Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2318/18.7T8AGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO PAULO VASCONCELOS
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
CADUCIDADE
MORTE DO MANDANTE
HERDEIROS
OBRIGAÇÃO DE PRESTAR CONTAS
Nº do Documento: RP202112022318/18.7T8AGD.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva. O que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte.
II - O mandatário é obrigado a prestar contas aos herdeiros do mandante por morte deste.
III - É que, não obstante a indiscutível natureza pessoal do contrato de mandato, a qual, ademais, resulta na exclusão da relação de mandato do objecto da sucessão, não se transmitindo o mandato, de facto, aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (cfr. artigo 2025º, nº 1 do Código Civil), a obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2318/18.7T8AGD.P1
(Recurso)

Acordam, em audiência de julgamento, na 3ª Secção (2ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

B…, com sinais nos autos, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Aveiro - Juiz 2, em 19 de Abril de 2021, que julgou manifestamente improcedente a acção especial para prestação de contas intentada pela A., aqui Apelante, contra C…, veio interpor o presente recurso de Apelação para este Tribunal e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões:

“1- Vem o presente recurso de apelação interposto da douta Sentença proferida no âmbito dos presentes autos, a qual julgou manifestamente improcedente a presente ação intentada pela A., por não estar o Réu legalmente obrigado a prestar contas à A..
2- O presente recurso, versando sobre matéria de direito, é interposto na firme convicção que a Sentença aqui em recurso tem por base uma errada e insuficiente qualificação jurídica, a qual vai em sentido bem diferente daquele que Vossas Excelências elegerão, certamente, como mais acertada, depois da necessária reponderação dos pertinentes pontos da matéria de facto e de direito, e à luz do meios probatórios disponíveis.
3- Com efeito, o objeto do presente recurso é a impugnação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, designadamente quanto à obrigação do Réu, ora Recorrido, C…, prestar contas à Autora, ora Recorrente.
4- Pois bem, com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal recorrido decidiu mal, mediante a prolação da decisão ora posta em crise.
5- Efetivamente, é firme convicção da Recorrente que a decisão recorrida é baseada numa errada aplicação das regras de direito e da fundamentação que lhe foi subjacente.
6- Ora, por via de tal decisão, a Meritíssima Juiz a quo julgou a acção manifestamente improcedente, considerando que o Réu Recorrido nunca estaria obrigado a prestar contas à Autora, in casu, à Recorrente, designadamente dos atos que praticou no período compreendido entre 07/03/2005 até ao falecimento de D…, ocorrida em 15/01/2014, em face da Procuração outorgada pela mãe de ambos a favor do Réu.
7- A aqui Recorrente apresenta, ora, a sua motivação de recurso, porquanto não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância.
8- Desde logo, conforme já mencionado e, ademais, resulta da factualidade dada como assente na sentença recorrida, a mãe da Recorrente e do Recorrido, em 07 de março de 2005, constituiu o Recorrido seu bastante procurador, conforme procuração junta sob o doc. n.º 1 da Petição Inicial.
9- Dos factos provados, resulta, claramente, que a falecida mãe da Recorrente e do Recorrido, deu poderes a este para a prática de vários atos, tendo para o efeito subscrito a aludida procuração.
10- Ora, assim, até à data de falecimento da mãe da Recorrente e do Recorrido, isto é, até 15/01/2014, o Recorrido, fazendo uso da procuração outorgada a seu favor, entre outros atos praticados, movimentou as contas bancárias tituladas pela sua mãe, tendo ainda encetado todas as diligências necessárias para legalizar imóveis, desanexar imóveis e, designadamente, concretizar a venda do imóvel sito na Rua …, freguesia …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 3275 e inscrito na matriz predial sob o artigo 4198, constituindo este imóvel património e a herança dos seus pais, o que veio a concretizar mediante escritura pública de compra e venda, celebrada a 13/01/2010, figurando como comprador o Sr. E… e a esposa F…, sendo que, atenta a já acentuada debilidade da mandante, sua mãe, foi o Recorrido quem recebeu o produto da venda e procedeu ao respetivo depósito em instituição bancária.
11- Sucede que, até à presente data, e ao contrário do que é alegado pelo Recorrido na Contestação por si apresentada, nos termos da qual alega que “O Réu prestou sempre contas na presença de familiares e terceiros, algumas vezes da própria Autora”, jamais foram prestadas as contas dos atos que praticou, quer à mandante, quer, agora, aos seus herdeiros, desconhecendo a Recorrente, até à presente data, qual o destino dado ao valor recebido pela venda do imóvel em representação dos seus finados pais,
12- motivo pelo qual, a Recorrente, atento o reiterado silêncio do Recorrido a esse respeito, sempre que interpelado pela Recorrente para prestar contas, foi forçada a instaurar a presente ação, peticionando a citação do Recorrido para, no prazo de 30 dias, prestar contas de todos os atos que praticou, no período compreendido entre 07/03/2005 até 15/01/2014.
13- ALÉM DO MAIS, cumpre esclarecer que também não corresponde à verdade que a mãe da A., ora Recorrente, sempre tenha gerido e administrado o seu património e que «só por razões meramente de facilidade e comodidade, outorgou a favor do Réu a procuração junta à p.i.», conforme alegou o Réu na sua Contestação.
14- Ora, a este propósito cumpre dizer que, pese embora a mãe da A., ora Recorrente, até à data do óbito, sempre tenha mantido a lucidez e as suas faculdades mentais, a mesma não geria o seu património e/ou administrava os seus bens, conforme o Réu, ora Recorrido, muito bem o sabe.
