Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1684/21.1T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
ESBULHO VIOLENTO
Nº do Documento: RP202104131684/21.1T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A concessão de tutela cautelar, no âmbito de um procedimento cautelar de restituição provisória de posse, depende da identificação de um esbulho violento, requisito este que jamais poderá prescindir de um acto do esbulhador que, operando uma alteração ao status quo da relação entre o possuidor, a coisa e o esbulhador, determine a impossibilidade da continuação do domínio anteriormente exercido pelo possuidor.
II - A concessão de tutela cautelar, no âmbito de um procedimento cautelar comum, exige que se reconheça, ainda que perfunctoriamente, o direito que o requerente da providência pretende acautelar; que se conclua que a inevitável demora na resolução definitiva do litígio sobre a existência desse direito comporta algum perigo para a respectiva integralidade; nesta hipótese, admitir que a concretização desse perigo dê azo a uma lesão grave e de difícil reparação que permanece ou que pode advir, para o conteúdo útil desse direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: P. nº 1684/21.1T8VNG.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de V.N. Gaia - Juiz 5

Rel. nº 603
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

B... e C… instauraram procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra D…, pedindo que seja ordenado à Requerida, em prazo não superior a 5 dias a contar da decisão, e sob cominação de desobediência, que proceda à desocupação do imóvel que ocupa, sito na Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, que lhes pertence e pretendem ver restituído à sua posse.
Alegam, para o efeito, que são donos e legítimos possuidores do referido prédio urbano, que herdaram por óbito de seus pais, anteriores proprietários. E se assim não fosse, sempre o teriam adquirido por usucapião. Mais referem que, em meados de 2015 a sua mãe, que residia no dito imóvel, para assegurar apoio doméstico de que carecia, acedeu a que a Requerida passasse a habitar o primeiro andar de um anexo pertencente ao referido prédio, a título gratuito, continuando a suportar ela própria as despesas inerentes. Porém, em finais de 2018, determinou que a Requerida passasse a custear as despesas da sua vivência naquele local, bem como que a reembolsasse do que, entretanto, fora pago por si, o que foi sendo cumprido pela Requerida, consoante a sua conveniência, em termos de montantes e datas. Referem, ainda, que a sua mãe veio a falecer em Julho de 2020, altura em que puseram termo àquele contrato de comodato, solicitando à Requerida que desocupasse o imóvel, ao que esta anuiu, solicitando um prazo de seis meses, para conseguir encontrar outra habitação. Depois disso, em Outubro de 2020, celebraram um contrato promessa de compra e venda do imóvel em causa, o que, tendo chegado ao conhecimento da Requerida, fez com que esta se recusasse a desocupar o imóvel, a não ser mediante compensação monetária avultada. Além disso, em 08-10-2020 a Requerida procedeu ao depósito da quantia de 250,00€ numa conta bancária titulada pela 1.ª Requerente, atribuindo-lhe a designação de renda, o que fez apenas por pretender criar a aparência da existência de um contrato de arrendamento, pois que nunca o tinha feito antes. Em 16-10-2020 e em 30-10-2020 interpelaram a Requerida para que procedesse à entrega do imóvel em causa, mas sem sucesso. Entretanto, porque a 1.ª Requerente encerrou a dita conta bancária, a Requerida procedeu à consignação em depósito, junto da E…, do valor de 250,00 EUR, alegando recusa no recebimento da renda. Por fim, afirmam que a Requerida se recusa a sair do imóvel, pretendendo uma avultada compensação pecuniária para o efeito, que lhes nega o acesso ao mesmo, do qual nem têm chaves, e que tudo faz sabendo que com isso pode perturbar o cumprimento do referido contrato-promessa. Terminam classificando a conduta da Requerida como um verdadeiro esbulho violento do poder fáctico e do direito de uso do exercício da propriedade e da posse que assiste aos Requerentes, bem como que sempre se verificará o periculum in mora por estar iminente a execução de um contrato-promessa (cuja existência é do conhecimento da Requerida e com o qual esta joga em seu benefício), que pode ruir ante a recusa da Requerida em desocupar o imóvel que ilicitamente ocupa.
Apreciando a petição, o tribunal proferiu decisão de indeferimento liminar da providência requerida, com fundamento, por um lado, na inexistência de um esbulho violento apto a justificar a tutela cautelar através de restituição provisória de posse; e, por outro, pela inexistência do periculum in mora essencial à atribuição de uma tutela cautelar comum, em face do teor do contrato-promessa invocado a esse propósito.
É desta decisão que os requerentes vêm interpor recurso, que terminam enunciando as seguintes conclusões:
“I – O Tribunal a quo defende que a tutela sobre o esbulho violento deve vigorar nos casos em que alguém “atuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa”, não se compreendendo, porém, como não concluiu que a Requerida, quer recusando-se a sair, quer recusando-se a entregar as chaves que a própria implantou no anexo que ocupa, cria obstáculos que constrangem os possuidores, impedindo-lhes o acesso à coisa.
II – Não se pode perder de vista que impedimento do gozo do direito de propriedade e da posse de que os Recorrentes são legítimos detentores é-lhes imposto, pela Requerida, pela força da mecânica das fechaduras e pela força da sua presença, com a sua pessoa e com coisas, não podendo ser removidos por via pacífica, apenas sendo possível ou pelo presente procedimento ou pela acção directa prevista no artigo 336º do CC.
III – Ora, como corolário lógico – e chamemos-lhe mesmo sinalagma correspondente –, a turbação perpetrada pela Requerida é VIOLENTA, apenas podendo ser coercivamente removida porque é coercivamente imposta aos legítimos possuidores.
IV – Também se não pode aceitar o entendimento postulado na douta sentença de que apenas uma acção do esbulhador possa ser considerada como violência, e não uma omissão – isto considerando o Tribunal a quo que a conduta da Requerida constitui uma omissão, mas vindo depois a dizer que aquela pode estar no “exercício” de um putativo direito.
V – A Requerida esbulha e mantém a turbação, impondo-a aos Recorrentes, precisamente por meio de acções por si adoptadas: recusa-se a sair, mesmo tendo cessado a causa justificativa para a sua ocupação; recusa-se a entregar as chaves do anexo aos legítimos proprietários; activamente faz condicionar a desocupação a uma “extorsão” que vem escalando ante a aparente disponibilidade financeira dos recorrentes.
VI – Não pode, destarte, colher o entendimento de qualquer omissão da Requerida quando esta, deliberada e expressamente e sem possibilidade de remoção pacífica, impõe aos Recorrentes a turbação da posse, nem pode aquele esbulho deixar de ser considerado violento, devendo ser decretada a restituição provisória da posse.
VII – Por outro lado, na perspectiva de se lançar mão do procedimento cautelar comum, a douta sentença dá como verificados todos os requisitos, excepto o do periculum in mora, não acolhendo o Tribunal a quo a premência que um contrato-promessa já celebrado impende sobre a desocupação daquele anexo (compreendido no imóvel prometido vender) por daquele constar a possibilidade de renovação automática.
VIII – No entanto, o Tribunal a quo perdeu de vista que – não obstante a grosseira imperfeição forense com que o contrato-promessa em causa foi notoriamente elaborado – não podem os outorgantes ficar per omnia seculorum vinculados a um contrato que se renova indefinidamente, não estando precludida a verificação de interesse contratual negativo por banda do promitente-comprador.
IX – Por outro lado, também é de perspectivar o interesse contratual positivo: nos termos do contrato, pode o promitente-comprador agendar a escritura do negócio prometido, que se comprometeram os Recorrentes a celebrar com o imóvel “livre de ónus e encargos”, sendo que o esbulho por banda da Requerida constitui ónus notório, enquanto turbação da posse que é.
X – Não removido esse ónus, não se mostra reunida uma condição do contrato prometido, assim se frustrando o mesmo, pelo que, como se disse no requerimento inicial, “sempre ocorre periculum in mora por estar iminente a execução de um contrato-promessa (…), podendo o mesmo ruir ante a recusa da Requerida em desocupar o imóvel que ilicitamente ocupa, sem qualquer título justificativo legítimo” (39º); “Iminência essa que não se compadece com as naturais delongas dos meios comuns” (40º).
XI – Como tal, e designadamente ante a inexistência de qualquer interesse atendível a sacrificar, também o procedimento cautelar comum deve ser decretado nos termos peticionados.
(…)”
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Recebido neste TRP, cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC).
No caso, identificam-se as seguintes questões a resolver:
- Se os factos alegados são aptos a permitir concluir pelo preenchimento do conceito de esbulho violento, enquanto requisito para a tutela cautelar própria da restituição provisória de posse.
- Em caso negativo, se os factos alegados são aptos a traduzir a existência de periculum in mora, enquanto requisito da tutela cautelar comum, devendo o procedimento prosseguir para concessão dessa forma de tutela.
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Como resulta das questões apontadas, inexiste controvérsia sobre os pressupostos necessários ao deferimento das formas de tutela cautelar pretendidas pelos requerentes: restituição provisória de posse ou procedimento cautelar comum. Tal como inexiste controvérsia quanto ao eventual preenchimento dos diferentes pressupostos de cada um desses instrumentos processuais, que não o respeitante ao esbulho violento e ao periculum in mora, respectivamente. Devemos, pois, centrar-nos na análise destes.
Para o efeito, é útil relembrar o alegado pelos requerentes, quanto ao preenchimento dos requisitos em causa, matéria essa que o tribunal recorrido teve por insuficiente para o efeito, nisso baseando a sua decisão de indeferimento liminar.
Alegaram:
“19º - Com o falecimento da mãe dos Requerentes, e tendo estes adquirido o imóvel em apreço por via da sucessão hereditária, estes puseram termo ao comodato do anexo em mérito do qual era beneficiária a Requerida, solicitando-lhe que o desocupasse de pessoas e bens.
21º - Em meados de Agosto de 2020, a Requerida solicitou aos Requerentes um prazo máximo de 6 meses para desocupar o imóvel em questão.
22º - No entanto, em 10/10/2020, os Requerentes outorgaram contrato-promessa para a venda do imóvel aludido em 1º supra, “livre de ónus ou encargos”, sendo o valor da venda fixado em 200.000,00€ (duzentos mil euros), (…).
23º - Tendo a existência do contrato-promessa em apreço chegado ao conhecimento da Requerida, esta mudou a postura perante os Requerentes, recusando-se a sair do imóvel que ocupa, dizendo que apenas sairia mediante avultada compensação pecuniária.
25º - Em consequência, a 16/10/2020, os Requerentes interpelaram a Requerida para a entrega do imóvel desocupado de pessoas e bens, através de mandatário que constituíram, que lhe endereçou carta registada com A/R, tendo sido devolvida por não ter sido reclamada, (…)
29º - Tudo pretendendo a Requerida, apressadamente, criar a aparência de um contrato de arrendamento para tentar obstar à desocupação do imóvel – desocupação essa com a qual, aliás, já se tinha comprometido.
31º - No presente momento, a Requerida recusa-se a sair do imóvel a não ser mediante avultada compensação pecuniária que pede em montantes obscenamente altos e que não têm qualquer reflexo sequer na ficção do arrendamento que a Requerida criou, ultrapassando largos anos das rendas ficcionadas.
32º - A Requerida nega aos Requerentes o acesso ao imóvel, bem como a que estes disponham dele como entendam, no exercício do seu direito absoluto de propriedade, nem tendo estes chaves do imóvel em apreço.
33º - Fá-lo designadamente sabendo que com isso pode perturbar a regular execução do contrato-promessa aludido em 22º supra – razão por que pede compensações que não têm correspondência com qualquer instituto jurídico.
34º - Estão, assim, os Requerentes esbulhados na posse daquele imóvel.
35º - Tais actos da Requerida constituem um verdadeiro esbulho violento do poder fáctico e do direito de uso do exercício da propriedade e da posse que assiste aos Requerentes.
39º - Mas, ainda que assim se não entendesse – o que se não concede –, sempre ocorre periculum in mora por estar iminente a execução de um contrato-promessa (cuja existência é do conhecimento da Requerida e com o qual esta joga em seu benefício), podendo o mesmo ruir ante a recusa da Requerida em desocupar o imóvel que ilicitamente ocupa, sem qualquer título justificativo legítimo.
40º - Iminência essa que não se compadece com as naturais delongas dos meios comuns,
41º - Não sendo de ponderar qualquer interesse a sacrificar porquanto a Requerida teve já mais de 6 meses para encontrar outra habitação, abusando grosseiramente da bonomia dos Requerentes.”
De entre a matéria que acabamos de transcrever, a que os requerentes qualificam como integradora do conceito de esbulho violento é a descrita nos arts. 25º a 33º, como se verifica das conclusões constantes dos arts. 34º e 35º do requerimento inicial: “estão assim os requerentes esbulhados na posse do seu prédio, por actos da requerida que constituem esse esbulho”. E esses actos são, em suma, a requerente recusar-se a desocupar e a entregar o prédio dos requerentes, invocando ser titular de um arrendamento sobre o mesmo, salvo se a compensarem pela desocupação, negando-lhes o acesso a esse mesmo prédio, do qual os requerentes nem têm chave.
Claro se torna que esta actuação constitui uma limitação ao direito de propriedade dos requerentes, pois que inibem que dele possam dispor sem limitações, designadamente entregando-o a quem quiserem, na sequência do contrato que invocam ou de qualquer outro. E também é óbvio que a actuação da requerida, segundo o alegado, constitui uma limitação ao próprio domínio fáctico dos requerentes sobre o prédio, desde logo porque nele não podem entrar livremente, por exemplo. Porém, será que isso, nos termos alegados, cuja essência acaba de se enunciar, é suficiente para o preenchimento do pressuposto da providência de restituição provisória de posse constituído pelo esbulho violente da posse dos requerentes sobre o seu prédio?
Desde já adiantamos, em plena concordância com a decisão recorrida, que a resposta a essa questão só pode ser negativa. Com efeito, a questão que aqui se coloca não é a da suficiência de a violência através da qual se concretiza o esbulho, compreendido este como a retirada ou privação da posse a outrem, poder ser dirigida apenas contra as coisas ou se carece de sê-lo também contra as pessoas. De resto, tantas vezes a violência pode ser imediatamente dirigida contra uma coisa, mas mediatamente dirigida contra o possuidor, que em muitas situações fica reduzida a utilidade dessa discussão, em prejuízo da tese mais restritiva, alicerçada no texto da norma do nº 2 do art. 1261º do C.Civil, segundo a qual a violência relevante é só aquela que for exercida sobre as pessoas, por coacção física ou moral. A este respeito é elucidativa a análise de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anot. Vol. II, 3ª ed, pgs. 89-94. Quase no limite das situações em que ainda se pode concluir pelo preenchimento do requisito do esbulho violento, estes autores apontam a hipótese de uma acção física exercida sobre uma coisas como forma de coagir alguém a suportar uma situação contra a sua vontade, na medida em que constitua um obstáculo à actuação do possuidor sobre a coisa, a partir da acção do esbulhador. Como exemplo, é referido o caso da mudança de fechadura da porta da casa onde, por permissão do possuidor, era tolerada a habitação do esbulhador.
Porém, nem a esta última hipótese se pode reconduzir a situação jurídica descrita pelos requerentes. Com efeito, a identificação de um acto de esbulho violento jamais poderá prescindir de uma intervenção do esbulhador que, operando uma alteração ao status quo da relação entre o possuidor, a coisa e o esbulhador, determine a impossibilidade da continuação do domínio anteriormente exercido pelo possuidor. Algo tem de se alterar na realidade relacional entre esses três elementos. E muitos são os exemplos de tais circunstâncias, alguns deles elencados por Lebre de Freitas (ob. e loc. cit.). Mas em caso algum a situação de esbulho violento poderá corresponder à pura e simples continuação da situação que antes existia, designadamente quando traduzida na recusa daquele que está no uso da coisa, simplesmente, em devolvê-la ao dono. E isso sem que ocorra qualquer alteração na relação material do possuidor com a coisa, i. é, sem que o esbulhador instale um novo obstáculo, implemente um impedimento anteriormente inexistente, adopte uma conduta inibidora do domínio que anteriormente era exercido.
Ora, no caso sub judice, o que os requerentes afirmam é que interpelaram a requerida para que lhes devolvesse o imóvel e esta, depois de dizer que sim, recusa-se a fazê-lo, diligenciando de forma que indicia pretender invocar a existência de um contrato legitimador da sua recusa. Mas nenhum aspecto da relação material entre os requerentes e o seu imóvel surge alterado por via do comportamento da requerida que descrevem: não ficaram privados do acesso que tinham e deixaram ter por via da colocação de qualquer obstáculo; não tinham chaves e a fechadura foi mudada e deixaram de poder aceder; não deixaram de ir ao local por medo ou em resultado de ameaças; não ficaram privados de qualquer exercício sobre o prédio em resultado de um novo comportamento da requerida. Nenhuma destas situações, ou qualquer outra do género, alegam.
Acresce que a esse tipo de acções não pode equiparar-se simplesmente o correspondente lado passivo, como parecem entender os apelantes: não ter um acesso, que não se alega ter existido, não é igual a ficar subitamente privado do mesmo; não ter uma chave que permita franquear uma entrada por ter sido mudada a fechadura não é igual a jamais ter podido franquear a entrada e continuar sem ter esse poder. E isso porquanto nesse mero efeito passivo não se identifica com um comportamento positivo paralelo – a acção qualificável como esbulho com violência – que justifica a urgente, provisória reacção da ordem jurídica, fundada em meros indícios, para a reposição de um status quo ante já que nenhuma alteração material ocorreu na situação jurídica.
De resto, nos exemplos dados na sentença e reproduzidos nas alegações deste recurso e nas citações jurisprudenciais dos apelantes, bem se vê a falta de semelhança para com o caso em apreço. Diferentemente de tais hipóteses, simplesmente a requerida recusa a sua entrega e o relacionamento material dos requerentes com o imóvel continua igual ao que era.
Por conseguinte, é a nosso ver claro que a situação em causa não pode subsumir-se ao conceito de esbulho violento e, assim, merecer a tutela cautelar própria do expediente da restituição provisória de posse. Isso não significa, como é óbvio, que o direito dos autores, a existir nos termos que o invocam, fique desprovido de tutela jurídica. Significa apenas que não se indicia estar sob um estado de carência tão premente que, com base num juízo perfunctório e provisório, sem citação e sem audiência da requerida, se justifique desde já reconhecê-lo e impô-lo coercivamente.
Resta, pois, nesta parte, afirmar o acerto da decisão recorrida, na improcedência das razões dos apelantes.
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Dispõe o art. 379º do CPC que, na ausência das circunstâncias previstas no art. 377º do CPC, é facultado ao possuidor esbulhado o recurso ao procedimento cautelar comum. De resto, subsidiariamente, os próprios requerentes haviam formulado esse pedido.
Dispõe o art. 362º, nº 1 do CPC: Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Para isso, segundo dispõe o art. 365º, no seu nº1, o requerente deve oferecer prova sumário do direito ameaçado e justificar o receio da lesão.
Assim, a atribuição de tutela cautelar exige:
a) que se reconheça, ainda que perfunctoriamente, o direito que o requerente da providência pretende acautelar;
b) que se conclua que a inevitável demora na resolução definitiva do litígio sobre a existência desse direito comporta algum perigo para a respectiva integralidade;
c) nessa hipótese, admitir que a concretização desse perigo deu azo a uma lesão grave e de difícil reparação que permanece ou que pode advir, para o conteúdo útil desse direito.
Como acima se referiu, o requisito cujo preenchimento está em causa, nesta sede de recurso, é o respeitante ao periculum in mora. Como se refere no Ac. do STA de 24/5/2018 (proc. nº 0371/18) “O periculum in mora constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora na obtenção de decisão no processo principal cause danos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que motiva ou justifica este tipo de tutela urgente”.
Em recente acórdão proferido neste tribunal (proc. nº 13644/20.5T8PRT.P1, de 9/3/2021), escrevemos que para se aferir do significado deste requisito é útil atentar no esclarecimento enunciado no Ac. do TRC, de 10/7/2019 (proc. nº 1234/18.7T8CVL.C1, em dgsi.pt). Aí se explica que “Se os procedimentos cautelares servem para dar utilidade ao que for decidido na acção a favor do requerente, se servem para assegurar a efectividade do direito que lhe for reconhecido, então a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da acção será de considerar como grave e de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efectividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva.”
Desenvolvendo este resumo, citando Marco Gonçalves [Providências Cautelares, 2015, Almedina, página 214], ali se enuncia “o requerente da providência deve trazer ao tribunal a notícia de factos reais, certos e concretos que mostrem ser fundado o receio que invoca e não fruto da sua imaginação exacerbada ou da sua desconfiança doentia, pelo que não é suficiente para o decretamento de uma providência cautelar a mera possibilidade remota de vir a sofrer danos”.
No caso em apreço, evidencia-se a falta de alegação de um elenco de factos passível de subsunção ao regime do art. 362º, nº 1 do CPC, quanto ao requisito em questão. Não se consegue sustentar, com base na narrativa dos requerentes, que o decretamento da obrigação de entrega do prédio ocupado pela requerida aos ora requerentes, provisoriamente e, eventualmente, com base numa demonstração meramente indiciária da inexistência de qualquer título que habilite a requerida a ocupá-lo seja necessário para obviar a um perigo de lesão qualificada (grave e dificilmente reparável, repete-se) do seu direito, caso este venha a ser afirmado.
Com efeito, os requerentes limitam-se a alegar que celebraram um contrato-promessa tendente à venda daquele prédio e que a recusa da requerida em desocupá-lo os impedirá de cumprir a obrigação assim assumida. Mas nada alegam que permita concluir que essa circunstância será adequada para, com probabilidade, lhes determinar um dano grave e dificilmente reparável. Nada referem sobre a caracterização de um tal dano, que permita vir a qualificá-lo como grave, e nada alegam a propósito de, caso o mesmo ocorra, se vir a revelar dificilmente reparável. Acresce que isso nem sequer resulta do texto próprio contrato, como decorre, por um lado, de os requerentes o não justificarem; e, por outro, da análise das respectivas cláusulas, como consta da decisão recorrida, em termos que de modo nenhum foram contrariados no presente recurso. Com efeito, nesse contrato, sobre as consequências do seu incumprimento atempado, apenas se dispõe:
“1. A escritura pública do contrato de compra e venda ora prometido deverá ser celebrada no prazo de 30 (trinta) dias de calendário contados da data de assinatura do presente contrato, em dia, hora a indicar pelos PROMITENTES VENDEDORES, com 10 (dez) dias de calendário de antecedência, comprometendo-se o PROMITENTE COMPRADOR a facultar (…)
2. Caso a escritura pública do contrato de compra e venda não seja marcada pelos PROMITENTES VENDEDORES nos termos do disposto no número anterior, o prazo para a realização da escritura pública do contrato de compra e venda, de 30 (trinta) dias de calendário, referido na parte inicial do número um, renova-se, automaticamente por um período de 30 (trinta) dias de calendário e a faculdade de indicação da data para a realização da mesma deverá ser exercida pelo PROMIETENTE COMPRADOR, dentro do novo prazo para realização da escritura pública do contrato de compra e venda, devendo, nesse caso, os PROMITENTES VENDEDORES facultar (…)
3. Caso se mostre ultrapassado o prazo inicial para realização da escritura pública do contrato e compra e venda e sua renovação, sem que qualquer uma das PARTES haja exercido a faculdade de indicação da data de realização da escritura pública do contrato de compra e venda, o prazo para realização da escritura pública do contrato de compra e venda, de 30 (trinta) dias de calendário, renovar-se-á, sucessivamente, até à data em que uma das partes proceda à indicação de data para a realização da escritura pública referida.»
Como bem se refere na decisão recorrida, destas cláusulas não decorre, sem mais, qualquer momento para o ingresso do contrato em incumprimento definitivo, nem qualquer consequência para esse mesmo incumprimento que, sem qualquer outro facto, se possa traduzir já no risco de um dano grave e dificilmente reparável para os requerentes, superior ao risco inerente à necessidade de reconhecimento do seu direito num processo comum.
Acresce que também em nenhuma das outras cláusulas do contrato se estatuiu qualquer consequência para um eventual incumprimento dos promitentes vendedores que, de per si (já que mais nada vem alegado a esse propósito), pudesse ser qualificada como um prejuízo grave e dificilmente reparável, enquanto efeito mediato da recusa da requerida quanto à entrega do prédio que ocupa, designadamente por obstar ao cumprimento do contrato prometido.
Em suma, tal como decidido na decisão em crise, em face da matéria alegada está prejudicada a hipótese de preenchimento do requisito da obtenção da tutela pretendida, por via de um procedimento cautelar comum.
Escusado será repetir as razões pelas quais, mesmo assim, de modo algum fica prejudicada a tutela jurídica do direito invocado pelos requerentes. O que não se justifica é que essa tutela seja concedida provisoriamente e com base na percepção de meros indícios, quer quanto a existência do direito invocado, quer quanto à sua agressão pela requerida, porquanto não se verifica, quanto às consequências danosas que daí poderão advir, um excesso de risco por comparação para aquele que é inerente à pendência de qualquer acção (Lebre de Freitas, CPC Anot, vol.II, pg. 8).
Resta, em suma, concluir que também em relação a esta questão só pode confirmar-se a decisão recorrida, por não colherem as razões dos apelantes.
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Verifica-se, pois, que em face da impossibilidade de preenchimento dos requisitos de qualquer um dos expedientes cautelares requeridos, o presente procedimento, necessariamente sujeito a despacho liminar (art. 226º, nº 4, al. b) do CPC), sempre haveria de improceder, o que justifica o seu indeferimento liminar, nos termos do art. 590º, nº 1 do CPC, como decidido na 1ª instância.
Por todo o exposto, na ausência de outras questões a apreciar, cumpre julgar improcedente a presente apelação, por não ser digna de qualquer censura a douta decisão recorrida.
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Sumário (art 663º, nº 7 do CPC):
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3 - DECISÃO

Em conclusão, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação, na confirmação integral da decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes.
Notifique.

Porto, 13/4/2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro