Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2076/08.3TBOAZ-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: EXECUÇÃO COMUM
PENHORA
CRÉDITO NA INSOLVÊNCIA
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
Nº do Documento: RP201909232076/08.3TBOAZ-E.P1
Data do Acordão: 09/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 702, FLS.48-52)
Área Temática: .
Sumário: I - Considerar que não cabem na previsão do segmento final do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil («prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado») as prestações indemnizatórias e compensatórias devidas pela cessação, não imputável ao trabalhador, do contrato de trabalho por não se tratar de prestações periódicas, configura interpretação restritiva da norma, que nada justifica.
II - Reconhecendo-se-lhes, como é de reconhecer, uma função de garantia de subsistência condigna do trabalhador no período imediatamente subsequente à quebra de rendimentos provocada pela situação de desemprego involuntário, essas prestações enquadram-se na previsão normativa do artigo 738.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pelo que são parcialmente impenhoráveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2076/08.3 TBOAZ-E.P1
(Incidente de Oposição à Penhora)
Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis
Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
IRelatório
Nos autos de execução comum para pagamento de quantia certa que, sob o n.º 2076/08.3 TBOAZ-E, correm termos pelo Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, B…, que aí figura como co - executado, notificado da penhora de um crédito que lhe foi reconhecido no âmbito do processo de insolvência n.º 3147/07.9 TBOAZ, pendente no Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis, veio opor-se-lhe, aduzindo os seguintes fundamentos:
Em 07.11.2017, tomou conhecimento de que lhe foi penhorado um crédito que, no âmbito do processo de insolvência de “C…, S.A.”, que corre termos sob o n.º 3147/07.9TBOAZ, lhe foi reconhecido e que, após rateio, foi fixado no montante de €31.521,54.
O opoente trabalhava por conta da insolvente e o crédito que lhe foi reconhecido é a compensação devida pela cessação do contrato de trabalho.
Sempre viveu do seu trabalho por conta de outrem e por isso o seu salário era o único rendimento de que dispunha.
Na sequência da cessação do seu contrato de trabalho com a insolvente, ficou desempregado e o subsídio de desemprego que passou a receber era de montante consideravelmente inferior ao do salário que auferia, com reflexos no valor da pensão que, entretanto, vem recebendo por ter passado à pré-reforma devido às dificuldades em obter novo emprego.
Contava com a compensação pela cessação do contrato de trabalho para complementar o valor daquelas prestações sociais, insuficiente para fazer face aos encargos familiares, tanto mais que a sua esposa tem um problema oncológico, sendo vários e pesados os encargos que suporta com médicos e medicamentos.
Entende por isso que a situação descrita se enquadra na previsão do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, pelo que, apenas, lhe poderia ser penhorado 1/3 (uma terça parte) do montante daquele crédito, citando jurisprudência em abono da sua posição.
Termos em que, na procedência da oposição deduzida, pretende a restituição do montante de €21.014,36, correspondente a 2/3 do seu crédito, por, nessa parte, ser impenhorável.
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Liminarmente admitida a oposição e notificada a exequente “D…, S.A.”, veio esta contestar, alegando que o crédito penhorado não pode considerar-se uma prestação que assegure a subsistência do executado que, como o próprio admite, recebe uma pensão de reforma que lhe permite acudir às despesas com a satisfação das suas necessidades primárias, bem como do seu agregado familiar.
Também indica jurisprudência no sentido de que não existe qualquer limite à penhorabilidade do crédito reconhecido ao opoente como indemnização pela cessação do contrato de trabalho.
Concluiu, naturalmente, pela improcedência da oposição.
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Considerando que o processo já fornecia os elementos necessários e suficientes, o Sr. Juiz do tribunal a quo declarou-se habilitado a conhecer do mérito da oposição, decidindo:
«Em face de tudo o exposto, decide-se julgar totalmente procedente a presente oposição à penhora e, em consequência, determina-se a redução da penhora do crédito respeitante à indemnização pela cessação do contrato de trabalho ao montante correspondente a 1/3 (um terço) e a devolução do remanescente ao oponente. Custas a cargo da exequente. Registe e notifique. Dê conhecimento ao Sr.(ª) Agente de Execução».
