Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
300/19.6Y9PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
EXECUÇÃO
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
LEI TEMPORÁRIA
Nº do Documento: RP20210414300/19.6Y9PRT-B.P1
Data do Acordão: 04/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA (RECURSO MP)
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A questão de saber se a mera instauração da execução constitui ou não um facto interruptivo da prescrição da coima foi bastante discutido e objecto de jurisprudência contraditória. Todavia, o Acórdão para Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça pôs fim à controvérsia, decidindo.
“A mera instauração pelo Ministério Público de execução patrimonial contra o condenado em pena de multa, para obtenção do respectivo pagamento, não constitui causa de interrupção da prescrição da pena prevista no art. 126º, n.º 1, al. a) do C.P” – Acórdão para uniformização de Jurisprudência n.º 2/2012, publicado no DR, I Série de 12-04-2012.
II - Saber se a Lei nº 1-A/2020, de 19/03, estabelecendo medidas excepcionais e temporárias, designadamente a suspensão dos prazos processuais (prescrição e caducidade), é aplicável no âmbito penal e contraordenacional (presente caso), para efeitos de prescrição da pena – teve também respostas discordantes.
III - Esta questão foi exaustivamente apreciada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-07-2020, proferido no processo 128/16.5SXLSB.L1-5. Ali se decidiu que “A lei penal temporária nunca é aplicável retroactivamente, a não ser nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável. Por conseguinte, a lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o tempus delicti, nos termos do artigo 2.º, n.º1, do Código Penal. A causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, enquanto seja aplicada aos prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança, aplica-se aos factos praticados na sua vigência - cfr. sumário do acórdão.
Em consequência deste entendimento, conclui-se que também em matéria de prescrição da pena é aplicável o princípio da lei penal mais favorável.
IV - O momento-critério da determinação da lei aplicável é o tempus delicti (artigo 2.º. n.º1, do Código Penal), independentemente de o prazo de prescrição da pena contar-se a partir do momento em que transita em julgado a sentença (cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 27-11-2013, processo 236/96.7BAND-A.C1), sem prejuízo da sujeição ao princípio da lei mais favorável, atenta a natureza da prescrição (artigo 2.º, n.º4, do Código Penal). Vinculadas, assim, as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção, tendo em vista a sua natureza substantiva, ou, pelo menos, mista (substantiva e processual), aos princípios da legalidade e da aplicação da lei mais favorável, afigura-se-nos que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da supra citada Lei n.º 1-A/2020, apenas poderá ser aplicada aos factos praticados na sua vigência (entendimento sustentado no E-book do Centro de Estudos Judiciários, “Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça”, 2.ª edição, http://www .cej.mj.pt/ cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf, com argumentos que têm a nossa inteira adesão).
Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, seria admitir a aplicação retroactiva da lei penal, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º4, da C.R.P., já que tal suspensão, alargando os prazos de prescrição, agrava a situação do arguido/condenado.
V - A lei penal temporária nunca é aplicável retroactivamente, a não ser nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável. Por conseguinte, a lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o tempus delicti, nos termos do artigo 2.º, n.º1, do Código Penal. E continua a ser aplicada a esses factos mesmo depois da cessação da sua vigência, o que constitui excepção ao princípio da lei mais favorável, conforme estabelece o artigo 2.º, n.º3, do Código Penal, que veio consagrar legislativamente a doutrina firmada pelo assento de 18 de Julho de 1947, citado (a nosso ver, salvo melhor opinião, sem a melhor compreensão do seu alcance) no despacho recorrido de 22 de Maio.
A aplicação de lei penal, temporária ou não, a factos anteriores à sua vigência, constituirá uma aplicação retroactiva dessa lei.
Ora, aplicar a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, ou seja, a factos praticados antes da sua vigência, implica, a nosso ver, uma aplicação retroactiva da lei, em sentido mais gravoso para o agente do crime e em violação do já mencionado artigo 29.º, n.º4, da C.R.P., sendo certo que nem mesmo nas situações de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência pode ser afectada “a não retroactividade da lei criminal”, como expressamente se consagra no artigo 19.º, n.º 6, da mesma C.R.P. e foi também consagrado na Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que estabelece o regime do estado de sítio e do estado de emergência.
VI - A causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, enquanto seja aplicada aos prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança, aplica-se aos factos praticados na sua vigência.
VII – A prescrição da pena, enquanto pressuposto negativo da sua aplicação, deve estar estabelecida em lei anterior. Só será aplicável uma lei posterior (aplicação retroactiva) nos casos em que o seu conteúdo seja mais favorável ao arguido. Este princípio da não retroactividade da lei penal, salvo se mais favorável ao arguido, nem sequer pode ser afastado em “estado de emergência”. Com efeito, nos termos do art. 19º, 6, da CRP, a declaração do estado de emergência “em nenhum caso pode afectar os direitos (…) à não retroactividade da lei criminal”.
Deste modo, o disposto no art. 7º, n.º 3 da Lei 1-A/2020 de 19 de Março, quanto à suspensão da prescrição ali prevista, não pode ser aplicado retroactivamente em direito penal, sob pena de inconstitucionalidade. Ou seja, podemos concluir que o regime da suspensão da prescrição aplicável é aquele que vigorar na data da prática da infracção, pro força do art. 2º, n.º 1 do C.P e 3º, n.º 1 do DL nº. 433/82, de 27/10, salvo se a lei nova for mais favorável ao arguido – cfr. neste sentido PEDRO CAEIRO, Aplicação da Lei Penal no Tempo e Prazos de Suspensão da Prescrição (…) Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 300/19.6Y9PRT-B.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
No processo acima referenciado, foi proferida decisão na execução respectiva, julgando não prescrita a coima aplicada ao arguido B…, devidamente identificado nos autos.
Inconformado com tal decisão, o MINISTÉRIO PÚBLICO recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, concluindo (transcrição):
“1. B… foi condenado administrativamente, pelo “INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, IP”, na coima de 1.000€, pela prática da contra-ordenação prevista e punível no artigo 181º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, acrescida das custas do processo no valor de 204€ (cfr. fls. 1).
2. B… foi notificado da decisão condenatória em 15/04/2019 (fls. 29), pelo que a mesma se tornou definitiva em 15/05/2019 (cfr. artigos 59º, nº 3 e 60º do RGCO- e fls. 57).
3. É partir desta data que o prazo de prescrição da coima deve ser contado (artigo 29º, nº 2 do RGCO).
4. Foi instaurada a competente execução no dia 18/09/2019 refª 407269006 e distribuída no dia 23/09/2019.
5. Não foi possível proceder à cobrança coerciva da coima em dívida por inexistência de bens ou rendimentos penhoráveis pertencentes ao executado (cfr. fls. 36/39, 42, 44/46, 48/49 e 52).
6. Dispõe o Acórdão de Fixação de Jurisprudência 2/2012, que: “A mera instauração pelo Ministério Público de execução patrimonial contra o condenado em pena de multa, para obtenção do respectivo pagamento, não constitui a causa de interrupção da prescrição da pena prevista no artigo 126º, nº 1, alínea a), do Código Penal.”.
7. No decurso da execução, não foi praticado qualquer acto que tenha conseguido obter qualquer satisfação/cumprimento efectivo da coima, ou seja, o seu pagamento, ainda que parcial (isto é, verdadeira “execução”, no sentido do artigo 30º-A, nº 1, do RGCO; cfr., por analogia e mutatis mutandis, fundamentos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência 2/2012, Ac. do TRP de 03/08/2017, proc. 2245/08.6PTAVR-B.P1, Ac. TRC, de 06/15/2011, proc. 204/05.0GBFND.C1, e Ac. TRE de 10/25/2016, proc. 39/09.0GBPTM-A.E1).
8. Não existem outros factos suspensivos do prazo prescricional, como seja a própria pendência da presente execução (cfr. artigo 30º do RGCO, a contrario, e Ac. do TRL de 09/27/2006, proc. 7034/2006-3), razão pela qual entendemos não ser de aplicar o nº 2 do artigo 30º-A do RGCO.
9. Atento o valor da coima, o prazo de prescrição é de um ano (artigo 29º, nº 1, alínea b), do RGCO) tendo-se verificado, portanto, em 15/05/2020.
10. Em matéria de prescrição penal é aplicável o princípio da lei mais favorável.
11. A lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o “tempus delicti”, nos termos do artigo 2º, nº 1, do Código Penal e, nunca rectroativamente, excepto nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável.
12. O despacho recorrido violou os artigos 29º, 30 e 30º-A, do RGCO.”
1.2. O arguido não respondeu à motivação do recurso.
1.3. Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, referindo:
“8. Considerando os doutos fundamentos do recurso, sustentados no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 2/2012, segundo o qual: “A mera instauração pelo Ministério Público de execução patrimonial contra o condenado em pena de multa, para obtenção do respectivo pagamento, não constitui a causa de interrupção da prescrição da pena prevista no artigo 126º, nº 1, alínea a), do Código Penal.”; inexistir razão alguma para a jurisprudência aí fixada não ser aplicável às contra-ordenações; em matéria de prescrição penal ser aplicável o princípio da lei mais favorável; a lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, nos termos do artigo 2º, nº 1, do Código Penal e, nunca rectroativamente, excepto nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável, entendemos que o recurso deve ser julgado procedente.
