Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
219/18.8T9AND.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
RESPONSABILIDADE DE ADVOGADO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
RENÚNCIA AO DIREITO DE ACUSAÇÃO PARTICULAR
INDIVISIBILIDADE DO DIREITO DE QUEIXA
Nº do Documento: RP20210414219/18.8T9AND.P1
Data do Acordão: 04/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NÃO PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos casos em que eventuais afirmações difamatórias se mostram vertidas em peças processuais, podemos estar perante três hipóteses distintas: uma em que o advogado transferiu para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, após tê-lo advertido expressamente das consequências que daí podem advir, designadamente em termos penais (caso em que estaremos perante uma situação de comparticipação criminosa; outra em que o autor do escrito na peça processual é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente (caso em que estaremos perante uma responsabilidade penal exclusiva do advogado); e outra em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros com o objetivo de que o advogado os verta na peça processual convencido de que correspondem à verdade (caso em que a responsabilidade penal será apenas do cliente).
II – No caso vertente, na queixa apresentada pelo assistente não consta nenhuma circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva do arguido na apresentação em Juízo de contestação assinada pelo seu advogado de onde constam afirmações alegadamente difamatórias.
III – Assim sendo, não tendo o assistente deduzido acusação contra todos os comparticipantes, faltando o advogado subscritor da peça processual em causa, e nada tendo alegado quanto a ele, atento o princípio da indivisibilidade da queixa, consagrado nos artigos 114.° a 116.° do Código Penal, deve considerar-se que o assistente renunciou ao direito de acusação particular quanto a esse advogado, pelo que falta um pressuposto positivo da punição, ou uma condição legal de procedibilidade: a prevista no art.° 115°, n.° 3 desse Código, aplicável à acusação particular por força do art.° 117.° do mesmo diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 219/18.8T9AND.P1
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I - RELATÓRIO:
Por sentença de 5.11.2020, proferida nos autos, foi julgado extinto, por renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes (o advogado do arguido, subscritor da contestação), o procedimento criminal no que respeita ao arguido B….
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Inconformado com tal decisão, o assistente interpôs recurso.
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):
I - Entende o recorrente que o princípio da indivisibilidade da queixa invocado na douta sentença, não pode ser erigido de forma absoluta.
II - A este propósito, importa mencionar o ensinamento segundo o qual “suscetível de alguma dúvida é saber se devem considerar-se correspondentemente aplicáveis à acusação particular as normas e princípios que vimos aplicar-se à queixa em matéria do seu alcance ou da extensão dos seus efeitos (…). Parece, tudo ponderado, dever negar-se uma tal aplicabilidade e considerar-se que o titular do direito de acusação pode exercê-lo só contra algum ou alguns dos comparticipantes; até por aquele, mesmo discordando do Ministério Público, entender que só quanto a esse ou esses existem indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem é (são) o (s) seu (s) agente (s)”.- vide Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, págs. 681 e 682.
III - Como sucedeu nos presentes autos, que, findo o inquérito, o que poderia configurar comparticipação «ab initio» não tenha resultado suficientemente apurado ou não tenham resultado indícios suficientes para acusar.
IV - Ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, compete investigar a existência do crime, a identidade dos seus agentes, a respetiva responsabilidade, recolhendo provas, levando, para tanto, a cabo as diligências necessárias para apurar tais factos, o que não aconteceu.
V - Sucede que, no caso «sub judice», na condução do inquérito, o Ministério Público não levou a cabo quaisquer diligências tendentes a aferir a (eventual) comparticipação do ilustre mandatário do arguido no crime de difamação, previsto e punido no artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal.
VI - Nem tão pouco se pronunciou, ainda que de forma perfuntória, sobre a queixa apresentada contra o ilustre mandatário do arguido.
VII - Pelo que houve uma ausência cabal de inquérito no concernente à queixa apresentada contra o mesmo, não tendo sido realizadas quaisquer diligências de investigação tendentes à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa.
VIII - Se nos autos não se realizaram quaisquer diligências, nem se providenciaram por quaisquer atos investigatórios, facilmente se estatui que não houve inquérito.
IX - A “Falta de inquérito ou Inexistência” a que se refere a alínea d) do artigo 119.º do CPP ocorre quando se verifica ausência absoluta de inquérito ou de actos de inquérito.
X - Foi precisamente o que se verificou nos presentes autos.
XI - Uma vez que pelo ofendido (ora assistente) foi apresentada queixa contra o ilustre mandatário do arguido B…, e não foram realizadas quaisquer diligências tendentes a apurar a (eventual) existência de comparticipação no crime de difamação.
XII - Face ao supra referido, arguiu-se a nulidade insanável de falta de inquérito, preceituada no artigo 119.º, alínea d) do CPP, com as devidas cominações legais daí emergentes.
XIII - Entendeu erroneamente o tribunal a quo que se trata de uma nulidade sanável, prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal.
XIV - Resulta que o tribunal a quo desconsiderou a falta e/ou inexistência de investigação relativamente ao denunciado (não arguido) mandatário do outro denunciado/arguido na comparticipação do crime de difamação, nada tendo o Ministério Público apurado durante o inquérito, não se recolhendo quaisquer indícios ou a falta deles, sejam suficientes ou insuficientes da participação pelo ilustre mandatário do arguido na comparticipação do crime de difamação.
XV - Tendo sido essa a ratio da falta de dedução de acusação particular pelo ora recorrente contra o mandatário do arguido.
XVI - Não obstante, considerou o tribunal a quo que o princípio da indivisibilidade da queixa deveria ser erigido como critério absoluto.
XVII - Tendo, consequentemente, julgado extinto, por renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes, o procedimento criminal instaurado contra o arguido.
XVIII - A Constituição da República Portuguesa consagra, enquanto Princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático (art.ºs 1.º e 2.º), os plasmados no seu artigo 13.º e 20.º, este último com a epígrafe Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, cuja projecção sobre o caso sub judice reflecte a violação do acesso do recorrente ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, por intermédio de um processo equitativo, com todas as suas dimensões garantísticas, como sejam o direito de acção, o direito ao processo perante os tribunais, o direito à decisão da causa pelos tribunais, designadamente o que diz respeito ao plasmado nos artigos 32.º n.º 5 e n.º 7 e 219.º, n.º 1 da lei fundamental e ainda a violação do direito à tutela efectiva, com a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas e com a criação de situações de indefesa originadas por manobras, conflitos de competência, expedientes, ónus e actos puramente formais, que mais não pretendem do que denegar justiça ao recorrente, tendo por consequência, nos termos do normativo constante dos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 20.º da CRP, a invalidade de todos os actos e omissões que detalhadamente supra se enumeraram e cuja anulabilidade se invoca.
O recorrente conclui no sentido de que deverá ser dado provimento ao recurso, e, por via dele: ser revogada a sentença recorrida e em consequência, retornarem os autos à fase de investigação; ou caso assim não se entenda, que seja determinada a viabilidade do julgamento contra o arguido.
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O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta à motivação do recurso interposto, pugnando pelo não provimento do recurso, com a consequente manutenção integral da sentença recorrida que declarou extinto, por renúncia do direito de acusação particular, o procedimento criminal instaurado contra o arguido.
Termina com as seguintes conclusões (transcrição):
1) Face ao principio da indivisibilidade da queixa, aplicável à acusação particular por força do disposto no artigo 117º do Código Penal, o assistente não pode escolher os comparticipantes contra os quais deduz acusação particular;
2) A nulidade de “falta de inquérito” prevista no artigo 119º, alínea d) do Código de Processo Penal, diz respeito à situação de absoluta inexistência de inquérito ou de ausência de atos de inquérito.
3) Tendo sido ordenada e realizada, em sede de inquérito, a inquirição do assistente e a constituição e interrogatório como arguido de um dos comparticipantes, não se pode concluir pela verificação de tal nulidade.
