Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3411/20.1T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: CLÁUSULA DO CONTRATO DE TRABALHO
FACTOS PLENAMENTE PROVADOS
TRABALHO NOCTURNO
RETRIBUIÇÃO ESTABELECIDA ATENDENDO À PRESTAÇÃO DE TRABALHO NOCTURNO
Nº do Documento: RP202206083411/20.1T8VFR.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Constando do contrato de trabalho subscrito pelo Autor, cuja autenticidade está estabelecida, na cláusula n.º2, que “ A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo á circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado”, tal configura confissão dos factos nela referidos, desfavorável ao autor e favorável à Ré, devendo considerar-se plenamente provados.
II - Estando os factos plenamente provados, relativamente aos mesmos estava excluída a livre apreciação do juiz, conforme dita a segunda parte do n.º5, do art.º 607.º do CPC.
III - A lei admite que a prestação de trabalho nocturno não confira o direito a acréscimo remuneratório “Quando a retribuição seja estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período nocturno” [art.º 266/3/al.c, do CT].
IV - Assume-se que nesse caso o valor da retribuição acordada é mais elevado do que seria devido para a prestação de “trabalho equivalente” em período diurno, visando esse maior valor compensar, logo à partida, justamente o facto da prestação da actividade pelo trabalhador pressupor o dever de prestar trabalho em período nocturno com as consequências que se referiram.
V - Não decorre da norma que deva ficar imediatamente fixado um horário que abranja a prestação de trabalho em período nocturno, bastando que o trabalhador aceite ficar vinculado a prestação de trabalho nessas circunstâncias, em contrapartida de ficar logo estabelecido o dever da entidade empregadora lhe pagar uma retribuição que atenda a esse factor, estando implícito, em termos lógicos, que será superior à que seria devida para a prestação de “trabalho equivalente” em período diurno.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 3411/20.1T8VFR.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira s -, AA instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, E..., LDA, a qual foi distribuída ao Juiz 1, formulando os pedidos seguintes:
- 1. Seja declarada a nulidade da cláusula 2º, nº2 (“A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo à circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado.”), que a R. apôs no contrato de trabalho do A., por violação, entre outras, das normas constantes do nº3 da Clausula 59ª do CCTV, e do no nº3 do art. 266º do Código do Trabalho.
2. Seja a R. condenada a pagar ao A. a quantia de 8.833,98€ (oito mil oitocentos e trinta e três euros e noventa e oito cêntimos), a título de acréscimo retributivo pela prestação de trabalho em período noturno.
3. Seja a R. condenada a pagar ao A. a quantia de 1.544,00€ (mil quinhentos e quarenta e quatro euros), a título de juros de mora vencidos, à taxa legal, até à presente data, sobre a quantia pedida na alínea anterior, bem como os juros de mora que, à taxa legal, se vencerem até pagamento integral.
Alegou, em suma, que a cláusula 2.º n.º2, do contrato de trabalho que celebrou com a Ré é ilegal, por não se enquadrar nas hipóteses do n.º3 da cláusula 59.ª do CCTV aplicável –entre a Apiccaps e a Fesit - , nem no n.º 3 do art.º 266.º do Código do trabalho, dado a que sua actividade não era, nem é, exercida exclusiva e predominantemente durante período noturno, nem foi acordado entre as que devesse prestar o seu trabalho em período noturno. Defende que a cláusula é nula, por não ter cobertura legal.
Mais alega que ao longo da relação de trabalho prestou trabalho noturno, nos dias e hora que especifica, relativamente aos quais é credor do acréscimo na retribuição de 25% por hora prestada naquelas condições.
Realizou-se audiência de partes, tendo resultado frustrada a tentativa de conciliação.
A Ré contestou, impugnando o alegado, contrapondo, no essencial, que a retribuição acordada com o autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno. À data foi acordada a retribuição de € 850.00, quando a retribuição prevista no CCT e aplicável à categoria do A. era de € 557.00.
O A. negociou com a Ré a remuneração, tendo ficado ciente que incluía o acréscimo por trabalho noturno e de que quando prestasse trabalho nessas condições não receberia acréscimo retributivo.
A estipulação é válida e tem fundamento no art.º 266.º 3, do CT. O A aceitou e não reclamou ao longo de 9 anos, em que foi sucessivamente aumentado.
Respondeu o Autor, referindo, no essencial, que assinou o contrato que o Eng. BB lhe apresentou e nunca foi acordado, nem foi informado, de que o valor do salário já incluía o acréscimo por trabalho noturno e de que quando prestasse serviço no período noturno não receberia o respetivo acréscimo. É verdade que a R. começou a pagar o acréscimo de 25% a partir de 16.03.2020.
Foi proferido despacho saneador no qual se afirmou a validade e regularidade da instância e dispensou-se a fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.
Foi fixado o valor da acção em € 10 377,80.
Realizou-se, depois, a audiência de discussão e julgamento.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, encerrada com o dispositivo seguinte:
-“Pelo exposto, vistas as normas e os princípios jurídicos enunciados, decide-se julgar procedente a presente ação e, em consequência:
1. Declarar a nulidade da cláusula 2º, nº2, do contrato de trabalho celebrado entre Autor AA e Ré E..., LDA;
2. Condenar a Ré a pagar ao A. a quantia de 8.833,98€ (oito mil oitocentos e trinta e três euros e noventa e oito cêntimos), a título de acréscimo retributivo pela prestação de trabalho em período noturno.
3. Condenar a Ré a pagar ao A. a quantia de 1.544,00€ (mil quinhentos e quarenta e quatro euros), a título de juros de mora vencidos, à taxa legal, até à presente data, sobre a quantia pedida na alínea anterior, bem como os juros de mora que, à taxa legal, se vencerem até pagamento integral.
Custas a cargo da Ré.
(..)».
I.3 Inconformada com a sentença, a Ré apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido e fixado o modo de subida e efeito adequados. As alegações de recurso foram finalizadas com as conclusões seguintes:
………………………………
………………………………
………………………………
I.4 O recorrido Autor apresentou contra-alegações, mas sem as sintetizar em conclusões.
Refere, no essencial que A impugnação da matéria de facto efetuada pela R. está totalmente descontextualizada, na medida em que omite a totalidade do julgamento. A condenação da R. em 1ª instância é legal e justíssima, pelos motivos que constam da sentença.
I.5 O Digno Magistrado do Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, referindo, no essencial, o seguinte:
-«[..]
Daí que a sentença em crise esteja devidamente motivada e analisada criticamente, de forma reflectida, não padecendo de discordância com os elementos probatórios disponíveis.
Deverá assim manter-se inalterada a matéria de facto e, bem assim, as soluções que foram encontradas, conforme o Código do Trabalho e o CCT aplicável, para anulação de cláusula contractual por violação expressa de disposição legal imperativa e correlativa fixação dos créditos salariais quanto a horas de trabalho nocturno prestadas, como melhor consta do segmento decisório da sentença.».
I.6 Pelo então relator do processo, o Excelentíssimo Juiz Desembargador Domingos Morais, entretanto promovido ao Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido despacho, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea b) do CPC, convidando as partes para, em cinco dias, juntarem aos autos o original do contrato de trabalho celebrado entre o autor e a Ré, assinado por aquele.
A Ré correspondeu ao convite e procedeu à junção do contrato assinado pelo autor.