15- Acontece que, além da idade avançada da Mãe da aqui Recorrente, a senhora também era analfabeta, pelo que, quem geria e/ou administrava os seus bens e/ou património era, efetivamente, o aqui Réu, ora Recorrido, conjuntamente com a sua irmã G….
16- Por essa ordem de razões é que o aqui Recorrido ficou incumbido de tratar de todas as questões atinentes à concretização do supra referido negócio jurídico, pelo que, foi o aqui Recorrido quem recebeu o produto da venda do aludido imóvel e quem procedeu ao eventual depósito da quantia recebida a título de preço, em instituição bancária, em conta particular.
17- A Recorrente nunca foi notificada ou convocada para estar presente em qualquer reunião de contas, pelo que, também, nunca presenciou e/ou participou em qualquer reunião de contas.
18- Aliás, saliente-se que tais reuniões de contas nunca existiram, nunca se realizaram, sendo que a aqui Recorrente nunca foi informada acerca dos termos em que ocorreu a venda do referido terreno, nem nunca lhe foi facultado qualquer documento respeitante ao referido negócio jurídico.
19- Em boa verdade, nunca, sequer, foi facultada à aqui Recorrente, voluntariamente, uma cópia da escritura pública do referido contrato de compra e venda do terreno em causa.
20- Ora, se, como supra se disse, o Recorrido nunca prestou contas, nem nunca entregou qualquer documento à aqui Recorrente, designadamente atinente à venda do referido terreno e ao destino do preço recebido pela venda, pelo que a aqui Recorrente jamais poderia ter dado ao aqui Recorrido qualquer permissão para que o mesmo pudesse destruir qualquer documento, por mais irrelevante que o mesmo pudesse ser, pretendendo o aqui Recorrido com tais afirmações, tão simplesmente, deturpar a verdade dos factos e procurar justificar a não prestação de contas que lhe incumbe cumprir.
21- TODAVIA, decorre da sentença recorrida que “o Réu nunca estaria obrigado a prestar-lhe contas referentes ao período de março de 2005 até ao falecimento de D…, em 15.01.2014”.
22- Com efeito, é entendimento do Tribunal Recorrido que, com a morte da mandante, isto é, da mãe da Recorrente e do Recorrido, a qual, aliás, seria a única que podia exigir a prestação de contas, o mandato caducou, nos termos do art. 1174.º, al. a) do Código Civil (doravante designado por “CC”), não havendo lugar à transmissão de qualquer direito aos respectivos herdeiros.
23- Ora, salvo o devido respeito, não pode a Recorrente concordar com tal entendimento.
24- Como questão prévia, importa distinguir, desde já, a figura jurídica da procuração da figura jurídica do mandato, sendo que a procuração trata-se de um ato unilateral, através do qual são concedidos poderes de representação voluntária, conforme art. 262.º do CC, podendo coexistir com um mandato,
25- e o mandato, por seu turno, nos termos do art. 1157.º do CC, é um contrato através do qual uma das partes – o mandatário – se obriga a praticar atos jurídicos por conta de outrem – o mandante – devendo este agir de acordo com as indicações e instruções daquele no que respeita ao objeto e à execução do contrato, só sendo permitido se afastar nos termos do art. 1162.º do CC.
26- Ou seja, o mandato impõe a obrigação de praticar atos jurídicos por conta de outrem, ao passo que a procuração confere o poder de os celebrar em nome de outrem.
27- De facto, é inegável que o mandato e a procuração podem coexistir e, nesse caso, haverá um mandato com representação (arts. 1178.º e ss. do CC) ou podem estar dissociados, caso em que existirá, eventualmente, um mandato sem representação (arts. 1180.º e ss. do CC), ou pode se tratar de uma mera procuração relacionada com qualquer outro ato jurídico, diverso do mandato, que tem natureza pessoal, assentando na “confiança recíproca que une os contraentes” (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4.ª edição, vol. II, pág. 816, in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/10/2015, Proc. n.º 3366/12.6TJLSB.L1-7).
28- Certo é que, o mandato caduca por morte, quer do mandante, quer do mandatário, conforme resulta do art. 1174.º, al. a) do CC, pelo que se está perante um vínculo contratual no qual o intuitus personae é bilateral.
29- Em face do supra exposto, volvendo ao caso sub júdice, sempre se poderá considerar que, a procuração, por si só, enquanto negócio jurídico formal e unilateral, não é de molde a constituir um mandato a favor do Recorrido, porém, dispondo-se este, como se dispôs, a movimentar a conta bancária da mandante, sua mãe, por conta desta, mostram-se preenchidos o acordo de vontade e o agir por conta de outrem, que são pressupostos do contrato de mandato.
30- Com efeito, aqui chegados, importante é determinar a existência ou a inexistência da obrigação do Recorrido prestar contas à Recorrente.
31- Ora, o entendimento defendido na decisão recorrida, conduz à solução, a nosso ver, insustentável de proteger a execução de gestões danosas, por parte de qualquer procurador ou mandatário, pois que, em caso de morte do mandante, aquele sempre estaria isento de prestar contas, ficando, desse modo, o procurador ou mandatário, com um “cheque em branco”, uma vez que, sabendo antecipadamente que jamais teria que prestar contas, caso sobreviva ao mandante, poderia, facilmente, defraudar e violar o seu mandato.
32- Saliente-se que, quanto ao objeto da ação de prestação de contas, determina o art. 941.º do Código de Processo Civil que “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
33- Desde logo, do aludido preceito é possível retirar que, o direito de exigir a prestação de contas está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido, relativamente a bens que não lhe pertencem,
34- pelo que, conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23/04/2020, proferido no âmbito do Proc. n.º 2629/18.1T8VNF.G1, “a nível jurisprudencial e doutrinal é praticamente pacífico que a administração de facto de bens obriga à prestação de contas” (sublinhado nosso)
35- mais remetendo para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011, Proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1, do qual, a propósito, se transcreve o seguinte:
“Conforme refere Vaz Serra, Scientia Iuridica, Vol. XVIII, 115, a obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou de princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte»
Também o Prof. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 303 referia que a obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém que administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar administrar os bens ou interesses em causa, mas que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação.”
36- Do ora exposto resulta que, para efeitos de aferir da existência ou não da obrigação de prestar contas, é irrelevante a fonte da administração que gera essa obrigação, sendo, outrossim, relevante o facto de ter havido administração de bens alheios.
37- Já no que concerne à fonte da obrigação de informação, refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/01/2006, Proc. n.º 10895/2005-6, que “decorre umas vezes da lei, outras do negócio jurídico, outras até do princípio geral de boa-fé consagrado no artº 762º, nº 2, do CC”.
38- Com efeito, nos termos do art. 1161.º, al. d) do CC, constata-se que, efetivamente, o mandatário consta do elenco dos que se encontram legalmente obrigados à prestação de contas, sendo essa uma das obrigações do mandatário, pelo que dúvidas não poderão restar quanto à obrigação que recai sobre o Recorrido de prestar contas.
39- No limite, sempre seria de considerar que, o princípio geral de boa fé, consagrado no art. 762.º, n.º 2 do CC, enquanto princípio basilar que deve pautar o comportamento das partes ao longo de todas as relações que estabelecem, impõe que o Recorrido preste contas aos herdeiros da mandante, devendo o mesmo proceder de boa fé, quer no cumprimento da obrigação, quer no exercício do direito correspondente.
40- Acontece, porém, que, a ora Recorrente, jamais poderá concordar com a argumentação expendida pela Mm.ª Juiz na sentença recorrida.
41- Segundo o entendimento sufragado na sentença recorrida, relativamente à administração de bens alheios (porque pertencentes à sua Mãe), por parte do Recorrido e verificada entre 07/03/2005 até 15/01/2014, apenas a mandante poderia exigir a prestação de contas, sendo que, com o seu falecimento, o contrato de mandato caducou, “não se transmitindo qualquer direito aos respetivos herdeiros”.
42- Acontece que, a este respeito, importa ressaltar que, não obstante a indiscutível natureza pessoal do contrato de mandato, a qual, ademais, resulta na exclusão da relação de mandato do objeto da sucessão, não se transmitindo o mandato, de facto, aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário, conforme supra melhor exposto (cfr. art. 2025º, nº 1 do CC), a obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória.
43- Com efeito, uma coisa é a intransmissibilidade do contrato de mandato e outra, diga-se bem diferente, é a própria obrigação de prestar contas por parte de quem administra ou administrou património alheio,
44- uma vez que “esta prestação de contas enquadra-se numa relação jurídica de natureza patrimonial, a qual pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e, enquanto direito, aos herdeiros do falecido mandante (cfr. art. 2024º do C.C.). De outro modo, seria impossível compaginar a obrigação legal de prestar contas que resulta da citada alínea d) do art. 1161º do CC, no caso de morte do mandante ou mandatário" (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/04/2020, Proc. n.º 2629/18.1T8VNF.G1) (negrito e sublinhados nossos).
45- Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, «a forma como o art. 2024º retrata a sucessão mortis causa, dizendo que os sucessores são chamados à titularidade das relações patrimoniais da pessoa falecida, visa significar....que há uma relação de verdadeira identidade entre as relações anteriormente encabeçadas na pessoa falecida e aquelas de que passa a ser titular o seu sucessor na área dos interesses abrangidos pelo epicentro do fenómeno sucessório.»
46- Este carácter patrimonial é também evidenciado no Acórdão da Relação de Lisboa de 06/10/2015, Proc. n.º 3366/12.6TJLSB.L1-7, ainda que neste aresto se aborde a questão na perspectiva do mandatário, referindo que “esta obrigação, integrada como está numa relação jurídica de natureza patrimonial, é objeto de sucessão, transmitindo-se aos herdeiros do falecido mandatário, nos termos do art. 2024.º”,
47- assim como no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011, Proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1, nos termos do qual, “a natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela-se nomeadamente no próprio objecto da acção que visa o “ apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se” , operações estas de natureza predominantemente patrimonial.
(…)
Traduzindo -se a obrigação de prestar contas essencialmente no apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas por quem administra bens alheios, com vista a apurar-se um saldo final, dúvidas parecem não existir quanto ao carácter patrimonial dessa obrigação” (sublinhado nosso).
48- Assim, a opção por entendimento em contrário, sempre esvaziaria de sentido a obrigação legal de prestar contas, contida na al. d) do art. 1161.º do CC, pois que, em caso de morte do mandante ou mandatário e, consequentemente, caducando o contrato de mandato, deixaria de existir a obrigação de prestação de contas perante os herdeiros do mandante ou do mandatário, conferindo, desse modo, abrigo a gestões danosas, conforme já supra se mencionou.
49- Acresce que, do ponto de vista da forma do processo, entendeu a sentença recorrida a este respeito que “questão diferente, mas que não cabe de todo no âmbito do presente processo especial de prestação de contas, é saber se o R. terá na sua posse bens que pertencem à herança ou se terá gozado de liberalidades que devam ser chamadas à colação em eventual processo de inventário”.
50- Ora, também a este respeito, não se conforma a Recorrente com tal entendimento.
51- Na realidade, conforme supra melhor exposto, ao abrigo dos poderes que foram conferidos mediante a procuração outorgada a seu favor, o Recorrido realizou diversos atos e negócios jurídicos, em nome e por conta da sua mãe, mandante, pelo que, na presente data, atenta a irrazoável oposição do Recorrido em prestar as contas, desconhece a Recorrente, bem como os demais herdeiros, o próprio conteúdo do seu direito à herança.
52- Posto isto, a atividade de administrador de bens alheios, e no caso concreto, do Recorrido, é susceptível de gerar receitas, podendo, por outro lado, também impor a realização de despesas, sendo que, do confronto das receitas e despesas realizadas pelo Recorrido decorrerá o apuramento de um saldo que a Recorrente pretende legitimamente conhecer.
53- Todavia, atenta, a posição já assumida nos presentes autos pelo Recorrido, claramente indicia que se o Recorrido nada tivesse a restituir, prestaria contas, voluntariamente ou no âmbito da presente ação de prestação de contas, pois que, já diz o povo na sua sabedoria, “quem não deve, não teme”.
54- Não obstante, o Recorrido não manifesta vontade de o fazer.
55- Por outro lado, importa ressaltar o vertido no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/04/2019, Proc. n.º 1971/18.6T8LRA.C1, segundo o qual,
“I - A inexistência de inventário para partilha de heranças não obsta a que haja cabeça de casal (nomeadamente, designado por acordo dos herdeiros, como foi o caso – cfr. Artº 2084º do CC) que, integrando a figura do cabeça de casal de facto, administre os bens da herança e que, enquanto tal, já que administra bens alheios, está obrigado a prestar contas a quem tenha legitimidade para exigi-las como será o caso de um herdeiro.
II – Tem sido entendimento da doutrina que a ação para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no art. 1014º e seguintes do CPC [atuais arts. 941.º e ss. do CPC]”.
56- Idêntico entendimento foi mencionado e defendido no Acórdão do tribunal da Relação do Porto, de 07/11/2019, no Proc. n.º 4233/09.6T2OVR-C.P1, nos termos do qual se menciona que
“Em todo o caso, a referida distinção [entre “cabeça-de-casal de facto” e “cabeça-de-casal investido”] tem relevância justamente na acção para prestação de contas, pois tem sido entendimento da doutrina que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no artº 941º e seguintes do CPC, enquanto que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal investido” aplica-se o disposto no artº 947º do CPC, ou seja, está dependente do processo de inventário, no qual foi nomeado, o que significa que corre por apenso a este processo - cfr. artº 206º, nº 2, do CPC”.
57- Ora, sendo certo que o cabecelato foi assumido por outra herdeira, tal não afecta, claro está, que o Recorrido, enquanto cabeça de casal de facto, isto é, administrador de bens da herança e, por esse motivo, alheios, não esteja obrigado a prestar contas da sua administração, devendo, segundo o entendimento supra transcrito, a competente ação para prestação de contas seguir a tramitação plasmada nos arts. 941.º e ss. do Código de Processo Civil.
58- Acresce, ainda, que conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/04/2019, supra identificado, “o “administrador de facto” está obrigado a prestar contas, podendo esta obrigação ser forçada por via de uma acção especial de prestação de contas, seguindo-se o entendimento segundo o qual dos “preceitos legais que estabelecem tal obrigação [obrigação de prestar contas] extrai-se um princípio geral, já afirmado pelo Prof. Alberto dos Reis, e de que tais preceitos constituem afloramento ou revelação: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”,
59- pelo que, em nada obsta a inexistência de processo de inventário para a partilha de bens das heranças dos pais da Recorrente e do Recorrido, não se aplicando, com efeito, in casu, a regra que determina que a prestação de contas se processe por apenso ao inventário, conforme estabelece o art. 947.º do Código de Processo Civil.
60- Em face do exposto, consideramos que, a este respeito, violou a decisão recorrida o disposto nos arts. 262.º, 762.º, n.º 2, 1161.º, al. d), 1157.º, 1162.º, 1174.º, 1178.º e ss., 1180.º e ss., 2024º e 2025º, todos do Código Civil e arts. 206º, nº 2, 941.º e 947.º do Código de Processo Civil.
61- Assim sendo, e sempre com o devido respeito, a verdade é que, mal andou o Tribunal de que se recorre.
62- Nesta senda, e ante tudo o que acaba de se expor, não nos resta a menor dúvida em reafirmar que a decisão recorrida deve ser substituída por douto Acórdão proferido, por V. Exas., que, nos termos supra expostos, revogue a sentença proferida e, consequentemente, declare que o Réu está obrigado a prestar contas à A., ora Recorrente.
63- EM SUMA, não se conforma, de modo algum, a ora Recorrente com a douta decisão em crise, por entender que, em face da matéria de facto provada documentalmente, bem como em face do direito aplicável, o desfecho certo do pleito, e único desfecho possível, no nosso entendimento, seria a decisão de procedência da ação intentada pela A. e, consequentemente, de que o Réu, ora Recorrido, está obrigado a prestar contas à A., ora Recorrente, nos termos e pelas razões já supra explanadas, com todas as consequências legais daí decorrentes, designadamente o disposto no nº 5 do art. 942º e 943º a 945º do C.P.C., o que se requer.”
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O ora Apelado contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.
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Colhidos os vistos legais vem o processo submetido à audiência de julgamento.
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II - DA FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos que se passam a transcrever:
1) Em 07 de março de 2005, D…, então viúva, mãe da Autora e do Réu, constituiu o Réu seu bastante procurador, concedendo poderes para: “a) prometer vender e ou vender a quem entender, pelo preço e condições que achar convenientes, quaisquer bens imóveis provenientes da herança aberta por óbito de H…; b) proceder à partilha judicial ou extrajudicial dos bens da herança aberta por óbito de H…, acordando na atribuição de valores, preenchimento de quinhões, dar e receber tornas, podendo o seu quinhão ser preenchido em bens, em bens e dinheiro de tornas ou apenas em dinheiro de tornas; c) movimentar quaisquer contas bancárias, quer a crédito, quer a débito, abertas junto de quaisquer instituição bancária; d) proceder a quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, proceder a cancelamentos e averbamentos e prestar declarações complementares; e) requerer e obter quaisquer certidões nas Repartições de Finanças onde poderá rectificar áreas ou confrontações, pagar quaisquer impostos, taxas ou contribuições; f) para a representar junto de quaisquer Repartições Públicas ou administrativas, designadamente nas Câmaras Municipais onde poderá pedir certidões, requerer vistorias, apresentar projectos, aditamentos e alterações dos mesmos, requerer licenças, prorrogações e vistorias; para junto da I…, requerer baixadas de luz, outorgar e alterar contratos de fornecimento de energia; nos Serviços Municipalizados competentes outorgar e alterar contratos de fornecimento de água e saneamento, praticando, requerendo e assinando tudo o que se torne necessários aos fins indicados” – cfr. documento de fls. 12, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido.
2) Por escritura pública de compra e venda outorgada em 13 de Janeiro de 2010, D… vendeu o prédio urbano – terreno destinado a construção urbana – sito na Rua …, freguesia …, concelho de Aveiro, inscrito na matriz predial sob o artigo 4198 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número 3275, da freguesia …, pelo preço de cinquenta mil euros, a E… e mulher F… – cfr. documento de fls. 54 a 56, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido.
3) A mãe da Autora e do Réu faleceu em 15 de janeiro de 2014 – cfr. documento de fls. 15, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido.
4) O pai da Autora e do Réu, H…, faleceu em 21 de janeiro de 1991 – cfr. documento de fls. 16, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido.
5) A presente ação foi instaurada em 26.08.2018 e a Autora peticiona que o Réu seja citado “para, no prazo de 30 dias, prestar contas de todos os actos que praticou, no período compreendido entre 07 de março de 2005 até à cessação do mandato por morte da mandante ocorrida a 15/01/2014, designadamente no que concerne ao valor recebido na escritura pública de compra e venda mencionada no art. 30º da presente peça processual, para apuramento e aprovação das receitas e a sua condenação, sendo caso disso, na entrega aos demais herdeiros da mandante do valor que se vier a apurar, e que esteja indevidamente na sua posse”.
6) Além da Autora e do Réu, são também herdeiros de H… e de D…, enquanto filhos destes, J…, K…, L…, G…, M… e N… - cfr. documento de fls. 60, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido. 7) Foi admitida a intervenção principal provocada, requerida pela Autora na petição inicial, por despacho datado de 19.06.2019, de J…, K…, L…, G…, M… e N….
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III - DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Veio o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Aveiro - Juiz 2, em 19 de Abril de 2021, que julgou manifestamente improcedente a acção especial para prestação de contas intentada pela ora Apelante contra C…, peticionando “para, no prazo de 30 dias, prestar contas de todos os actos que praticou, no período compreendido entre 07 de março de 2005 até à cessação do mandato por morte da mandante ocorrida a 15/01/2014, designadamente no que concerne ao valor recebido na escritura pública de compra e venda mencionada no art. 30º da presente peça processual, para apuramento e aprovação das receitas e a sua condenação, sendo caso disso, na entrega aos demais herdeiros da mandante do valor que se vier a apurar, e que esteja indevidamente na sua posse”.

A Mma. Juiz a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos que se passam a transcrever:
“A Autora assenta a sua pretensão na existência de um mandato entre a sua mãe D…, esta na qualidade de mandante, e o Réu, seu irmão, como mandatário. Ou seja, a causa de pedir, nos termos em que está configurada pela Autora, assenta na alegada administração, ao abrigo dos poderes conferidos pela procuração mencionada em 1), por parte do Réu do património de D…, em vida daquela.
Dúvidas inexistem que o mandatário está obrigado a prestar contas ao mandante nos termos do disposto no artigo 1161º d) do Código Civil. Deste modo, o ora R. (mandatário) estaria obrigada a prestar contas a D… (mandante).
Todavia, com a morte da mandante D…, a qual era a única que podia exigir a prestação de contas, o mandato caducou (cfr. artigo 1174º, a) do C.C.), não se transmitindo qualquer direito aos respetivos herdeiros.
Conforme se sustenta no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.04.2015, processo n.º 806/13.0TVLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, “Caducado o mandato por falecimento do mandante, a herança e, nessa medida, os respectivos herdeiros carece(m) de qualquer direito de exigir contas referente ao exercício do mandato durante a vida do mandante” (no mesmo sentido, cfr. o recente Ac. da Relação de Lisboa de 04.06.2020, processo n.º 1510/19.1T8CSC.L1-2).
Com efeito, in casu, não é peticionada a prestação de contas sobre a administração de bens após a morte de D…. O que está em causa é a administração que a mãe da A., por si, ou por intermédio de outrem, fez do próprio património, administração essa que podia fazer livremente, sem que a própria ou o mandatário estivessem obrigados a dar qualquer explicação à filha, ora Autora.
Questão diferente, mas que não cabe de todo no âmbito do presente processo especial de prestação de contas, é saber se o R. terá na sua posse bens que pertencem à herança ou se terá gozado de liberalidades que devam ser chamadas à colação em eventual processo de inventário.
Assim sendo, crê-se que, mesmo que se viesse a considerar provada a factualidade alegada pela A., o R. nunca estaria obrigado a prestar-lhe contas referentes ao período de março de 2005 até ao falecimento de D…, em 15.01.2014.
Pelo exposto, e nos termos do disposto no artigo 942.º n.º 3 do Código de Processo Civil, sem necessidade de outras considerações, julga-se a presente ação intentada pela Autora B… contra C…, manifestamente improcedente, por não estar o Réu legalmente obrigado a prestar contas à Autora. “

A Apelante insurge-se contra o aqui decidido sobre a matéria de direito ao alegar, em síntese, que a decisão violou o disposto nos arts. 262.º, 762.º, n.º 2, 1161.º, al. d), 1157.º, 1162.º, 1174.º, 1178.º e ss., 1180.º e ss., 2024º e 2025º, todos do Código Civil e arts. 206º, nº 2, 941.º e 947.º do Código de Processo Civil.
Vejamos o que se nos oferece dizer.
Como resulta da factualidade dada como assente na sentença recorrida a mãe da Apelante e do Apelado, em 07 de Março de 2005, constituiu o Apelado seu bastante procurador, conforme procuração junta como doc. n.º 1 da petição inicial, concedendo-lhe os poderes que passamos a transcrever: “a) prometer vender e ou vender a quem entender, pelo preço e condições que achar convenientes, quaisquer bens imóveis provenientes da herança aberta por óbito de H…; b) proceder à partilha judicial ou extrajudicial dos bens da herança aberta por óbito de H…, acordando na atribuição de valores, preenchimento de quinhões, dar e receber tornas, podendo o seu quinhão ser preenchido em bens, em bens e dinheiro de tornas ou apenas em dinheiro de tornas; c) movimentar quaisquer contas bancárias, quer a crédito, quer a débito, abertas junto de quaisquer instituição bancária; d) proceder a quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, proceder a cancelamentos e averbamentos e prestar declarações complementares; e) requerer e obter quaisquer certidões nas Repartições de Finanças onde poderá rectificar áreas ou confrontações, pagar quaisquer impostos, taxas ou contribuições; f) para a representar junto de quaisquer Repartições Públicas ou administrativas, designadamente nas Câmaras Municipais onde poderá pedir certidões, requerer vistorias, apresentar projectos, aditamentos e alterações dos mesmos, requerer licenças, prorrogações e vistorias; para junto da I…, requerer baixadas de luz, outorgar e alterar contratos de fornecimento de energia; nos Serviços Municipalizados competentes outorgar e alterar contratos de fornecimento de água e saneamento, praticando, requerendo e assinando tudo o que se torne necessários aos fins indicados”.
Destarte, até à data do falecimento da mãe da Apelante e do Apelado, 15/01/2014, o aqui Apelado, fazendo uso da procuração outorgada a seu favor, entre outros actos praticados, movimentou as contas bancárias tituladas pela sua mãe, tendo ainda encetado todas as diligências necessárias para legalizar imóveis, desanexar imóveis e, designadamente, concretizar a venda do imóvel sito na Rua …, freguesia …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 3275 e inscrito na matriz predial sob o artigo 4198, constituindo este imóvel património e a herança dos seus pais, o que veio a concretizar mediante escritura pública de compra e venda, celebrada a 13/01/2010, figurando como comprador o Sr. E… e a esposa F…, sendo que foi o Apelado quem recebeu o produto da venda e procedeu ao respectivo depósito em instituição bancária, em conta particular.
Alega a Apelante que nunca foi notificada ou convocada para estar presente em qualquer reunião de contas, pelo que, também nunca presenciou e/ou participou em qualquer reunião de contas.
De igual modo alega que tão pouco lhe foi facultada, voluntariamente, uma cópia da escritura pública do referido contrato de compra e venda do terreno em causa.
Conclui assim afirmando que se tais contas tivessem sido efectivamente prestadas, a aqui Apelante nunca teria tido necessidade de intentar a presente acção judicial, só o fazendo porque o aqui Apelado sempre se recusou, e continua a recusar, a prestar as referidas contas, não obstante as diversas interpelações extra judiciais da Apelante nesse sentido, designadamente através do envio de cartas, cujas missivas foram juntas como documentos com a Petição Inicial.

A questão a dilucidar consiste em saber se o aqui Apelado está obrigado a prestar contas referentes ao período compreendido entre Março de 2005 e 15 de Janeiro de 2014, data do decesso de D….
Como vimos, é entendimento do Tribunal a quo que, com a morte da mandante, isto é, da mãe da Apelante e do Apelado - que seria a única que podia exigir a prestação de contas -, o mandato caducou, nos termos do artigo 1174.º, al. a) do Código Civil, não havendo lugar à transmissão de qualquer direito aos respectivos herdeiros.

Não podemos concordar com este entendimento pelas razões a expor de seguida.
Como nota prévia, importa distinguir as figuras jurídicas da procuração e do mandato, sendo que a procuração trata-se de um acto unilateral, através do qual são concedidos poderes de representação voluntária, conforme o artigo 262.º do Código Civil, podendo coexistir com um mandato, e o mandato, por seu turno, nos termos do artigo 1157.º do Código Civil, é um contrato através do qual uma das partes – o mandatário – se obriga a praticar actos jurídicos por conta de outrem – o mandante – devendo este agir de acordo com as indicações e instruções daquele no que respeita ao objecto e à execução do contrato, só sendo permitido “ afastar-se das instruções recebidas, quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se conhecesse certas circunstâncias que não foi possível comunicar em tempo útil” - artigo 1162.º do Código Civil.