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O Arguido também apresentou resposta à motivação do recurso interposto, pugnando pelo não provimento do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
Termina com as seguintes conclusões (transcrição):
1 - O recorrente, por não se conformar com o doutamente decidido pelo Tribunal A QUO, interpôs o presente recurso;
2 - As conclusões da motivação de recurso delimitam o objeto de recurso, determinam as questões a decidir pelo tribunal Ad Quem, exceto aquelas que são do conhecimento oficioso;
3 - O recorrente pretende ver apreciada a invocada nulidade do inquérito, por omissão de investigação nessa fase;
4 - A lei processual penal tipifica os atos que considera nulidades processuais, nos termos dos art.ºs 118, CPP.
5 - Dentro das nulidades processuais, divide-as em nulidades insanáveis e sanáveis, nos termos dos art.ºs 119 e 120 CPP.
6 - A lei processual penal tipifica a insuficiência do inquérito como nulidade sanável, nos termos do art.º 120, n.º 2 al. d) CPP.
7 - Aquela nulidade sanável teria de ser arguida até cinco dias depois da notificação do encerramento do inquérito, cf. citado instituto.
8 - O recorrente só invocou a eventual nulidade, em sede de julgamento, que a existir ela já há muito estava sanada, tudo se passando como se não tivesse existido nulidade.
9 - Na nossa modesta opinião, não existiu qualquer nulidade, mesmo que assim não se entenda, quando ela foi invocada, já há muito estava sanada.
10 - O recurso interposto carece em absoluto de fundamento, devendo manter-se a decisão do Tribunal A Quo.
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O Senhor Procurador Geral Adjunto junto desta Relação acompanhou a resposta apresentada pelo Ministério Público na Primeira Instância e emitiu parecer no sentido da declaração da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) Sentença recorrida (transcrição):
(…)
Relatório
C…, assistente constituído nestes autos, requereu o julgamento perante Tribunal Singular de B…, casado, desenhador industrial, morador na Rua…, n.º .., …, …,
A quem imputa a prática dos factos descritos na Acusação Particular, suscetíveis de integrar a prática de um crime de difamação e deduziu pedido de indemnização civil.
O arguido contestou e os autos seguiram para a realização da audiência de discussão e julgamento.
Após a produção das alegações finais, o tribunal propôs-se a conhecer a questão prévia, que obsta ao conhecimento do mérito desta causa, pois que a mesma poderia resultar numa decisão de extinção do procedimento criminal quanto ao arguido B….
Foi dado a possibilidade de os sujeitos processuais se pronunciarem acerca de tal questão, e veio o Assistente pugnar pela existência de uma nulidade insanável por falta absoluta de inquérito, pela extração de declarações do arguido porquanto se afiguram pertinentes para a boa decisão causa sendo que, no seu entendimento, os presentes autos deveriam prosseguir.
Cumpre decidir
O crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º, n.º 1 do Código Penal, reveste natureza particular, exigindo-se, por conseguinte, para assegurar a prossecução do procedimento, que o titular do direito de queixa a exerça, se constitua assistente e deduza acusação particular – cfr. o n.º 1, do artigo 50.º do Código de Processo Penal.
Importa ter presente que a situação dos presentes autos envolve a especificidade de os factos ou juízos ofensivos da honra e consideração do assistente C… terem sido vertidos para um articulado – uma contestação – apresentado no âmbito do Processo Comum Singular n.º 80/17.0T9AND, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Anadia, no exercício de mandato forense, pelo Mandatário do ora arguido, que naqueles autos assumia igual posição processual.
É pacifico que a responsabilidade do mandatário forense deve constituir exceção, pois, quando, intervém em representação do seu cliente não defende interesses próprios e atua no exercício forense que lhe foi conferido, podendo socorrer-se de meios “incómodos” na defesa da posição daquele – vide neste sentido o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.02.2007, proferido no âmbito do Processo n.º 1544/04.0TACBR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
Porém, tal exercício livre de defesa não é absoluto e tem como limite a colisão com outros direitos fundamentais, como seja o direito à honra e consideração.