O Autor veio responder confirmando a veracidade do documento junto, bem assim a sua assinatura.
I.7 Estando cumpridos os vistos legais, procedeu-se à inscrição do processo para julgamento e remeteu-se o projecto de acórdão aos excelentíssimos adjuntos.
I.8 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas para apreciação consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento quanto ao seguinte:
i) Na apreciação e decisão da prova, quanto aos pontos 2, 3 e 8 dos factos não provados; e, por não ter considerado provado o alegado no art.º 16.º a contestação.
ii) Na aplicação do direito aos factos [no pressuposto da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto]:
- Ao não ter concluído pela validade da estipulação contratual da remuneração constante da cláusula 2.º 2, do contrato de trabalho, julgando a acção improcedente;
- Subsidiariamente, por a sentença não ter atendido ao facto da Ré ter começado a pagar o acréscimo de 25% por horas noturnas a partir de 16 de Março de 2020, pelo que os valores pedidos posteriores a essa data e os juros, sempre tinham que improceder.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo fixou o elenco factual que segue:
FACTOS PROVADOS:
(Petição inicial)
1. O A. é associado do Sindicato ..., e delegado sindical deste mesmo sindicato.
2. A R. é associada na Associação ....
3. Por acordo escrito intitulado “contrato de trabalho”, celebrado no dia 24.10.2011, o A. foi admitido ao serviço da R., para trabalhar sob as ordens, instruções e fiscalização da R., e mediante retribuição, na fábrica de calçado da R., situada na Rua ..., em ....
4. De acordo com a Cláusula 2.ª do contrato, “1. A retribuição mensal do segundo outorgante será de € 850,00 ilíquidos, em 14 meses por ano e € 3,63 de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho. 2. A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo á circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado. 3. A remuneração não será atualizada antes de fevereiro de 2013”.
5. De acordo coma Cláusula 3ª do Contrato, “1. O período semanal de trabalho é de 40 horas, de segunda a sexta-feira. O descanso semanal é o domingo e o dia de descanso suplementar o sábado. 2. O segundo outorgante terá o seguinte horário: das 08:00h às 17:00h, com intervalo para almoçar das 12:30h às 13:30h. 3 O segundo outorgante autoriza a redução para 30 minutos do intervalo para almoço, caso venha a ser implementado na empresa. 4. O horário de trabalho é fixado pela primeira outorgante, segundo as suas necessidades, e pode ser unilateralmente alterado, se nisso houver interesse”.
6. O A. é retribuído pela R. de acordo com o salário base no valor de 1.022,03€, ao qual acresce um subsídio de alimentação no valor diário de 5€ e um bónus incentivo no valor mensal de 104,40€.
7. O valor do salário base, que a R. paga mensalmente ao A., foi sendo aumentado, ao longo dos anos, da seguinte forma: - 850€, na altura da admissão; - 860,20€, a partir de 01 de Maio de 2013; - 886,01€, a partir de 01 de Abril de 2014; - 921,45€, a partir de 01 de Abril de 2015; - 939,88€, a partir de 01 de Abril de 2016; - 958,68€, a partir de 01 de Abril de 2017; - 997,03€, a partir de 01 de Abril de 2018; - 1.022,03€, a partir de 01 de Abril de 2019.
8. O A. é classificado com a categoria de “operador de manutenção mecânica de 1ª” e sempre desempenhou as funções próprias desta categoria profissional, designadamente, o A. faz a montagem, manutenção e a reparação de todas as máquinas industriais existentes na fábrica de calçado da R..
9. A atividade da R. não era, nem é, exercida exclusiva ou predominantemente durante o período compreendido entre as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte.
10. Foi a R. quem elaborou o texto do contrato de trabalho.
11. E o A. limitou-se a assiná-lo.
12. Na altura em que foi contratado, a R. laborava normalmente das 8h00 às 17h00, com intervalo para almoço das 12h30 às 13h30 e o A. foi cumprir este horário de trabalho, tal como os restantes trabalhadores da empresa.
13. No entanto, apesar do horário acordado, o A. sempre colaborou com a R. e aceitou todas as mudanças de horário que esta lhe foi propondo e, para além de cumprir o horário normal, também trabalhou em regime de turnos, quer diurnos quer noturnos.
14. As funções exercidas pelo A. durante o período compreendido entre as 20:00h e as 07:00H eram iguais àquelas que presta durante o período compreendido entre as 07:00h e as 20:00h.
15. O Autor prestou trabalho, de acordo com os seguintes horários:




(Contestação)
16. Após um período de cerca de dois anos de paragem, que se pensava ser definitiva, em que apenas fez amostras com estrutura reduzida a pouco mais de 100 trabalhadores, a Ré viu-se na necessidade de retomar a produção devido a uma situação de catástrofe (cheias) que atingiu a fábrica do grupo E1... da ... e que motivou a contratação de mais de 1000 trabalhadores pela Ré para fazer face às encomendas do grupo.
17. O Autor negociou com a Ré a retribuição a auferir.
FACTOS NÃO PROVADOS
1. Na data de admissão do Autor, a produção da Ré trabalhava 24 horas por dia, de 2ª a 6ª feira, em 3 turnos, o que sucedeu até 11 de setembro de 2020.
2. A remuneração do Autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno.
3. Pelo que foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato.
4. O Autor foi contratado para dar apoio às máquinas de produção nos turnos noturnos.
5. Na fase inicial, de menos de um mês, o Autor teve formação no período diurno em que funcionava a área respetiva, à imagem do que sucedia com outros trabalhadores.
6. Daí que o horário estipulado no contrato tivesse sido esse, ainda que o Autor estivesse destinado a trabalhar no período noturno, como constava do contrato.
7. O Autor ficou ciente de que a sua remuneração já incluía o acréscimo por trabalho noturno e de quando prestasse serviço no período noturno não recebia o respetivo acréscimo.
8. O Autor aceitou o valor da remuneração e dele não reclamou ao longo de mais de nove anos, em que sucessivamente foi aumentado.
II.2 Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente discorda da decisão sobre a matéria de facto, impugnando-a quanto aos factos não provados 2, 3 e 8 e, ainda, em razão de não ter sido considerado provado o alegado por si no art.º 16.º da contestação.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A propósito do que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
É também entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas. Nesse sentido, acompanhando o entendimento afirmado nos acórdãos do STJ de 20-12-2017 e 5-09-2018 [respectivamente, nos processos n.ºs 299/13.2TTVRL.C1.S2 e 15787/15.8T8PRT.P1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt], no mais recente acórdão de 20-02-2019, daquela mesma instância [proc.º 1338/15.8T8PNF.P1.S2, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt)], consignou-se no respectivo sumário o seguinte:
- I. O artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil estabelece que se especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.
II - Não cumpre aquele ónus o apelante que nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, relativamente a cada um dos factos concretos cuja decisão impugna, antes se limitando a proceder a uma indicação genérica e em bloco, para aquele conjunto de factos.
Contudo, como também é entendimento do STJ, casos há em que apesar da impugnação da matéria de facto se dirigir a um bloco de factos, ainda assim deverá ser admitida, nomeadamente, quando aqueles respeitem à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados sejam comuns a esses factos. Nesse sentido, o recente acórdão do STJ de 19-05-2021 [Proc.º 4925/17.6T8OAZ.P1.S1, Conselheiro Chambel Mourisco], em cujo sumário pode ler-se:
1. A exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º1,al. b), do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registos de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens de gavação em que se funda o recurso.
2. Quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação.
No mesmo sentido pronunciou-se o recente Acórdão de 14-07-2021, do mesmo Tribunal [Proc.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1; Conselheiro Júlio Gomes, disponível em dgsi.pt], lendo-se no respectivo sumário: [III] “É excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em “blocos” quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado com precisão os meios de prova e as formulações alternativas que pretendia ver adotadas”.
A este propósito, Abrantes Geraldes, após observar que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excepcional, acabando “por ser assumida como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados os requisitos que a lei consagra”, logo prossegue advertindo que “Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente“ [Op. cit., p. 123/124].
Por último, cabe ter presente que conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito [Cfr. acórdãos de 7-7-2016, processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha; e, de 27-10-2016, processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro Ribeiro Cardoso; (ambos disponíveis em www.dgsi.pt)].
Atentos os princípios enunciados, considera-se que se mostram cumpridos os ónus de impugnação. Nas conclusões encontram-se indicados os pontos impugnados e o sentido das respostas pretendidas; e, nas alegações constam indicados os meios de prova - no caso dos testemunhos com a especificação das passagens invocadas de cada um deles e a sua localização na gravação-, bem assim estando formulados juízos críticos para justificar as alterações pretendidas.
II.2.1 Nos pontos não provados impugnados lê-se o seguinte:
2. A remuneração do Autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno.
3. Pelo que foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato.
8. O Autor aceitou o valor da remuneração e dele não reclamou ao longo de mais de nove anos, em que sucessivamente foi aumentado.
Na fundamentação da decisão recorrida, quanto a estes factos o Tribunal a quo consignou o seguinte:
-«[..]
5. Teor do contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a Ré, no qual se fez constar, na Cláusula 3ª, nº 2, que “o segundo outorgante terá o seguinte horário: das 08:00h às 17:00h, com intervalo para almoçar das 12:30h às 13:30h”.
Em face do conjunto da prova produzida – com particular relevância para o depoimento da testemunha CC, Diretor de Desenvolvimento da Ré – afigura-se-nos manifesto que, por um lado, a atividade da Ré não era, à data da celebração do contrato de trabalho, exercida exclusiva ou predominantemente durante o período compreendido entre as 20:00h e as 07:00h do dia seguinte e, por outro lado, que o Autor foi contratado para integrar a equipa de manutenção do setor de moldes, que funcionava em regime diurno (como referiram as testemunhas DD e EE e foi confirmado também pela testemunha CC, que apenas acrescentou que pontualmente o setor das amostras trabalhava em regime de turnos) e não o setor de produção que à data se estava a reorganizar para dar resposta à situação transitória de necessidade da Casa-mãe, em virtude da suspensão de produção da unidade da ....
Na verdade, não só o contrato de trabalho consigna expressamente que o Autor deverá cumprir um horário de trabalho compreendido entre as 08:00h e as 17:00h, fixando a correspondente remuneração para o efeito – € 850,00 –, como a testemunha CC asseverou que o Autor foi contratado para preencher uma necessidade permanente do setor das amostras (que vinha paulatinamente a aumentar, desde 2009), e não especificamente do setor da produção. Por essa razão, aliás, o Autor foi contratado a tempo indeterminado e não a termo incerto, como a generalidade dos trabalhadores que foram contratados para acorrer à situação transitória de impossibilidade de laboração da unidade da ... (sem prejuízo de ter havido algumas contratações a tempo indeterminado, no contexto de urgência da empresa e da necessidade de contratar alguns ex-trabalhadores considerados essenciais para a retoma da produção, em face da relutância destes em fazer cessar os contratos de trabalho que entretanto tinham celebrado com terceiros, conforme explicou a testemunha CC).
O facto de a contratação do Autor ter sido facilitada, à data, pela situação de urgência gerada pela suspensão da atividade da unidade da ... – como referiu a testemunha CC – não invalida a circunstância de o Autor ter sido contratado para integrar o departamento de manutenção que prestava apoio ao setor das amostras. A necessidade de afetação da sua força de trabalho à empresa derivava diretamente de uma lacuna permanente no setor das amostras e não de uma necessidade transitória do setor da produção.
É certo que o Autor – assim como a generalidade dos trabalhadores - nunca se negou a contribuir para a reorganização em tempo record do setor de produção, aceitando cumprir diferentes horários na sequência da instalação sucessiva das máquinas das 18 estações e das 30 estações, assim permitindo à Casa-mãe satisfazer as encomendas que tinha em carteira (aliás, conforme referiu a testemunha CC, naquela altura, “fizeram coisas fantásticas; toda a gente fez um pouco de tudo”; “viram ali uma oportunidade para reativar a produção em Portugal”). Mas isso não afasta o motivo que determinou a decisão de contratar da empresa, e que radicou na necessidade de preencher uma lacuna no departamento de manutenção que prestava apoio ao setor das amostras.
Só isto explica, de resto, que se tenha feito constar no Contrato de Trabalho uma cláusula destinada a precaver a previsível mudança de instalações da empresa para outro local (“cf. art. 1.º, nº 2: “O segundo outorgante prestará serviço na sede da primeira outorgante. Está prevista a transferência para novas instalações, no concelho de Santa Maria da Feira, não podendo o segundo outorgante exigir contrapartidas financeiras como resultado dessa mudança”) – mudança que se encontrava a ser operacionalizada pela unidade em Portugal, a pedido da Casa-mãe (cf. depoimento de CC). Tratava-se, efetivamente, da mudança do setor das amostras, o único que à data funcionava em Portugal, na sequência do fecho da unidade de produção e do despedimento coletivo de cerca de 1400 trabalhadores a esta afeto.
Por último, deverá notar-se que a remuneração fixada no contrato de trabalho, que foi objeto de negociação entre as partes (cf. depoimento da testemunha CC, que referiu que os trabalhadores foram contratados de forma diferenciada em termos remuneratórios, em função da negociação havida entre as partes e, nomeadamente, da necessidade maior ou menor em contratar pessoa determinada) prevê o pagamento de um valor certo de € 850,00, o que se destinava a vigorar, quer no período de retoma provisória da produção da unidade de Santa Maria da Feira (que, segundo a generalidade dos depoimentos, deveria ocorrer num período entre 6 meses a um ano) e que deveria funcionar por turnos, por forma a cumprir os prazos de entrega das encomendas a que se tinham comprometido, quer depois de ultrapassada a fase transitória em que a fábrica deveria retornar à sua configuração anterior, limitada ao setor das amostras (cenário que, todavia, apesar das previsões iniciais, não se veio a verificar, em virtude da alteração de estratégia empresarial da Ré). Como referiu a testemunha CC, o facto de mais tarde desativarem a produção, não iria ter nenhuma repercussão na situação laboral do Autor; este continuaria a desempenhar funções na fábrica – mais concretamente no setor de moldes – sujeito ao cumprimento do horário de funcionamento desta unidade (que era habitualmente diurno – das 08:00h às 17:00h) e mediante o pagamento da mesma retribuição.
Em face do exposto, resultou, pois, provado que o Autor havia sido contratado para cumprir um horário das 08:00h às 17:00h, apesar de ter sempre colaborado no sentido de aceitar as mudanças de horário necessárias, incluindo o cumprimento de horário por turnos.
Inversamente, não resultou provado: i) que na data de admissão do Autor, a produção da Ré trabalhava 24 horas por dia, de 2ª a 6ª feira, em 3 turnos, o que sucedeu até 11 de setembro de 2020; ii) que a remuneração do Autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno, pelo que foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato; iii) que o Autor foi contratado para dar apoio às máquinas de produção nos turnos noturnos; iv) que na fase inicial, de menos de um mês, o Autor teve formação no período diurno em que funcionava a área respetiva, à imagem do que sucedia com outros trabalhadores, daí que o horário estipulado no contrato tivesse sido esse, ainda que o Autor estivesse destinado a trabalhar no período noturno, como constava do contrato; v) que o Autor ficou ciente de que a sua remuneração já incluía o acréscimo por trabalho noturno e de quando prestasse serviço no período noturno não recebia o respetivo acréscimo; vi) e que o Autor aceitou o valor da remuneração e dele não reclamou ao longo de mais de nove anos, em que sucessivamente foi aumentado.
De facto, por um lado, a atividade produtiva da Ré durante o mês de outubro ainda estava numa fase incipiente de (re)organização (encontrando-se a Administração a diligenciar pela contratação de um número suficiente de trabalhadores por forma a dar início à produção da máquina das 18 estações); no decurso do mês de novembro, a máquina começou a laborar apenas com um turno (cf. declarações da testemunha FF); e só em dezembro passaram a funcionar em três turnos (cf. depoimento das testemunhas DD, EE e FF). Tal sucedeu em virtude da chegada gradual das pessoas e porque, por outro lado, era necessário dar formação a alguns trabalhadores recém-admitidos (para esse efeito, como referiu a testemunha CC, algumas das pessoas do setor das amostras moveram-se nesta altura para a produção para facilitar a formação dos novos trabalhadores).
Por outro lado, não resultou demonstrado que a retribuição do Autor tenha sido estabelecida atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno.
Conforme resultou claramente do depoimento da testemunha CC, a contratação do Autor destinou-se a suprir uma necessidade premente da admissão de novos elementos na equipa de manutenção do setor de moldes, que funciona essencialmente em horário diurno e o salário acordado manter-se-ia em vigor, quer o Autor trabalhasse exclusivamente em horário diurno, quer em regime de turnos (nomeadamente abrangendo, ainda que de forma parcial, um período noturno), e quer no período transitório da reativação da produção, quer no período que se deveria seguir a este (e que só por vicissitudes empresariais da Ré não foi implementado, uma vez que a Ré não regressou ao sistema de produção de moldes em vigor entre 2009 e 2011). Com efeito, das declarações da testemunha resultou claramente evidenciado que a admissão do Autor foi negociada tendo em vista a sua integração a título definitivo na empresa, na equipa de manutenção de máquinas, a fim de prestar apoio ao setor das amostras, e numa altura em que apenas se perspetivava a retoma transitória da atividade de produção (por um período de cerca de 6 meses a um ano, por forma a substituir a unidade da ... no fabrico das encomendas). Daí que a inclusão desta cláusula 2ª, nº 2, no contrato de trabalho – cláusula que, de resto, constava de todos os contratos de trabalho celebrados à data, segundo referiram a generalidade das testemunhas, sem que fosse verificado individualmente o seu fundamento material – apenas possa ser entendida como forma de obviar ao aumento de custos com a eventual execução de trabalho noturno.
Neste contexto, inexiste qualquer fundamento para sustentar que o Autor foi contratado para executar total ou parcialmente trabalho em período noturno e que a sua retribuição refletiu desde logo esse facto.
Por outro lado, a própria Ré – que foi responsável pela redação do contrato – fez constar da cláusula 3ª, nº 2, o cumprimento pelo Autor do horário das 08:00h às 17:00h, o que só se compreende – tendo em conta até a data da celebração o contrato de trabalho (21 de outubro de 2011) – num contexto em que se vinculou perante o Autor à sua integração na equipa de manutenção afeta ao departamento de moldes, em horário diurno (no caso de pretender que o Autor executasse um horário por turnos, incluindo no período noturno, não poderia deixar de consignar, desde logo, tal circunstância no contrato).
Por fim, não é possível extrair, por comparação com os restantes trabalhadores da mesma categoria, o pagamento de um valor superior a título de retribuição base tendo em conta a prestação de trabalho noturno, atendendo a que todos os trabalhadores negociaram individualmente a sua retribuição, verificando-se uma relevante disparidade entre os valores pagos pela Ré a diferentes trabalhadores (cf. depoimento das testemunhas FF, EE, CC).
O facto de a Ré alegadamente pagar acima do mínimo da Tabela Salarial prevista na Convenção Coletiva de Trabalho, não permite concluir pela incorporação na retribuição base do acréscimo de 25% relativo à prestação de trabalho noturno, ou trabalho por turnos, na medida em que a comparação tem de ser estabelecida entre trabalhadores com a mesma categoria que apenas executem trabalho diurno e trabalhadores que tenham sido contratados para prestar trabalho no período noturno. E quanto a estes, pelo menos apurou-se que o trabalhador EE, que auferia a esta data cerca de € 900,00 mensais, passou a ser pago a partir de novembro/dezembro com o acréscimo de 25% (perfazendo cerca de € 1.125,00) destinado a compensar a maior penosidade da prestação de trabalho em horário noturno.
Em face do exposto, não resultaram provados os factos descritos em 2.º a 4.º do elenco de factos provados.
[..]
[..] Por outro lado, não se provou que o Autor não se tenha insurgido contra esta estipulação, considerando-a abusiva, na medida em que, como referiu a testemunha EE, em todas as reuniões de trabalhadores o Autor se queixava.
[..]».
Discorda a recorrente, pretendendo que se considerem provados aqueles pontos com a formulação que foi dada pelo Tribunal a quo ao considerar esses factos como não provados.
Numa primeira linha de argumentação, refere que ficou provado sob o nº 17 que «o A. negociou com a R. a retribuição a auferir» e sob os nºs 3, 4 e 5, que, por acordo intitulado «contrato de trabalho» ficou estipulado na cláusula 2ª, nº 2, que «a remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo à circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado». Provou-se, ainda, que esse documento foi aceite e assinado pelo A.. E, como refere a julgadora a quo expressamente refere na fundamentação, o seu teor não foi impugnado.
Nessa consideração, defende que atento o disposto no art.º 376º do CC, conclui-se que a declaração produzida pelo A., perante a R., de que a remuneração fixada, e que se provou ter sido negociada pelo A., inclui o acréscimo pela prestação de trabalho em período noturno, está plenamente provada e confessada (artº 358º, nº 2, do CC) e, logo, os factos 2, 3 e 8 dos factos não provados deviam antes ter sido considerados provados. Ao não fazê-lo, a julgadora a quo incorreu em erro na apreciação da prova, violando os artºs 374º e 376º do CC, conjugados com o art.º 358º, nº 2, do CC.
Vejamos então.
Está provado que o A. foi admitido ao serviço da Ré por acordo escrito intitulado “contrato de trabalho”, celebrado no dia 24.10.2011 [facto 3], no qual consta, na cláusula 2.º o seguinte [facto 4]:
- “1. A retribuição mensal do segundo outorgante será de € 850,00 ilíquidos, em 14 meses por ano e € 3,63 de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho. 2. A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo á circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado. 3. A remuneração não será atualizada antes de fevereiro de 2013”.
Consta também provado que o “O Autor negociou com a Ré a retribuição a auferir” [facto 17], “Foi a R. quem elaborou o texto do contrato de trabalho” [facto 10] e “E o A. limitou-se a assiná-lo” [facto 11].
Importa ter também presente que o original do documento, devidamente assinado pelo autor, foi junto aos autos pela Ré na sequência de convite formulado por este Tribunal de recurso, tendo o autor vindo confirmar a veracidade do mesmo, bem assim a sua assinatura.
Trata-se de um documento particular, aplicando-se-lhe o disposto no 374º do Código Civil, dispondo o seguinte: “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”.
Quanto à sua força probatória dispõe o artigo 376º, também do CC, que “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (nº 1), sendo que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” (nº 2).
Relativamente à força probatória material dos documentos particulares, observam Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora [Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pp. 5237525], o seguinte:
-«[..] uma vez provada a autoria da letra e assinatura, ou só da assinatura, tem-se por plenamente provado que o signatário emitiu todas as declarações constantes do documento, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade deste (art.º 376.º, 1).
Mas nem todos os factos referidos nessas declarações se têm por provados (3).
Como provados – plenamente provados – apenas se consideram os factos que forem desfavoráveis ao declarante; quanto aos restantes, o documento é livremente apreciado pelo julgador (art. 376.º 2. do Cód. Civil).
[..]
O valor probatório atribuído aos documentos particulares, à semelhança do que sucede com a força probatória das declarações das partes contidas nos documentos autênticos, não impede que as declarações por ele cobertas sejam impugnadas ou atacadas por via de excepção, com base em qualquer dos vícios ou defeitos capazes de ditar a ineficácia lato sensu do negócio.
[..]».
Como elucida José Lebre de Freitas, “Diz-se confissão o reconhecimento da realidade dum facto (passado, ou presente duradoiro) desfavorável ao declarante (art.º 352.º CC), isto é, dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever de sujeição ou modificativo” [A Acção Declarativa Comum, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, p.255].
O mesmo autor assinala, ainda, que “O art. 352 CC, ao definir a confissão, não se limita a enunciar a desfavorabilidade do facto ao confitente: acrescenta-lhe a favorabilidade do mesmo à parte contrária. O sacrifício do interesse do autos da declaração tem o seu correlato na satisfação do interesse de quem, no âmbito da relação jurídica em causa, é titular da situação jurídica que lhe opõe (..)” [Op. cit, p. 256, nota 3].
A confissão pode ser judicial ou extrajudicial (art.º 351.º n.º1 do CC).
A confissão extrajudicial, estabelece o n.º 2 do art.º 358.º, do CC, em documento autêntico ou particular - cuja autoria e genuinidade estejam estabelecidas - considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária, tem força probatória plena.
Significa isso, que tal prova só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (art.º 347.º do CC). Porém para se admitir a prova em contrário, a lei exige nalguns casos que se alegue e prove a falsidade do meio de prova, assim acontecendo quanto aos documentos particulares cuja autoria seja reconhecida (art.º 376.º 1, CC) [cfr. Pires de lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1987, p. 310].
Ainda que sem relevância para o caso, estas breves referências não ficariam completas sem mencionarmos que vigoram ainda as restrições do art.º 394.º do CC: o n.º1, vedando a prova testemunhal para demonstração de convenções que contrariem ou ampliem o conteúdo de documentos autênticos ou particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, independentemente da data dessas convenções; e, o n.º2, estendendo aquela proibição ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado.
Constando do contrato de trabalho subscrito pelo Autor, cuja autenticidade está estabelecida, na cláusula n.º2, que “ A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo á circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado”, tal configura confissão dos factos nela referidos, desfavorável ao autor e favorável à Ré, devendo considerar-se plenamente provados.
Refira-se, ainda, que está também provado que “O Autor negociou com a Ré a retribuição a auferir” [facto 17], contextualizando a elaboração do texto do contrato de trabalho pela Ré [facto 10] depois assinado pelo Autor.
Neste quadro, há que reconhecer razão à recorrente, mas apenas quanto aos pontos 2 e 3, dos factos não provados, que deveriam ter sido considerados provados, onde se lê:
[2] A remuneração do Autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno.
[3] Pelo que foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato.
Como bem se vê, estes factos limitam-se a afirmar o que resulta da declaração contida naquela cláusula, pelo que ao considerá-los não provados, o Tribunal a quo pôs em causa a força probatória do documento subscrito pelo autor e os efeitos daí decorrentes em termos de prova, logo, como defende a recorrente, violando os artºs 374º e 376º do CC, conjugados com o art.º 358º, nº 2, do CC.
Em suma, estando os factos plenamente provados, relativamente aos mesmos estava excluída a livre apreciação do juiz, conforme dita a segunda parte do n.º5, do art.º 607.º do CPC.
O mesmo é de dizer quanto à primeira parte do ponto não provado 8, onde se lê, que “O Autor aceitou o valor da remuneração”, por se tratar de uma decorrência lógica do facto de ter assinado o contrato de trabalho aceitando aquela cláusula, mas já não assim quanto à parte seguinte - “dele não reclamou ao longo de mais de nove anos, em que sucessivamente foi aumentado” – pela razão inversa, ou seja, por tal não estar contido nem decorrer logicamente do n.º2 da cláusula.
Relativamente a esta parte, como transcrito acima, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo refere que ”(..) não se provou que o Autor não se tenha insurgido contra esta estipulação, considerando-a abusiva, na medida em que, como referiu a testemunha EE, em todas as reuniões de trabalhadores o Autor se queixava”.
Para a impugnação destes conjunto de factos, numa segunda linha de argumentação [conclusões 9 a 20], a recorrente estribou-se na prova documental e testemunhal que indica com precisão também nas conclusões, neste último caso, referindo os testemunhos de CC, GG, FF e HH. Esses são, pois, os meios de prova que na indicação conjunta são invocados para impugnar este ponto não provado e justificar aa pretendida alteração.
Acontece, porém, que a recorrente não invoca qualquer documento ou extracto de algum daqueles testemunhos de onde possa extrair-se que, contrariamente ao decidido, deveria ter resultado provado que o Autor não reclamou do valor da retribuição ao longo de mais de nove anos. Mais do que isso, nos juízos críticos formulados tendo em vista demonstrar a este Tribunal ad quem as razões que justificam as pretendidas alterações - sendo de referir que todos eles foram praticamente transpostos das alegações para a as conclusões, no que concerne à parte deste ponto que permanece em causa, não se encontra qualquer referência individualizada. Melhor explicando, a recorrente apenas se refere a este facto quando conclui [conclusão 5] que ” a declaração produzida pelo A., perante a R., de que a remuneração fixada, e que se provou ter sido negociada pelo A., inclui o acréscimo pela prestação de trabalho em período noturno, está plenamente provada e confessada (artº 358º, nº 2, do CC), portanto os factos 2, 3 e 8 dos factos não provados deviam ter sido considerados provados, com a redação da conclusão 1ª”.
Ora, como acima foi explicado, esse argumento não aproveita à parte final deste facto.
Assim, não havendo indicação de outra prova para sustentar a impugnação desse parte segmento, nesta parte improcede o recurso.
II.2.2 A recorrente insurge-se ainda contra a decisão sobre a matéria de facto, em razão do Tribunal a quo não ter considerado provado que «A R. começou a pagar ao A. o acréscimo de 25% por horas noturnas em 16.3.2020», dado ter feito essa alegação no artigo 16.º da contestação.
Alega que esse facto encontra-se provado pelos 9 documentos juntos com a contestação e pela confissão do A. nos artºs 24º a 26º da pronúncia de 21.1.2021.
No art.º 16.º da contestação lê-se: “E tanto mais que a R., por sua iniciativa e decisão de gestão, começou a pagar ao A. o acréscimo de 25% por horas noturnas em 16.3.2020 (refletido no recibo de abril de 2020 – cf. 9 docs. que se juntam).
Na resposta à contestação, o Autor pronunciou-se quanto a essa alegação, dizendo:
[24] É verdade que a R. começou a pagar o acréscimo de 25% a partir de 16.03.2020,
Por conseguinte, como é evidente, aquela alegação resultou provada por acordo das partes e, logo, deveria ter sido levada aos factos provados (art.º 574.º 1 e 2,ex vi art.º 587.º 1, ambos do CPC).
Assiste, pois, razão à recorrente.
II.2.3 Fazendo um balanço das alterações decididas, passam a integrar o elenco da matéria provada os factos que seguem:
[18] A remuneração do Autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno.
[19] Pelo que foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato.
[20] O Autor aceitou o valor da remuneração.
[21] A R. começou a pagar ao A. o acréscimo de 25% por horas noturnas em 16.3.2020.
II.3 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A Recorrente insurge-se contra a sentença por alegado erro na aplicação do direito aos factos, defendendo, no pressuposto de ver alterada a matéria de facto, como aconteceu, que a estipulação contratual da remuneração do A. é válida e tem fundamento no artº 266º, nº 3, c), do CT (retribuição estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período noturno).
Mais alega, que feita a prova de que a remuneração do A. incluía o trabalho noturno peticionado nesta acção, resulta a improcedência da ação e o erro da sentença, não só na declaração de nulidade da cláusula contratual, como também na condenação da R. no pagamento ao A. das quantias nela referidas.
II.3.1 Na fundamentação da sentença, o Tribunal a quo pronunciou-se nos termos seguintes:
-«Nos presentes autos, o Autor peticiona: i) a declaração de nulidade da cláusula 2º, nº2, do Contrato Individual de Trabalho celebrado, por violação do nº3 da Clausula 59ª do CCTV, e do no nº3 do art. 266º do Código do Trabalho; e ii) a condenação da R. a pagar ao A. a quantia de 8.833,98€, a título de acréscimo retributivo pela prestação de trabalho em período noturno, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
O art. 1.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02 (em vigor à data da celebração do contrato de trabalho) estabelece que o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa fé. Por outro lado, o art. 3.º, nº 1, do Código do Trabalho estipula que as normas legais reguladoras de contrato de trabalho podem ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário.
A Convenção Coletiva, na parte em que contém cláusulas de conteúdo regulativo, tem em vista “regular as relações individuais de trabalho estabelecidas entre trabalhadores e empregadores filiados nas associações outorgantes” (cfr. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, 2010, 5ª edição, p. 1219) e é diretamente aplicável aos contratos de trabalho em vigor. Nas relações entre o Contrato Individual de Trabalho e a Convenção Coletiva de Trabalho, o art. 476.º do Código do Trabalho prevê que “As disposições de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador”.
No caso em apreço, e conforme resulta dos arts. 1.º a 3.º da matéria de facto provada e não foi colocado em crise pela Ré, à relação de natureza laboral estabelecida entre as partes é aplicável o Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a APICCAPS e a FESETE, publicado nos BTE nº 19, de 22.05.2006, BTE nº 14, de 15.04.2008, BTE nº 16 de 29.04.2010, BTE nº 26, de 15.07.2011, BTE nº 2, de 15.01.2015, BTE nº 30, de 15.08.2016, com Portaria de Extensão publicada no BTE nº 9, de 08.03.2017.
A Cláusula 59.ª da CCT regulamenta a retribuição do trabalho noturno nos seguintes termos: “1- O trabalho noturno é o trabalho prestado entre as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte. 2- O trabalho noturno deve ser retribuído com um acréscimo de 25 % relativamente à retribuição do trabalho equivalente prestado durante o dia. 3- O disposto no número anterior não se aplica ao trabalho prestado durante o período noturno: a) Se a atividade for exercida exclusiva ou predominantemente durante o período noturno; b) Quando a retribuição tenha sido estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período noturno.
Por seu turno, o art. 266.º do Código do Trabalho dispõe que: 1 - O trabalho nocturno é pago com acréscimo de 25 % relativamente ao pagamento de trabalho equivalente prestado durante o dia. 2 - O acréscimo previsto no número anterior pode ser substituído, mediante instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, por: a) Redução equivalente do período normal de trabalho; b) Aumento fixo da retribuição base, desde que não importe tratamento menos favorável para o trabalhador. 3 - O disposto no n.º 1 não se aplica, salvo se previsto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho: a) Em actividade exercida exclusiva ou predominantemente durante o período nocturno, designadamente espectáculo ou diversão pública; b) Em actividade que, pela sua natureza ou por força da lei, deva funcionar à disposição do público durante o período nocturno, designadamente empreendimento turístico, estabelecimento de restauração ou de bebidas, ou farmácia, em período de abertura; c) Quando a retribuição seja estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período nocturno. 4 - Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto no n.º 1.
No caso em apreço, o IRCT não previu a possibilidade de redução do horário de trabalho, nem o aumento fixo da retribuição base, pelo que o acréscimo de 25 % relativamente à retribuição do trabalho deve ser pago aos trabalhadores, exceto nas situações referidas no nº 3 da Cláusula 59.º, ou seja,” a) Se a actividade for exercida exclusiva ou predominantemente durante o período nocturno; b) Quando a retribuição tenha sido estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período nocturno”.
Em princípio, a remuneração especial legal e contratualmente prevista para o trabalho noturno deve ser paga tendo em vista compensar a penosidade inerente ao trabalho exercido em período de trabalho noturno. Naqueles casos, porém – em que o trabalhador foi contratado especificamente para o desempenho da atividade noturna ou a retribuição foi estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho ser prestado em período noturno –, a lei (ou a convenção coletiva de trabalho) afasta o pagamento do acréscimo de 25%, partindo do princípio de que a retribuição já foi fixada num nível superior em atenção às condições especiais de trabalho que são propostas ao trabalhador e que são com ele negociadas.
No caso em apreço, as exceções previstas nas als. a) e b) do nº 3 da Cláusula 59.º não se verificam relativamente à Ré e ao Autor, porquanto nem a atividade da Ré é exercida predominantemente no período noturno, nem se provou que a retribuição tenha sido estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período noturno – cf. decisão sobre a matéria de facto.
De facto, não se provou que o Autor tenha sido contratado para prestar trabalho em regime noturno e que a retribuição fixada refletiu essa circunstância. Não foi essa a intenção das partes que motivou a decisão de contratar, nem que determinou o valor da retribuição contratualmente fixada.
Nestes termos, a cláusula 2ª, nº 2, do Contrato Individual de Trabalho, aposta pela Ré no texto do contrato, não se mostra justificada, e viola uma disposição legal imperativa – o art. 266.º, nº 1, do Código do Trabalho – sendo, pois, nula (cf. a este propósito Francisco Liberal Fernandes, O Trabalho e o Tempo, 2018, Edição Universidade do Porto - Reitoria “A ratio legis do acréscimo de 25% previsto no n.º 1 do art. 266º reside na necessidade de compensar o maior sacrifício pessoal, familiar e social que o trabalho noturno exige (quando comparado com trabalho equivalente prestado durante o dia); aliás, a mesma onerosidade explica que, como forma de minorar os efeitos negativos a que lhe estão associados, o legislador adote determinadas medidas tutelares, como o controlo médico e a fixação de limites para a respetiva duração diária. Daí que aquela norma tenha natureza imperativa, na medida em que consagra um mínimo de direito necessário; por esse motivo, são nulos os acordos ou as medidas que importem a redução ou abrenúncia à majoração legal ou à estabelecida em instrumento de regulamentação coletiva” disponível em file:///C:/Users/MJ02468/Downloads/O_trabalho_e_o_tempo%20(1).pdf).
Nos termos do art. 121.º do Código do Trabalho, “A nulidade ou a anulação parcial não determina a invalidade de todo o contrato de trabalho, salvo quando se mostre que este não teria sido celebrado sem a parte viciada. 2 - A cláusula de contrato de trabalho que viole norma imperativa considera-se substituída por esta”.
Em face do exposto, tem assim o Autor direito às retribuições que elencou no art. 29.º da petição inicial, por referência às horas de trabalho noturno aí alegadas, num total de € 8.833,98.
Ao referido valor acrescem juros de mora vencidos até à data da propositura da ação, no valor de € 1.548,52, e juros de mora vincendos até integral pagamento (art. 805.º, nº 2, a), do Código Civil).
II.3.2 Concordamos, no essencial, com as considerações gerais de ordem jurídica enunciadas pelo Tribunal a quo, mas face à procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, necessária e logicamente não podemos acolher a conclusão a que o Tribunal a quo chegou e a consequente condenação da Ré, assente no pressuposto de que “não se provou que o Autor tenha sido contratado para prestar trabalho em regime noturno e que a retribuição fixada refletiu essa circunstância. Não foi essa a intenção das partes que motivou a decisão de contratar, nem que determinou o valor da retribuição contratualmente fixada”.
Antes de passarmos à aplicação do direito tendo em conta a alteração da matéria de facto, deve dizer-se que a afirmação categórica “não se provou que o Autor tenha sido contratado para prestar trabalho em regime noturno”, mesmo no quadro factual que foi fixado pelo tribunal a quo, sem qualquer outra consideração adicional, não nos parece a mais correcta, por não atender a todo o conteúdo da cláusula 3.ª [facto 5], a conjugar com o facto provado 19. Se é certo que na cláusula 3.ª do contrato, ponto 2 ficou acordado que ”O segundo outorgante terá o seguinte horário: das 08:00h às 17:00h”, não pode desprezar-se o conteúdo do n.º4, da mesma cláusula, onde consta “O horário de trabalho é fixado pela primeira outorgante, segundo as suas necessidades, e pode ser unilateralmente alterado, se nisso houver interesse”, bem assim estar provado que tendo o Autor sido contratado em 24 de Outubro de 2011, logo a partir de 21 de Novembro passou a prestar trabalho regularmente, durante determinados períodos, mas em todos os meses e anos seguintes (até Out 20), num dos três turnos que abrangiam horas em período noturno, nomeadamente, das 22h00 às 06h00, ou das 06h00 às 14h00, ou das 14h00 às 22h00.
Como elucida o Acórdão do STJ de 05-09-2018 [Proc.º 415/17.5T8LSB.L1.S1; Conselheiro Ferreira Pinto, disponível em www.ggsi.pt]:
-[..] o horário de trabalho constitui a fixação concreta, no tempo, do número de horas que o trabalhador se comprometeu a prestar e é quem delimita o espaço temporal em que o trabalhador está vinculado a prestar o trabalho ou permanece adstrito à sua realização, enunciando as horas do início, interrupção e termo do período normal de trabalho.
A sua determinação compete, por princípio, ao empregador, dentro dos limites legais e desde que observados previamente determinados deveres expressos no n.º 2, do artigo 212º, do CT.
Este direito é-lhe atribuído porque se enquadra dentro dos poderes de direção e organização do trabalho que lhe são reconhecidos pela lei, no artigo 97º, do CT.
No entanto, como observa Monteiro Fernardes[7] “[n]ada impede que o horário de trabalho seja acordado no âmbito do contrato individual de trabalho […] e nada obsta, também, a que os horários de trabalho sejam objeto de negociação e acordo a nível coletivo”, o que, em qualquer dos casos, implica uma restrição a esse poder do empregador.
Ou seja, se as partes acordarem especificamente sobre um determinado o horário de trabalho, o empregador fica impedido de, unilateralmente lhe fazer alterações posteriores, dado o disposto no artigo 217º, n.º 4, do CT, só podendo o mesmo ser, neste caso, alterado com base em acordo das partes, empregador e trabalhador.
O que sucede, também, nos casos em que o horário de trabalho constituiu um elemento essencial do contrato celebrado, em termos tais que o trabalhador o não teria celebrado não fosse aquele horário específico[8], ou quando o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável proíba que o horário seja alterado sem o acordo do trabalhado».
No caso, logo com a celebração do contrato de trabalho, o Autor aceitou que a entidade empregadora, no âmbito dos seus poderes de direcção e com a prévia anuência do trabalhador, pudesse “segundo as suas necessidade” alterar unilateralmente o horário de trabalho, se nisso tivesse interesse, o que de facto aconteceu logo na fase inicial do contrato – antes de se completar um mês - e assim perdurou ao longo dos anos que se seguiram, retirando-se do facto 15 que a partir daí o autor nunca prestou trabalho apenas 08:00h às 17:00h.
Prosseguindo, relevam os factos seguintes:
4. De acordo com a Cláusula 2.ª do contrato, “1. A retribuição mensal do segundo outorgante será de € 850,00 ilíquidos, em 14 meses por ano e € 3,63 de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho. 2. A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo à circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado. [..]”.
5. De acordo coma Cláusula 3ª do Contrato, “1. O período semanal de trabalho é de 40 horas, de segunda a sexta-feira. O descanso semanal é o domingo e o dia de descanso suplementar o sábado. 2. O segundo outorgante terá o seguinte horário: das 08:00h às 17:00h, com intervalo para almoçar das 12:30h às 13:30h. 3 O segundo outorgante autoriza a redução para 30 minutos do intervalo para almoço, caso venha a ser implementado na empresa. 4. O horário de trabalho é fixado pela primeira outorgante, segundo as suas necessidades, e pode ser unilateralmente alterado, se nisso houver interesse”.
17. O Autor negociou com a Ré a retribuição a auferir.
[18] A remuneração do Autor foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno.
[19] Pelo que foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato.
[20] O Autor aceitou o valor da remuneração.
Embora procurando não repetir a fundamentação jurídica do tribunal, que como dissemos, no essencial, merece a nossa concordância, importa deixar algumas considerações para enquadrar a apreciação e decisão que segue.
Nos termos do art.º 266.º nº1 do CT, o trabalho prestado em regime nocturno confere ao trabalhador o direito a ser pago com um “acréscimo salarial de 25% relativamente ao pagamento de trabalho equivalente prestado durante o dia”, que como é pacificamente entendido, destina-se a compensar o maior esforço e desgaste que lhe é exigível, bem assim as contrariedades que tal importa para a sua vida social, pessoal e familiar, decorrentes do desajustamento que implica no ritmo de vida face aos padrões normais assentes, em geral, na actividade diurna.
Mas há casos em que a lei afasta aquela regra, estando os mesmos previstos no n.º3, do mesmo artigo. No que aqui releva, a lei admite que a prestação de trabalho nocturno não confira o direito àquele acréscimo remuneratório [al. c)] “Quando a retribuição seja estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período nocturno”.
Assume-se que nesse caso o valor da retribuição acordada é mais elevado do que seria devido para a prestação de “trabalho equivalente” em período diurno, visando esse maior valor compensar, logo à partida, justamente o facto da prestação da actividade pelo trabalhador pressupor o dever de prestar trabalho em período nocturno com as consequências que se referiram. Comparando a retribuição estabelecida naquele pressuposto com a retribuição que seria devida ao trabalhador por trabalho prestado durante o dia, é possível aferir se existe um efectivo acréscimo e, logo, despistar a existência de eventuais situações de fraude.
Não decorre da norma que deva ficar imediatamente fixado um horário que abranja a prestação de trabalho em período nocturno, bastando que o trabalhador aceite ficar vinculado a prestação de trabalho nessas circunstâncias, em contrapartida de ficar logo estabelecido o dever da entidade empregadora lhe pagar uma retribuição que atenda a esse factor, estando implícito, em termos lógicos, que será superior à que seria devida para a prestação de “trabalho equivalente” em período diurno. Naturalmente que a validade da cláusula ficará em causa se o montante da retribuição acordado não cobrir adequadamente o trabalho que vier a ser prestado em horário nocturno, ou seja, se não for pelo menos equivalente ao que o trabalhador auferiria mediante à aplicação da regra geral do n.º1, do art.º 266.º. Para além disso, na eventualidade de ser estabelecida a retribuição nestes termos, o seu pagamento será sempre devido ainda que o trabalhador não preste trabalho em período nocturno em determinados períodos, ou preste num número de horas inferior ao que o maior valor da retribuição poderia cobrir.
Como explicou o Tribunal a quo na fundamentação da sentença, sem que contra tal se insurjam as partes, mormente a recorrente, à relação de trabalho em causa aplica-se o Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a APICCAPS e a FESETE, publicado nos BTE nº 19, de 22.05.2006, BTE nº 14, de 15.04.2008, BTE nº 16 de 29.04.2010, BTE nº 26, de 15.07.2011, BTE nº 2, de 15.01.2015, BTE nº 30, de 15.08.2016, com Portaria de Extensão publicada no BTE nº 9, de 08.03.2017.
A Cláusula 59.ª da CCT regulamenta a retribuição do trabalho noturno, estabelecendo o seguinte:
1- O trabalho noturno é o trabalho prestado entre as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte.
2- O trabalho noturno deve ser retribuído com um acréscimo de 25 % relativamente à retribuição do trabalho equivalente prestado durante o dia.
3- O disposto no número anterior não se aplica ao trabalho prestado durante o período noturno:
a) Se a atividade for exercida exclusiva ou predominantemente durante o período noturno;
b) Quando a retribuição tenha sido estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período noturno.
Interessa-nos a alínea b), do n.º3, que acolhe textualmente a norma a que nos vimos referindo, da al. c), do n.º3, do art.º 266.º do CT, significando isso que as considerações acima deixadas têm validade quanto àquela norma convencional.
Dos factos acima indicados retira-se como provado que o “autor negociou com a Ré a retribuição a auferir” [facto 17], a qual “foi fixada atendendo à circunstância de estar previsto que a prestação de trabalho ocorresse em período noturno” [facto 18], pelo que “foi logo considerado no seu valor o acréscimo por trabalho noturno, o que se exarou na cláusula 2ª, nº 2, do contrato [facto 19].
Nesse contexto, a cláusula 2.ª do contrato, estabelece que “1. A retribuição mensal do segundo outorgante será de € 850,00 ilíquidos, em 14 meses por ano e € 3,63 de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho. 2. A remuneração referida no número anterior foi estipulada atendendo à circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado. [..]” [facto 4], tendo o autor aceite aquele valor [facto 20].
Não foi fixado horário abrangendo horas com período nocturno, mas ficou expressamente consignada a circunstância de ser previsível a prestação de trabalho em período nocturno, justificando assim o facto “de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado”, bem assim a faculdade da entidade empregadora fixar unilateralmente horário de trabalho diferente, segundo as suas necessidades, se nisso tivesse interesse, como acima já se referiu resultar do n.º4, da cláusula 3.ª [facto 5].
Cremos, pois, poder afirmar-se com segurança que houve o propósito das partes de prevenir a possibilidade de prestação de trabalho em período nocturno e de estabelecer um valor de retribuição atendendo a essa circunstância, para tanto acordando o conteúdo daquelas cláusulas ao abrigo do princípio da liberdade contratual [art.º 405.º n.º1, do CC], sem que haja ofensa de qualquer disposição legal ou convencional que regulam o trabalho nocturno, nomeadamente, do art.º 266.º n.º3, al. c), do CT e da correspondente alínea b), do n.º3, da cláusula 59.º do CCT aplicável. Parafraseando ao acórdão do STJ de 14-07-2016 [proc.º 377/13.8TTTMR.E1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt] “essa manifestação de vontade, livre e voluntária, e não ofensiva de nenhuma disposição legal, enquadra-se no espírito da lei e mostra-se abarcada pelos normativos que regulam o trabalho nocturno, assumindo, por isso, plena validade jurídica”.
Por conseguinte, não se reconhece fundamento ao autor para ver reconhecida a pretensão de declaração de nulidade da cláusula 2.º n.º2, do contrato de trabalho que celebrou com a Ré. Contrariamente ao que veio defender, a cláusula tem cobertura no art.º 266.º n.º3, al. c), do CT e na correspondente alínea b), do n.º3, da cláusula 59.º do CCT aplicável, sendo legal e válida.
Consequentemente, tendo sido validamente acordado que a retribuição acertada no contrato de contrato de trabalho atendeu “à circunstância de estar prevista a prestação de trabalho em período noturno e portanto de o respetivo acréscimo estar desde já incluído no valor fixado”, não lhe assiste fundamento para reclamar os alegados créditos por acréscimo na retribuição de 25% pelas horas de trabalho prestadas em período nocturno, provadas no ponto 15.
Conclui-se, assim, pela procedência do recurso, cabendo revogar a sentença recorrida e absolver a Ré e recorrente dos pedidos contra si deduzidos pelo autor.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente, quer na vertente da impugnação da decisão da matéria de facto, quer na impugnação por alegado erro de julgamento na aplicação do direito, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo-se a Ré dos pedidos deduzidos pelo autor.

Custas da acção e do recurso a cargo do recorrido, atento o decaimento (art.º 527.º 2, CPC).

Porto, 8 de Junho de 2022
Jerónimo Freitas
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha