Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5080/18.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO DE PEÃO SURDO
RISCOS ASSOCIADOS À CIRCULAÇÃO DO VEÍCULO
EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RP202112025080/18.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Num acidente que consistiu no atropelamento de um peão que atravessava uma via por onde circulava um veículo automóvel, apurado que o peão, adulto, surdo, antes de iniciar o atravessamento viu o veículo a circular na sua direcção e pela faixa do lado de início da travessia, e mesmo assim iniciou este movimento quando o veículo já se encontra praticamente em cima do local, os riscos associados à circulação do veículo não contribuíram para o acidente e por isso a culpa do peão exclui a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo.
II - A circunstância de o peão ser surdo e não ouvir o barulho do motor do veículo é insuficiente para excluir a imputação do acidente ao peão, uma vez que sendo um adulto que certamente não se depara com essa situação pela primeira vez na vida, tendo visto o veículo em movimento era-lhe exigido maior cuidado na tomada de decisão uma vez que a surdez não o priva de inteligência, raciocínio, experiência de vida, poder de observação e de ajustamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:5080.18.0T8MTS.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em Vila Nova de Famalicão, instaurou acção judicial contra C…, S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ………, com sede em Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €31.614,63, sendo €10.000,00 para compensação dos danos não patrimoniais, €5.764,95 a título de perdas salariais, €1.111,46 a título de outros danos patrimoniais, €14.738,22 a titulo de IPP, a que deve acrescer a indemnização a fixar com base na equidade para compensação dos danos futuros, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Alegou para o efeito que foi atropelada por um veículo automóvel segurado na ré, atropelamento que se deu por culpa exclusiva do condutor deste veículo, em virtude do que sofreu lesões corporais que exigiram tratamento médico e por fisioterapia, donde decorrem os danos pessoais e patrimoniais dos quais quer ser indemnizada.
A ré contestou a acção, impugnando parte dos factos alegados e procurando demonstrar que o atropelamento se deveu a culpa exclusiva da autora por violação do disposto no artigo 101.º do Código da Estrada.
Após julgamento, foi proferida, por juiz diferente do que presidiu à audiência, sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando a ré a pagar à autora a quantia de €5.583,83, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, e a quantia de €10.000,00, acrescida de juros de mora a contar da data da sentença até integral pagamento.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Entende a A./Recorrente que a douta sentença labora em erro na fixação dos danos patrimoniais indemnizáveis em consequência directa e necessária do acidente sub judice, bem como no seu quantum indemnizatório, uma vez que, o tribunal a quo não atendeu a todas as repercussões que as lesões sofridas por aquela têm e terão de forma permanente para o resto da sua vida;
2. A A./Recorrente não concorda nem aceita o cálculo realizado pelo tribunal a quo;
3. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento e a fixação da matéria de facto provada nos termos em que foi, não permite concluir, como concluiu o julgador a quo, que in casu não se verificam lucros cessantes e ou perdas de rendimentos e que não se verifica uma afectação da sua capacidade de angariação de ganho em razão da sua incapacidade funcional;
4. As concretas circunstâncias do caso concreto e que resultaram como matéria assente e provada impunham que in casu, além da indemnização pelo dano biológico, fosse igualmente calculada e atribuída à A./Recorrente indemnização pelo dano patrimonial futuro em razão da incapacidade funcional permanente que esta ficou comprovadamente a padecer;
5. A A./Recorrente tem direito a ser indemnizada por danos patrimoniais futuros resultantes de incapacidade permanente, prove-se ou não que, em consequência dessa incapacidade, haja resultado diminuição de rendimentos do trabalho;
6. O facto de a A./Recorrente se encontrar desempregada à data do acidente tal circunstância não ceifa o seu direito à indemnização por danos patrimoniais futuros resultantes de incapacidade permanente;
7. Ainda que a A./Recorrente não tenha sofrido no imediato uma perda de capacidade de ganho - atendendo a que à data do acidente estava desempregada, como se disse - não pode deixar de ser indemnizada pela perda de aptidão física expressa numa IPP de 3 pontos e que lhe causou - no presente e futuro - lesões irreversíveis que se repercutirão na sua vida activa laboral expectável e na sua longevidade;
8. A douta sentença focou a questão da ressarcibilidade dos danos patrimoniais exclusivamente na perspectiva da situação actual da A./Recorrente e somente na afectação da vida pessoal desta, o que salvo melhor opinião, desrespeita a teoria da diferença como critério indemnizatório;
9. A incapacidade parcial permanente, afectando ou não, a actividade laboral, representa, em si mesma, um dano patrimonial futuro que tem igualmente de ser considerado e indemnizado;
10. No cálculo da indemnização, impunha-se que o julgador a quo considerasse como critério definidor do montante da indemnização o valor do salário mínimo nacional, à data do acidente, enquanto critério objectivo que sustenta o recurso à equidade, critério esse que tem sido largamente defendido na jurisprudência;
11. O julgador a quo na fixação da indemnização por danos patrimoniais, ponderou somente o dano biológico, excluindo inexplicavelmente o dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional para o trabalho;
12. O cálculo da indemnização efectuado pelo julgador a quo está incorrecto face às circunstâncias do caso concreto, designadamente os factos dados como assentes e provados, que impõem um diferente quantum indemnizatório a titulo de danos patrimoniais;
13. Entende a A./Recorrente que os factos dados como provados na sentença, concretamente os pontos 18, 20, 21, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, estão em contradição insanável com a fundamentação e decisão, incorrendo assim a douta sentença em nulidade, ex vi do disposto no artigo 615.º, número 1, alínea c), do CPC, uma vez que, a matéria de facto provada impõe decisão diversa quanto aos diferentes danos patrimoniais indemnizáveis e respectivo quantum de indemnização, o que aqui expressamente se invoca e argui;
14. Entende a A./Recorrente que face aos factos dados como assentes e provados, impunha-se ao julgador, na ponderação e fixação dos danos patrimoniais, a fixação de uma indemnização a título da dano futuro pela afectação irreversível da sua capacidade de ganho;
15. O julgador a quo ao ponderar os danos futuros, fixou o montante da indemnização apenas e só com base na afectação pessoal da A./Recorrente, isto é, na repercussão das lesões assente no pressuposto de que estando esta desempregada à bastante tempo não se verifica in casu uma afectação a nível laboral;
16. In casu, o erro radica no facto de o julgador a quo ter apreciado a questão apenas da perspectiva do dano biológico, olvidando que questão diversa é a incapacidade funcional da A./Recorrente e que deve igualmente ser indemnizada como dano patrimonial futuro;
17. A IPP de 3 pontos que a A./Recorrente ficou a padecer afectará necessária e de forma irreversível a sua capacidade de ganho, diminuirá as opções profissionais que se adeqúem à sua nova e limitada condição física e que se repercutirá numa perda de rendimentos já que não poderá exercer toda e qualquer actividade profissional em consequência do sinistro;
18. A afectação da A./Recorrente não lhe permitirá jamais que esta tenha um trabalho/profissão que implique estar muitas horas em pé, subir e descer escadas com frequência, caminhar de um lado para o outro, que implique uso da força física, um esforço acrescido com o pé direito;
19. A A./Recorrente em consequência directa e necessária do acidente sub judice não poderá exercer profissões como costureira, empregada de balcão, de supermercado, lojista, repositora de stocks, empregada de limpeza, e demais do mesmo género em razão das limitações físicas e funcionais permanentes que ficou a padecer;
20. A A./Recorrente à data do acidente tinha 53 anos de idade e não possui um grau académico que lhe permita um “trabalho de escritório”, com maior incidência de esforço a nível intelectual ao invés do físico;
21. A A./Recorrente está irremediável e definitivamente afectada na sua capacidade de ganho, de angariação de rendimentos, pela dificuldade de não puder exercer toda e qualquer profissão e as que eventualmente possa exercer acarretarão necessariamente um esforço acrescido em razão da IPP de 3 pontos;
22. A A./Recorrente não poderá - em consequência dessa incapacidade - retomar as tarefas que anteriormente executava enquanto doméstica, ao menos com a celeridade e capacidade com que as fazia;
23. A verificação da incapacidade permanente A./Recorrente implica sempre uma perda de capacidade de ganho de rendimentos, ou seja, tem consequências patrimoniais para esta;
24. A afectação da capacidade de ganho é em si um dano futuro, que não pode apenas ser apreciada e ponderada por mera referência à situação actual de desempregada da lesada, nem a mesma está subordinada à condição de «empregada» ou «desempregada», atendendo a que as lesões são permanentes e como tal a situação futura da lesada terá sempre que ser ponderada;
25. Tem vindo a ser jurisprudencialmente pacífico o entendimento de que o quantum indemnizatório dos danos patrimoniais emergentes de uma perda ou diminuição da capacidade de trabalho, deve ser calculado em função do tempo provável da vida activa do lesado, de forma a representar um capital que, com rendimento gerado e com a comparticipação do próprio capital, compense, até ao seu esgotamento, a vítima dos ganhos do trabalho que durante esse tempo irá perder;
26. E tem sido igualmente pacífico o entendimento de que, mesmo que a vítima não exerça ou não exerça ainda qualquer actividade remunerada nem por isso o dano deixará de ser ressarcido já que nesta última hipótese foi precisamente o evento danoso a frustrar a aquisição futura de ganhos;
27. Para o cálculo da indemnização a arbitrar por este dano futuro atende-se, normalmente, ao vencimento auferido pelo lesado à data do acidente em discussão;
28. “nos casos em que o lesado à data do acidente se encontra desempregado, e na falta de outro critério que com teor de probabilidade e verosimilhança permita encontrar o quantum da indemnização, atender-se-á, ao valor do salário mínimo nacional em vigor à data do sinistro, como critério objectivo de cálculo deste dano futuro” (veja-se a titulo meramente exemplificativo, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/09/2008, Revista n.º 939/08 - 7.ª Secção, relator Alberto Sobrinho, consultável in www.dgsi.pt);
29. O que releva neste tipo de casos é que, mesmo não exercendo o lesado uma profissão à data do acidente, deve ser indemnizado se ficou em razão do mesmo incapacitado, uma vez que, a incapacidade de que ficou a padecer constitui em si um dano futuro, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/05/2021, revista 2818/03, consultável in www.dgsi.pt).
30. A./Recorrente ficou a padecer de uma IPP de 3 pontos, suportou e continua suportar dores, ficou a padecer de dificuldades ao aninhar, subir e descer escadas, fazer o levante, na marcha e apresenta inclusive fenómenos dolorosos no pé direito e posturas e edemas agravados pelos esforços, O que se irá repercutir até ao fim dos seus dias, atento o carácter permanente das lesões, o que até é provável que venha a agravar-se com o avançar da idade;
31. A./Recorrente nasceu em 04/05/1964, sendo previsível que pudesse trabalhar pelo menos até aos 70 anos de idade, isto face a actual e previsível vida activa de uma pessoa, como tem entendido a jurisprudência, como v.g. os recentes acórdãos do STJ de n.º SJ200610120025812 de 12/10/2006 e n.º SJ200701310043016 de 31/01/2007, publicados in www.dgsi.pt;
32. A./Recorrente está irremediavelmente afectada para os restantes 27 anos de vida que se estima que terá (de acordo com a esperança média de vida para as mulheres até aos 82 anos) e 17 anos de vida laboral/activa que é previsível que tenha;
33. O julgador a quo não ponderou a afectação da capacidade de ganho da A./Recorrente, ao fixar o quantum de indemnização pelos danos futuros;
34. O julgador a quo ao ponderar o quantum de indemnização a fixar, socorreu-se do critério da equidade - ut artigo 566.º, n.º 3, do CC, mas não ponderou como se impunha a afectação da capacidade de ganho que padece a A./Recorrente, tendo por referência o valor do salário mínimo nacional, por ser este o critério orientador defendido pela jurisprudência quanto o lesado à data do acidente não aufere quaisquer rendimentos;
35. O raciocínio lógico dedutivo do julgador a quo assentou no pressuposto errado e até contrário às regras da lógica e da experiência comum quando parte da condição de desempregada da A./Recorrente, que julgou ser de longa data, para daí fundamentar a ausência do direito à indemnização pela perda de rendimentos,
36. O facto de a A./Recorrente se encontrar desempregada à bastante tempo na data do acidente tal não demonstra que esta condição se manterá inalterável para futuro;
37. Independentemente do tempo que a A./Recorrente possa continuar na condição de desempregada, tal não determina que esta não tenha direito a ser indemnizada pelo dano patrimonial futuro que pondere a sua irreversível incapacidade funcional;
38. Entende a A./Recorrente que a incapacidade parcial permanente constitui fonte de um dano futuro de natureza patrimonial, traduzido na potencial e muito previsível frustração de ganhos, na mesma proporção do handicap físico ou psíquico, independentemente da prova de prejuízos imediatos nos rendimentos do trabalho (Vide a este propósito o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/01/2004, revista 4083/03, consultável in www.dgsi.pt);
39. O julgador a quo além de fixar uma indemnização pelo dano biológico devia igualmente ter ponderado e fixado uma indemnização pelo dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade parcial permanente com impacto na sua capacidade funcional, nos termos peticionados na petição inicial o que expressamente se requer;
40. A contradição insanável em que labora a douta sentença radica no facto de a mesma ter dado como assente e provado que a A./Recorrente ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, com repercussões nas actividades diárias, mas ao mesmo tempo e apesar dessa prova não calculou nem atribuiu uma indemnização em concreto para a perda e ou diminuição da sua capacidade funcional;
41. A repercussão futura dos danos não pode cingir-se somente à vida pessoal do lesado, mas abarcar com igual grau e ponderação as demais repercussões dinâmicas da sua vida e que resultaram necessariamente afectadas negativamente, mormente a nível funcional e com evidente repercussão em desempenhos profissionais futuros;
42. A A./Recorrente tem direito a ser indemnizada pelo período de incapacidade temporária e até à consolidação final e médico-legal das lesões, pese embora a sua situação de desemprego na data do acidente;
43. Não pode, nem deve, confundir-se o período dos 254 dias de défice funcional com a situação subsequente a esse período em que a A./Recorrente, infelizmente, se manteve desempregada e se verificou eventual dano conhecido pela «perda de chance» ou de oportunidade que ocorre quando uma situação omissiva faz perder a alguém a sorte ou a «chance» de alcançar uma vantagem ou de evitar um prejuízo;
44. A A./Recorrente não pediu qualquer montante relativo a perda de chance mas apenas e só indemnização pelo período em que efectivamente ficou parada e impedida de trabalhar em razão da sua convalescença;
45. A A./Recorrente sofreu um prejuízo patrimonial efectivo no período de convalescença;
46. A./Recorrente padeceu de IPP e se viu totalmente impossibilitada de trabalhar, realizar todas as lides domésticas, pelo que padeceu nessa medida de um prejuízo de 5.764,95 (557,00 x 9 salários + proporcionais de subsídio de férias e de natal), de que deve ser ressarcida e cujo pagamento se requer mas que o tribunal denegou;
47. Deve alterar-se a douta sentença agora recorrida e ser substituída por decisão que condene a R. a pagar à A./Recorrente indemnização salarial que esta deixou de auferir pelo período em que esteve parada para convalescença, sendo a mesma calculada com base no salário mínimo nacional e apesar da sua situação concreta de desemprego na data do acidente;
48. Lida e relida a douta fundamentação vertida na sentença proferida, não se evidencia qual o critério objectivo e orientador sufragado pelo julgador a quo e que sustentou o recurso à equidade - ut artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil - para fixar como fixou a indemnização pelo dano biológico no montante de 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros);
49. É possível alterar o critério da equidade adoptado pela instância se o mesmo se afastar, de forma injustificada dos padrões que em termos genéricos o caso concreto convoca, o que, salvo melhor opinião, se verifica in casu, uma vez que, o mesmo está desconforme face às orientações e padrões que a jurisprudência tem seguido para idênticos casos de fixação de indemnização por danos patrimoniais decorrentes de acidente de viação;
50. O Direito não pode nem deve decidir os casos que lhe são submetidos a juízo com um grau de subjectividade tal que torne imperceptível, para idênticos casos, a solução a adoptar;
51. A dificuldade de fixação de um quantum de indemnização embora esteja sempre dependente de uma apreciação casuística, de análise de diferentes factores concretos do caso em análise, deve sempre partir de critérios reais e uniformizadores que permitem delimitar, ainda que em abstracto, mínimos e máximos desse quantum;
52. O critério orientador que largamente tem sido defendido e aplicado pela jurisprudência dos tribunais superiores é o de que mesmo que o lesado não exerça ou não exerça ainda uma qualquer actividade remunerada, tal não implica que não haja lugar à indemnização pela frustração da aquisição futura de ganhos ou pela sua limitação e ou diminuição cf. douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/09/2008, consultável in www.dgsi.pt);
53. Sendo igualmente critério orientador aquele segundo o qual a atribuição de indemnização pelo dano biológico não substitui nem impede a atribuição de uma indemnização pelo dano patrimonial futuro que pondere a incapacidade funcional do sinistrado (cf. douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/06/2017, consultável in www.dgsi.pt);
54. Entende a A./Recorrente que os critérios supra referidos e que têm sido largamente defendidos na jurisprudência são aplicáveis ao caso sub judice, impondo-se que o cálculo das indemnizações a atribuir a esta - pelo dano biológico e pelo dano patrimonial futuro em razão da incapacidade funcional - encontre fundamento nestes e não pelo critério seguido pelo julgador a quo;
55. Toda e qualquer solução judicial que colida frontalmente com os critérios supra referidos, produz decisão «surpresa», contrária ao princípio geral e uniformizador da boa aplicação do direito;
56. Deve alterar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que em conformidade reconheça o direito da A./Recorrente a ser indemnizada, além do dano biológico, pelo dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente que se reflectirá de forma irreversível na sua capacidade de angariação de ganho, calculado com base no salário mínimo nacional à data do acidente, julgando-se procedentes os pedidos formulados na p.i. por serem justos e adequados aos critérios em uso pela jurisprudência dominante;
57. O montante fixado de é absolutamente minimalista e desajustado às circunstâncias concretas do caso;
Termos em que, e nos que Vossas Excelências superiormente suprirão, deve ser julgada verificada a arguida nulidade, impõe- se a revogação da douta sentença ora recorrida e a sua substituição por acórdão que em conformidade julgue nos termos peticionados supra pela ora recorrente.
A respondeu a estas alegações e apresentou, igualmente, recurso de apelação da sentença, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. A matéria de facto a que se referem os factos constantes das alíneas a), c, na parte em que deu como não provado que o veículo se imobilizou com a traseira a cerca de cinco metros do local onde a autora se encontrava, g), i) e j) dos factos não provados da douta sentença foi erradamente apreciada pelo douto Tribunal recorrido.
B. Encontra-se gravada toda a prova produzida, razão pela qual as respostas a tal matéria deve ser alterada de acordo com o acima alegado e requerido.
C. Dão-se aqui por reproduzidos os depoimentos acima transcritos, de cuja audição resulta sem margem para dúvidas que a matéria das alíneas atrás referidas dos factos não provados da sentença a quo devem ser alterados.
D. A matéria da alínea a) dos factos não provados deve passar para os factos provados com a seguinte redacção: Quando a Autora iniciou a travessia o veículo automóvel ..-DT-.. encontrava-se a uma distância não concretamente apurada, mas não superior a 10 metros.
E. A matéria da alínea c) dos factos não provados deve passar para os factos provados com a seguinte redacção: O veículo seguro na Ré imobilizou-se com a traseira a cerca de cinco metros do local onde se encontrava a Autora.
F. A matéria da alínea g) dos factos não provados deve passar para os factos provados com a seguinte redacção: A Autora não se certificou previamente que podia atravessar a via em segurança.
G. A matéria da alínea i) dos factos não provados deve passar para os factos provados com a seguinte redacção: O condutor do veículo automóvel de matrícula ..-DT-.. não teve nem tempo nem espaço para o poder deter antes de se dar o embate entre o veículo e a Autora.
H. A matéria da alínea j) dos factos não provados deve passar para os factos provados com a seguinte redacção: O veículo automóvel ..-DT-.. encontrava- se a uma distância não concretamente apurada, mas não superior a 10 metros quando a Autora invadiu a faixa de rodagem.
I. Dos depoimentos de forma resumida e acima descritos parece poder concluir-se de forma segura como o acidente dos autos se processou. A Autora pretendia atravessar a via por onde circulava o DT, seguro na ora recorrente. Segundo disse olhou para ao seu lado esquerdo de onde se aproximava o DT. Viu-o, mas, apesar disso, pensou que teria tempo para atravessar a via antes de o DT passar. Só olhou aquela vez para a sua esquerda. Foi tudo muito rápido. Iniciou a travessia da via em passo normal e percorrido um metro desta deu-se o embate. A parte frontal direita do DT embateu-lhe. Rodopiou da parte frontal do DT para o lado direito deste, caindo ao chão. A passadeira para peões existente no local situava-se a 45,10 metros do local onde a Autora ficou caída. O DT após o acidente imobilizou-se a cerca de 5 metros do local onde a Autora ficou caída.
J. Nas circunstâncias dos autos, dada a curta distância a que a Autora se lhe atravessou na via e, não obstante a velocidade reduzida, por inferior ao limite legal, o condutor do DT nada pode fazer para evitar o embate. Ao contrário, a Autora tinha todas as condições para se comportar de tal modo que não se desse o embate entre ela e o DT. Desde logo tinha que ter consciência das suas limitações, pelo menos, auditivas e as decorrentes da dislexia de que padecia. Na verdade, para além das obrigações de qualquer peão médio, nomeadamente a de se assegurar com a toda a certeza de que pode atravessar uma via onde circulam automóveis sem perigo, o que implica verificar se há trânsito a circular, e, em caso afirmativo a distância a que o mesmo se encontra e qual a eventual rapidez a que se aproxima do local, apenas decidindo a atravessar se não lhe restam dúvidas de que o pode fazer com segurança e, no caso de não poder ter essa certeza, aguardar que o trânsito passe e só depois iniciar a travessia da via, a Autora, pessoa surda e com dislexia, teria de rodear os eus cuidados de forma ainda mais exigente.
L. Não era, como não foi, suficiente julgar que tinha tempo. Não lhe bastava olhar apenas uma vez. Tinha obrigação de olhar mais que uma vez, de modo a avaliar com segurança a distância a que o veículo estava e qual a “rapidez” com ia galgando essa distância, de modo a que pudesse tomar uma decisão segura. Bastaria isso para que quando estivesse em condições de decidir já o DT teria com certeza passado, pois, a distância a que se encontrava em escassos segundos seria, como foi percorrida.
M. Mas mais do que isso, a Autora devia, se fosse minimamente prudente, utilizar a passadeira para peões, não muito longe do local onde iniciou a travessia da via. Tal passadeira encontrava-se a menos de 50 metros desse local e mesmo que não estivesse a Autora, com as suas limitações devia apenas fazer a travessia da via pública utilizando as passadeiras. Parece manifesto que o acidente dos autos se ficou a dever de modo exclusivo ao comportamento negligente e imprudente da Autora.
N. A factualidade apurada é, pois, suficiente para determinar que o comportamento da Autora foi decisivo para a eclosão do acidente. Ao condutor do DT não era exigível que actuasse de outro modo.
O. Em consequência, com as respostas alteradas nos termos atrás sugeridos, os quais correspondem aos exactos sentidos dos depoimentos efectuados pelas testemunhas, deve ser alterada a sentença proferida, absolvendo-se a ora recorrente.
P. Mas mesmo que assim não se venha a entender ou seja mesmo que o Tribunal entenda não proceder à alterações da matéria de facto, a verdade é que o acidente deve ser também nesse caso a responsabilidade ser atribuída à recorrida. De facto, a tentativa de travessia da via após a Autora ter visualizado o DT a aproximar-se e a ocorrência do embate logo após a Autora ter percorrido apenas um metro da via, tem se significar que o DT estava já muito próximo da Autora quando ela iniciou a travessia e que o Juízo que ela fez de que “julgava que tinha tempo” foi manifestamente errado e causal do acidente.
Q. Atento o exposto, entende a ora recorrente que deve ser proferida decisão a julgar a acção improcedente e a absolver a recorrente do pedido.
R. O valor atribuído a título de danos não patrimoniais é excessivo e deverá ser reduzido para € 5.000,00, valor este que em termos de equidade se apresenta bem mais adequado aos danos sofridos pela recorrida.
S. A sentença recorrida não fez a melhor e mais correcta aplicação do direito, tendo violado o disposto nos arts. 101.º do Código da Estrada,483º, 487.º, 494.º, 496.º, 503º e 566.º do C. Civil.
Termos em que o recurso interposto pela Ré deve ser julgado provado e procedente e por via disso revogada a sentença a quo e absolvida a ora recorrente, dando-se por não provado e improcedente o recurso interposto pela Autora.
A autora respondeu a estas alegações de recurso, defendendo a improcedência do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a sentença recorrida é nula.
ii) Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
iii) Quais as consequências em sede de direito da alteração da matéria de facto.
iv) A haver lugar a indemnização quais os valores da mesma.

III. Da nulidade da sentença:
A autora defende no seu recurso que a sentença recorrida é nula por enfermar de uma contradição insanável entre os fundamentos e a decisão.
Para assim concluir a autora defende que os factos provados nos pontos 18, 20, 21, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 impõem uma decisão diversa quanto aos diferentes danos patrimoniais indemnizáveis e respectivo quantum de indemnização.
Salvo melhor opinião o vício apontado não existe.
A autora incorre no erro clássico que, apesar de a sua invocação não ter hoje qualquer utilidade em virtude da regra da substituição ao tribunal recorrido, é repetido ad nauseam na prática forense, de confundir erro de julgamento e nulidade da sentença.
Se o juiz qualifica juridicamente os factos provados de determinada forma e retira dessa qualificação a conclusão jurídica que entende ser acertada, a sua decisão pode enfermar de erro de julgamento, designadamente por a qualificação jurídica dever ser outra ou a conclusão jurídica a retirar dessa qualificação dever ser diferente.
Desde que não exista incoerência ou contradição lógica entre os fundamentos e a decisão (isto é, entre, por um lado, os factos jurídicos e as normas seleccionadas pelo juiz, e, por outro lado, a decisão, o dispositivo), e exista apenas uma interpretação incorrecta da factualidade provada ou uma defeituosa escolha, interpretação e/ou aplicação das normas legais, apesar de em resultado da alteração da subsunção jurídica a decisão vir a ser modificada (ou seja, apesar do erro de julgamento), a sentença não enferma de contradição entre os fundamentos e a decisão e, por isso, não é nula.
Os factos que importam para a decisão são sempre os factos jurídicos, isto é, os factos escolhidos pelas normas legais para constituírem o respectivo, âmbito ou previsão, adquirindo por essa via relevo jurídico e que, portanto, vão servir para fundear a aplicação do direito. Os factos não valem por si mesmos, valem enquanto pressupostos de aplicação das normas legais.
Por conseguinte, a concordância que tem de existir entre a decisão e os seus fundamentos não advém estritamente dos factos, advém do resultado epistemológico da tarefa de subsunção jurídica. E quanto a essa, a decisão recorrida evidencia uma clara coerência. Se a decisão está certa ou errada é coisa que se analisará oportunamente em sede de conhecimento das questões jurídicas suscitadas no recurso.
Improcede a arguição de nulidade.

IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
No seu recurso a ré-recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, reclamando desta Relação que altere a decisão de julgar não provados os pontos b), b), g), i) e j) do respectivo elenco.
Esta pretensão de âmbito probatório alicerça-se nos mesmos meios de prova que a Mma. Juíza a quo tomou em consideração, o bem se compreende porque não existem outros meios de prova.
Na verdade, a presente acção enferma de uma gritante escassez de prova.
As pessoas que podiam depor, com maior conhecimento de causa, sobre o modo como o acidente ocorreu eram a autora, cujo depoimento foi produzido, e o condutor do veículo, cujo depoimento não foi produzido apesar de a ré o ter arrolado como testemunha.
Foi colhido o depoimento do marido da autora que aguardava no interior do veículo do casal, parado, que a mulher regressasse do supermercado e, portanto, já tem do acidente uma visão parcelar. E foi colhido o depoimento do agente da PSP que elaborou a participação policial mas que, como é normal e expectável, apenas pode confirmar o que registou na referida participação, razão pela qual o seu depoimento pouco ou nada acrescenta a esta.
Ignora-se se a outra testemunha arrolada pela ré e cujo depoimento também não foi produzido era passageira do veículo, caso em que podia também depor com conhecimento de causa.
Para além desses aspectos há ainda outro assaz importante que advém da circunstância de a autora e o seu marido serem surdos e por isso ter sido necessário ouvi-los com recurso a um intérprete de linguagem gestual, o que introduz mais um factor de perturbação do valor probatório das respectivas declarações uma vez que é legítimo questionar se e em que medida os mesmos compreenderam exactamente o que lhes era perguntado e/ou quiseram mesmo responder o que ficou registado pela voz do intérprete.
Como costumamos recordar, quando como aqui é necessário, a propósito da valoração da prova e da formação da convicção necessária para suportar uma decisão judicial, no nosso sistema processual, com algumas excepções, vigora o sistema da prova livre. Nesse sistema, o tribunal não só aprecia livremente os meios de prova (é livre para decidir o que o meio prova) como é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido (livre para determinar a quantidade de prova produzida por aquele meio). Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (leia-se: de maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão).
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso.
Cabe ao julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, definir e aplicar esta regra caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção.
A circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correcto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam.
Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exactas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida.
A lei não regula e não fornece critérios operativos para a eleição e aplicação dos factores em função dos quais a convicção do juiz se deve formar, isto é, os critérios epistemológicos que devem presidir à tarefa de formação racional da convicção que suporta a decisão judicial.
Quando os factos têm intervenção humana ou são resultado dessa actuação, é necessário atentar devidamente nesse factor. As pessoas movem-se por interesses, motivações, objectivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação que qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias teria.
Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.
Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende.
Esta constatação obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.
Trata-se de um cuidado que é particularmente importante nas acções de responsabilidade civil automóvel uma vez que um acidente de viação é, por natureza, um acontecimento imprevisto, violento, que choca e perturba os intervenientes, o que gera facilmente falsas memórias sobre o evento e a respectiva dinâmica, sendo certo que em condições normais nenhum observador tem a atenção focada na totalidade dos aspectos que interessam àqueles e é levado a preencher as lacunas da sua observação com aquilo que o seu entendimento lhe diz que devia ter sido.
Um dos meios de prova previstos no Código Civil é a prova por presunções, que consiste na formação de ilações a partir de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º). Fazendo uso deste meio de prova o julgador recorre a factos que se encontram provados (facto indiciário) e com recurso às regras da experiência inerentes ao princípio da normalidade (id quod plerumque accidit) deles faz derivar um novo facto que carece de prova (facto presumido).
Não se descura que este meio de prova deve ser usado com particulares cuidados, particularmente quando o nexo lógico que permite a dedução tem por base as máximas da experiência, as quais apelam a padrões médios (cultura média, aptidão média, conhecimento médio, senso comum) sempre difíceis de definir e cuja definição é sempre temporizada e localizada.
Todavia, nas situações em que não seja possível ou expectável que possa surgir um meio de prova directo do facto carecido de prova, não se pode recusar às presunções judiciais um papel decisivo na formação da convicção, sendo certo que um dos deveres deontológicos do juiz é o de ter coragem na decisão e não optar pela solução mais fácil do non liquet.
Por outro lado, no que respeita à dinâmica de um acidente o que verdadeiramente releva são as leis da física sobre o movimento dos corpos e a acção das forças que sobre eles são aplicadas, para o que se torna necessário levar em consideração aspectos como a natureza e as condições do piso, o peso do veículo, as suas características, a extensão dos rastos de travagem se os houver, a distância a que o condutor se apercebe do obstáculo, a dimensão dos danos no veículo e no objecto com que colidiu, o local de impacto e de imobilização.
Por mais credível que seja um depoimento ou peremptório o depoente, não pode ser aceite um depoimento que revela uma dinâmica que as leis da física e da dinâmica dos corpos não consentirem.
Dito isto estamos em condições de analisar a dinâmica do acidente de que tratam os autos.
Para o efeito socorremo-nos não apenas dos depoimentos da autora e do marido, mas igualmente do documento junto com a petição inicial que corresponde à participação policial do acidente onde se inclui a descrição do acidente feita pelo condutor do veículo e, segundo menção da participação, escrita pelo próprio, o que permite o seu aproveitamento por haver segurança suficiente quanto à autoria e correspondência à vontade do autor da declaração.
Refira-se que as fotografias que acompanham a participação são do local do acidente, mas não o retratam tal como ele existia à data do acidente. Trata-se de cópias de fotografias tiradas pela Google e que constam da ferramenta Google Maps. Todavia, como consta na base das fotografias estas foram tiradas pela Google em Maio de 2014, enquanto o acidente ocorreu em Julho de 2017 (por exemplo, nas fotografias o supermercado ainda estava em construção e na data do acidente a autora deslocou-se ao supermercado, sinal de que ele estava acabado e em funcionamento). É por isso necessário consultar o Google Maps na data de hoje para visualizar as fotografias do local tal como ele ficou depois da construção do supermercado (as fotografias apresentadas hoje naquele sitio estão datadas de Julho de 2020, são posteriores ao acidente).
Esta observação permite compreender em que ponto exacto a autora saiu do supermercado, atravessou o passeio e a zona destinada a estacionamento de veículos paralelamente à estrada para depois atravessar a estrada. Nas fotografias existe um espaço assinalado com passadeira para os clientes passarem do logradouro da área comercial para o passeio, estando ambos os espaços separados por um canteiro com vegetação que obriga as pessoas a saírem por um único ponto deixado livre pelo canteiro que corresponde às medições registadas na participação policial.
Esta ferramenta informática permite ainda verificar o local onde existia um semáforo por onde o veículo teve de passar e a passadeira destinada aos peões, bem como medir a distância entre a passadeira e o ponto onde a autora podia sair do logradouro do supermercado para o passeio e deste para a estrada (uma vez que o marido estava à espera dela do outro lado da estrada dentro do veículo do casal, parado nesse local) e, assim concluir que embora houvesse dúvidas sobre a distância a que se encontrava a passadeira ela estava de facto a menos de 50 metros daquele ponto.
Como sempre acontece nestas situações, a melhor forma de analisar a prova é partir dos dados objectivos que são seguros ou pelo menos suficientemente firmes para permitirem deduções.
A autora afirmou expressamente na petição inicial e no seu depoimento que antes de entrar para a estrada olhou e viu o veículo a vir na sua direcção. Não precisou a que distância ele se encontrava nem a que velocidade ele viria a circular, limitando-se a referir repetidamente que «pensou que dava tempo para passar» e que «foi tudo muito rápido».
Ao contrário do que é sustentado na resposta às alegações de recurso, esta afirmação não se referiu nunca à velocidade do veículo mas sim à rapidez com que aconteceu o atropelamento, ao escasso lapso de tempo que passou entre ela estar a sair do supermercado, olhar para onde vinha o veículo, entrar para a estrada e ser atropelada.
Segundo consta da participação, o veículo apresentava danos (sinais do efeito do embate) no pára-choques direito, guarda-lamas direito e em ambas as portas do lado direito. Daqui se extrai necessariamente que a autora não foi colhida quando já se encontrava na frente do veículo porque se isso tivesse sucedido a acção do veículo em movimento tê-la-ia projectado para a frente (para um ponto mais ou menos lateralizado mas posterior à frente do veículo) ou tê-la-ia levantado do chão e projectado pelo capô e pelo pára-brisas, fazendo-a cair num ponto mais ou menos lateralizado mas sempre atrás do veículo.
Fazendo uma busca na internet, encontram-se com facilidade fotografias de veículos de marca Audi e modelo .. construídos no ano de 2007 (hoje encontra-se precisamente a fotografia de um cuja matrícula, ..-DT-.., só difere num número do veículo segurado na ré, ..-DT-..) que nos permitem ver que a frente deste veículo é muito redonda, que o pára-choques da frente (só existem dois, o da frente e o de trás, pelo que a referência na participação ao pára-choques direito deve ser interpretada como da frente, do lado direito) se prolonga já para o lado, em curva.
Ora a autora declarou que quando foi colhida deu uma cambalhota, andou pelo ar e rodopiou ao longo do lado direito do veículo. Por outro lado, a autora não sofreu lesões traumáticas nos ossos das pernas ou dos braços, mas apenas em três dedos de um pé. Daí se extrai com segurança suficiente que a autora não foi colhida com muita força e, sobretudo, que o seu pé cujos dedos ficaram fracturados ficaram debaixo de uma das rodas do lado direito do veículo.
Por fim, a participação policial não menciona o local de imobilização do veículo («já não se encontrava no local») mas também não menciona qualquer rasto de travagem ou outro sinal que indicie velocidade. A autora e o marido dizem que o veículo não travou antes do atropelamento, só depois, imobilizando-se «mais à frente».
Sopesando estes dados de forma conjugada e apelando às leis da física é seguro concluir que a autora foi colhida assim que se aproximou do espaço para circulação do veículo e foi colhida na zona do veículo onde o pára-choques da frente faz uma curva e se liga à chapa do lado direito pois só desse modo o corpo da autora podia ter sido feito rodopiar (tinha de ser apanhado de lado, não de frente) sem se afastar muito do veículo e um dos pés da autora acabar pisado por uma das rodas do lado direito, causando-lhe apenas a fractura de três dedos e de nenhum outro osso do corpo, designadamente ao nível dos membros. Por outras palavras, a autora não colhida com a frente do veículo, foi colhida com o canto do veículo do lado da frente/direito.
É possível concluir igualmente que quando a autora iniciou a travessia da estrada o veículo tinha de se encontrar já muito próximo do local onde se deu o atropelamento (o que está em linha com a afirmação da autora de que «foi tudo muito rápido» e bem assim com a descrição do condutor de que foi a autora que «veio contra o veículo»). Para não ser assim, o veículo teria de circular a uma velocidade elevada em resultado da qual teria causado à autora danos mais extensos e ter-se-ia imobilizado bem mais à frente, o que não se verificou. Por outras palavras, o veículo circulava a uma velocidade reduzida e estava já muito próximo do local onde se deu o atropelamento.
Outra conclusão forçosa é a de que a autora calculou mal ou não avaliou convenientemente a distância a que se encontrava o veículo e/ou o tempo de que dispunha para atravessar a estrada antes de aquele se aproximar do local de travessia, apesar de dispor de total visibilidade para o local donde provinha o veículo e de, segundo as suas próprias declarações, o ter visto a deslocar-se e, por conseguinte, ter a obrigação de avaliar convenientemente esses aspectos e, na dúvida, imobilizar-se para o deixar passar.
Matematicamente a conversão de quilómetros por hora em metros por segundo é feita através da divisão 3,6. Daí resulta que um peão a caminhar à velocidade de 6 km/hora (velocidade de caminhada normal para um adulto) percorre, num segundo, a distância de 1,66 metros. E resulta que um veículo a circular a 50 km/hora percorre, num segundo, a distância de 13,9 metros.
No caso a faixa de rodagem tinha a largura de 6,40 metros (cf. participação policial), pelo que o veículo dispunha de 3,20 metros para se deslocar. Se a autora tivesse percorrido 1,66 metros estaria já depois do meio dessa hemifaixa e teria sido colhida totalmente com a frente do veículo, o que, como vimos, não sucedeu. Podemos pois considerar que a autora demorou menos de um segundo a entrar para a faixa de rodagem de rodagem onde circulava o veículo.
Considerando que a velocidade de 50 km/hora já é compatível com a causação de danos bem superiores aos que a autora sofreu, que o ponto de colisão entre o veículo e a autora evitou danos maiores, que o veículo «parou mais à frente» e que entre o aparecimento da autora na faixa de rodagem e a reacção do condutor, por mais atento que vá, ainda demora algum tempo, logo leva o veículo a percorrer uma maior distância, consideramos suficientemente demonstrado, por dedução e por recurso às leis da física que regem a velocidade, que o veículo se encontrava aproximadamente a 10 metros de distância quando a autora iniciou a travessia.
Tendo presentes estas ideias, decide-se julgar provados os seguintes factos que se aditam à fundamentação de facto da decisão:
i) «Quando a Autora entrou para a faixa de rodagem para a atravessar, o veículo encontrava-se a uma distância não concretamente apurada, mas de cerca de 10 metros».
ii) «Após o atropelamento o veículo imobilizou-se à frente do local onde se encontrava a autora».
iii) «Quando a autora iniciou a travessia da via não havia condições para fazer o atravessamento em segurança.»
iv) «Nessas circunstâncias, não foi possível ao condutor imobilizar o veículo antes de se dar o embate entre o veículo e a autora».
Ainda em sede de matéria de facto, existe um aspecto que é importante para a decisão de mérito e que urge tornar explicitar, o que pode e deve ser feito oficiosamente por se tratar de um facto alegado e a que não foi dada resposta clara.
No artigo 14.º da contestação a ré alegou que existia uma «passadeira para a travessia de peões», «cerca de 45 metros antes do local onde se deu o embate». Nos pontos 15 e 16 da fundamentação da matéria de facto apenas é reflectido que existia uma «passadeira para a travessia de peões» a 45,10 metros do ponto onde a autora ficou prostrada no chão.
Nos factos não provados não é, pois, incluído o facto que vinha alegado pela ré, ou seja, o alusivo à distância entre o local onde existe a passadeira e o local onde foi iniciada a travessia, que é aquele que releva para saber se o peão incumpriu a obrigação estradal de usar a passadeira para a finalidade que pretendia.
Todavia, na motivação da decisão é referido que «não foi realizada qualquer prova segura e cabal da distância a que se encontrava a autora da passadeira para peões quando iniciou a travessia da via, afigurando-se-nos que tinha necessariamente que ser superior aos 45,10 metros alegados pela ré, porquanto a autora, com o embate, não foi projectada para a frente, tendo antes rodopiado sobre a frente e a parte lateral direita do veículo, indo cair no chão, conforme foi relatado pela mesma e é confirmado pela versão apresentada pelo condutor do veículo junto da PSP». Portanto, a Mma Juíza a quo formou a convicção no sentido da não prova do facto alegado, mas não o levou ao elenco dos factos não provados, o que urge sanar por se tratar de um facto alegado e determinante para a apreciação da culpa.
À motivação da Mma. Juíza a quo pode opor-se de imediato uma objecção. O facto de a autora ter rodopiado sobre o lado direito do veículo não determina necessariamente que o local onde ela caiu ao chão seja mais próximo da passadeira que o local onde ela foi colhida; é necessário contar com a inércia do veículo; a acção da deslocação do veículo pode perfeitamente ter feito rodar o corpo e em simultâneo provocado a sua deslocação no sentido que o veículo levava, isto é, para a frente, não para trás (para que se perceba o que queremos dizer, veja-se o exemplo do pião – o brinquedo de madeira – que uma vez lançado roda a elevada velocidade e praticamente não sai do mesmo lugar).
Como quer que seja, usando as fotografias do Google Maps e a ferramenta de medição de distâncias disponível no respectivo sítio na internet é fácil de apurar que a distância entre a passadeira e o ponto por onde os clientes do supermercado acedem do logradouro deste ao passeio e após à estrada (como se referiu antes, assinalado no logradouro por uma «passadeira» e dispondo de uma passagem entre o canteiro de vegetação destinado a servir de limite ou obstáculo à passagem e o espaço destinado à entrada e saída de veículos) é precisamente de 45 metros (de notar que se a autora tivesse cortado caminho e saído pelo espaço destinado à entrada/saída de veículos a distância seria ainda menor, mas isso não resulta dos autos).
Face à relevância deste facto, adita-se oficiosamente à fundamentação de facto da decisão ainda o seguinte facto:
v) «A autora entrou para a faixa de rodagem com intenção de a atravessar num ponto que distava 45 metros de uma passadeira para peões, existente a poente».

V. Fundamentação de Facto:
Estão agora em definitivo julgados provados os seguintes factos:
1. No dia 12 de Julho de 2017, cerca das 17 horas e 25 minutos, na Avenida …, União das freguesias …, concelho de Matosinhos, ocorreu um embate em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-DT-.., pertencente a D… e na altura por ele conduzido e autora, como peão.
2. O condutor do veículo automóvel com a matrícula ..-DT-.. circulava pela referida via, no sentido poente-nascente, pela metade direita da via, atento o seu sentido de marcha.
3. O local onde se deu o sinistro é constituído por uma recta com mais de 40 metros e é antecedida de cruzamento e curva no sentido de marcha do veículo de matrícula ..-DT-...
4. A referida via é ladeada por passeios, habitações, lojas comerciais e o hipermercado E… e encontra-se inserida em espaço urbano onde habitualmente ocorre uma grande afluência e movimentação de peões, quer nos passeios, quer na travessia da via.
5. A via, no local onde ocorreu o sinistro, tem uma largura de 6,40 metros.
6. No dia do sinistro o local apresentava-se com piso em bom estado e a meteorologia assinalava céu limpo.
7. O limite de velocidade máxima instantânea permitido no local é de 50km/h porque dentro do aglomerado urbano da União de freguesias ….
8. Por volta das 17 horas, a autora deslocou-se ao hipermercado E…, sito na Avenida …, tendo o marido da mesma ficado a aguardar no veículo sua pertença, parado na berma da referida Avenida no sentido nascente/poente.
9. Após abandonar o hipermercado E…, a autora parou na berma destinada ao estacionamento situada do lado direito da via, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-DT-...
10. Ainda na berma, antes de iniciar a travessia, a autora olhou para o lado direito e viu que se encontrava livre e olhou para o lado esquerdo onde visualizou o veículo automóvel de matrícula ..-DT-.. a distância não concretamente apurada.
11. A autora é surda e não consegue ouvir os ruídos do motor e do veículo.
12. A autora iniciou a travessia da faixa de rodagem, em passo normal, para se dirigir ao veículo do seu marido que se encontrava estacionado do outro lado da faixa de rodagem.
13. Nesse intuito a autora percorreu cerca de 1 metro da hemifaixa de rodagem.
14.Tendo o veículo automóvel de matrícula ..-DT-.. ido embater na autora com a frente direita e fez com que esta “rodopiasse” na frente e lateral direita (frente, porta dianteira e traseira) do veículo automóvel de matrícula ..-DT-...
15. E foi projectada para o chão, ficando prostrada na mesma hemifaixa onde foi colhida, a cerca de 0,40 metros da berma.
16. E a 45,10 metros de uma passadeira para a travessia de peões.
17. O embate ocorreu na metade direita da via, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-DT-...
18. Em resultado do embate, a autora sofreu trauma do membro superior esquerdo, anca esquerda e do pé direito.
19. A autora foi socorrida e transportada pelos Bombeiros Voluntários … para o Hospital ….
20. Foi-lhe colocada tala gessada no pé direito.
21. A autora manteve gesso no pé e perna direita durante cerca de seis semanas, locomovendo-se com a ajuda de muletas durante esse período e algumas semanas após lhe ser retirado o gesso do pé e perna direita.
22. Durante esse período, a autora foi observada/acompanhada pela médica de família, a Dra. F…, no Serviço USF de …, tendo, nos dias 20.07.2017 e 11.09.2017, aí se deslocado queixando-se de fortes dores ao nível do pé direito e assistida.
23. Em 06.10.2017, a autora iniciou tratamento em fisioterapia, tendo sido assistida em 159 sessões de fisioterapia.
24. As sessões de fisioterapia necessárias à recuperação física da autora duraram cerca de 8 meses, tendo sido incomodativas, cansativas e dolorosas.
25. A autora foi igualmente assistida em 9 consultas de fisiatria.
26. Em virtude das lesões sofridas no embate, a autora teve de tomar vários medicamentos, designadamente para aliviar as dores.
27. Durante o período de convalescença, a autora necessitou de ajuda de familiares para fazer a sua higiene pessoal, arrumar a casa, cozinhar e sair de casa, o que a deixou impaciente.
28. Em consequência do embate e das lesões sofridas, a autora tem dificuldades em aninhar-se e a subir e descer escadas, a fazer o levante, na marcha e fenómenos dolorosos no pé direito agravados pelos esforços e posturas e edema do pé agravados pelos esforços.
29. Em consequência do embate e das lesões sofridas, a autora apresenta as seguintes sequelas no membro inferior direito: cicatrizes hipocrómicas localizadas na face dorsal do pé e terço inferior da perna, a maior das quais medindo 3x2cm; dogitopressão dolorosa dos 3º, 4º e 5º metatarsianos, bem como inversão e eversão do pé.
30. A data da consolidação médico-legal das lesões da autora é fixável em 23.03.2018.
31. Em consequência do embate e das lesões sofridas, a autora suportou um período de défice funcional temporário parcial de 254 dias.
32. As supra descritas sequelas acarretam para a autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, com repercussões nas actividades da vida diária.
33. O quantum doloris é fixável no grau 3/7.
34. O dano estético no grau 1/7.
35. Em consequência do embate e das lesões sofridas, a autora suportou e continuará a sofrer dores.
36. Por via disso, a autora vai necessitar de tomar ocasionalmente medicação analgésica e anti-inflamatória.
37. Os factos descritos provocaram e provocam tristeza, angústia e desgosto à autora.
38. À data do embate, a autora gozava de boa saúde, sem apresentar qualquer problema físico permanente que de alguma forma afectasse a sua marcha ou locomoção.
39. A autora nasceu no dia 4.05.1964, conforme certidão de assento de nascimento junta a fls. 26v e cujo teor se dá aqui como integrado e reproduzido para todos os legais efeitos.
40. À data do embate, a autora encontrava-se desempregada, não auferindo qualquer subsídio de desemprego, ocupando-se de todas as lides domésticas para o agregado familiar.
41. Em consequência do embate, a autora realizou várias despesas medicamentosas na quantia de €26,83.
42. Nas deslocações para as sessões de tratamento de fisioterapia e consultas de fisiatria na G…, situada a uma distância de 8 km, despendeu cerca de €960,00.
43. Ainda em virtude deste sinistro esta teve de despender a quantia de €100,00 com uma consulta médica de ortopedia.
44. À data do embate, o proprietário do veículo automóvel de matrícula ..-DT-.. havia transmitido para a ré a responsabilidade civil emergente de acidente de viação através da Apólice n.º ………., válida e em vigor.
45. Quando a Autora entrou para a faixa de rodagem para a atravessar, o veículo encontrava-se a uma distância não concretamente apurada, mas de cerca de 10 metros.
46. Após o atropelamento o veículo imobilizou-se à frente do local onde se encontrava a autora.
47. Quando a autora iniciou a travessia da via não havia condições para fazer o atravessamento em segurança.
48. Nessas circunstâncias, não foi possível ao condutor imobilizar o veículo antes de se dar o embate entre o veículo e a autora.
49. A autora entrou para a faixa de rodagem com intenção de a atravessar num ponto que distava 45 metros de uma passadeira para peões, existente a poente.

VI. Matéria de direito:
Na sentença recorrida, feito o enquadramento jurídico da responsabilidade civil por culpa ou pelo risco emergente de acidente de viação, entendeu-se que não era possível imputar a culpa pela produção do acidente nem ao condutor do veículo nem ao peão e fez-se recair sobre o condutor a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos causados ao peão a título de responsabilidade objectiva ou pelo risco (artigo 503.º do Código Civil).
A autora concorda com esta conclusão sobre a responsabilidade, impugnando apenas os valores indemnizatórios fixados para ressarcimento dos seus danos, mas a ré discorda e defende que a culpa da produção do atropelamento é única e exclusivamente do peão, circunstância que exclui a responsabilidade pelo risco e em consequência a obrigação de indemnizar assacada ao condutor do veículo segurado.
Uma vez que a questão da responsabilidade antecede logicamente a questão da indemnização, começaremos a análise pelo recurso da ré.
Um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, excluídos os casos de responsabilidade pelo risco, é a culpa do agente, a qual pode ter a forma do dolo ou da negligência ou mera culpa. Antunes Varela, in Das obrigações em geral, vol. I, 5ª ed., pág. 514, diz que agir com culpa é actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito, o que se verifica quando ele podia e devia ter agido de outro modo. Por outras palavras, a culpa exprime um juízo de reprovação ou de censura normativa da conduta do agente baseado quer em inconsideração, imperícia ou negligência, quer na inobservância de preceitos legais ou regulamentares.
No domínio dos acidentes de viação, a negligência traduz-se as mais das vezes na violação das regras de circulação, que revelam uma actuação desconforme ao dever-ser jurídico tão censurável quanto perigosa é a própria circulação rodoviária. Por regra, em caso de verificação da infracção de uma norma regulamentar não é necessária a prova de que o agente previu ao menos a verificação do evento que essa infracção desencadeia, o que seria necessário para imputar o facto à vontade e assim legitimar a censura ético-jurídica da actuação. Nesse caso, por aplicação de juízos de regras de experiência que fundamentam as presunções naturais, deve considerar-se que o condutor infractor agiu com culpa, a menos que ele demonstre que a contravenção foi alheia à sua vontade (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-03-2011, proc. n.º 1879/03.0TBACB.C1.S1, in www.dgsi.pt).
Perante um acidente de viação existe negligência na condução quando ocorre uma infracção a uma regra de circulação rodoviária. Daí se extrai a culpa do condutor sob forma de negligência desde que pelo menos estejamos perante uma contravenção causal. Como explica Américo Marcelino, in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, pág. 117, citando a opinião de Gomes da Silva, que «uma transgressão é causal de certo evento quando este é daqueles que o legislador previu e quis evitar com a criação da norma incriminadora». Por outras palavras, sempre que no processo causal do acidente em análise tiver relevo irrecusável o aspecto que a norma estradal desrespeitada pelo agente visa controlar estamos perante uma contravenção causal.
A regularidade da actuação rodoviária dos utentes do espaço rodoviário afere-se pelo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio.
Deste diploma retiram-se as seguintes disposições:
O trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes.
[Artigo 13.º, n.º 1 - Posição de marcha]
O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo (…) às condições meteorológicas ou ambientais, (…) e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
[Artigo 25.º, n.º 1 - Velocidade moderada]
1 - Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas.
2 - Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efectuem o seu atravessamento; (…)
[Artigo 99.º - Lugares em que podem transitar]
1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.
3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
[Artigo 101.º - Atravessamento da faixa de rodagem]
Vistas as normas legais atentemos agora nos factos provados que descrevem os movimentos do veículo e do peão no evento sob julgamento:
• O local do atropelamento é uma recta com mais de 40 metros e 6,40 metros de largura.
• Está ladeado por passeios, habitações, lojas e um hipermercado, e insere-se em espaço urbano onde habitualmente há grande afluência e movimentação de peões nos passeios e na travessia da via.
• A velocidade máxima instantânea permitida no local é de 50km/h.
• O piso estava em bom estado e o céu limpo.
• O veículo automóvel circulava pela metade direita da via, atento o seu sentido de marcha.
• A autora tinha 53 anos de idade.
• É surda e não consegue ouvir os ruídos do motor e do veículo.
• A autora saiu do hipermercado e, ainda na berma do lado direito da via, atento o sentido do veículo, antes de iniciar a travessia, olhou para o lado esquerdo e viu o veículo automóvel a distância não concretamente apurada.
• A autora iniciou a travessia da faixa de rodagem em passo normal para se dirigir para o outro lado da faixa de rodagem.
• O ponto onde a autora iniciou a travessia distava 45 metros de uma passadeira.
• Quando a Autora iniciou a travessia da faixa de rodagem, o veículo encontrava-se a uma distância não concretamente apurada, mas de cerca de 10 metros, e não havia condições para fazer o atravessamento em segurança.
• Nessas circunstâncias, não foi possível ao condutor imobilizar o veículo antes de se dar o embate entre o veículo e a autora.
• A autora percorreu cerca de 1 metro da hemifaixa de rodagem.
• O veículo embateu na autora com a frente direita, fazendo com que esta “rodopiasse” na frente e lateral direita (frente, porta dianteira e traseira) do veículo.
• A autora caiu no chão a cerca de 0,40 m. da berma e a 45,10 m. da passadeira.
• O embate ocorreu na metade direita da via, atento o sentido do veículo.
• Após o atropelamento o veículo imobilizou-se à frente do local onde se encontrava a autora.
Resulta desta matéria de facto que ao condutor do veículo automóvel, e nisso concorda-se com a sentença recorrida, não é possível atribuir a violação de qualquer regra de condução rodoviária ou mesmo regra de cuidado no exercício dessa condução que permita fazer recair sobre ele qualquer juízo de censura normativa passível de encerrar a afirmação de culpa ou negligência.
O veículo circulava na sua faixa de rodagem, podendo fazê-lo e não se provou que o fizesse a uma velocidade que excedesse o limite de velocidade máxima instantânea.
Apesar de ter havido o atropelamento não pode considerar-se violada sequer a regra geral da velocidade que obrigava o condutor a circular a uma velocidade que lhe permitisse executar, em condições de segurança, as manobras cuja necessidade fosse de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (artigo 24.º).
Com efeito, esta norma remete para um critério de previsibilidade, normalidade, devir com o qual se deve contar. O condutor tem de contar com o que vê ou tem a obrigação de ver e, face a essa observação, é previsível segundo critérios de normalidade e simultaneamente de prudência.
Desde que os veja ou deva ver com antecedência, o condutor tem de guardar para os peões com que depara distância suficiente para os evitar, precavendo, nessa hipótese, a possibilidade de o peão ter algum movimento irregular. No caso, se o condutor visse ou devesse ver o peão numa altura em que ainda lhe seria possível, procedendo com destreza, ajustar a sua posição e/ou deslocação para o evitar, o condutor teria parte da culpa no atropelamento mesmo que o peão não pudesse estar naquele local.
Contudo, se o peão está na berma o condutor não tem a obrigação de prever que ele irá cometer uma infracção a uma regra rodoviária e passar a ocupar a faixa de rodagem sem antes ver se vem algum veículo a ocupar essa faixa e, reparando que vem, deixá-lo passar.
No caso, tendo o atropelamento ocorrido na sequência da invasão da faixa de rodagem pelo peão quando o veículo estava a cerca de 10 metros, ou seja, havendo apenas um espaço entre 1 a 2 segundos para a reacção deste e a imobilização do veículo, teremos de concluir que nesse momento já não é possível ao condutor, mesmo procedendo com destreza, desviar-se para a esquerda e evitar a colisão com o peão.
Pode perguntar-se se um condutor correspondente ao homem médio, colocado na posição deste condutor, ao ver o peão ainda na berma, devia ter equacionado a possibilidade de este, mesmo estando-lhe vedado e/ou sem verificar se tinha segurança para isso, passar para a faixa de rodagem a qualquer momento e, nessa medida, devia de imediato reduzir a velocidade para o caso de se dar essa eventualidade.
Cremos que também nesse caso a resposta tem de advir da aplicação de critérios de normalidade, de justa medida, da prudência necessária, não se podendo atribuir culpa a um agente relativamente a consequências totalmente imprevistas para um homem médio, sob pena de a actuação humana passar a determinar riscos incomensuráveis que dificultarão sobremaneira o desenvolvimento da vida.
O peão era uma mulher adulta, não era uma criança ou uma pessoa com alguma incapacidade ou dificuldade física observável, relativamente aos quais fosse de admitir a possibilidade de um comportamento menos reflectido, inexperiente, desatento. Por isso, cremos que segundo critérios de normalidade, mesmo o condutor médio não teria, no caso concreto, de configurar aquela possibilidade e por isso não lhe seria censurável a não adopção de um cuidado acrescido.
Ao contrário do que se expende da sentença recorrida é efectivamente possível imputar ao peão um juízo de censura resultante da violação não justificada de duas regras rodoviárias, mais propriamente, a regra que a obrigava a usar a passadeira situada a não mais de 50 metros para atravessar a faixa de rodagem (artigo 101.º, n.º 3) e a regra que a impedia de iniciar o atravessamento da faixa de rodagem sem se certificar previamente que, tendo em conta a distância que a separava do veículo e a respectiva velocidade, o podia fazer sem perigo de acidente (artigo 101.º, n.º 1).
Estamos perante duas infracções cujo cometimento é totalmente imputável à esfera de autodeterminação do peão. Com efeito, ficou provado que antes de iniciar o atravessamento da faixa de rodagem, a autora viu o veículo automóvel a dirigir-se na sua direcção. Apesar de padecer de surdez, a autora possui o sentido da visão. Não se tratou, portanto, de uma mera desatenção, de uma actuação irreflectida repentina, não antecedida do cuidado que normalmente deve ser adoptado; pelo contrário, se ela olhou e viu só pode ter incorrido em defeito de avaliação das circunstâncias.
Acresce que a autora é uma mulher adulta, com experiência de vida e capacidade para adoptar comportamentos razoáveis e prudentes, pelo que a circunstância de ter visto o veículo antes de iniciar o atravessamento e mesmo assim ter iniciado essa manobra apesar de a distância a que o veículo se encontrava não lhe permitir realizá-la em segurança, obriga a concluir que ela teve um comportamento particularmente negligente.
Com efeito, o veículo automóvel estava já muito perto, tinha prioridade de passagem e a autora ia invadir a faixa de rodagem destinada ao trânsito daquele. Nessas condições, a autora tinha a obrigação, inerente a um dever de cuidado básico, de aguardar a passagem do veículo antes de invadir a faixa de rodagem uma vez que as normas a obrigavam a assegurar-se previamente que podia fazer tal movimentação em segurança, sem colocar em risco a sua própria integridade e a integridade dos outros utentes da faixa de rodagem.
Não o tendo feito, não só cometeu uma infracção rodoviária como actuou com grave negligência, uma vez que nada se encontra provado que justifique o seu erro de avaliação ou a incapacidade de avaliar correctamente as circunstâncias com que se deparava e que lhe impunham outro comportamento.
Acresce que estas infracções são ambas causais do atropelamento na medida em que as duas regras violadas visam precisamente evitar os riscos associados ao comportamento do peão, qual seja o de serem colhidos por veículos a circular nas faixas de rodagem. Por isso, é forçoso concluir que a autora actuou com culpa dando causa ao atropelamento de que foi vítima.
Tradicionalmente entendia-se que no nosso sistema jurídico de responsabilidade, face ao disposto nos artigos 505.º, 506.º, n.º 1, e 507.º, n.º 2, do Código Civil, havendo culpa da vítima e não havendo culpa do condutor do veículo causador dos danos ficava excluída a responsabilidade pelo risco da circulação do veículo e afastado o dever de indemnização do detentor ou condutor do veículo (nesse sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, Almedina, 2000, pg. 675 e seg., Pires de Lima/Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, anotações l e 3 ao artigo 505.º, Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Volume I, 9.ª edição, Almedina, 2010, págs. 392-393).
Este entendimento foi repensado, tendo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça passado a aceitar a possibilidade de concorrência entre a culpa do peão e o risco associado à circulação do veículo automóvel, caso em que a responsabilidade do detentor do veículo decorrente do disposto no artigo 505.º do Código Civil não será excluída.
No Acórdão de 17 de Outubro de 2019, Oliveira Abreu, proc. n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1, in http://www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça, faz assim o ponto da situação quanto à questão jurídica controversa da possibilidade de haver concurso entre a responsabilidade por culpa do próprio lesado e a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo:
«Estatui o art.º 505º do Código Civil “Sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”
Desvalorizando o elemento literal que decorre do preceito consignado, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, in, Código Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão, Coimbra Editora, Fevereiro de 2011, páginas 517 e 518, anotação 1 ao artigo 505º do Código Civil.
Este entendimento teve apoio jurisprudencial até ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007 (Processo n.º 07B1710), in, www.dgsi.pt que, por maioria, sustentou que o artigo “505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
(…) está actualmente firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa” (…)»
Convicto defensor da tese do concurso, Calvão da Silva, in Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar de página?, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137.º, n.º 3946, pág. 52, defende que «o artigo 505.º deve ser lido assim: sem prejuízo do disposto no artigo 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, à “fortiori”, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».
No Acórdão do Supremo Tribunal de 01.06.2017, Lopes do Rego, proc. n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1, in http://www.dgsi.pt, em termos depois acompanhados por outros Acórdãos do mesmo tribunal, afirmou-se o seguinte:
«(…) o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional : ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.
Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.
E, por outro lado, afigura-se que esta posição é a que melhor se adequa à jurisprudência definida pelo TJUE, … ao permitir que o regime de Direito interno em vigor suportasse o confronto com as normas e princípios de Direito Comunitário, por entender que a legislação em vigor não tem por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito.
É, pois, este juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente…» (sublinhados nossos).
O Supremo Tribunal de Justiça vem acolhendo, como se vê, a tese de que a culpa não exclui o risco e que a responsabilidade pelo risco só deve afastar a obrigação de indemnização nos casos em que o acidente for exclusivamente imputável ao comportamento do lesado, interpretação que Sinde Monteiro, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 142.º, n.º 3977, pág. 124 e seguintes, considera ser «a mais justa» e «aquela que melhor se harmoniza com os dados do direito positivo» (de notar que este autor é ainda mais exigente e considera que a responsabilidade só deve ser excluída quando o acidente for exclusivamente imputável a falta grave e indesculpável do lesado e que a averiguação deste pressuposto não dever ser visto «como uma pura averiguação do nexo causal mas antes como de imputação a uma pessoa das consequências da sua conduta no trânsito rodoviário»).
No caso, conforme já se assinalou, estamos perante o atropelamento de um peão de idade adulta que viu o veículo a aproximar-se e que não obstante isso tomou a decisão de invadir a faixa de rodagem por onde aquele circulava.
Note-se que não foi sequer alegado que o veículo tivesse aumentado a velocidade de circulação depois de a autora o ter visto (o que podia consentir a ideia de que a avaliação da distância tinha sido correcta mas o seu pressuposto fora entretanto modificado sem a autora se ter apercebido disso) e, pelo contrário, foi alegado no artigo 12.º da petição inicial que ao ver o veículo a autora ficou «com a percepção de que [o veículo] circularia a velocidade normal porque, em via de regra, os carros circulam a baixa velocidade» naquele ponto. Estes dois dados só induzem que o veículo se encontrava já bem próximo do local onde a autora iniciou o atravessamento e, portanto, que a falha de avaliação da autora se deveu a negligência grosseira da mesma.
A autora sustentou que por ser surda não conseguia «ouvir o ruído do motor e do veículo» e por isso «não conseguia estimar a velocidade», ou seja, não tinha capacidade para avaliar correctamente a velocidade e de tomar uma decisão conscienciosa em função desse elemento.
Este facto tem relevo porque o barulho produzido por um mecanismo a funcionar fornece elementos para que o nosso cérebro, habituado que está a ligar o barulho à velocidade ou à força do mecanismo, use esse elemento para estimar a velocidade, embora nem sempre essa estimativa conduza a dados correctos por ser cada vez menor o barulho produzido pelos veículos automóveis.
Todavia, para além de não se tratar de um elemento decisivo, sobretudo em espaço urbano ocupado por muitas e diversas fontes de barulho que perturbam a descoberta instantânea da sua origem ou fonte, não é um elemento bastante para modificar a circunstância de a autora ter visto o veículo e a dedução de que nessa circunstância, tratando-se de um adulto que certamente não se depara com essa situação pela primeira vez na vida nesta ocasião (não foi alegado que ela seja surda apenas de algum tempo a esta parte) lhe era então exigível maior cuidado na tomada de decisão uma vez que a surdez não a priva de inteligência, raciocínio, experiência de vida, poder de observação e de ajustamento.
No mínimo era-lhe exigível que, consciente das suas limitações, não avançasse para a faixa de rodagem sem tornar a ver o veículo e aferir por último e em melhores condições a distância deste e a existência de condições para fazer o atravessamento antes da sua chegada. Não resulta demonstrado que a autora tenha tido esse cuidado e a circunstância de ter sido colhida logo após, pelo canto dianteiro direito do veículo e pisada por das rodas do lado direito deste, demonstra que se ela tivesse adoptado esse cuidado elementar o atropelamento não se teria dado tal era já a proximidade do veículo.
Nesse contexto (um peão adulto, surdo, mas que observa o veículo antes de iniciar o atravessamento e inicia esse movimento quando o veículo já se encontra praticamente em cima do local), entendemos que se deve excluir que os riscos associados à circulação do veículo tenham tido qualquer contributo para o acidente. O processo causal que gerou os danos foi desencadeado exclusivamente pelo comportamento do peão, não tendo sido ampliado ou reforçado por qualquer circunstância relativa ao veículo e aos riscos que a sua circulação envolve. Acresce que na génese desse comportamento está uma decisão consciente do peão ou, ao menos, uma decisão tomada por um adulto na posse da informação relevante e em função da qual um homem médio, ainda que surdo, não teria adoptado semelhante decisão por a mesma representar uma exposição consciente a um risco acentuado ou grave.
Por isso, afigura-se-nos ser de excluir qualquer responsabilidade pelo risco baseada no regime do artigo 503.º do Código Civil, e de afastar a responsabilidade do condutor do veículo por aplicação do artigo 505.º do mesmo diploma.
Procede assim o recurso da ré, devendo a acção ser julgada totalmente improcedente, conclusão que arrasta consigo a improcedência do recurso da autora para aumento do valor das indemnizações.

VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da ré procedente e o recurso da autora improcedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e absolvem a ré do pedido da autora.
As custas da acção e do recurso são da responsabilidade da autora, a qual beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de justiça, razão pela qual se condena o Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, I.P. a reembolsar a ré/recorrente das taxas de justiça que pagou - artigo 26.º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais.
*
Porto, 2 de Dezembro de 2021.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 649)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relato, com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]