Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3633/19.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
RESTITUIÇÃO DO LOCADO
INDEMNIZAÇÃO
DENÚNCIA DE CONTRATO
ARRENDAMENTO
NOTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP202111083633/19.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando pretenda conhecer do mérito da causa na fase do saneador, o tribunal pode dispensar a realização da audiência prévia no exercício dos poderes de gestão processual e atendendo ao princípio da adequação formal, desde que previamente ouça as partes com indicação das razões por que se entende dever dispensar a realização de tal ato processual.
II - O conhecimento do mérito da causa na fase do saneador pressupõe que toda a matéria de facto relevante para as diversas soluções plausíveis das questões de direito esteja assente, já que, nesse circunstancialismo, a continuação do processo para a fase de instrução constitui um procedimento inútil, sem quaisquer vantagens de ordem processual e substantiva e com evidentes prejuízos para a almejada celeridade processual.
III - A interpretação do artigo 1045º do Código Civil não é doutrinal e jurisprudencialmente pacífica pois que enquanto alguns sustentam que naquele preceito se fixa uma indemnização pré-definida que afasta a ressarcibilidade do atraso na restituição do bem locado à luz das regras gerais da obrigação de indemnização, outros sustentam que nada impede que o senhorio demonstre e prove que o atraso na restituição da coisa locada lhe causou danos superiores ao montante legalmente fixado.
IV - A inobservância do disposto na lei quanto ao local para onde devem ser remetidas as notificações visando a cessação do contrato de arrendamento por denúncia implica a não produção de efeitos de tais manifestações de vontade, a sua ineficácia, pois que inobservado o disposto na lei quanto ao endereço de tais declarações as mesmas não podem considerar-se como tendo chegado ao poder da destinatária das mesmas ou que tenham sido pela mesma conhecidas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3633/19.8T8PRT.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 3633/19.8T8PRT.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
Em 13 de fevereiro de 2019, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, B…, Lda. instaurou ação declarativa sob forma comum contra C…, Lda. pedindo que a ré seja condenada:
a) a entregar o locado constituído por parte do prédio sito na Rua de …, nº … e Rua da … nº .., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do …Porto sob o número … da freguesia de … devoluto de pessoas e bens;
b) a proceder ao pagamento de uma indemnização por prejuízos sofridos no montante atual de €84.270,69, a que acresce a quantia de €4.536,00 por mês até à efetiva conclusão das obras.
Para fundamentar as suas pretensões a autora alegou, em síntese, que é desde 29 de outubro de 2015 proprietária do prédio sito na Rua de …, nº … e Rua da … nº .., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número … da freguesia de … e quando o adquiriu corria termos ação judicial visando o despejo da ré, intentada pelos anteriores proprietários do aludido prédio, sob o nº 25933/15.6T8PRT, na 1ª Secção Cível, J1, Instância Central, do Tribunal da Comarca do Porto; na pendência desses autos, por mera cautela, na sequência da aprovação do projeto de arquitectura pela D…, S.A., por carta datada de 30 de junho de 2017, enviada para a sede da ré, a autora denunciou o contrato de arrendamento celebrado com a ré nos termos e para os efeitos do artigo 1101º, alínea b), do Código Civil; por carta de 03 de janeiro de 2018, a autora confirmou a denúncia, tendo em conta a aprovação pela D…, S.A. da operação urbanística requerida pela autora, tendo nesse momento solicitado à ré o IBAN desta para pagamento de metade da indemnização devida; a ré respondeu a esta última missiva em 15 de janeiro de 2018, não facultando à autora o IBAN, nem entregando o locado devoluto de pessoas e bens, apesar de notificada para o efeito por carta de 05 de março de 2018, assim impedindo que a autora ocupasse a totalidade do prédio e efetuasse as obras de demolição e construção que se mostravam necessárias; os anteriores proprietários do prédio ocupado pela ré resolveram o contrato de arrendamento de que a ré era titular, aguardando a confirmação judicial dessa resolução; a obra deveria ter-se iniciado em 30 de janeiro de 2018, sendo o orçamento da obra no montante de €185.671,01; uma vez que o estado de degradação do prédio não se compadece com demoras, a execução da obra teve de ser adaptada de forma a ser realizada sem necessidade de se iniciar pela loja sita no rés do chão, o que determinou novo orçamento, mais dispendioso, no montante de €204.697,95; executada a obra passarão a existir no prédio quatro espaços habitacionais (três T1 e um T0) e uma loja, tendo a autora a expectativa de arrendar esses quatro apartamentos em alojamento local, esperando obter com essa atividade um rendimento mensal líquido de €4.536,00; não fora a não desocupação do locado pela ré, a autora poderia ter iniciado a exploração do alojamento local em 01 de novembro de 2017.
Encetaram-se diligências para citação da ré, tendo esta vindo arguir a nulidade de citação que lhe foi feita, pretensão que foi deferida, determinando-se a repetição da citação da ré, na morada do arrendado.