1.4. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º,2 do CPP, tendo o defensor oficioso do arguido concordado com a posição da Ex.ma Procuradora-geral Adjunta, sublinhando ainda o entendimento de que a coima prescreveu.
1.5. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A decisão recorrida é do seguinte teor:
“ (…)
O requerimento executivo para execução de coima/custas, foi instaurado pelo Ministério Público em 18/09/2019.
Na douta promoção que antecede, por requerimento fls. 58, datado de 08/10/2020 e corrigido a fls. 59, veio o Ministério Público invocar a prescrição da coima e requerer o arquivamento dos autos, alegando que no caso dos autos a decisão administrativa transitou em julgado em 15/05/19, pelo que nos termos dos arts. 59.º, n.º3 e 60.º, n.º1, do Decreto-Lei 433/82, de 27/10, não existindo causas de suspensão e/ou interrupção, encontra-se a coima prescrita.
Cumpre decidir:
Nos presentes autos, tendo em conta o montante da coima em que o executado foi condenado, ou seja, €1.000,00, o prazo de prescrição da coima é de 1 ano (art. 29.º, n.º1, al. b), do Decreto-Lei 433/82, de 27/10).
E, conforme resulta do n.º2, da citada norma legal, “o prazo conta-se a partir do carácter definitivo ou do trânsito em julgado da decisão condenatória”.
No caso dos autos, conforme resulta do teor de fls. 57, a decisão administrativa transitou em julgado em 15/05/19.
Assim, a não existirem causas de suspensão ou interrupção da prescrição, a coima prescreveria em 15/05/20.
Dispõe o art. 30.º do mesmo diploma legal que “a prescrição da coima suspende-se durante o tempo em que:
a) Por força da lei a execução não pode começar ou não pode continuar a ter lugar;
b) a execução foi interrompida”
Por seu turno, o art. 30.º-A, do mesmo diploma legal, estabelece no seu n.º1 que “a prescrição da coima interrompe-se com a sua execução”.
O n.º2, refere que a prescrição da coima ocorre quando, desde o seu início e ressalvado e tempo da suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade”.
Antes de mais, caberá referir que segundo se entende, a instauração da execução interrompe a execução (neste sentido, entre outros, os acs. da RL de 20/05/04, proc. 4264/04.9 e de 17/06/04, proc. 4821/04.9, ambos citados por Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, anotações ao Regime Geral, p. 285-286).
Assim sendo, em 18/09/2019, data em que o Ministério Público instaurou execução iniciou-se novo prazo de prescrição de um ano, pelo que a causas prescrição, o prazo normal da prescrição acrescido de metade, apenas teria lugar em 15/11/20.
De qualquer forma, conforme resulta dos autos, em 04/03/2020, foi elaborado auto de diligência de penhora, do qual resulta que nada foi penhorado por não ter sido encontrado o executado, mas no mesmo auto é indicado que o executado tem um veículo automóvel, com a matrícula aí identificada.
Cabe então referir que a Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, sob a epígrafe “Medidas Excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Cov-2 e da Doença Covid-19”, veio estabelecer no seu art. 7.º, n.º1, que “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, aos atos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais…, aplica-se o regime de férias judiciais até á cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-Cov-2 e da Doença Covid-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública”.
O n.º2 da referida norma estabelece que “o regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional”. Por seu turno, o n.º3 refere que “a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos.
O n.º4 estabelece ainda que “o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos de prescrição ou caducidade ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo pelo período em que vigorar a situação excepcional”.
A presente lei produz efeitos à data da produção de efeito do Dec. Lei n.º10-A/2020, de 13/03 e entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, 20-03-2020 (cfr. arts. 10.º e 11.º), uma vez que a publicação é de 19/03.
Assim temos, que a referida lei suspendeu todos os prazos – incluindo os de prescrição e caducidade- em curso à data da sua publicação.
Ora, a referida suspensão só veio a cessar em virtude da publicação da 16/2020, de 29/5.
O art. 5.º da referida lei estabelece que “os prazos administrativos cujo termo original ocorreria durante a vigência do regime de suspensão estabelecido pelo art. 7.º da Lei n.º1-A/2020, de 19/03, na sua redação original e na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, consideram-se vencidos no vigésimo dia útil posterior à entrada em vigor da presente lei”.
O n.º2, da citada norma legal, dispõe que “os prazos administrativos cujo termo original ocorreria após a entrada em vigor da presente lei, caso a suspensão referida no número anterior não tivesse tido lugar, consideram-se vencidos: a) no vigésimo dia útil, posterior à entrada em vigor da presente lei caso se vencessem até essa data; b) na data em que se venceriam originalmente caso não se vencessem em data posterior ao vigésimo dia útil posterior à entrada em vigor da presente lei”.
O art. 6.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe de “prazos de prescrição e caducidade”, estabelece que “sem prejuízo do disposto no art. 5.º, os “prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações são alargados pelo período de tempo em que vigorou a suspensão.
A referida lei foi publicada em 29/05/2020 e entrou em vigor “no quinto dia seguinte ao da sua publicação”, ou seja, no dia 3 de Junho de 2020.
Assim, temos que por força da citada lei, que no seu art. 8.º, revogou o art. 7.º o Decreto-Lei n.º10-A/2020, de 13/03, cessou a suspensão de prazos para a prática de actos processuais e procedimentais.
Coloca-se o problema de saber a partir de quando voltaram a correr termos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais e, de que modo esses prazos devem ser contados (cfr. quanto a este tema o prof. Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho, Marco Carvalho Gonçalves, “Atos Processuais e Prazos no âmbito da Pandemia da Doença Covid-19”).
Tendo em conta o art. 10.º da Lei 166/2020, de 29/05, que entrou em vigor no 03/06/2020, tal significa que os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que até aí estavam suspensos, retomaram a sua contagem.
Por outro lado, tem que concluir-se que os prazos que se encontravam suspensos e que o legislador não fixou qualquer regime transitório para a sua contagem, retomaram a partir do ponto em que ficaram suspensos.
Por outro lado, conforme resulta do art. 6.º acima referido, os “prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a suspensão.”
Assim, independentemente de outras causas de interrupção da prescrição da coima que possam ter lugar, dúvidas não existem que por força do Decreto-Lei n.º10-A/2020, de 13/03, em 20-3-2020, este prazo de prescrição –tal como os restantes- ficou suspenso e a execução não podia continuar.
E, a referida suspensão só cessou em 3-6-2020 (vigorando assim 2 meses e 13 dias).
Por outro lado, a este prazo de suspensão pelo período que vigorou a lei excepcional, acresce o alargamento previsto no art. 6.º acima referido, pelo período de tempo em, que vigorou a suspensão (ou seja, mais 2 meses e 13 dias).
Assim sendo, tendo em conta que independentemente de causas de suspensão ou interrupção anteriores, o prazo normal da prescrição ficou suspenso por força da citada lei em 20/03/20, data em que o prazo normal de prescrição ainda não tinha ocorrido, haverá que contar o prazo que nessa altura ainda faltava decorrer (até 15 de Maio de 2020), acrescido do prazo de suspensão do prazo por força do Decreto-Lei n.º10-A/2020, de 13/03 e prazo idêntico por força do art. 6.º acima referido (“prazos alargados pelo período de tempo correspondente á vigência da suspensão”), prazos esses que só poderão contar-se a partir 03/06/20.
Assim sendo, atento o exposto, nos termos dos arts 29.º, 30.º e 30-A, do Decreto-Lei 433/82, de 27/10, art. 7.º da Lei n.º1-A/2020, de 19/03, na sua redação original e na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e arts. 5.º e 6.º, da Lei 16/2020, de 29/05, entende-se que a coima dos presentes autos ainda não prescreveu, pelo que se indefere a douta promoção que antecede.
Notifique.
(…) ”
2.2. Matéria de direito
2.2.1. Objecto do recurso e tese do MP/recorrente.
É objecto do presente recurso a decisão (proferida no processo executivo para cobrança coerciva da coima em dívida) que julgou não prescrita a coima aplicada ao arguido B….
O MP/recorrente entende que a coima em causa está prescrita porque, em seu entender, a mera instauração da execução judicial para obter o pagamento coercivo não é um facto interruptivo da prescrição. Assim, argumenta: a decisão que aplicou a coima tornou-se definitiva em 15-05-2019; o prazo de prescrição da coima é de 1 ano, dado o respectivo valor (€1.000,00) e o disposto no art. 29º, nº 1, alínea b), do RGCO. Deste modo, e apesar de ter sido instaurada a execução judicial para pagamento da coima, em 18-09-2019, quando foi proferida a decisão ora impugnada, em 22-10-2020, já se mostrava esgotado o respectivo prazo de prescrição, o qual ocorreu (a seu ver) em 15/05/2020, ou seja, um ano depois de 15-05-2019.
Entende ainda o MP que as medidas excepcionais e temporárias - Lei 1-A/2020, de 19/03, Dec. Lei 10-A, 2020 e Lei 16/2020, de 20/5 -, determinando a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade não são aplicáveis ao presente caso, uma vez que, no âmbito penal e contraordenacional, é proibida a retroactividade da lei, salvo se mais favorável ao arguido.
2.2.2. Tese do despacho recorrido
O despacho recorrido entendeu que não tinha decorrido ainda o prazo de prescrição da coima. Aceitou que o respectivo prazo era de um ano, a contar da data em que a condenação se tornou definitiva, o que ocorreu em 15-5-2019. No entanto, considerou que a instauração da execução, em 18-09-2019, interrompeu a prescrição e na contagem do novo prazo de prescrição (iniciado a partir do facto interruptivo) teve em atenção o regime excepcional decorrente da Leis 1-A/2020, de 19/03, Dec. Lei 10-A/2020, de 13/3 e Lei 16/2020, de 20/5, o qual (além de outras medidas) suspendeu os prazos de prescrição e caducidade no âmbito das “Medidas Excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica, provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da Doença Covid-19” (epígrafe da Lei 1-A/2020, de 4-3-2020).
Concluiu assim que o prazo de prescrição da coima ora em causa, iniciado a partir do facto interruptivo (18-09-2019) e suspenso desde 20-03-2020 até 03-06-2020 (dois meses e 13 dias), por força do regime excepcional de suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, ainda não tinha decorrido em 22-10-2020 (data do despacho recorrido), muito embora não tenha dito, de modo claro e simples, em que data, a seu ver, efectivamente ocorreria a prescrição da coima.
2.2.3. Análise dos fundamentos da decisão recorrida e do recurso
De acordo com o exposto pelo MP/recorrente, e sublinhado pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, “os motivos da discordância expostos no recurso prendem-se com duas questões:
a) Saber se o acto de instauração da execução interrompe ou não a prescrição (o tribunal recorrido entendeu que sim o Ministério Público defende que não);
b) Saber se a Lei nº 1-A/2020, de 19/03, estabelecendo medidas excepcionais e temporárias, designadamente a suspensão dos prazos processuais (prescrição e caducidade), é aplicável no âmbito penal e contraordenacional, para efeitos de prescrição da pena.
Vejamos cada uma delas:
(i) Interrupção da prescrição da coima pelo acto de instauração da execução
Nos termos do art. 29º do Dec. Lei 433/82, de 27 de Outubro, “1 - As coimas prescrevem nos prazos seguintes: a) Três anos, no caso de uma coima superior ao montante máximo previsto no n.º 1 do artigo 17.º; b) Um ano, nos restantes casos. 2 - O prazo conta-se a partir do carácter definitivo ou do trânsito em julgado da decisão condenatória”. Por seu turno, nos termos do art. 30º-A do mesmo diploma legal, “1 - A prescrição da coima interrompe-se com a sua execução. 2 - A prescrição da coima ocorre quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade”.
No presente caso não é discutível a data em que esse prazo se iniciou, isto é, a data em que a decisão que aplicou a coima se tornou definitiva: 15-05-2019.
Em discussão está assim, desde logo, a questão de saber se a instauração de execução pelo MP é (ou não) causa de interrupção da prescrição, por força do art. 30º-A, 1 do Dec. Lei 433/82, de 27 de Outubro.
Esta questão de saber se a mera instauração da execução constitui ou não um facto interruptivo da prescrição da coima foi bastante discutido e objecto de jurisprudência contraditória. Todavia, o Acórdão para Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça pôs fim à controvérsia, decidindo:
A mera instauração pelo Ministério Público de execução patrimonial contra o condenado em pena de multa, para obtenção do respectivo pagamento, não constitui causa de interrupção da prescrição da pena prevista no art. 126º, n.º 1, al. a) do C.P – Acórdão para uniformização de Jurisprudência n.º 2/2012, publicado no DR, I Série de 12-04-2012.
É verdade que o citado acórdão tinha como objecto a questão da prescrição de multas criminais e, no presente caso, estamos perante uma coima.
Todavia, nos termos do art. 32º do Regime Geral das Contraordenações (Dec. Lei 433/82, de 27 de Outubro) “em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita ao regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal”. Assim, e sendo o regime de prescrição da coima matéria indiscutivelmente respeitante ao seu regime substantivo, deve ser acolhida a interpretação da norma constante do art. 126º, 1, a) do Código Penal, na parte em essa norma dispõe que a prescrição da pena se interrompe “com a sua execução”.
De resto, o art. 30º-A do RGCO também determina que a prescrição da coima se interrompe “com a sua execução”. Não há, portanto, qualquer razão para não aplicarmos, perante textos idênticos, a interpretação acolhida no citado Acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2012, publicado no DR I Série de 12-04-2012.
Assim, e dado que não existe qualquer razão válida para nos afastarmos da jurisprudência fixada no citado acórdão - a mera instauração da execução pelo MP não constitui causa de interrupção da prescrição da pena prevista no art. 126º, n.º 1, al. a) do C.P - deve entender-se que o prazo de prescrição da coima, no caso, começou a correr a partir da data em que decisão se tornou definitiva, isto é, 15-05-2019, e não sofreu qualquer efeito interruptivo.