Inconformada, a “E…”[1] (…) interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, rematada com as seguintes “conclusões”:
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Admitido o recurso (com subida imediata, nos próprios autos do incidente e com efeito devolutivo) e notificado o recorrido, veio este apresentar contra-alegações em que reafirma o seu ponto de vista expresso no requerimento de oposição e por isso pugna pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre, com meridiana clareza, das posições assumidas por recorrente e recorrido, a única questão submetida à apreciação deste tribunal de recurso é uma questão de direito e traduz-se em saber se é penhorável, sem qualquer limite, o valor da indemnização atribuída a um trabalhador por cessação do contrato de trabalho (como defende a recorrente) ou se a penhorabilidade está limitada a 1/3 (um terço) por o direito com tal origem caber na previsão do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil.
IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos seleccionados como relevantes para a decisão estão transcritos na conclusão D) da motivação do recurso e por isso damo-los aqui por reproduzidos.
2. Fundamentos de direito
Em regra, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens que integram o património do devedor (art.º 601.º do Código Civil).
Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida - dispõe o art.º 817.º do mesmo Compêndio normativo - tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo.
Em sintonia com estas normas substantivas, determina o artigo 735.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil (correspondente ao anterior artigo 821.º, n.º 1) que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”.
Estas são concretizações do princípio da responsabilidade patrimonial que informa o direito das obrigações, nos termos do qual pelos débitos respondem, em regra, todos os bens do devedor, sejam os já existentes no seu património à data da constituição da dívida, sejam os que, de futuro, lhe venham a pertencer.
A regra é, pois, a de que todos os bens do devedor, mas só eles[2], respondem pelas suas dívidas.
A função de garantia geral das obrigações que o património do devedor desempenha concretiza-se com a penhora, principal meio de agressão do património do devedor.
Pode dizer-se que a regra é a penhorabilidade dos bens do devedor que respondem pelo cumprimento da obrigação. Mas também é sabido que há bens absoluta e relativamente impenhoráveis (os enumerados nos artigos 736.º e 737.º do Cód. Proc. Civil) e bens só parcialmente penhoráveis.
In casu, interessa-nos estes últimos, que o n.º 1 do artigo 738.º enuncia assim:
«1 - São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado».
Como é assinalado na decisão recorrida (e já as partes o haviam evidenciado nas peças processuais que apresentaram), sobre a questão que nos ocupa, confrontam-se duas teses:
- a que propugna a penhorabilidade total do montante da indemnização devida ao trabalhador em consequência da cessação do seu contrato de trabalho por causa que não lhe é imputável;
- outra que defende a impenhorabilidade parcial (dois terços) do direito à indemnização com essa origem por se enquadrar na previsão normativa do citado n.º 1 do artigo 738.º.
A tese da penhorabilidade sem qualquer limite tem arrimo no acórdão do STJ de 20.03.2018, proferido no Proc. n.º 1034/10.2 TBLSB-E.P1.S2 (disponível em www.dgsi.pt); na sua esteira, também os acórdãos da Relação de Coimbra de 12.04.2018 (Proc. n.º 3234/13.4 TBLRA-A.C1) e de 11.12.2018 (Proc. n.º 500/09.7 TBSRT-B.C1), ambos com voto de vencida da Sra. Desembargadora Maria João Areias.
A tese da impenhorabilidade parcial nos termos prevenidos no citado artigo 738.º, n.º 1, foi acolhida nos acórdãos da Relação do Porto de 20.02.2017[3] (Des. Miguel Baldaia de Morais) e da Relação de Évora de 28.04.2016 (Proc. n.º 101/14.8 TTEVR.E1)[4].
Também a doutrina se mostra dividida nesta questão: se José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (in Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, pág. 357) propendem para a penhorabilidade, sem limites, das prestações de indemnização por não serem prestações periódicas, pois são pagas de uma só vez ou de forma fraccionada[5], já o Professor Miguel Teixeira de Sousa (“Acção Executiva Singular”, LEX, 1998, pág. 220) e Rui Pinto (“A Acção Executiva”, AAFDL Editora, 2019, pág. 491) defendem a penhorabilidade parcial de rendimentos não periódicos, como a indemnização por cessação do contrato de trabalho, por caberem na previsão do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil.
A primeira corrente doutrinal e jurisprudencial escora-se, essencialmente, em dois argumentos, que podemos sintetizar assim:
- as situações de impenhorabilidade, absoluta ou relativa, de bens do devedor são excepcionais, pelo que excepcionais - logo, insusceptíveis de aplicação analógica - são as normas que as estabelecem (como é o caso da norma do n.º 1 do artigo 738.º);
- ao referir a impenhorabilidade parcial de prestações periódicas provenientes, além do mais, do exercício da actividade laboral, a lei não quis incluir as indemnizações e/ou compensações devidas pela cessação do contrato de trabalho, que não são prestações periódicas; são os rendimentos do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência do indivíduo, é com esses rendimentos que cada um suporta as despesas do dia-a-dia e, portanto, é o seu montante líquido mensal que baliza a impenhorabilidade parcial estabelecida no artigo 738.º, n.º 1, do CPC; a indemnização por cessação do contrato de trabalho, não só não corresponde a qualquer prestação periódica ou equiparável como não pode subsumir-se àquela parcela de rendimentos considerada necessária para assegurar a dignidade do trem de vida do trabalhador.
É certo que a já aludida regra de que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens que integram o património do devedor faz com que devam ser consideradas excepcionais as normas que prevêem situações de impenhorabilidade, normas estas que não comportam a sua aplicação por analogia (artigo 11.º do Código Civil).
No entanto, não constitui aplicação analógica de norma excepcional considerar que as compensações ou indemnizações devidas ao trabalhador pela cessação unilateral e sem justa causa do contrato de trabalho só parcialmente são penhoráveis nos termos previstos no artigo 738.º, n.º 1, do CPC por caberem na previsão do seu segmento final: «prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado».
Quem defende a penhorabilidade total das prestações indemnizatórias por não se tratar de prestações periódicas recorre a uma interpretação restritiva, que nada justifica, da norma em causa.
Importa lembrar que o actual n.º 1 do artigo 738.º condensa as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 824.º do anterior Código de Processo Civil, mas com uma diferença que não é de somenos importância: enquanto ali se falava em «quaisquer outras pensões de natureza semelhante»[6], agora, as palavras da lei «prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado» apontam, inequivocamente, para um conteúdo bem mais amplo, não se cingindo às prestações periódicas.
Pode mesmo afirmar-se, como se diz na decisão recorrida, que aquele segmento normativo configura uma “cláusula aberta” que ao intérprete e aplicador da lei competirá densificar.
Mas, do que não pode, agora, haver dúvidas é que decisivo mesmo (para a impenhorabilidade parcial) é a função da prestação e não a sua periodicidade (assim, Rui Pinto, ob. cit., 491) ou, como se discorreu no referido acórdão desta Relação de 22.02.2017, «a impenhorabilidade relativa (ou parcial) não está tanto na periodicidade do pagamento das atribuições patrimoniais nela mencionadas, mas fundamentalmente no seu destino, ou seja, estarem essencialmente vocacionadas a garantir a satisfação das necessidades do executado (e do seu agregado familiar), interpretação esta que se mostra perfeitamente consonante com o texto legal já que nele se alude a “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”» (cfr., no mesmo sentido, o voto de vencido no citado acórdão da Relação de Coimbra de 12.04.2018).
A questão axial está, então, em saber se a indemnização devida pela cessação do contrato de trabalho por causa não imputável ao trabalhador comunga (pelo menos, no que é essencial) das características que levaram o legislador a consagrar aquela impenhorabilidade relativa, concretamente se pode ser considerada uma prestação destinada a assegurar a subsistência do trabalhador/executado.
O jurista que interpreta uma disposição normativa há-de ter sempre em vista o escopo da lei, ou seja, o resultado prático que com ela se almeja.
É a isso que se chama a “teleologia da norma” ou “ratio legis”, o fundamento racional objectivo da norma, factor hermenêutico geralmente considerado decisivo na determinação do sentido da norma.
Se a lei é um ordenamento de relações que visa satisfazer certas necessidades, deve interpretar-se no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer e, portanto, em toda a plenitude que assegure tal tutela.
Para se determinar essa finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida (às exigências económico-sociais que delas brotam), para cuja regulamentação a norma foi criada.
Ora, tem geral aceitação a ideia de que a impenhorabilidade parcial de determinados bens tem estreita ligação com o direito à sobrevivência e à garantia de condições materiais para uma existência compatível com a dignidade da pessoa humana.
O direito do credor à realização coactiva do seu crédito pode conflituar com interesses vitais do executado, pode fazer perigar esse direito a uma existência condigna e o legislador ordinário resolve o conflito sacrificando o direito daquele na medida do necessário a evitar que o executado se transforme num indigente social, garantindo a intangibilidade de uma parte das prestações a que alude o n.º 1 do artigo 738.º do CPC.
A indemnização devida ao trabalhador pela cessação do contrato de trabalho por motivo que não lhe é imputável enquadra-se nessas prestações?
Uma das incumbências do Estado é, como anotam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, pág. 777), dar concretização à imposição constitucional de uma discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores: a «instituição de garantias de pagamento dos créditos e indemnizações complementares resultante do não pagamento de salários é, hoje, uma imposição do direito da União Europeia (cfr. Directivas 80/97 e 2002/74)».
Garantias que hão-de incluir, nomeadamente, «privilégios creditórios, responsabilidade solidária das sociedades em relação de domínio ou de grupo, responsabilidade dos sócios, Fundo de Garantia Salarial (…), limites à penhora e à cessão de crédito salarial (…), proibição de compensações e descontos, regime peculiar da prescrição».
Na actualidade, a legislação laboral equipara os créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho (aqui se incluindo os créditos compensatórios e indemnizatórios) aos créditos que emergem da própria relação jurídico-laboral, quer para efeitos de concessão de garantias, quer para efeitos de cobertura pelo Fundo de Garantia Salarial, quer ainda pela concessão de privilégios mobiliários e privilégio imobiliário especial, conferindo-lhes igual tutela (artigos 333.º e 336.º do Código do Trabalho)[7].
A lei tem de ser interpretada de molde a «assegurar a unidade do sistema jurídico, quer dizer, de molde a garantir uma harmonização contextual da lei interpretada com todas as demais leis do mesmo sistema, pois que as “várias leis de um sistema jurídico desenvolvido devem fazer sentido quando consideradas em conjunto”[8] ».
Ora, não respeita o postulado da coerência intrínseca do ordenamento jurídico uma interpretação cujo resultado seja o denunciado no voto de vencido do citado acórdão da Relação de Coimbra de 11.12.2018:«…em caso de insolvência e por força da atribuição de tais privilégios legais, os créditos resultantes da violação ou da cessação do contrato de trabalho viessem a ser pagos com a preferência que lhes é atribuída pelo n.º 2 do art. 333.º do CT – preferindo inclusivamente sobre a hipoteca e o direito de retenção – ou viessem a ser adiantados pelo Fundo de Garantia Salarial para, num momento seguinte, os valores pagos, a esse título, ao trabalhador poderem a vir a ser utilizados na íntegra para satisfação de credores comuns desse mesmo trabalhador”.
Tanto mais que, como se assinala no, também, já citado acórdão da Relação do Porto de 22.02.2017, uma tal compensação paga a um trabalhador em virtude da cessação do respectivo contrato de trabalho está isenta de IRS até um determinado valor, pagando esse imposto “na parte que exceda o valor correspondente ao valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fração de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora” (artigo 2.º, n.º 4, do Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares).
Mas o que se nos afigura fundamental para a resposta à questão equacionada é a natureza dessa compensação.
Parece não merecer reservas o entendimento de que não tem natureza retributiva (apesar de ter como base de cálculo a retribuição do trabalhador).
Uma tal compensação tem natureza, essencialmente, ressarcitória, pois traduz-se na atribuição de um montante pecuniário que visa reparar os danos (presentes e futuros) decorrentes da perda involuntária do emprego que era a principal (senão única) fonte de rendimento do trabalhador.
Mas não pode deixar de se reconhecer, também, uma componente “social-previdencial” nessa compensação.
Com a cessação do contrato de trabalho, o trabalhador fica, bruscamente, privado da fonte do rendimento com que garante o seu sustento (na linguagem comum, fica sem o seu “ganha-pão”) e, na generalidade dos casos, da sua família.
A obtenção de novo emprego pode ser mais ou menos demorada, sendo cada vez mais frequente o desemprego de longa duração.
As prestações da segurança social a que terá direito (normalmente, o subsídio de desemprego) não lhe são imediatamente disponibilizadas e os montantes pagos ficam bastante aquém das suas necessidades e da respectiva família.
Por isso, é querer ignorar a realidade negar que a indemnização devida pela cessação do contrato de trabalho tem, também, essa função de ajudar a garantir condições materiais mínimas para uma existência compatível com a dignidade da pessoa humana, o mesmo é dizer, a função de assegurar a subsistência do trabalhador.
Voltando ao acórdão desta Relação de 20.02.2017, que vimos seguindo de perto porque merece a nossa total concordância, «essa compensação visa disponibilizar ao trabalhador determinada importância pecuniária que lhe permitirá como que “amortecer” a quebra brusca que sofreu em resultado da perda da fonte dos seus rendimentos, constituindo, assim, como que um fundo de maneio que lhe possibilita satisfazer as suas necessidades até que consiga encontrar um novo emprego. Daí que, a preconizar-se a penhorabilidade integral dessa atribuição patrimonial (como pretende a apelante) poderia ser posta em causa a subsistência económica do executado durante o lapso temporal que mediasse até conseguir trabalho remunerado, fazendo, por conseguinte, perigar a satisfação das suas necessidades (e, eventualmente, do seu agregado familiar)».
Em conclusão, enquadra-se na previsão normativa do artigo 738.º, n.º 1, segmento final, do Código de Processo Civil a indemnização devida ao trabalhador pela cessação, por causa que não lhe é imputável, do contrato de trabalho, dada a sua função de assegurar a subsistência do trabalhador no período imediatamente subsequente à quebra de rendimentos provocada pela situação de desemprego, pelo que é de manter a decisão recorrida.
III - Dispositivo
Pelas razões vindas de expor, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por “E…” e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 23.09.2019
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Aparentemente, não sendo parte no processo (a exequente, que contestou a oposição à penhora, é, repete-se, “D…, S.A.”), a E… não teria legitimidade para recorrer (cfr. artigo 631.º, n.º 1, do CPC). No entanto, apesar de nada nestes autos do incidente de oposição à penhora o revelar, é sabido que o “D…” foi adquirido pela E… e nela incorporado. Por isso, vamos admitir que tem legitimidade para lhe suceder na posição de exequente (logo, também na posição de requerida neste incidente).
[2] O artigo 818.º do Código Civil prevê desvios a esta regra ao permitir que, em certas situações, o direito de execução incida sobre bens de terceiro.
[3] Que veio a ser revogado, precisamente, pelo citado acórdão do STJ de 20.03.2018.
[4] Todos os acórdãos citados estão disponíveis in www.dgsi.pt. Sobre a mesma questão, existe outra jurisprudência das Relações, também em sentidos opostos, mas ficamo-nos pelos acórdãos publicados já na vigência do novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
[5] Se bem que refiram expressamente, apenas, as “prestações de indemnização por acidentes de trabalho”.
[6] Ou seja, pensões semelhantes às prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de utra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia.
[7] No acórdão da Relação de Coimbra de 11.12.2018, essa equiparação é mencionada, mas desvalorizada.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, “Introdução do Direito”, Almedina, 2017, pág. 365.