Ou seja, o mandato impõe a obrigação de praticar actos jurídicos por conta de outrem, ao passo que a procuração confere o poder de os celebrar em nome de outrem.
É inegável que o mandato e a procuração podem coexistir e, nesse caso, haverá um mandato com representação (artigo 1178.º e ss. do Código Civil) ou podem estar dissociados, caso em que existirá, eventualmente, um mandato sem representação (artigos 1180.º e ss. do Código Civil); pode ainda tratar-se de uma mera procuração relacionada com qualquer outro acto jurídico, diverso do mandato, que tem natureza pessoal, assentando na “confiança recíproca que une os contraentes” (Cfr. PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, 4.ª edição, vol. II, pág. 816, in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/10/2015, Proc. n.º 3366/12.6TJLSB.L1- 7).
É certo, como bem afirma a Mma. Juiz a quo, que o mandato caduca por morte, quer do mandante, quer do mandatário, conforme resulta do artigo 1174.º, al. a) do Código Civil, pelo que se está perante um vínculo contratual, no qual o intuitus personae é bilateral.
Volvendo ao caso sub judice, sempre se poderá considerar que a procuração, por si só, enquanto negócio jurídico formal e unilateral, não é de molde a constituir um mandato a favor do Apelado. Porém, dispondo-se este, como se dispôs, a movimentar a conta bancária da mandante, sua mãe, por conta desta, mostram-se preenchidos o acordo de vontade e o agir por conta de outrem, que são pressupostos do contrato de mandato.
Aqui chegados, urge determinar a existência ou a inexistência da obrigação do Apelado prestar contas à Apelante.
Ora, o entendimento sufragado na decisão recorrida conduz, em nosso entender, à solução insustentável de proteger a execução de gestões danosas por parte de qualquer procurador ou mandatário em caso de morte do mandante. Com efeito, nesta hipótese, aquele mandatário ou procurador sempre estaria isento de prestar contas, ficando com um “cheque em branco”, porquanto não ficaria na obrigação de prestar contas, podendo, deste modo, facilmente, defraudar e violar o seu mandato.
Refira-se, quanto ao objecto da acção de prestação de contas, o que determina o artigo 941.º do Código de Processo Civil: “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
Do aludido preceito é possível retirar que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido, relativamente a bens que não lhe pertencem, pelo que, conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23/04/2020, proferido no âmbito do Proc. n.º 2629/18.1T8VNF.G1, “a nível jurisprudencial e doutrinal é praticamente pacífico que a administração de facto de bens obriga à prestação de contas”. O referido Acórdão remete para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011, Proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1, do qual, a propósito, se transcreve o seguinte: “Conforme refere Vaz Serra, Scientia Iuridica, Vol. XVIII, 115, a obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou de princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte»
Igualmente o Prof. Alberto dos Reis in Processos Especiais, Vol. I, pag. 302 e ss. refere que o processo de prestação de contas relaciona-se com a obrigação a que alguém esteja sujeito de prestar a outrem contas dos seus actos formulando o seguinte princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses dando como exemplo, entre outros, o caso do mandatário.
Do exposto resulta que, para efeitos de aferir da existência ou não da obrigação de prestar contas, releva o facto de ter havido administração de bens alheios.
Assim, volvendo ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães supra mencionado, “a obrigação de prestação de contas é uma obrigação de informação que incumbe a quem trata de negócios alheios ou de negócios próprios e alheios, seja qual for a fonte da administração. Existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias”.
No mesmo sentido segue o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/01/2006, Proc. n.º 10895/2005-6, segundo o qual “a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva. O que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte”.
E, como resulta do disposto no artigo 1161.º, al. d) do Código Civil, o mandatário é obrigado a prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir.
Neste preciso momento põe-se a questão de saber se o Apelado é obrigado a prestar contas aos herdeiros da mandante, tendo em conta o que referimos supra que o mandato caducou, nos termos do artigo 1174.º, al. a) do Código Civil.
A resposta é afirmativa, desde logo em obediência ao princípio geral de boa fé consagrado no 762.º, n.º 2 do Código Civil, que, na sua acepção objectiva, constitui norma de conduta ou critério do agir humano.
É que, não obstante a indiscutível natureza pessoal do contrato de mandato, a qual, ademais, resulta na exclusão da relação de mandato do objecto da sucessão, não se transmitindo o mandato, de facto, aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (cfr. artigo 2025º, nº 1 do Código Civil), a obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória.
Com efeito, uma coisa é a intransmissibilidade do contrato de mandato, e outra diferente é a própria obrigação de prestar contas por parte de quem administra ou administrou património alheio, uma vez que “esta prestação de contas enquadra-se numa relação jurídica de natureza patrimonial, a qual pode ser objecto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e, enquanto direito, aos herdeiros do falecido mandante (cfr. art. 2024º do Código Civil.). De outro modo, seria impossível compaginar a obrigação legal de prestar contas que resulta da citada alínea d) do art. 1161º do CC, no caso de morte do mandante ou mandatário" (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/04/2020, Proc. n.º 2629/18.1T8VNF.G1).
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol. VI, pag. 5 «a forma como o art. 2024º retrata a sucessão mortis causa, dizendo que os sucessores são chamados à titularidade das relações patrimoniais da pessoa falecida, visa significar, de modo ainda mais impressivo do que fazem os Autores que consideram a sucessão como uma transmissão ou transferência de bens (de direitos e obrigações), que há uma relação de verdadeira identidade entre as relações anteriormente encabeçadas na pessoa falecida e aquelas de que passa a ser titular o seu sucessor na área dos interesses abrangidos pelo epicentro do fenómeno sucessório.»