Ora, tal relatividade, permite concluir que a responsabilidade exclusiva do mandante, ou seja, do cliente, não pode ser liminarmente aceite perante uma peça processual subscrita pelo mandatário, no exercício do mandato, que contenha afirmações suscetíveis de configurar o crime de difamação.
Analisados os autos e perante a circunstância de a contestação com o conteúdo eventualmente ofensivo da honra do assistente estar subscrita pelo mandatário do arguido e não pelo arguido, não consta do teor da acusação particular qualquer circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva do ora arguido. Efetivamente a acusação particular em causa é apenas dirigida ao arguido e nunca se faz referência que a peça processual haja sido subscrita pelo seu advogado nem tão pouco se faz referência que o arguido, ao relatar ao seu advogado os fastos/juízos ofensivos da honra do assistente, tenha agido com o propósito de que este os transpusesse para a contestação apresentada em juízo, no convencimento de que correspondiam à verdade – só neste caso é que haverá responsabilidade exclusiva do cliente, porque não existe por parte do advogado qualquer propósito de atentar contra a honra ou consideração do visado, ou seja, autua sem dolo. Já haverá responsabilidade exclusiva do advogado se apenas este é autor da peça, sem qualquer interferência do cliente.
A acusação particular é apenas dirigida ao arguido sem a alegação de que o arguido ao relatar ao seu advogado dos juízos/factos ofensivos da honra do aqui assistente tenha agido com o propósito de que este os transpusesse para a contestação que apresentou em juízo, no convencimento de que correspondiam à verdade.
Efetivamente, na acusação particular é alegado que o arguido fez constar tais factos e juízos na contestação, a qual escreveu ou mandou escrever, sem sequer se dignar a identificar quem foi o executante da ordem do arguido. Ora, alegar apenas isto é parco para a questão em apreço, tanto mais, que sabia o assistente que quem subscreveu tal peça processual havia sido o advogado do arguido, pelo que se impunha alegar factos acerca da responsabilidade deste na elaboração da peça.
Aliás, analisado o teor da participação criminal apresentada pelo assistente, este após manifestar pretender a investigação dos factos que vieram a integrar a acusação particular, solicita que o Ministério Público verifique “se foi o senhor B… que mandou escrever isto ao seu advogado e juntar cópias, ou se foi o seu advogado que decidiu escrever isto a meu respeito. Ou se foram ambos que assim decidiram”, quase intuído as três formas possíveis de responsabilização criminal no contexto em apreço. Sendo este contexto da participação afigura-se-nos de todo razoável interpretar as palavras do assistente no sentido de pretender a instauração de procedimento criminal, também, contra o advogado subscritor da contestação.
Assim, não se mostra indiciada a responsabilidade exclusiva do arguido, ou melhor, por se encontrar liminarmente afastada a responsabilidade exclusiva do arguido, perante o facto de peça processual estar subscrita pelo seu advogado, urge determinar as consequências de a acusação particular não ter sido deduzida também contra o advogado do arguido.
E esta questão importa porquanto nos termos do disposto no artigo 114º a 116º do Código de Processo Penal encontra-se consagrado na nossa lei a regra de que não se escolhe a pessoa que há de ser punida – Princípio da indivisibilidade da queixa.
De acordo com tal Princípio da indivisibilidade da queixa, o queixoso não pode escolher os comparticipantes contra os quais haverá lugar no processo penal, não poderá haver uma escolha de agentes do crime, pelo que o legislador não coloca, sem mais, na indisponibilidade do titular do direito à acusação, o exercício dele contra um ou todos os participantes, antes fá-lo depender da existência de razões justificativas, como por exemplo da falta de indícios – vide neste sentido o teor do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de março de 2003, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, o participante, que mais adiante foi admitido como assistente, declarou que pretendia apurar a autoria da prática dos factos que participou: ou seja, se foi o arguido exclusivamente, se foi em comparticipação com o seu advogado, ou se foi apenas este a verter para a peça processual o conteúdo denunciado.