O respectivo prazo de prescrição - 1 ano - esgotar-se-ia, portanto, em 15-05-2020, caso não ocorresse qualquer causa de suspensão, situação que nos remete para a segunda questão, isto é, a de saber se o regime excepcional e temporário sobre a suspensão da prescrição e caducidade (emergente do estado de emergência face à COVID 19) é ou não aplicável ao presente caso.
(ii) Aplicação da suspensão da prescrição decretada pela Lei 1-A/2020, de 19/03, Dec. Lei10-A/2020, de 13/3 e Lei 16/2020, de 20/5, por razões de saúde pública.
Esta questão - saber se a Lei nº 1-A/2020, de 19/03, estabelecendo medidas excepcionais e temporárias, designadamente a suspensão dos prazos processuais (prescrição e caducidade), é aplicável no âmbito penal e contraordenacional (presente caso), para efeitos de prescrição da pena – teve também respostas discordantes.
O despacho recorrido aceitou, sem questionar, a aplicação ao presente caso da suspensão do prazo de prescrição da coima, por força da Lei 1-A/2020, de 19/3, Dec. Lei10-A/2020, de 13/3 e Lei 16/2020, de 20/5.
Por seu turno, o MP em ambas as instâncias - na motivação do recurso e no parecer da Exª PGA - entende que esse regime jurídico (suspensão da prescrição) não é aplicável ao presente caso, por não ser mais favorável que o regime vigente na data da prática da infracção. Em rigor, entende que as medidas excepcionais e temporárias constantes da Lei nº. 1-A/2020, de 19/03, Dec. Lei 10-A, 2020 e Lei 16/2020, de 20/5, determinando a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade não são aplicáveis ao presente caso, uma vez que, no âmbito penal e contraordenacional, é proibida a retroactividade da lei, salvo se mais favorável ao arguido.
Com efeito, o MP sublinha que a lei penal, ainda que temporária, se aplica aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o tempus delicti, nos termos do artigo 2º, nº 1, do Código Penal, e nunca retroactivamente, excepto nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias, em que será aplicável a mais favorável ao arguido.
Esta questão foi exaustivamente apreciada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-07-2020, proferido no processo 128/16.5SXLSB.L1-5.
Ali se decidiu que “A lei penal temporária nunca é aplicável retroactivamente, a não ser nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável. Por conseguinte, a lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o tempus delicti, nos termos do artigo 2.º, n.º1, do Código Penal. A causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, enquanto seja aplicada aos prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança, aplica-se aos factos praticados na sua vigência - cfr. sumário do acórdão.
A linha argumentativa do acórdão é a seguinte:
“ (…)
Quanto à prescrição da pena, pronunciou-se o S.T.J., por acórdão de 04-02-2010, processo 29/10.0YFLSB.S1, nos seguintes termos:
«A prescrição da pena é um pressuposto negativo da punição, que, tal como a prescrição do procedimento criminal, tem natureza substantiva e processual, predominando hoje a teoria jurídico-material da prescrição. A natureza substantiva, que muitos Autores pretendem, aqui, dominante ou mesmo exclusiva, advém-lhe de razões ligadas às finalidades da punição. Com o decurso do tempo sobre o trânsito em julgado da sentença condenatória sem que o condenado tenha iniciado o cumprimento da pena imposta, esbate-se a necessidade comunitária da sua execução e, ao mesmo tempo, a exigência de socialização do condenado, que constitui uma outra das finalidades da pena e factor determinante da sua fixação concreta dentro de determinadas circunstâncias que foram sopesadas na decisão, perde também a sua razão de ser, a ponto de poder tornar-se completamente desajustada, se o condenado a tivesse que cumprir muito tempo depois da condenação.
A natureza processual, por seu turno, liga-se a razões que têm a ver com o próprio processo, também neste caso, pois a prescrição obsta a que a pena seja executada, não obstante basear-se numa decisão transitada em julgado. Neste sentido, é um pressuposto negativo de carácter processual, ou como diz FIGUEIREDO DIAS, obstáculo de realização (execução) processual (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 702, sendo a expressão a negrito do próprio Autor).»
Em consequência deste entendimento, conclui-se que também em matéria de prescrição da pena é aplicável o princípio da lei penal mais favorável.
O momento-critério da determinação da lei aplicável é o tempus delicti (artigo 2.º. n.º1, do Código Penal), independentemente de o prazo de prescrição da pena contar-se a partir do momento em que transita em julgado a sentença (cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 27-11-2013, processo 236/96.7BAND-A.C1), sem prejuízo da sujeição ao princípio da lei mais favorável, atenta a natureza da prescrição (artigo 2.º, n.º4, do Código Penal).
Resulta do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior, além de que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Nos termos do artigo 2.º, n.º1, do Código Penal, as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem, pelo que é retroactiva a aplicação de lei que for posterior a esse momento.
Por sua vez, o n.º4 do referido artigo 2.º, na linha do preceito constitucional, prescreve, para o que ora nos importa, que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.
Vinculadas, assim, as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção, tendo em vista a sua natureza substantiva, ou, pelo menos, mista (substantiva e processual), aos princípios da legalidade e da aplicação da lei mais favorável, afigura-se-nos que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da supra citada Lei n.º 1-A/2020, apenas poderá ser aplicada aos factos praticados na sua vigência (entendimento sustentado no E-book do Centro de Estudos Judiciários, “Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça”, 2.ª edição, http://www .cej.mj.pt/ cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf, com argumentos que têm a nossa inteira adesão).
Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, seria admitir a aplicação retroactiva da lei penal, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º4, da C.R.P., já que tal suspensão, alargando os prazos de prescrição, agrava a situação do arguido/condenado.
Argumenta o tribunal recorrido que o artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, constitui “lei temporária” e que, «porque de normas excepcionais, temporárias e de emergência se tratam, entendemos, salvo melhor opinião, que a questão da sua aplicação não poderá ser resolvida através do princípio geral da aplicação das leis penais no tempo.»
Vejamos.
O artigo 2.º, n.º3, do Código Penal, consagra para as chamadas “leis temporárias” uma excepção ao princípio da aplicação da lei mais favorável, nos seguintes termos: «Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período.»
Ensina Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 205), que leis temporárias são aquelas que, a priori, são editadas pelo legislador para um tempo determinado: seja porque esse período é desde logo apontado pelo legislador em termos de calendário ou em função da verificação ou cessação de um certo evento (chamadas leis temporárias em sentido estrito); seja porque aquele período se torna reconhecível em função de certas circunstâncias temporais (chamadas leis temporárias em sentido amplo).
Atingida a data fixada para o termo da vigência da lei ou decorrido o acontecimento excepcional que a determinou, cessa automaticamente a vigência da lei penal (temporária).
Porém, o facto cometido durante o período de vigência da lei penal (temporária) continua a ser punível depois da cessação da vigência da dita lei, não sendo aplicável retroactivamente a lei penal posterior mais favorável.
Situação diversa é a de o legislador alterar a lei temporária, estabelecendo uma sucessão de leis penais temporárias, caso em que é aplicável a lei penal nova aos factos anteriormente cometidos, se mais favorável.
A razão que justifica o afastamento da aplicação da lei mais favorável ao facto cometido durante o período de vigência da lei penal temporária reside em que a modificação legal se operou «em função não de uma alteração da concepção legislativa – esta é sempre a mesma -, mas unicamente de uma alteração das circunstâncias fácticas (…) que deram base à lei. Não existem por isso aqui expectativas que mereçam ser tutelada, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral positiva persistem.» (Figueiredo Dias, ob cit. p. 205)
Como assinalou Maia Gonçalves (Código Penal Português, 18.ª edição, 2007, p. 63), «esgotado o período de tempo previsto para as leis temporais (…), não se pode verdadeiramente dizer que a lei, porque já não pode ter aplicação a casos ocorridos em momentos posteriores, deixou de estar em vigor para os ocorridos durante o período previsto no pensamento legislativo. Não há, se mergulharmos fundo na essência das coisas, uma excepção à não retroactividade da lei penal, pois que a lei não é outra; é a mesma para o período previsto.»
Atente-se, porém, que a lei penal temporária nunca é aplicável retroactivamente, a não ser nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável.
Por conseguinte, a lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o tempus delicti, nos termos do artigo 2.º, n.º1, do Código Penal.
E continua a ser aplicada a esses factos mesmo depois da cessação da sua vigência, o que constitui excepção ao princípio da lei mais favorável, conforme estabelece o artigo 2.º, n.º3, do Código Penal, que veio consagrar legislativamente a doutrina firmada pelo assento de 18 de Julho de 1947, citado (a nosso ver, salvo melhor opinião, sem a melhor compreensão do seu alcance) no despacho recorrido de 22 de Maio.
A aplicação de lei penal, temporária ou não, a factos anteriores à sua vigência, constituirá uma aplicação retroactiva dessa lei.
Ora, aplicar a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, ou seja, a factos praticados antes da sua vigência, implica, a nosso ver, uma aplicação retroactiva da lei, em sentido mais gravoso para o agente do crime e em violação do já mencionado artigo 29.º, n.º4, da C.R.P., sendo certo que nem mesmo nas situações de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência pode ser afectada “a não retroactividade da lei criminal”, como expressamente se consagra no artigo 19.º, n.º 6, da mesma C.R.P. e foi também consagrado na Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que estabelece o regime do estado de sítio e do estado de emergência.
E o mesmo – não afectação da não retroactividade da lei criminal - ficou expresso nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º1), n.º 17-A/2020, de 2 de Abril (artigo 7.º, n.º1) e n.º 20-A/2020, de 17 de Abril (artigo 6.º, n.º1), que o renovaram.
Esta é a questão em causa: não tanto a de convocar o artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, para a resolução do problema suscitado, mas sim o de identificar na posição perfilhada nos despachos recorridos a aplicação retroactiva da nova lei, enquanto reportada a prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança - aplicação que afastamos.
Conclui-se, assim, que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, enquanto seja aplicada aos prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança, aplica-se aos factos praticados na sua vigência.
Finalmente, o referido diploma, como já dissemos, foi publicado em 19 de Março e entrou em vigor no dia seguinte (artigo 11.º), devendo produzir efeitos a 9 desse mês nos termos do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020.
Porém, sob pena de aplicarmos retroactivamente uma lei criminal, o mencionado n.º3 do artigo 7.º, enquanto reportado a prazos de prescrição do procedimento criminal ou de penas e medidas de segurança, apenas pode vigorar para o futuro, ou seja, desde o momento da entrada em vigor da Lei n.º1-A/2020, 20 de Março de 2020 (assim se defende no mencionado E-book do CEJ).
(…) ”
Concordamos, no essencial, com o entendimento seguido nesse acórdão.
O artigo 7º, n.ºs 3, 4 e 6, al. b) a da Lei nº 1-A/2020, de 19.03 diz-nos o seguinte:
“3. A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4. O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
6. O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a:
(…)
b) Procedimentos contraordenacionais, (…) ”.
Há todavia que articular este regime com a proibição de aplicação retroactiva da lei penal, salvo se mais favorável ao arguido, uma vez que o regime constitucional relativo à aplicação da lei penal no tempo é bastante rígido.
Com efeito, nos termos do art. 29º, 1 da CRP “ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão (…) e cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”.
De acordo com o n.º 3 do mesmo preceito, não “podem ser aplicadas penas (…) que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”.
E o n.º 4 do mesmo preceito estipula que são aplicáveis “retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.
A conclusão é, assim, a de que prescrição da pena, enquanto pressuposto negativo da sua aplicação, deve estar estabelecida em lei anterior. Só será aplicável uma lei posterior (aplicação retroactiva) nos casos em que o seu conteúdo seja mais favorável ao arguido. Este princípio da não retroactividade da lei penal, salvo se mais favorável ao arguido, nem sequer pode ser afastado em “estado de emergência”. Com efeito, nos termos do art. 19º, 6, da CRP, a declaração do estado de emergência “em nenhum caso pode afectar os direitos (…) à não retroactividade da lei criminal.
Deste modo, o disposto no art. 7º, n.º 3 da Lei 1-A/2020 de 19 de Março, quanto à suspensão da prescrição ali prevista, não pode ser aplicado retroactivamente em direito penal, sob pena de inconstitucionalidade. Ou seja, podemos concluir que o regime da suspensão da prescrição aplicável é aquele que vigorar na data da prática da infracção, pro força do art. 2º, n.º 1 do C.P e 3º, n.º 1 do DL nº. 433/82, de 27/10, salvo se a lei nova for mais favorável ao arguido – cfr. neste sentido PEDRO CAEIRO, Aplicação da Lei Penal no Tempo e Prazos de Suspensão da Prescrição (…) Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001.
Não se diga finalmente que a referida interpretação do art. 7º, n.º 3 da Lei 1-A/2020, - ao determinar a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, face à situação de emergência – fica deste modo esvaziado, pois tal não é verdade. Esse regime continua a ter aplicação em todos os casos de prescrição e caducidade não abrangidos pelo art. 29º da CRP, designadamente no âmbito do direito privado e das situações penais ocorridas durante a sua vigência.
Tendo em conta este entendimento, verifica-se que ocorreu efetivamente a prescrição da coima, nos termos defendidos pelo MP/recorrente. Com efeito, o prazo de prescrição da coima é de 1 (um) ano, dado o respectivo valor (€1.000,00) e o disposto no art. 29º, nº 1, alínea b), do RGCO. Tal prazo começou a correr em 15-05-2019 (data em que decisão se tornou definitiva) e não sofreu qualquer efeito interruptivo ou suspensivo. Assim, esse prazo completou-se em 15-05-2020, pelo que, quando foi proferido o despacho recorrido (22-10-2020), a coima já se encontrava prescrita.
Nestes termos, impõe-se julgar o recurso procedente e consequentemente declarar-se a prescrição da coima aplicada ao arguido B…, com as necessárias consequências no processo executivo, ou seja, a extinção da execução, dada a prescrição da coima exequenda.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, julgar prescrita a coima aplicada ao arguido B… e extinta a respectiva execução, instaurada para a sua cobrança coerciva.
Sem custas.

Porto, 14.04.2021
Élia São Pedro
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