamente doente (...), existe uma ideologia que se preocupa fundamentalmente com as exigências práticas, (...) que procura um processo efectivo e rápido que assegure os direitos fundamentais e possibilite ao cidadão que procura a tutela jurisdicional a declaração do direito no tempo mais breve possível”[1].
Ora, a finalidade da acção nesta fase da venda é apenas obter o maior preço possível, de forma a assim satisfazer os interesses da exequente e credores reclamantes e proteger o interesse patrimonial dos executados.
Nessa medida, toda e qualquer fixação de preço, que possa facilitar a obtenção desse objectivo deve ser promovida e não rejeitada.
Logo, mesmo que, tal não fosse a tramitação regra do processo, por mero apelo aos principios gerais, nomeadamente o da gestão processual e adequação (art. 6º, CPC), o rito processual deveria ser adaptado permitindo a requerida publicitação de um preço mínimo inferior.
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Em segundo lugar, as regras relativas à negociação particular não exigem a fixação de preço mínimo.
Desde logo, do ponto de vista literal, essa exigência consta apenas na venda em hasta pública (art.816, do CPC), e entre as regras da venda por hasta pública aplicáveis às outras modalidades da venda não consta a do preço mínimo (art. 811º, nº2, do CPC).
Depois, a aplicação por analogia das regras da venda em hasta pública não é apropriada. Pois, conforme salienta a doutrina clássica[2] “a venda por negociação particular deve ser feita de acordo com as regras que regem a venda particular (e, portanto, fora dos casos expressamente regulamentados na lei em termos imperativos, de acordo com o regime que for convencionado entre o comprador e o vendedor ao abrigo da liberdade contratual conferida pelo art. 405º do CC”.
Ou seja, nesta modalidade não se aplicam por analogia as regras da venda por hasta pública e o essencial será sempre ajustar o valor do bem à condição do mercado por forma a potenciar a maior receita possível[3].
Porque “A negociação particular é uma forma específica de venda, que não está sujeita aos mesmos requisitos e condicionalismos da venda através de propostas em carta fechada e pressupõe a consulta directa do mercado, mediante a procura de propostas, que possam corresponder a uma correcta intercepção do binómio económico da lei da oferta e da procura, sem a necessária aquiescência do executado”.[4]
E, por fim, porque o artº 833º, nº1 do CPC preceitua, apenas que: «ao determinar-se a venda por negociação particular, designa-se a pessoa que fica incumbida, como mandatário, de a efetuar, não exigindo qualquer preço mínimo.
Logo, também por aqui a pretensão da exequente deve ser deferida.
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Por fim, e em terceiro lugar, se existir acordo de todos os interessados é possível realizar a venda por preço inferior ao valor base sem intervenção do juiz, se esse acordo não for obtido então a venda por negociação particular só pode ser concretizada mediante autorização judicial[5].
Ora, in casu esse requerimento foi notificado a todos os intervenientes não tendo ninguém posto em causa, pelo que essa pretensão está aceite por acordo e, sendo sendo a mesma a simples publicitaçao do preço mínimo, que é um menos face à venda, deve ser deferida.
Ou seja se, por acordo das partes, o bem pode ser vendido a um preço inferior então, pelo mesmo acordo o preço mínimo anunciado pode também ser inferior ao limite de 85% da avaliação fiscal do bem.

Conforme salienta, por exemplo, o Ac da RC de 16/12/2015 nº (2650/08.8TBCLD-B.C1): “A venda de um bem, na modalidade de negociação particular, pode ser autorizada por valor inferior ao indicado no artigo 816.º, n.º 2, do NCPC, desde que garantidos os interesses das pessoas/entidades indicadas no artigo 821.º, n.º 3 (…) a defesa dos interesses de todos os intervenientes e interessados acima referidos, mormente dos executados e demais credores, ao autorizar a venda por um preço inferior ao anunciado para a venda, terá de resultar, casuisticamente, da ponderação de diversos factores “tendo conta, designadamente, o período de tempo já decorrido com a realização da venda”.
Porque, e terminando como começamos, a função do processo executivo é que os bens possam ser vendidos em condições objectivas de concorrência e contraditório, pelo maior valor possível.
Teremos, por isso de deferir o requerido que incluirá, também face ao acordo de todas as partes, e decurso de nove anos na fase da venda, a utilização pela primeira vez nestes autos da publicitação da venda eletrónica (art. 6º, do CPC), por ser provável que através da mesma o preço final seja superior ao da venda particular.
Isto porque, a exequente nem sequer pretende a utilização da venda em leilão eletrónico, mas apenas a publicitação da venda particular nessa plataforma que, recorde-se não existia sequer quando a venda por negociação particular se iniciou (2013)[6].
Logo, só agora, podem as partes deste processo utilizar a mesma, sendo de notar que, se essa forma de venda foi adoptada pelo legislador, é porque a mesma é aptar a obter melhores resultados e por isso deve ser aplicada mesmo aos processos anteriores, em que a fase de venda já se tinha iniciado mas em que não obteve resutados práticos.

6. Decisão
Pelo exposto, este tribunal concede provimento ao recurso e, por via disso, determina que o bem imóvel seja vendida na modalidade e pelo preço mínimo requeridos pelo apelante.

Sem custas porque o apelante obteve ganho de causa.

Porto em 15.4.2021
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
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[1] Gian Ricci, Il Processo Civile Fra Ideologia e Quotidianità, RTDPC, 2005, 101.
[2] Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. II, p. 328/329, e Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pp. 546/547).
[3] Teremos ainda de salientar que, mesmo quando se entenda que existe um limite mínimo fixado (85%) tem sido entendido, que em determinadas circunstâncias este pode ser fixado de forma diferente: Ac da RE de 26/02/2015, RL de 25/09/2014 e da RP de 29/04/2008, todos in www.dgsi.pt. No sentido de que pode ser autorizada a venda por valor inferior a 85% sujeita a condições Ac TRE de 15/01/2015.
[4] RE de 9/3/2017, nº 32/14.1TBAVS.E1
[5] Cfr. Lebre de Freitas, et all, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 2003, pág. 601, Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, pág. 270, mais recentemente Marco Gonçalves Carvalho, Lições de Processo Executivo, Almedina, Coimbra 2016, pág. 380, e Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, 2ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 509.
[6] Foi regulamentada pelo Despacho nº 12624/2015 da Ministra da Justiça (publicado no D. R. n 219/2015, Série II, de 9.11.2015).