E o Ministério Público, no âmbito da sua competência para praticar os atos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, o que não foi feito, uma vez que apenas se interrogou como arguido o ora arguido e o assistente foi ouvido em declarações - o que integra a nulidade sanável previsto no artigo 120º, n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, e não a nulidade insanável como pugna o Assistente, que não foi alegada a tempo, e até sanada com a posterior prática de apresentação da acusação particular apenas contra o arguido B…. É certo que no caso dos autos o advogado do arguido não foi interrogado como arguido, como impunha o artigo 58.º e ss. do Código de Processo Penal, mas não é menos certo que, de acordo com a jurisprudência fixada, a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP – [cf. AUJ n.º 1/2006, 02.01], nulidade, essa, nunca arguida.
Quando o procedimento depender de acusação particular, findo o inquérito, o Ministério Público notifica o assistente para, querendo, a deduzir, ocasião em que se pronuncia - indica, nos termos da lei - sobre se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes, podendo, após a apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles – cf. artigo 285.º do Código de Processo Penal.
Significa que, ao invés do que sucede com os crimes de natureza pública ou semi-pública, nos crimes particulares, o Ministério Público surge numa posição de subordinação à do assistente, na medida em que a prossecução do procedimento, a sua introdução em juízo, fica garantida pela mão deste, sendo, para tanto, irrelevante que o Ministério Público considere verificarem-se, ou não, suficientes indícios do crime em questão e/ou de quem foram os seus autores, juízos insuscetíveis de limitar a atuação do assistente, o qual pode acusar por outros crimes de natureza particular, como pode estender a acusação particular a outros agentes, que não os indicados pelo Ministério Público – posto que, por aqueles e contra estes, tenha (tempestivamente) exercido o correspondente direito de queixa.
E, retomando o caso dos autos, o assistente foi notificado para deduzir acusação particular contra o arguido constituído nos autos, nada se dizendo acerca do seu mandatário, apesar de o assistente ter apresentado queixa contra este, na qualidade de subscritor da peça processual.
Nesta sequência, o assistente, devidamente notificado na pessoa da sua mandatária, veio anuir ao convite do Ministério Público e deduziu acusação particular apenas contra o arguido, sem nada alegar quando ao advogado subscritor da peça processual, pelo que não poderia o assistente escolher contra quem deduz acusação renunciando desta feita à responsabilidade possível do advogado subscritor, pelo que falta obrigatoriamente um pressuposto positivo da punição, ou de uma condição legal de procedibilidade, a imposta no artigo 115º, n.º 3 do Código Penal, uma vez que o referido princípio é aplicável à acusação particular nos termos do disposto no artigo 117º do Código de Processo Penal, ou seja, se o titular do direito de acusar não deduzir acusação contra todos os comparticipantes, essa omissão aproveita aos demais, não podendo o processo prosseguir por renúncia tácita do titular do direito – vide artigo 116º do mesmo diploma.
Na verdade nada impedia o assistente de acusar o advogado do arguido ou alegar factos de onde resulte que este admitiu como sendo verdadeiros os factos reportados pelo seu cliente, sendo indiferente, para a conformação dos sujeitos ativos do delito, os termos da notificação, posto que, como já adiantado, estando em causa crime de natureza particular, ao mesmo cabia acusar – dentro dos limites delineados na queixa – quem lhe aprouvesse e isto independentemente da conduta processual, anterior e/ou subsequente, do Ministério Público.
Desta feita, só podemos concluir no sentido de que tal omissão aproveita aos demais comparticipantes e o processo criminal não poderá prosseguir por renúncia tácita do titular do direito, ressalvando-se os casos em que a omissão do assistente seja expressamente justificada pela circunstância de ele concluir pela inexistência de indícios suficientes para deduzir acusação contra a referida pessoa – o que não aconteceu - conduzindo, assim, nesta parte, à extinção do procedimento criminal contra o arguido.
Na verdade, embora não se ignore a discussão sobre o alcance da remissão do citado artigo 117.º, sufragamos a posição de Germano Marques da Silva quando escreve: Em caso de comparticipação no crime, a apresentação de queixa contra um dos comparticipantes torna o procedimento criminal extensivo aos restantes (art. 113º do CP). De modo semelhante, a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveitam aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa (art. 114.º, n.º 3, do CP). A justificação destas normas é evidente. Pretendem obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado. Relativamente à acusação particular importa atender a que se a queixa inicial deduzida apenas contra um dos comparticipantes torna o procedimento extensivo aos demais, já o mesmo não pode suceder com a acusação propriamente dita. Findo o inquérito, o assistente é notificado para deduzir acusação (art. 285º). Tratando-se de crime cometido em comparticipação, se o assistente apenas acusar um dos comparticipantes parece-nos que se verifica um caso de renúncia do direito de acusação particular relativo a um dos comparticipantes, renúncia que aproveita aos restantes (art. 114º, n.º 3, do CP) – [cf. “Curso de Processo Penal”, I, Verbo, pág. 236].
Vide no sentido do aqui decido o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17.09.2013, proferido no âmbito do processo 854/11.5TASTR.E1, disponível em www.dgsi.pt, que aqui se seguiu de perto, no qual está em causa uma situação idêntica à aqui tratada, de onde resulta, com cristalina argumentação, a responsabilidade criminal do avogado aquando da subscrição das peças processuais apresentadas em juízo, com profunda análise das condições de procedibilidade, concluído que a não apresentação de queixa e posterior não dedução de acusação particular também contra a advogada da arguida, faz claudicar tais condições, tendo como consequência a extinção do procedimento criminal; e a idêntica solução chegou se chegou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido a 4.11.2015, proferido no âmbito do Processo n.º 245/14.6TACBR.C1, Acórdão da mesma Relação proferido a 9.11.2011, no âmbito do Processo n.º 4130/09.5TASCS.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2016, proferido no processo n.º 3359/13.8TASCS.L1-5 disponíveis no mesmo local.
Sem necessidade de outros considerandos impõe-se julgar extinto, por renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes – o advogado do arguido, subscritor da contestação –, o procedimento criminal no que respeita ao arguido B….
Extinto que está o procedimento criminal, vai indeferido o pedido de certidão das declarações prestadas pelo arguido porquanto o fundamento do mesmo não se verifica uma vez que o tribunal não irá decidir o mérito da causa, não existido qualquer necessidade de descobrir a verdade material de factos.
E em consequência, deverá o arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil.
Decisão
Termos em que se decide em julgar extinto, por renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes, o procedimento criminal instaurado contra o arguido.
Sem custas.
Julga-se o pedido de indemnização civil improcedente e dele vai o arguido absolvido do pedido cível.
Custas a cargo do demandante.
Notifique.
(..)
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III - APRECIAÇÃO DO RECURSO:
De acordo com jurisprudência assente, o objeto do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto, considerando tais conclusões, a única questão suscitada resume-se a saber se proferidas afirmações alegadamente difamatórias em peça processual, subscrita por mandatário forense, é aplicável o princípio da indivisibilidade do direito de queixa, aplicável à acusação particular, com a consequente extinção do procedimento criminal, por falta de condição de procedibilidade (renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes).
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Cumpre decidir.
Este Tribunal conhece de facto e de direito, como resulta do disposto no art.º 428.º do CPP.
No caso concreto, considerando o seu objeto, o recurso versa exclusivamente sobre matéria de direito.
O recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido que julgou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, por considerar ter havido renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes (o advogado do arguido, subscritor da contestação).
Em síntese, alega que o princípio da indivisibilidade da queixa invocado na sentença sob censura para declarar extinto o procedimento criminal não pode ser erigido de forma absoluta.
Alega ainda que muito embora também tenha sido apresentada queixa contra o mandatário do arguido, em sede de inquérito, o Ministério Público não levou a caboquaisquer diligências tendentes a apurar a sua (eventual)comparticipação no crime de difamação, nem tão pouco se pronunciou, ainda que de forma perfuntória, sobre a queixa contra ele apresentada.
Considera que essa invocada ausência de diligências de investigação traduz-se em “falta de inquérito” e constitui a nulidade insanável prevista na al. d) do art.º 119.º do CPP, que pode ser declarada em qualquer fase do procedimento.
Vejamos.
Resulta da participação de fls. 2 a 4 que o assistente apresentou queixa crime pela prática de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180.º, n.º 1, do Código Penal, que reveste natureza particular.
A queixa diz respeito a factos ou juízos que o assistente reputa ofensivos da sua honra e consideração e que constam na contestação subscrita pelo mandatário do arguido, apresentada no âmbito do Processo Comum Singular n.º 80/17.0T9AND, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Anadia.
Considerando o teor da participação, a mesma abrange necessariamente o arguido e o seu mandatário.
Como resulta da sentença sob censura, o Tribunal a quo considera que, perante uma peça processual subscrita pelo mandatário, no exercício do mandato, que contenha afirmações suscetíveis de configurar o crime de difamação, não pode ser liminarmente aceite a responsabilidade exclusiva do mandante, ou seja, do cliente.
Sublinha que no caso concreto a contestação com o conteúdo eventualmente ofensivo da honra do assistente está subscrita pelo mandatário do arguido e não por este e que não consta do teor da acusação particular qualquer circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva do ora arguido. Diz que a acusação particular apenas é dirigida ao arguido, sem se referir que aquela peça processual foi subscrita pelo seu advogado e sem tão pouco se referir que o arguido, ao relatar ao seu advogado os fastos/juízos ofensivos da honra do assistente, tenha agido com o propósito de que este os transpusesse para a contestação apresentada em juízo, no convencimento de que correspondiam à verdade.
Refere que só neste caso haverá responsabilidade exclusiva do cliente, pois inexiste dolo por parte do advogado, dado que não atuou com propósito de atingir a honra ou a consideração do visado. Porém, já haverá responsabilidade exclusiva do advogado se apenas este é autor da peça, sem qualquer interferência do cliente.
Ora, não constando da acusação particular a alegação de factos relativos à eventual responsabilidade do advogado na elaboração da contestação, tanto mais que da participação se afigura de todo razoável interpretar as palavras do assistente no sentido de pretender a instauração de procedimento criminal, também, contra ele, enquanto subscritor daquela peça processual, considera que se mostra liminarmente afastada a responsabilidade exclusiva do arguido.
Não tendo o assistente, enquanto titular do direito de acusar, deduzido acusação contra todos os comparticipantes, faltando o advogado do arguido, subscritor da acusação, e nada tendo alegado quanto a ele, atento o princípio da indivisibilidade da queixa, consagrado nos artigos 114.º a 116.º do CPP, entende o Tribunal a quo que o assistente renunciou à responsabilidade possível do advogado subscritor da peça processual, pelo que falta obrigatoriamente um pressuposto positivo da punição, ou de uma condição legal de procedibilidade: a prevista no art.º 115º, n.º 3 do Código Penal, aplicável à acusação particular por força do art.º 117.º do mesmo diploma.
Em suma, julgado extinto, por renúncia do direito de acusação particular relativamente ao advogado do arguido, subscritor da contestação, considerou que não pode o processo prosseguir apenas contra o arguido.
Mostra-se acertada a decisão do Tribunal da Primeira instância.
Efetivamente, tendo em conta os factos denunciados e a circunstância de estarmos perante um crime particular, o assistente não podia deixar de acusar o advogado subscritor da acusação onde constam os alegados factos ou juízos que reputa ofensivos da sua honra e consideração.
Porém, apenas deduziu acusação particular contra o arguido B…, nada dizendo relativamente ao seu mandatário (fls. 69 a 71).
A partir do Ac. TRC de 1.03.1989[1], nos casos em que eventuais afirmações difamatórias se mostram vertidas em peças processuais, como sucede na situação em apreço, a jurisprudência tem entendido que podemos estar perante três hipóteses distintas:
• Uma em que o advogado transferiu para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, após tê-lo advertido expressamente das consequências que daí podem advir, designadamente em termos penais;
• Outra em que o autor do escrito na peça processual é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente;
• Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros com o objetivo de que o advogado os verta na peça processual, convencido de que correspondem à verdade.
A primeira hipótese, configurará um exemplo de comparticipação criminosa. Ou seja, como é referido no Ac. TRE de 17.09.2013[2], citado na sentença em crise, advogado e cliente são coautores do crime de difamação, pois, «melhor do que ninguém o advogado deve saber em que consiste o crime de difamação e avaliar quando a prolação de factos suscetíveis de ofender a honra e a consideração de outrem não é necessária para a defesa da causa que lhe foi confiada». Compete-lhe, por isso, a função de filtrar aquilo que lhe é relatado pelo cliente, não deixando transparecer quaisquer expressões que se não contenham dentro das margens da veemência e da energia que a defesa dos interesses daquele exigem.
A segunda hipótese configurará um caso de responsabilidade exclusiva do advogado, dado que o ilícito é apenas cometido por ele.
A terceira e última hipótese configurará um caso de responsabilidade exclusiva do cliente, dado não haver por parte do advogado o propósito [intenção ou vontade] de atingir a honra ou consideração do visado, atuando, pois, sem dolo.
Aqui chegados, sendo inequívoco que estamos perante afirmações suscetíveis de configurarem o crime de difamação vertidas numa peça processual assinada pelo advogado do arguido, não pode, sem mais, aceitar-se a responsabilidade exclusiva do último.
Com efeito, seguindo de perto a jurisprudência do citado Ac. do TRE de 17.09.2013, na participação feita pelo assistente não consta nenhuma circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva do arguido B… na apresentação em Juízo da contestação assinada pelo seu advogado.
Todavia, apenas deduziu acusação particular contra o arguido, nada dizendo em relação ao seu mandatário.
Embora a participação abranja o advogado, o que não é questionado[3], a acusação apenas é dirigida contra o arguido, sendo que em nenhuma delas é referido que este, ao relatar ao seu advogado os factos potencialmente atentatórios da honra e consideração do assistente, tenha agido com o propósito de que o seu mandatário os transpusesse para a contestação que apresentou em Tribunal, no convencimento de que correspondiam à verdade.
Assim sendo, encontrando-se liminarmente afastada a responsabilidade exclusiva do arguido e não tendo a acusação sido deduzida também contra o seu advogado, considerando o chamado princípio da indivisibilidade da queixa, previsto nos art.ºs 114.º a 116.º do Código Penal[4], falta o pressuposto positivo da punição, ou de condição legal de procedibilidade, previsto no n.º 3 do art.º 115.º do mesmo diploma, o que conduz à extinção do procedimento criminal contra o arguido.
A sentença recorrida não merece, pois, censura.
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IV - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça.
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Porto, 14 de abril de 2021
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Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-lei 10-A/2020, de 13 março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-lei 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade ao presente Acórdão do Desembargador William Themudo Gilman.
José António Rodrigues da Cunha
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[1] In CJ, ano 1989, Tomo II, pág. 76.
[2] Relatado pela Desembargadora Ana Bacelar Cruz, in www.dgsi.pt.
[3] A queixa apresenta apenas contra um dos comparticipantes torna o procedimento extensivo aos demais, o que não acontece com a acusação propriamente dita, como é referido na sentença recorrida.
[4] Como sublinha o Ac. TRP de 5.03.2003, relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino, in www.dgsi.pt, do princípio [da indivisibilidade] têm de extrair-se todas as consequências, desde a queixa à acusação: não escolha de quem deve ser perseguido, isto é, ou são perseguidos todos os comparticipantes conhecidos, ou não é nenhum.». Ou seja, como ensina o Professor Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 676, a nossa lei considera inadmissível que fique no arbítrio do queixoso a escolha dos comparticipantes contra os quais haverá de ter lugar o processo penal (…) a lei ter-se-á deixado conduzir pela consideração de que uma tal escolha dos agentes abriria a porta à intervenção, possível ou mesmo provável, de considerações absolutamente estranhas às razões político-criminais que dão fundamento ao instituto.