Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4295/23.3T8VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: ARRESTO
PROBABILIDADE DA EXISTÊNCIA DO CRÉDITO
OPOSIÇÃO AO ARRESTO
Nº do Documento: RP202409124295/23.3T8VFR-A.P1
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se em requerimento autónomo, apresentado antes da decisão, a Requerente se pronuncia sobre a prova produzida e os factos a considerar provados, pode considerar-se que tal traduz o uso de alegações escritas.
II - Sendo requisitos cumulativos do arresto o fumus boni iuris e o periculum in mora, desde que infirmada a probabilidade da existência do direito de crédito, resulta indiferente apurar a situação económica/solvabilidade da Requerida ou o periculum in mora. O arresto está condenado ao insucesso, devendo ordenar-se o seu levantamento, caso tenha sido decretado.
III - Extrai-se do disposto no art.º 372º que, quando o Requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito optar por deduzir oposição (a ser apreciada em 1ª instância) ou pelo recurso de apelação (a ser apreciado pelo Tribunal superior).
IV - Optando pela via da oposição, trata-se da alegação de factos ou produção de meios de prova não tidos em conta anteriormente, destinados a destruir (ou, pelo menos, abalar) o juízo de probabilidade em que o Tribunal decidiu.
V - Ou seja, em sede de oposição, é duma “valoração global dos meios de prova” que se vai tratar, confrontando agora os factos e meios probatórios trazidos pela Requerente com os trazidos pela Requerida no uso do contraditório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4295/23.3T8VFR-A.P1




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO




I – Resenha do processado

1. A..., Lda. instaurou procedimento cautelar de arresto contra B..., pretendendo obter o arresto de todos os bens móveis que sejam encontrados em determinado armazém sublocado pela Requerida.
Invocou ter celebrado com a Requerida um contrato de prestação de serviços de embalamento de baterias, para além de venda de produtos; dessas relações comerciais, resulta um crédito para a Requerente no valor total de € 303.037,90, referente aos anos de 2021 a 2023. Sucede que a Requerida pretende encerrar a sua atividade em Portugal, bem como fechar o armazém e o contrato com a Requerente, assim colocando em crise o referido crédito.
Instruídos os autos, o arresto foi decretado nos termos requeridos e concretizado em 23/11/2023.
Citada a Requerida, veio deduzir oposição, impugnando a factualidade alegada.
Instruídos os autos, foi proferida decisão ordenando o levantamento do arresto, considerando-se procedente a oposição.

2. Para assim se decidir, considerou-se a seguinte factualidade:
Factos provados
a) Com data de 10.03.2021, entre C..., Unipessoal, Lda., com o NIPC ...83 e sede fiscal na Zona Industrial ..., Rua ..., ..., ..., e B..., Sucursal em Portugal, com o NIPC ...54 e sede fiscal na Rua ..., ..., ..., ..., foi celebrado o denominado «Contrato de sublocação», junto com a oposição como documento nº 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
b) É no armazém objeto do contrato referido em a) que foram sendo depositados os bens objeto do «Contrato de prestação de serviços» celebrado entre requerente e requerida, datado do dia 04.06.2021, junto com o requerimento inicial como documento nº 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) A requerida pagou as rendas a que se obrigou no âmbito do contrato referido em a).
d) A requerida definiu um período transitório prévio à cessação da sua atividade em Portugal.
e) A requerida deu conhecimento à requerente da cessação da sua atividade em Portugal cerca de um ano antes do fim do contrato referido em a).
f) A cessação das atividades da requerida em Portugal assenta na reestruturação do grupo societário em que se insere, visando racionalizar meios e proventos.
“Factos colocados em crise”
aa) Para além dos serviços que presta, a requerente também vende os seus produtos à requerida, o que origina a emissão de faturas, que nunca foram objeto de quaisquer reclamações.
bb) A requerida adquire mercadorias da requerente.
cc) A requerente era credora da requerida dos totais parciais/anuais de:
- em 2021: € 120.146,70 (cento e vinte mil cento e quarenta e seis euros e setenta cêntimos);
- em 2022: € 118.572,13 (cento e dezoito mil quinhentos e setenta e dois euros e treze cêntimos);
- e em 2023: € 64.319.07 (sessenta e quatro mil trezentos e dezanove euros e sete cêntimos),
perfazendo um total de 303.037,90 (trezentos e três mil e trinta e sete euros e noventa cêntimos).
dd) A requerida prepara-se para não pagar o crédito da requerida e fazer desaparecer a garantia patrimonial do mesmo.

3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Requerente, formulando as seguintes conclusões [[1]]:






4. A Requerida contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Se foi omitido o direito de produzir alegações finais e se, por isso, a decisão final constitui decisão surpresa
· Do mérito da subsunção dos factos ao direito

5.1. Se foi omitido o direito de produzir alegações finais e se, por isso, a decisão final constitui decisão surpresa
Tal circunstância integra a omissão de formalidade imposta por lei, acarretando uma nulidade secundária: art.º 195º nº 1 do CPC.
Não sendo de conhecimento oficioso, as nulidades secundárias têm de ser suscitadas pelo interessado, no prazo de 10 dias a contar da sua prática ou do seu conhecimento, sob pena de se considerarem sanadas: art.º 197º e 199º do CPC.
A Recorrente suscita a questão pela 1ª vez em sede de recurso, pelo que deve questionar-se se era este o meio e o momento próprios para reagir contra a nulidade. [[2]]
Na verdade, como refere Anselmo de Castro, «Tradicionalmente, entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (…), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional.» [[3]]
Consultados os autos, verifica-se que na Ata da audiência final (realizada em 11/03/2024), foram ouvidas 2 testemunhas e analisados vários documentos, posto o que a Mmª Juíza ordenou a tradução dos documentos lavrados em língua alemã.
Depois, ficou consignado que as ilustres mandatárias requereram a possibilidade de se pronunciarem sobre a prova produzida após a junção da tradução dos documentos e, bem assim, para produzirem as suas alegações por escrito, “o que foi deferido pela Mmª Juiz, sendo que posteriormente será fixado prazo para o efeito.”
A tradução dos documentos foi junta aos autos em 21/03/2024.
Notificada dessa junção, em 04/04/2024 veio a Requerente pronunciar-se sobre eles, dizendo o que se lhe oferecia sobre o seu interesse para a “descoberta da verdade material”.
E tal documento pode ser considerado alegações, dado que nele a Requerente também se pronunciou sobre o deve e haver das relações comerciais entre ambas as partes, bem como sobre o acerto de contas alegadamente efetuado em 2023 (cf. pontos 9 a 12 do requerimento, com a ref.ª 48501820).
A decisão final só foi proferida depois disso, em 16/05/2024.
Em 12/06/2024, foi proferido despacho referindo que «se tomará posição sobre a invocada nulidade» mais tarde.
E tal nulidade foi apreciada no despacho proferido a 17/06/2024, onde se concluiu que as partes tinham tido oportunidade de expor todos os seus argumentos em momento posterior à audiência de julgamento, designadamente que «… não se verifica a nulidade apontada no recurso interposto pela requerente, considerando a discussão efetuada pelas partes nos requerimentos subsequentes à inquirição de testemunhas que precedeu a decisão final, não podendo deixar de se ponderar, ademais, a natureza urgente do presente procedimento.»
Daqui decorre que existiu decisão expressa e autónoma sobre a invocada nulidade, pelo que a mesma teria de ser impugnada autonomamente.
De qualquer forma, e como decorre do nº 1 do art.º 195º do CPC, a omissão de formalidades que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
E, no caso, como já se referiu, a Recorrente teve oportunidade de se pronunciar sobre a prova produzida em sede de alegações finais, o que concretizou no seu requerimento com a ref.ª 48501820, tendo a decisão final sido proferida depois dele.
Improcede, pois, a questão invocada.

5.2. Do mérito da subsunção dos factos ao direito
§ 1º - No que toca aos pressupostos do arresto, de acordo com o art.º 391º do CPC, o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto dos bens do devedor.
E, da sua conjugação com o art.º 392º nº 1 do CPC, resulta que o requerente do arresto tem que demonstrar:
· a existência e titularidade de um crédito sobre o arrestado (fumus boni iuris)
· fundado receio da perda da sua garantia patrimonial (periculum in mora)
Olhada a sentença, verifica-se que a oposição foi julgada procedente, e o arresto levantado, por se ter por não indiciada a existência do direito de crédito da Requerente.
E tal decisão merece o nosso acolhimento.
No presente recurso não se questiona a matéria de facto.
Assim, basta atentar nos factos não provados cc) e dd) — que a Mmª Juíza apelidou de «factos colocados em crise» —, para se concluir que a Requerida logrou infirmar a probabilidade da existência do direito de crédito.
Assim, e porque os requisitos atrás referidos são de verificação cumulativa, se não se demonstra o fumus boni iuris, o arresto está condenado ao insucesso, devendo ordenar-se o seu levantamento, caso tenha sido decretado.
Por outro lado, contrariamente ao que se refere nas conclusões, do facto provado d) — A requerida definiu um período transitório prévio à cessação da sua atividade em Portugal —, nada se pode concluir sobre a existência do crédito.
Na oposição logrou a Requerida infirmar claramente o mais essencial dos pressupostos do arresto, que é a existência do crédito (aparência do direito).
Desde que infirmada a probabilidade da existência do direito de crédito, como o foi, e resulta dos factos não provados cc) e dd), não questionados no recurso, resulta indiferente saber a situação económica/solvabilidade da Requerida ou o periculum in mora.
Em face do exposto, é de manter o decidido, por não verificado o requisito de aparência da existência do direito de crédito da Requerente.

§ 2º - Quanto aos meios de reação, oposição versus recurso
Extrai-se do disposto no art.º 372º nº 1 al. b) do CPC que, quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência (como sucedeu no caso vertente), é-lhe lícito, uma vez dela notificado, deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução.
Nessa medida, competia à Requerida fazer prova atinente a destruir (ou, pelo menos, abalar) o juízo de probabilidade em que o Tribunal decidiu.
Ou seja, em sede de oposição, é duma “valoração global dos meios de prova” que se vai tratar, confrontando agora os factos e meios probatórios trazidos pela Requerente com os trazidos pela Requerida no uso do contraditório.
No caso, o arresto havia sido decretado sem audição prévia da Requerida e esta optou pela via da oposição, impugnando a existência do crédito invocado pela Requerente.
Tendo-se decidido o arresto apenas com a prova produzida pela Requerente, já em sede de oposição incumbe reavaliar esses meios, face aos trazidos pela Requerida no exercício do contraditório.
Na verdade, e contrariamente ao antes indiciariamente evidenciado, o que resulta da prova trazida pela Requerida, ainda que em termos de sumaria cognitio, é a inexistência do alegado crédito.
Mas, em vez da oposição, pode o Requerente optar pela via de recurso [al. a) do art.º 372º CPC] do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida.
A escolha destes meios de reação (recurso ou oposição) é alternativa, não podendo os requeridos usar de qualquer das formas para os mesmos fins, antes tendo de se subordinar aos fins específicos de cada forma de exercício do contraditório. [[4]]
Assim, no caso de interposição de recurso, dirigido ao Tribunal superior, não se trata de proceder à reavaliação dos factos provados em sede liminar, mas apenas impugnar a decisão em si mesma, seja pela invocação de errada aplicação do direito aos factos indiciariamente provados, seja pela arguição de exceções de conhecimento oficioso que não tivessem sido apreciadas ou pela discordância do julgamento da matéria de facto, com possibilidade de reapreciação da gravação da prova.
Concluindo, não assiste razão à Recorrente.



6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o decidido em 1ª instância.

Custas do recurso a cargo da Recorrente.




Porto, 12 de setembro de 2024
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Paulo Dias da Silva
2º Adjunto: Isoleta Almeida Costa

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[[1]] Como bem refere a Requerida nas suas contra-alegações, não podemos deixar de assinalar que as “conclusões” da Requerente não passam de cópia das alegações, ou, melhor dizendo, da inversão entre conclusões-alegações, pois que se conseguiu a proeza de, em 21 parágrafos de alegações, se ter conseguido deduzir 26 conclusões!

Não obstante essas deficiências, iremos conhecer do recurso, por se tratar de questões simples e estar em causa um processo urgente.

[[2]] Como é sabido, das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se.

[[3]] In “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, 1982, Almedina, pág. 134.

[[4]] Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa, de 22/10/2019, processo nº 2430/19.5T8FNC-A.L1-7, bem como o da Relação de Évora, de 21/05/2020, processo nº 257/19.3T8ADV.E1 e da Relação de Guimarães, de 25/02/2021, processo nº 321/19.9T8PRG.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.