Repetida a citação, a ré contestou suscitando a impropriedade da forma processual usada pela autora, alegou que a denúncia pretendida pela autora não pode produzir os seus efeitos em virtude de não ter sido endereçada para o local arrendado, como legalmente prescrito, suscitou a prejudicialidade da ação de resolução do contrato de arrendamento previamente intentada, requerendo, consequentemente, a suspensão da instância nestes autos e impugnou a generalidade da factualidade articulada pela autora na petição inicial, concluindo pelo indeferimento liminar da petição inicial por preterição do meio processual específico para o fim pretendido ou, assim não se entendendo, pela suspensão da instância até decisão final transitada em julgado no processo nº 25933/15.6T8PRT do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3 e, em todo o caso, pela sua total absolvição dos pedidos formulados pela autora.
Notificada para, querendo, pronunciar-se sobre a suspensão da instância requerida pela ré e bem assim sobre a defesa por exceção deduzida por esta, a autora declarou não se opor à requerida suspensão da instância e pugnou pela improcedência da defesa por exceção deduzida pela ré.
Por despacho proferido em 26 de fevereiro de 2020 declarou-se suspensa a instância até que no processo nº 25933/15.6T8PRT fosse proferida decisão final com trânsito em julgado.
Em 21 de outubro de 2020, na sequência do conhecimento da decisão final com trânsito em julgado proferida no processo nº 25933/15.6T8PRT, foi proferido despacho julgando extinta a instância por inutilidade da lide no que respeita ao primeiro pedido deduzido pela autora, prosseguindo os autos apenas para conhecimento do pedido indemnizatório.
Em 21 de outubro de 2020, as partes foram notificadas, além do mais, para “informarem se se opõem à prolação do despacho saneador e eventual fixação do objecto do litígio, enunciação dos temas de prova e do despacho destinado a programar os actos a realizar na audiência final, por escrito, com dispensa da audiência prévia, tudo sem prejuízo da possibilidade de reclamação e de alteração dos requerimentos probatórios, previstos nos art.ºs 593º, nº 3 e 598º, nº 1, do citado diploma legal, igualmente a realizar por escrito.
Ambas as partes se manifestaram no sentido de ser proferido despacho saneador por escrito.
Em 10 de novembro de 2020 foi proferido despacho convidando a autora a aperfeiçoar a petição inicial, despacho que foi acatado em parte e que por essa razão motivou novo despacho de aperfeiçoamento, desta feita totalmente acatado.
Por despacho proferido em 11 de fevereiro de 2021 as partes foram notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre o eventual conhecimento do mérito da causa na fase do despacho saneador[2].
A autora não tomou qualquer posição sobre o eventual conhecimento do mérito da causa na fase do saneador, tendo a ré declarado não se opor a esse conhecimento nessa fase.
Em 13 de maio de 2021 proferiu-se decisão a dispensar a realização de audiência prévia[3], fixou-se o valor da causa no montante de €99.803,49, proferiu-se despacho saneador julgando-se improcedente a exceção de impropriedade da forma processual usada pela autora e conheceu-se da pretensão indemnizatória formulada pela autora, julgando-se a mesma totalmente improcedente[4].
Em 16 de junho de 2021, inconformada com a decisão que dispensou a realização da audiência prévia e bem assim com o saneador-sentença que julgou improcedente a sua pretensão indemnizatória, B…, Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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C…, Lda. contra-alegou pugnando pela total improcedência da apelação.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata[5] , nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.
Uma vez que o objeto do recurso é de natureza estritamente jurídica e que sobre as questões suscitadas existe um apreciável lastro doutrinal e jurisprudencial, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da nulidade processual decorrente da dispensa de realização de audiência prévia num caso em que tal não é legalmente admissível;
2.2 Da não reunião das condições necessárias para o conhecimento do mérito da causa;
2.3 Da denúncia válida do contrato de arrendamento.
3. Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida[2], não impugnados pela recorrente, não se divisando fundamento legal para a sua alteração oficiosa
3.1 Factos provados
3.1.1
Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 29.10.2015, E…, na qualidade de procurador de F…, G…, na qualidade de procurador e em representação de H…, I…, na qualidade de procuradora e em representação de J…, K… declararam que os respetivos representados são os únicos interessados nos bens deixados por óbito de L… e M… e que, em nome dos seus representados, declaravam vender à autora B…, Lda., que declarou comprar, pelo preço de [€] 127.500,00, o prédio urbano, composto de casa de quatro pavimentos e sobreloja, sito na Rua de …, … e Rua da …, .., da União de Freguesias de …, …, …, S. …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 3842 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº …, da freguesia de ….
3.1.2
O rés do chão do referido prédio urbano foi dado de arrendamento com destino ao exercício da venda de sapatos e produtos relacionados.
3.1.3
A ré tomou de arrendamento o aludido rés do chão por contrato de trespasse datado de 15.02.2002.
3.1.4
Em 27.10.2015, deu entrada no Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, o processo nº 25933/15.6T8PRT, na qual os anteriores senhorios pediram, para além do mais, a condenação da ré a ver resolvido o referido contrato de arrendamento e, em consequência, a despejar e entregar imediatamente o arrendado, deixando-o livre e devoluto de pessoas e bens.
3.1.5
Mais pediram a condenação da ré a pagar, a título de indemnização, o dobro da renda estipulada, no montante de €1.035,52 mensais, até ao momento da restituição efetiva se, findo o contrato de arrendamento, houver atraso da ré quanto à obrigação [de restituição?] dos locais arrendados.
3.1.6
Por apenso ao aludido processo, foi instaurado incidente de habilitação de adquirente, em que a ora autora foi considerada habilitada.
3.1.7
No Registo Nacional de Pessoas Coletivas consta que a ré tem sede na Praça …, …, . sala …, ….-…, no Porto.
3.1.8
A autora remeteu para a referida morada uma carta registada com aviso de receção, datada de 30.06.2017, na qual comunicava à ré a denúncia do contrato de arrendamento.
3.1.9
A aludida carta foi devolvida com a menção “Desconhecido na morada”.
3.1.10
A autora remeteu para a referida morada uma outra carta registada com aviso de receção, em 3.01.2018, na qual comunicava à ré que confirmava a denúncia do contrato de arrendamento, tendo em conta a aprovação pela D… S.A da operação urbanística requerida pela autora, e solicitava o IBAN da ré para pagamento de metade da indemnização devida.
3.1.11
Carta essa que não foi igualmente recebida pela ré, tendo sido devolvida com a indicação de “endereço inexistente”.
3.1.12
A autora enviou também a carta aludida em 10 [3.1.10] para o locado e foi aí recebida.
3.1.13
A ré respondeu a esta última missiva, por carta datada de 15.01.2018, dizendo que não tinha recebido anteriormente qualquer comunicação para denúncia do contrato de arrendamento, nem lhe tinham sido entregues os elementos previstos na lei que devem acompanhar a comunicação de denúncia sob pena de sua ineficácia.
3.1.14
A ré havido cedido a exploração do estabelecimento instalado no locado, em 5.01.2015.
3.1.15
O alvará de licenciamento que titula o licenciamento das obras que incidem sobre o prédio identificado em 1 [3.1.1], em nome da autora, encontra-se assinado digitalmente em 14.12.2018 e em 18.01.2019.
3.1.16
Por sentença proferida no processo aludido em 4 [3.1.4], confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.06.2020, foi julgada parcialmente procedente a referida ação e, em consequência, foi declarado resolvido o contrato de arrendamento relativo ao rés do chão e sobreloja do imóvel sito na Rua da …, .. e Rua de …, … e condenada a ré a despejar e entregar o arrendado à aqui autora.
3.1.17
Na dita decisão, a ré foi ainda condenada a pagar à autora as rendas vencidas e vincendas até efetiva entrega do locado, bem como uma indemnização, no dobro da renda, até ao momento da restituição efetiva, se findo o contrato de arrendamento, houver atraso da ré quanto à obrigação de restituição dos locais arrendados.
4. Fundamentos de direito
4.1 Da nulidade processual decorrente da dispensa de realização de audiência prévia num caso em que tal não é legalmente admissível
A recorrente suscita a nulidade processual decorrente da ilegal dispensa de realização da audiência prévia em virtude de tal dispensa não ser legalmente admissível sempre que o despacho saneador se destine ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 593º do Código de Processo Civil, “[n]as ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no nº 1 do artigo 591º.
Desta previsão legal retira-se que a dispensa de audiência prévia apenas está legalmente prevista para os casos em que, não obstante o que se decida em sede de despacho saneador, a ação deva prosseguir, o que afasta a possibilidade de dispensa de audiência prévia nos casos em que seja por força da procedência de exceções dilatórias ou perentórias, seja por improcedência total do ou dos pedidos, a ação finde na fase do despacho saneador.
Já nos casos de improcedência total ou parcial de exceções dilatórias ou perentórias ou de improcedência parcial do ou dos pedidos, nada obstará à dispensa da audiência prévia, pois que, nessas eventualidades, sempre a ação deverá prosseguir.
No caso dos autos, a decisão recorrida a dispensar a realização da audiência prévia foi precedida de despacho notificando as partes para, querendo, se pronunciarem sobre o eventual conhecimento do mérito da causa na fase do despacho saneador[7].
Embora o despacho que precedeu a decisão recorrida não contenha expressa referência à dispensa da audiência prévia ela está claramente implícita. Se não fosse este o claro propósito do tribunal recorrido bastaria a este designar a audiência prévia, com discriminação das finalidades da mesma, assim dando conhecimento aos sujeitos processuais das questões que aí iriam ser debatidas.
A nosso ver, essa intenção implícita de dispensa da audiência prévia retira-se também da referência à reunião de todos os elementos necessários para conhecimento do mérito da causa em sede de despacho saneador, na alusão ao dever de gestão processual e bem assim da citação da alínea b) do nº 5, do artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro.
A decisão proferida em 11 de fevereiro de 2021 e que precede a recorrida é emitida num momento em que estavam suspensas as diligências judiciais presenciais em processos não urgentes, como é o caso deste processo (artigo 6º-B, nº 1, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro).
O despacho proferido em 11 de fevereiro de 2021 ao aludir ao disposto na alínea b) do nº 5, do artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro, tem claramente o sentido de que não obstante a suspensão das diligências presenciais, isso não obstaria ao prosseguimento dos autos com conhecimento do mérito da causa em sede de despacho saneador, com salvaguarda do prévio contraditório das partes.
A nosso ver, a opção do tribunal recorrido de conhecimento imediato do mérito da causa, sem realização de audiência prévia, podia também fundamentar-se no disposto na alínea d), do nº 5, do artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro.
Porém, no lapso temporal que decorreu entre o despacho que precedeu a decisão recorrida e esta, o artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro, foi revogado pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril, que entrou em vigor em 06 de abril de 2021.
Esta lei, por força da revogação do citado artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro, determinou a cessação da suspensão dos prazos processuais e procedimentais e introduziu na lei nº 1-A/2020 de 19 de março o artigo 6º-E que veio restabelecer a possibilidade de realização de diligências presenciais em processos não urgentes ou, quando não, mediante meios de comunicação à distância.
Por causa desta alteração legal posterior ao despacho que precedeu a decisão recorrida, a dispensa de realização de audiência prévia com fundamento no disposto na alínea b) do nº 5, do artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março, introduzido pela Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro, deixou de ter base legal.
Porém, importa ainda assim aferir se a dispensa de realização da audiência prévia, após contraditório das partes, pode fundamentar-se no exercício dos poderes de gestão processual (artigo 6º, nº 1 do Código de Processo Civil) e no princípio da adequação formal (artigo 547º do Código de Processo Civil).
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 6º do Código de Processo Civil, “[c]umpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”
Por outro lado, de acordo com o previsto no artigo 547º do Código de Processo Civil, “[o] juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.”
Na senda da jurisprudência que cremos dominante[8] admitimos que no exercício do dever de gestão processual, o tribunal possa dispensar a audiência prévia em hipóteses não contempladas no artigo 593º do Código de Processo Civil precedendo audição das partes com indicação das razões por que se entende dever dispensar a realização de tal ato processual.
Ora, no caso dos autos foi este o procedimento seguido pelo tribunal recorrido e ainda que um dos fundamentos legais para a dispensa de realização da audiência prévia tenha entretanto deixado de subsistir, mantém-se a pertinência da não realização dessa diligência à luz do dever de gestão processual, com precedência da audição das partes e indicação sucinta dos fundamentos por que se impõe o conhecimento do mérito da causa na fase do despacho saneador.
Advertidas desta intenção do tribunal recorrido de conhecer do mérito da causa na fase do despacho saneador e das razões por que se justificava tal procedimento, apenas a ré se veio pronunciar no sentido de nada ter a opor a esse conhecimento, nenhuma posição tendo sido adotada pela autora.
Não obstante, era nítido que esse conhecimento antecipado do mérito na fase do despacho saneador implicava uma decisão desfavorável à autora, tanto mais que alguns dos factos por esta alegados para substanciar a sua pretensão indemnizatória se achavam ainda controvertidos por força da impugnação deduzida pela ré em sede de contestação.
Daí que não se compreenda a inércia da autora, especialmente à luz do princípio da cooperação e do dever de boa-fé processual (artigos 7º e 8º do Código de Processo Civil).
Assim, tudo sopesado, a decisão que implicitamente dispensou a audiência prévia para conhecimento imediato do mérito da causa na fase do despacho saneador, porque proferida no exercício do dever de gestão processual e precedida de audição das partes com indicações sucinta das razões por que se justificava tal procedimento, sem que tenha havido qualquer oposição da recorrente, não enferma de qualquer ilegalidade, devendo confirmar-se e improcedendo esta questão recursória.
4.2 Da não reunião das condições necessárias para o conhecimento do mérito da causa
A recorrente pugna pela revogação da decisão final recorrida porque, na sua perspectiva, não se achavam reunidas as condições legais para tanto, já que “ainda que a Recorrida pudesse ter um contrato de arrendamento para a loja do prédio e a ocupação da mesma até à data da resolução pudesse ser lícita, já a ocupação do resto do prédio, nomeadamente da sobreloja, não se encontrava titulada” e “ainda que a indemnização fixada ao abrigo do disposto no art.º 1045.º do CC possa eventualmente ser considerada como uma indemnização forfaitaire, daí não resulta que todo o atraso na desocupação de um prédio esteja limitado ao estabelecimento dessa mesma indemnização” já “que o art.º 1045.º do CC apenas tem aplicação no âmbito de contrato de arrendamento e relativamente aos casos em que o locatário não entrega o locado no prazo em que o deveria fazer” mas “já não se aplica aos casos em que alguém (por exemplo a Recorrida) ocupa um prédio ou uma parte de um prédio sem estar abrangida por um contrato de arrendamento, ou melhor, sem que tenha título para o fazer.
Na decisão recorrida, relativamente a esta questão escreveu-se o seguinte:
No que respeita ao pedido de condenação no pagamento de indemnização pela mora na restituição propriamente dito, a autora veio pedir os prejuízos que sofreu com o atraso na realização das obras, alegando que a não se ter verificado tal atraso pretendia explorar no prédio de um alojamento local.
Porém, no aludido processo nº 25933/15.6T8PRT, a ré já foi condenada a pagar a título de indemnização o dobro da renda estipulada até ao momento da restituição efectiva se, findo o contrato de arrendamento, houver atraso da ré na obrigação de restituição dos locais arrendados.
Tal condenação tem fundamento no regime previsto no art.º 1045º, do CC.
Com efeito, de acordo com o aludido normativo, “extinto o vínculo, se o locatário não restituir a coisa locada, subsiste uma relação contratual de facto que lhe impõe o dever de continuar a pagar a renda ou o aluguer ajustado, como se o contrato continuasse em vigor’’ (Pedro Martinez, Da Cessação do Contrato, 2.º ed., Almedina, Coimbra,2006, p. 358).
Porém, “a partir do momento em que a restituição seja exigível e tenha sido efectivamente exigida, através de interpelação […] será devida pelo arrendatário, por cada mês de atraso na restituição, indemnização de valor equivalente ao dobro da renda mensal (cfr.
artigo 1045.º, nº 2, do CC)’’ (cfr. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso, João Caldeira Jorge,
Arrendamento Urbano , Quid Juris, Lisboa 2009, p. 258).
Estabeleceu assim o legislador uma indemnização forfaitaire que se presumiu ser a compensação adequada para o atraso na restituição da coisa, salvo se houver mora do locatário em que a indemnização é elevada para o dobro (cfr. ainda, Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 68).
Não parece, pois, de aceitar que se cumule com esta indemnização uma outra, dependente do locador demonstrar que sofreu danos superiores, como pretendia a autora no presente caso.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
O conhecimento do mérito da causa na fase do saneador pressupõe que toda a matéria de facto relevante para as diversas soluções plausíveis das questões de direito esteja assente, já que, nesse circunstancialismo, a continuação do processo para a fase de instrução constitui um procedimento inútil, sem quaisquer vantagens de ordem processual e substantiva e com evidentes prejuízos para a sempre almejada celeridade processual sem sacrifício das posições processuais de cada uma das partes.
Se não houver o cuidado de proferir a decisão de mérito estando provada toda a factualidade necessária à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito decidendas, pode suceder que o tribunal ad quem oficiosamente determine a ampliação da base factual sempre que o considere indispensável, tal como previsto na alínea c), do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil o que, atenta a fase processual em que a decisão recorrida foi proferida, implicará sempre o prosseguimento do processo com a instrução e subsequente realização da audiência final.
Vejamos então se as razões aduzidas pela recorrente justificam o prosseguimento do processo.
Em síntese, a recorrente sustenta que o mérito da causa não podia ter sido conhecido na fase do despacho saneador porque no caso dos autos a recorrida ocupa sem título uma sobreloja e que a indemnização “forfaitaire” prevista no artigo 1045º do Código Civil apenas se aplica aos casos em que a ocupação tem por base um contrato de arrendamento.
Recorde-se que na decisão recorrida se sustentou que a indemnização prevista no artigo 1045º do Código Civil obstava a que o senhorio pudesse exigir do arrendatário outra indemnização além da aí prevista com fundamento no atraso na restituição do locado.
Não se abordou a problemática da ocupação ilícita de imóvel ou de uma fração distinta do imóvel arrendado por parte de quem não tem título para tanto, desde logo porque dados os termos dos articulados e a causa de pedir da pretensão indemnizatória da autora tal questão não se colocava.
Que dizer?
Lendo e relendo a petição inicial, não se divisa na mesma qualquer distinção entre o espaço ocupado pela recorrida com base no contrato de arrendamento e sem ter por base um tal contrato, tanto mais que o primeiro pedido formulado pela autora foi o da condenação da ré à entrega do locado devoluto de pessoas e bens.
Por outro lado, se acaso subsistia alguma dúvida quanto ao alcance preciso do objeto do arrendamento, a mesma deve considerar-se dissipada com força de caso julgado material face ao teor da sentença proferida no processo nº 25933/15.6T8PRT, que correu termos no Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3 e declarou resolvido o contrato de arrendamento relativo ao rés do chão e sobreloja do imóvel sito na Rua da …, .. e Rua de …, …, condenando a ré a despejar e entregar o arrendado à aqui autora.
Esta decisão transitou em julgado e vincula a autora e a ré, não podendo a autora pretender agora demonstrar que ao contrário do anteriormente decidido por decisão transitada em julgado, a sobreloja não fazia parte do objeto do arrendamento e estava por isso ilicitamente ocupada pela ré.
Estas razões não são manifestamente válidas para justificar o prosseguimento do processo.
Porém, a interpretação do artigo 1045º do Código Civil não é doutrinal e jurisprudencialmente pacífica pois que enquanto alguns sustentam que naquele preceito se fixa uma indemnização pré-definida que afasta a ressarcibilidade do atraso na restituição do bem locado à luz das regras gerais da obrigação de indemnização[9], outros sustentam que nada impede que o senhorio demonstre e prove que o atraso na restituição da coisa locada lhe causou danos superiores ao montante legalmente fixado[10].
Contudo, para que esta última posição doutrinal possa vir a vingar num processo concreto, é necessário que a causa de pedir que serve de esteio à pretensão indemnizatória contenha factos donde resulte para o senhorio um dano resultante do não cumprimento da obrigação de restituição do locado superior ao dobro do valor da renda, ou seja, que a privação do gozo do bem locado lhe causou um dano que excede a quantia fixada na lei civil.
Ora, como vimos, a recorrente pretende agora fundar a sua pretensão indemnizatória numa ocupação sem título pela ré de certa parte do imóvel de que é dona, fundamento jurídico de tal pretensão que, como já antes se referiu, não foi oportunamente vertido nos articulados e que, em todo o caso, colide com o caso julgado material decorrente da decisão proferida no processo no processo nº 25933/15.6T8PRT, que correu termos no Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3.
Por isso, tal como a recorrente identifica o fundamento jurídico da sua pretensão indemnizatória neste recurso de apelação, atenta a factualidade vertida nos articulados e a inviabilidade de alteração unilateral da causa de pedir em via de recurso, essa perspetiva jurídica não reúne as condições para poder ser considerada uma solução plausível dessa questão.
Por outro lado, a recorrente não impugna a interpretação que o tribunal recorrido fez do artigo 1045º do Código Civil relativamente à obrigação de indemnização do arrendatário no caso de atraso no cumprimento do dever de restituição da coisa arrendada.
Assim, face ao exposto, face à factualidade vertida nos articulados, à inexistência de matéria de facto integradora do fundamento jurídico ora aduzido pela recorrente para firmar a sua pretensão indemnizatória e, em todo o caso, à impossibilidade de a mesma poder ser atendida por força do caso julgado material entretanto formado quanto ao objeto do contrato de arrendamento e, ainda, à não impugnação da interpretação do artigo 1045º do Código Civil feita pelo tribunal recorrido, conclui-se que bem andou o tribunal recorrido ao conhecer na fase do saneador da pretensão indemnizatória da autora, improcedendo esta questão recursória.
4.3 Da denúncia válida do contrato de arrendamento
A recorrente insurge-se contra a sentença recorrida na parte em que julgou ineficazes as cartas remetidas pela autora para denúncia do contrato de arrendamento em virtude de terem sido endereçadas à sede da ré e não ao arrendado. A recorrente critica esta decisão porque, na sua perspetiva, as cartas foram remetidas para o lugar ideal, tanto mais que a ré cedeu a exploração do estabelecimento instalado no locado, não o ocupando já por força de tal negócio, sendo manifesto que a ré registou propositadamente uma morada de sede inexistente, só para poder alegar que não recebeu, não viu, não conhece, nem notificações nem citações, agindo por isso em abuso do direito, instituto de conhecimento oficioso mas que foi também invocado nos articulados.
Na decisão recorrida, a propósito desta questão escreveu-se, em síntese, o seguinte:
Por conseguinte, e no tocante às condições da denúncia do contrato de arrendamento, será sempre aplicável a lei em vigor à data em que a mesma é efectuada.
Ora, de acordo com o art.º 1103º, nºs 1 e 2, do CC, na redação da reforma de 2012, a denúncia para obra de remodelação ou restauro, tem de ser feita mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa o fundamento da denúncia; a comunicação deve ser acompanhada dos seguintes documentos: a) comprovativo de que foi iniciado junto da entidade competente, procedimento de controlo prévio da operação urbanística a efetuar no locado; e b) termo de responsabilidade do técnico autor do projecto legalmente habilitado que ateste que a operação urbanística reúne os pressupostos legais de uma obra de demolição ou de uma obra de remodelação ou restauro profundos e as razões que obrigam à desocupação do locado.
Posteriormente, o senhorio enviará, sob pena de ineficácia, uma 2ª comunicação ao arrendatário, a confirmar a denúncia, com os seguintes documentos (art.º 1101º, nº 3): Alvará de licença de obras ou título de comunicação prévia; Documento emitido pela Câmara Municipal, que ateste que a operação urbanística constitui, nos termos da lei, uma obra de demolição ou uma obra de remodelação ou restauro profundos para efeitos de aplicação do disposto na alínea b) do artigo 1101.º, quando tal não resulte do documento referido na alínea anterior.
Acresce que o DL nº 157/2006, de 8.08, estabelece o Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados, determinando expressamente o seu art.º 47º que “Às comunicações entre senhorio e arrendatário previstas no presente decreto-lei aplica-se o disposto nos artigos 9º a 12º do NRAU.” (o sublinhado é nosso).
Assim sendo, carece absolutamente de fundamento o entendimento da autora quanto à inaplicabilidade do disposto no art.º 9º, do NRAU às comunicações para denúncia do contrato.
A forma da comunicação da denúncia está pois prevista nos art.ºs 9º e 10º do NRAU, cuja redacção, na parte que releva, é a seguinte:
“Artigo 9º:
1- Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas a cessação do contrato de arrendamento, actualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de recepção.
2- As cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado.
(…)”.
Artigo 10º:
1- A comunicação prevista no nº 1 do artigo anterior considera-se realizada ainda que:
a) a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantando no prazo previsto no regulamento dos serviços postais;
b) o aviso de recepção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário.
(…)”.
Por conseguinte, e de acordo com os art.ºs 9º, nº 1, e 10º, nº 1, al. a), do NRAU, aplicáveis ex vi do citado art.º 47 do DL nº 157/2006, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção, devendo considerar-se realizada a comunicação ainda que a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais.
No caso, a carta enviada pela autora em 30.06.2017, a comunicar a denúncia à ré, para além de não ter sido enviada para o locado, não foi recebida pela ré, tendo sido devolvida com a indicação de “Desconhecido na morada”.
A autora veio defender, porém, que as comunicações foram validamente efectuadas por terem sido remetidas para a sede da ré, tanto mais que a ré não se encontrava no locado e as pessoas colectivas estão obrigadas a assegurarem a correspondência nas sedes societárias.
Ora, se é certo que a ré comunicou ao senhorio, em 15.01.2015, que cedeu a exploração do estabelecimento comercial a terceiro, a verdade é que não consta da aludida comunicação a indicação de qualquer outra morada para efeitos de remessa da correspondência, mormente a de que supostamente corresponde à sua sede – cfr. documento de fls. 117 v dos presentes autos.
Acresce que as regras dos art.ºs 9º e 10º, do NRAU são normas materiais e especiais
do regime do arrendamento, que visam a protecção do arrendatário.
Não podem estas regras ser substituídas pelas regras gerais e adjectivas do CPC, nomeadamente pelo art.º 246º, do NCPC quanto à citação da pessoa colectiva na sede inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas.
Para além de o art.º 246º do NCPC conter regras de procedimentos inseridos em processo judicial e não aplicáveis a comunicações extrajudiciais entre as partes, a sua aplicação nas comunicações relativas ao contrato de arrendamento teria como consequência que não fosse concedida a especial protecção ao arrendatário que está subjacente às normas do NRAU, não havendo qualquer razão para se entender que essa especial protecção não se estende às pessoas colectivas.
Por seu lado, o art.º 224º, nº 2 do CC que considera eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele recebida, tem de se considerar afastada pelo regime especial do NRAU.
Com efeito e, se é certo que a sede da ré, constituiu o seu domicílio legal nos termos do art.º 12º, nº 3 do CSC, esse regime geral é afastado pelo regime especial do NRAU que, expressamente estabelece que as comunicações são remetidas para o locado.
Conclui-se, portanto, que a comunicação feita pela autora à ré e não recebida por esta não é eficaz.
Cumpre apreciar e decidir.
No caso dos autos a autora e ora recorrente pretendeu denunciar o contrato de arrendamento em que a ré e recorrida era arrendatária para realização de obras de demolição e subsequente construção.
Esta denúncia do contrato de arrendamento rege-se pelo disposto no Código Civil, nos artigos 1101º, alínea b) e 1103º e pelo previsto no decreto-lei nº 157/2006, de 08 de agosto.
Nas disposições finais e transitórias dos decreto-lei antes citado, no artigo 47º, estabelece-se que “[à]s comunicações entre senhorio e arrendatário previstas no presente decreto-lei aplica-se o disposto nos artigos 9º a 12º do NRAU.
Ora, de acordo com o nº 2 do artigo 9º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, as cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado.
Sublinhe-se que a cessão de exploração de estabelecimento comercial, rectius locação do estabelecimento comercial, instalado no arrendado em nada contende com a manutenção do primitivo arrendatário como titular do contrato de arrendamento[11]. Importa não perder de vista que a locação do estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado ao locador do estabelecimento não implica sequer que o locatário deste passe a ser sublocatário do imóvel em que aquele funciona.
Neste circunstancialismo, é ostensivo que a recorrente não seguiu o disposto na lei quanto ao local para onde devia ser endereçada a notificação da pretendida denúncia, tanto mais que não recebeu qualquer indicação por parte da arrendatária no sentido de as notificações que lhe fossem endereçadas o devessem ser para outro local que não o arrendado.
A inobservância do disposto na lei quanto ao local para onde devem ser remetidas as notificações visando a cessação do contrato de arrendamento por denúncia implica a não produção de efeitos de tais manifestações de vontade, a sua ineficácia, pois que inobservado o disposto na lei quanto ao endereço de tais declarações as mesmas não podem considerar-se como tendo chegado ao poder da destinatária das mesmas ou que tenham sido pela mesma conhecidas (veja-se o artigo 224º, nº 1, do Código Civil).
As comunicações erradamente endereçadas pela recorrente para a morada da sede da recorrida constante do registo comercial foram devolvidas e com menções não coincidentes por parte do distribuidor postal, o que desde logo impede que se determine com a necessária segurança por que razão não foram recebidas, apenas permitindo, com segurança, afirmar que não chegaram ao conhecimento da recorrida.
O abuso do direito da recorrida na indicação de uma morada inexistente como sendo a da sua sede foi suscitado em sede do incidente de nulidade da citação da recorrida e a decisão proferida no âmbito deste incidente não motivou qualquer impugnação por parte da ora recorrente.
Assim, tudo visto e ponderado, conclui-se que esta questão recursória improcede, improcedendo na sua totalidade o recurso de apelação.
As custas do recurso de apelação são da exclusiva responsabilidade da recorrente pois que decaiu totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por B…, Lda. e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida proferida em 13 de maio de 2021.

Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de vinte e três páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 08 de novembro de 2021
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
_____________________________________________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] O teor do despacho é o seguinte: “Analisados os autos a fim de proferir despacho saneador, e em face dos esclarecimentos prestados e da indemnização já fixada no âmbito do processo nº 25933/15.6T8PRT, afigura-se-nos ser possível conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador, tendo em consideração, por um lado, o invocado na contestação quanto à ineficácia da denúncia do contrato de arrendamento em questão nos autos e, por outro, o disposto no art.º 1045º, do CC.
Nestes termos, com vista a evitar a prolação de qualquer decisão surpresa, notifique as partes para, querendo e em 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente quanto ao conhecimento do mérito da causa no âmbito do despacho saneador (cfr. art.ºs 3º, nº 3 e 6º, do NCPC) - ver ainda art.º 6º-B, nº 5, al. b), da Lei 1-A/2020, de 19.03, com as alterações introduzidas pela Lei 4-B/2021, de 1.02.
[3] Esta decisão tem o seguinte teor: “Da dispensa da audiência prévia Obtido o acordo das partes para o efeito, dispensa-se a realização de audiência prévia, procedendo-se de imediato à prolação do despacho saneador (cfr. art.ºs 6º e 547º, do NCPC).
[4] Decisão notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 13 de maio de 2021.
[5] Só por inércia se compreende a referência à subida imediata do recurso pois que no atual Código de Processo Civil desapareceu a dicotomia entre recursos com subida imediata e com subida diferida, havendo antes que distinguir se estão em causa decisões recorríveis autonomamente ou não.
[6] Expurgados das meras referências probatórias.
[7] Recorde-se que o teor do despacho proferido em 11 de fevereiro de 2021 é o seguinte: “Analisados os autos a fim de proferir despacho saneador, e em face dos esclarecimentos prestados e da indemnização já fixada no âmbito do processo nº 25933/15.6T8PRT, afigura-se-nos ser possível conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador, tendo em consideração, por um lado, o invocado na contestação quanto à ineficácia da denúncia do contrato de arrendamento em questão nos autos e, por outro, o disposto no art.º 1045º, do CC.
Nestes termos, com vista a evitar a prolação de qualquer decisão surpresa, notifique as partes para, querendo e em 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente quanto ao conhecimento do mérito da causa no âmbito do despacho saneador (cfr. art.ºs 3º, nº 3 e 6º, do NCPC) - ver ainda art.º 6º-B, nº 5, al. b), da Lei 1-A/2020, de 19.03, com as alterações introduzidas pela Lei 4-B/2021, de 1.02.
[8] Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05 de maio de 2015, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Cristina Coelho, no processo nº 1386/13.2TBALQ.L1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de setembro de 2015, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Judite Pires, no processo nº 128/14.0T8PVZ.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de outubro de 2018, relatado pelo então Juiz Desembargador Rijo Ferreira, no processo nº 4711/18-6T8LRS-A.L1-2.
[9] Na jurisprudência vejam-se, por ordem cronológica, os seguintes acórdãos acessíveis na base de dados da DGSI: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de julho de 2003, proferido no processo nº 03A1905; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07 de abril de 2005, proferido no processo nº 9805/2004-6; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de março de 2007, proferido no processo nº 532/2002.C1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2007, proferido no processo nº 07A3060; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16 de junho de 2016, proferido no processo nº 2501/14.4TBSTB.E1. Esta orientação jurisprudencial foi relativamente a acórdão intercalar do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo que deu origem ao acórdão final do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de julho de 2003 antes citado julgada conforme com a Constituição da República no acórdão nº 648/99 de 24 de novembro de 1999, relatado pela Sra. Juíza Conselheira Maria Fernanda Palma.
[10] Na doutrina, com alguns matizes, vejam-se: Da Cessação do Contrato, 2ª Edição, Almedina 2006, Pedro Romano Martinez, páginas 358 e 359, ponto III e nota de rodapé nº 707 em que se cita o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de junho de 1997 identificado mais adiante; Manual de Arrendamento Urbano, Volume I, 4ª edição Actualizada, Almedina 2007, Jorge Henrique Pinto Furtado, página 555, ainda que não forma assertiva e aparentemente de iure condendo; A resolução do contrato no novo regime do arrendamento urbano, Almedina 2007, Fernando Baptista de Oliveira, páginas 160 e 161 e nota de rodapé nº 199 (refira-se que o acórdão da Relação do Porto citado nesta nota de rodapé foi revogado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de maio de 1998, como informa o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de julho de 2003, citado na nota de rodapé que precede); Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, coordenação do Professor António Menezes Cordeiro, Almedina 2014, anotação ao artigo 1045º do Código Civil da responsabilidade do coordenador da obra, páginas 82 e 83, anotação nº 11; Tratado de Direito Civil, XI, Contratos em Especial (1ª parte), Almedina 2018, António Menezes Cordeiro, página 789 e 790, ponto V. Já David Magalhães em A Resolução do Contrato de Arrendamento Urbano, Coimbra Editora 2009, páginas 127 e 128, nota de rodapé nº 410, admite que além do dobro da renda o arrendatário em mora possa ser obrigado a restituir o enriquecimento que exceda esse valor, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa. Na jurisprudência vejam-se: acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de junho de 1997, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXII – 1997, Tomo III, páginas 225 e 226; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de outubro de 2003, tirado por maioria, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, Tomo IV/2003, páginas 111 a 117; no sentido da não imperatividade do artigo 1045º do Código Civil e admitindo a validade de cláusula penal no caso de incumprimento da obrigação de restituição do locado veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de junho de 2002, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII – 2002, Tomo III – 2002, páginas 116 a 119.
[11] A propósito veja-se Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2ª Edição, Almedina 2007, Fernando Gravato Morais, página 293, primeiro parágrafo.