Este carácter patrimonial é também evidenciado no Acórdão da Relação de Lisboa de 06/10/2015 in Proc. n.º 3366/12.6TJLSB.L1-7, ainda que neste aresto se aborde a questão na perspectiva do mandatário, referindo que “esta obrigação, integrada como está numa relação jurídica de natureza patrimonial, é objeto de sucessão, transmitindo-se aos herdeiros do falecido mandatário, nos termos do art. 2024.º
De igual modo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011 in Proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1, refere-se que “a natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela- se nomeadamente no próprio objecto da acção que visa o “ apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se” , operações estas de natureza predominantemente patrimonial.
(…)
Traduzindo -se a obrigação de prestar contas essencialmente no apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas por quem administra bens alheios, com vista a apurar-se um saldo final, dúvidas parecem não existir quanto ao carácter patrimonial dessa obrigação”
Vejam-se ainda, entre outros, os seguintes Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/01/2016, Proc. 10895/2005-6, do Tribunal da Relação do Porto de 31/10/2000, Proc. nº 0051013, do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/10/2015, Proc. 3366/12.6TJLSB.L1-7, do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/05/2015, Proc. 496/10.2TBAMR.G1.

Uma última questão prende-se com a forma do processo.
No entender da Mma. Juiz a quo, não cabe de todo no âmbito do presente processo especial de prestação de contas saber se o Réu, aqui Apelado, terá na sua posse bens que pertencem à herança ou se terá gozado de liberalidades que devam ser chamadas à colação em eventual processo de inventário.
Ora, tal entendimento não é de sufragar porquanto, conforme resulta do supra explanado, o aqui Apelado ao abrigo dos poderes que foram conferidos mediante a procuração outorgada a seu favor, realizou diversos actos e negócios jurídicos, em nome e por conta da sua mãe, mandante.
Por conseguinte, atenta a oposição do Apelado em prestar contas, desconhece a Apelante, bem como os demais herdeiros, o próprio conteúdo do seu direito à herança, pelo que só através da presente acção de prestação de contas será possível aferir e elucidar a aqui Apelante e demais herdeiros, quanto à administração do Apelado, tomando, entre outros, conhecimento da aplicação do produto da venda do imóvel supra identificado, tanto mais que aquela afirma não saber o destino dado a tal quantia; ou seja, se a mesma foi aplicada na satisfação de despesas da mãe de ambos, ou se existe motivo para o aqui Apelado restituir à massa hereditária da mandante qualquer montante.
Posto isto, a actividade de administrador de bens alheios, e no caso concreto, do Apelado, é susceptível de gerar receitas, podendo, por outro lado, também impor a realização de despesas, sendo que, do confronto das receitas e despesas realizadas pelo Apelado decorrerá o apuramento de um saldo que a Apelante pretende legitimamente conhecer.
A este propósito importa chamar à colação o vertido no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/04/2019 in Proc. n.º 1971/18.6T8LRA.C1, que passamos a transcrever: “I - A inexistência de inventário para partilha de heranças não obsta a que haja cabeça de casal (nomeadamente, designado por acordo dos herdeiros, como foi o caso – cfr. Artº 2084º do CC) que, integrando a figura do cabeça de casal de facto, administre os bens da herança e que, enquanto tal, já que administra bens alheios, está obrigado a prestar contas a quem tenha legitimidade para exigi-las como será o caso de um herdeiro.
II – Tem sido entendimento da doutrina que a ação para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no art. 1014º e seguintes do CPC [atuais arts. 941.º e ss. do CPC]”.
Idêntico entendimento foi mencionado e defendido no Acórdão do tribunal da Relação do Porto, de 07/11/2019 in Proc. n.º 4233/09.6T2OVR-C.P1, nos termos do qual se menciona que: “Em todo o caso, a referida distinção [entre “cabeça-de-casal de facto” e “cabeça-de-casal investido”] tem relevância justamente na acção para prestação de contas, pois tem sido entendimento da doutrina que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no artº 941º e seguintes do CPC, enquanto que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal investido” aplica-se o disposto no artº 947º do CPC, ou seja, está dependente do processo de inventário, no qual foi nomeado, o que significa que corre por apenso a este processo - cfr. artº 206º, nº 2, do CPC”.
Acresce ainda, conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/04/2019, supra identificado, “o “administrador de facto” está obrigado a prestar contas, podendo esta obrigação ser forçada por via de uma acção especial de prestação de contas, seguindo-se o entendimento segundo o qual dos “preceitos legais que estabelecem tal obrigação [obrigação de prestar contas] extrai-se um princípio geral, já afirmado pelo Prof. Alberto dos Reis, e de que tais preceitos constituem afloramento ou revelação: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”, pelo que, em nada obsta a inexistência de processo de inventário para a partilha de bens das heranças dos pais da Apelante e do Apelado, não se aplicando, com efeito, in casu, a regra que determina que a prestação de contas se processe por apenso ao inventário, conforme estabelece o artigo 947.º do Código de Processo Civil.
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Em conformidade com todo o exposto, procedem na íntegra as conclusões da alegação da Apelante, sendo de conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, com a consequente baixa dos autos à 1ª instância a fim de a presente acção de prestação de contas prosseguir os seus ulteriores termos em conformidade com o disposto no artigo 941.º e ss. do Código de Processo Civil.
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IV – DECISÃO

Acordam, pois, os juízes que compõem a 3ª Secção (2ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao presente recurso e revogar a sentença recorrida, ordenando a baixa dos autos à 1ª instância nos termos e para os efeitos sobreditos.

Custas pelo Apelado, a ter em conta na acção a final.

Porto, 2 de Dezembro de 2021
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço
Judite Pires