Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1212/20.6T8LOU-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: EXECUÇÃO
ENTREGA DE COISA CERTA
SARS-COV-2
DILIGÊNCIAS DE ENTREGA DE IMÓVEIS
SUSPENSÃO DA DILIGÊNCIA
Nº do Documento: RP202104271212/20.6T8LOU-B.P1
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O espírito racional e histórico da promulgação do conjunto das actuais normas excepcionais e temporárias foi a de fixar os termos das modificações contratuais adequadas aos efeitos da pandemia por COVID-19 nos aspectos pontuais considerados fragilizados nos respectivos institutos jurídicos sobre que versam.
II – As normas do art.º 6.º-A, n.º 6 e 7 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) – actualmente transpostas para o art.º 6.º-E, n.º 7 e 8 da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04 – têm por propósito específico assegurar a manutenção de condições de habitabilidade ou de utilização dos visados com diligências de entrega de imóveis, atendendo ao contexto actual de pandemia que obriga, em muitas situações, a confinamento obrigatório na habitação e que, por outro lado, é potenciador de diminuição dos rendimentos das famílias.
III – Analisando o texto da lei à luz do espírito da lei, entendemos que o art.º 6.º-A, n.º 6, alíneas b) e c) e n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) prevê três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis: a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma; b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.” c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1212/20.6T8LOU-B.P1
Comarca: [Juízo de Execução de Lousada (J1), Comarca de Porto Este]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Fernando Vilares Ferreira
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

B…, residente na …, n.º .., 1.º B, …, Paredes, instaurou a presente acção executiva para entrega de coisa certa contra C…, residente na Rua …, n.º …, …, …, Felgueiras, alegando ser comproprietária do prédio urbano composto de casa de habitação e anexos, sito no …, freguesia …, do concelho de Felgueiras.
Expõe que, por sentença de 04/10/18, já transitada em julgado, do Juízo Local de Felgueiras (J2), no âmbito do Processo n.º 389/18.5TBFLG de Divisão de Coisa Comum, a Executada adjudicou a sua quota no valor de € 10.000,00 a todos os restantes comproprietários e na proporção da quota que eles já detinham.
Bem como que, por sentença de 07/10/19, já transitada em julgado, do mesmo Juízo Local de Felgueiras, no âmbito do Processo n.º 389/18.5TBFLG-A de Acção de Consignação em Depósito foi entregue à Executada o montante de € 10.000,00, correspondente ao valor relativo ao preenchimento da sua quota.
Afirma que, até à presente data, a Executada ainda não desocupou nem restituiu a casa de habitação em causa e anexos.
Com data de 28/09/20, a Executada veio requerer nestes autos de execução a suspensão da diligência de entrega do imóvel, alegando que o imóvel em causa se trata da sua casa de morada de família, ter 65 anos e graves problemas de saúde, padecendo de doença crónica com agudizações frequentes, do foro físico e psíquico, bem como sequelas de queimaduras extensas e cicatrizes deformantes, e ser pessoa economicamente desfavorecida, auferindo uma reforma no valor anual de € 3.934,00.
Pede que se suspenda a diligência de entrega do imóvel até que a Câmara Municipal e as entidades assistenciais a consigam realojar.
Com data de 30/09/20, e sem que tenha sido ouvida a Exequente, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Requerimento de 28.09.2020: A executada vem requerer a suspensão da entrega do imóvel que constitui a sua casa de morada de família, enquanto as entidades assistenciais não conseguirem o realojamento da executada, ao abrigo do art. 861.º, n.º 6, do NCPC. Ora, sem prejuízo do cumprimento do disposto no art. 861.º, n.º 6, do NCPC, o que cabe ao agente de execução observar, sem que exista necessidade de suspender a execução propriamente dita (o realojamento pelas entidades assistenciais, quando necessário, configura um procedimento da própria execução para entrega de imóvel), o requerido pela executada acaba por se mostrar, por ora, irrelevante, uma vez que o ato de entrega do imóvel, sendo a casa de morada de família da executada, mostra-se legalmente suspenso, ao abrigo do art.º 6.º-A, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29.05, até que cesse o regime excepcional a que se alude nesse diploma (decorrente da pandemia associada à COVID-19), suspensão esta que não necessita de ser declarada pelo tribunal, competindo ao agente de execução observar este regime suspensivo, uma vez que estejam verificados os seus pressupostos.
Assim sendo, sem prejuízo do acima exposto, que cabe ao agente de execução apreciar a e observar, nada há a ordenar pelo tribunal.
Notifique e comunique ao agente de execução.”
Através de requerimento de 02/10/20, a Exequente veio requerer o prosseguimento dos autos, alegando – em síntese – que a Executada não tem dificuldades económicas, tendo inclusive recebido milhares de euros pela sua cota parte do imóvel objecto da presente execução.
Mais alega que a Executada apenas não está a habitar um outro imóvel por opção, sendo que os serviços da Segurança Social já lhe disponibilizaram habitações que esta recusou e que ela própria também já lhe disponibilizou um imóvel que esta recusou.
Defende que a Executada está a levar a cabo um conjunto de manobras dilatórias com o objectivo de protelar a entrega deste.
Afirma que os comproprietários do imóvel pretendem vender o mesmo, tendo neste momento acordada a venda com um interessado. Diz que, caso o processo fique suspenso até findar o período excepcional e transitório previsto na Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, a venda não se irá concretizar, o que lhes provocará um prejuízo irreparável.
Com data de 26/10/20, foi proferido despacho com a seguinte fundamentação resumida “(…) Assim sendo, no caso, sendo o imóvel a entregar a casa de morada de família da executada, tem de observar-se o regime suspensivo referido, sendo, para o efeito, indiferente a eventual inexistência de prejuízo para a executada decorrente da entrega ou existência de prejuízo para o exequente decorrente da sua suspensão. (…) Assim sendo, por tudo o exposto, reitera-se que, estando em causa a entrega da casa de morada de família da executada, tal é suficiente para impor o regime suspensivo previsto no art.º 6.º-A, n.º 6, al. b); da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a alteração da Lei n.º 16/2020, de 29.05, independentemente do prejuízo para a executada ou para a exequente que se possa associar à entrega ou à suspensão da mesma, respectivamente. Para todos os efeitos, importa sempre interpretar as normas de acordo com o espírito do legislador que é determinado pela actual situação pandémica, em que se visa evitar a circulação e concentração de pessoas, o seu desalojamento e a própria intervenção assistencial do Estado, ao ponto de se mostrar justificado que as pessoas não sejam obrigadas a, nesta fase, sair da sua residência e/ou mudar da mesma, mesmo que até possam ter condições económicas e financeiras para adquirir ou arrendar uma outra habitação.” e decidindo indeferir o requerido prosseguimento da execução com a entrega imediata coerciva do imóvel.
Inconformada com este despacho, a Exequente veio interpor o presente recurso, pedindo que o mesmo seja revogado e substituído por douto Acórdão que ordene o prosseguimento dos autos, com as legais consequências, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
1. Ao abrigo dos art.ºs 644.º, n.º 2, alínea c) e h) e 645.º, n.º 1, alínea b) do CPC, vem o presente recurso interposto do douto despacho com a referência 83747977, que entendeu suspender a execução ao abrigo do art.º 6.º-A, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1.A/2020, de 19/03, com a alteração da Lei n.º 16/2020, de 29/05, e consequentemente, indeferiu o pedido da apelante de prosseguimento da execução para entrega imediata do imóvel;
2. A apelada detém o imóvel de forma ilegítima e sem qualquer título para o efeito;
3. Assim, o referido imóvel não pode ser qualificado como a casa de morada de família da apelada e por conseguinte não lhe é aplicável o regime excepcional e transitório previsto na alínea b), do n.º 6, do art.º 6-A, da Lei 1-A/2020, de 19/03, com as alterações da Lei n.º 16/2020, de 29/05.
4. Prescreve o n.º 7, do art.º 6º-A, da Lei 1-A/2020, de 19/04, com as alterações da Lei n.º 16/2020, de 29/05, que “nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo (…) referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado (…) este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não causa prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.”
5. A entrega do imóvel não é susceptível de colocar em causa a subsistência da apelada, pois esta não tem dificuldades financeiras e não habita outro imóvel por opção;
6. A suspensão do acto de entrega do imóvel provoca um prejuízo irreparável à apelante de demais comproprietários que assim estão impossibilitados de vender o imóvel.
7. Pelo que estão reunidos os pressupostos para que seja revogada a suspensão do acto de entrega do imóvel e ordenado o prosseguimento dos autos, nos termos do n.º 7, do art.º 6.º-A, da Lei 1-A/2020, de 19/03, com as alterações da Lei n.º 16/2020, de 29/05.
8. Assim, o Mm Juiz a quo não decidiu bem ao indeferir o pedido da apelante de revogação da suspensão do acto de entrega do imóvel e ordenado o prosseguimento dos autos, com o que violou a alínea b), do n.º 6 e o n.º 7, do art.º 6.º-A, da Lei 1-A/2020, de 19/03, com as alterações da Lei n.º 16/2020, de 29/05.
A Executada contra-alegou pedindo a confirmação do despacho recorrido, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
a. O Tribunal a quo entendeu que o pedido de prosseguimento da execução apresentado pela recorrente/exequente não poderá proceder, por a entrega do imóvel que constitui a casa de morada de família da recorrida/executada, determinar a suspensão do ato, sem qualquer restrição ou condição.
b. A recorrente alegou que “(…) o imóvel a entregar não constitui a casa de
c. morada da executada, (…) a apelada não alegou, nem demonstrou que o imóvel a entregar é a sua casa de morada de família e não o fez porque detém o imóvel de forma ilegítima e sem qualquer título desde finais de 2018”
d. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, não assiste qualquer razão à recorrente.
e. Antes de mais, contrariamente ao que vem alegado, a recorrida/executada alegou e demonstrou que o imóvel a entregar é a sua casa de morada de família, basta ler o teor dos embargos de executado que a executada apresentou, e ainda o seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
f. A recorrida/executada vive no imóvel a entregar que é a sua casa de morada de família, a sua única habitação, a sua única residência, sito na Rua …, nº …, …, Felgueiras, anterior denominada por …, …, Felgueiras, há mais de 39 anos, constituindo, por isso, a sua única casa, o seu único tecto, a sua única residência, que a recorrida/executada tem para morar, conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Atestado emitido pela Junta de Freguesia … – Felgueiras - que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, na apresentação dos embargos de executado, e ainda no seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
g. O aludido imóvel a entregar constitui a casa de morada de família da recorrida, onde habita sozinha, uma vez que o seu agregado familiar é constituída por ela própria, desde o falecimento dos seus pais, conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Atestado emitido pela Junta de Freguesia … – Felgueiras - que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, na apresentação dos embargos de executado, e ainda no seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
h. Descarte, verifica-se que no caso em apreço, está em causa a entrega da casa de morada de família da executada, pelo que é suficiente para impor o regime suspensivo previsto no artigo 6º-A, nº 6, alínea b), da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, “6 – Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório: (…) b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”, com a alteração da Lei nº 16/2020, de 29.05, independentemente do prejuízo para a executada ou para o exequente que possa associar à entrega ou à suspensão da mesma, respectivamente.
i. Contrariamente ao que alega a recorrente, ficou demonstrado que a entrega do imóvel é susceptível de causar prejuízo à subsistência da recorrida/executada, não obstante ter sido consignado em depósito a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) a favor da executada, esta tem dificuldades económicas, para além de ter graves problemas de saúde;
j. A recorrida/executada é uma pessoa de idade avançada, completando a idade de 65 anos, conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – que se juntou aos autos sob o doc. nº 2, na apresentação dos embargos de executado.
k. A recorrida tem graves problemas de saúde, padece de doença crónica com agudizações frequentes, do foro físico e psíquico, bem como sequelas de lesão (queimaduras extensas e cicatrizes deformantes), conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Atestado Médico - que se juntou aos autos sob o doc. nº 3, na apresentação dos embargos de executado, e ainda conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Registos/Informações Clínicos emitidos pelo Hospital … - que se juntou aos autos sob o doc. nº 2, no seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
l. A recorrida/executada é pessoa economicamente desfavorecida, com graves carências económicas, conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira - que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, no seu requerimento com a referência nº 36471614, com data de 15/09/2020, e ainda conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Atestado emitido pela Junta de Freguesia … – Felgueiras – que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, no seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
m. A recorrida é reformada, auferindo nessa qualidade a parca quantia anual de cerca de 3.934,00€, conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira - que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, no seu requerimento com a referência nº 36471614, com data de 15/09/2020, e ainda conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Atestado emitido pela Junta de Freguesia … – Felgueiras – que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, no seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
n. É com esse parco rendimento que tem que fazer face a todas as despesas do seu agregado familiar constituído pela própria, como sendo alimentação, vestuário, deslocações, água, luz, telefone, e outras nomeadamente com a saúde.
o. Não possui qualquer bem, nem usufrui de nenhum outro rendimento, conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira – que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, no seu requerimento com a referência nº 36471614, com data de 15/09/2020, e ainda conforme se pode constatar pela análise do documento comprovativo – Atestado emitido pela Junta de Freguesia … – Felgueiras – que se juntou aos autos sob o doc. nº 1, no seu requerimento com a referência nº 36621606, com data de 28/09/2020.
p. A recorrente não tem qualquer alternativa viável de habitação, para a qual se possa mudar, uma vez que não dispõe de meios económicos para assumir encargos com uma habitação;
q. Manifestando-se consequentemente na impossibilidade de realizar pagamentos e encargos, relativos às rendas de um imóvel.
r. Pelas razões expostas, é-lhe humanamente impossível custear a renda de uma casa, a não ser sacrificando o que lhe é essencial para viver.
s. Contrariamente ao que alega a recorrente, a verdade é que ficou comprovada a insuficiência económica da recorrida/executada, as sérias dificuldades de realojamento e os problemas de saúde que afecta a recorrida/executada.
t. Em conformidade, face as sérias dificuldades no realojamento da recorrida/executada, na execução deve ser sempre observado o disposto no artigo 861º, nº 6 do Código de Processo Civil, quanto a comunicação do facto à Câmara Municipal e as entidades assistenciais competentes, o que foi requerido pela recorrida/executada.
u. Com efeito, tal comunicação não pode ter outro sentido que não seja o de, perante sérias dificuldades no realojamento da executada, a câmara municipal ou as entidades assistenciais competentes poderem intervir de molde a impedir que seres humanos fiquem sem alojamento, na rua, ao relento.
v. Sendo inegável que o direito à habitação deve ser visto como uma projecção da dignidade humana, de acordo com o dimanado nos artigos 1.º, 20.º e 25.º da Constituição da República Portuguesa, e ainda conforme (Ac. do TC n.º 507/94, de 14.07.1994, Ribeiro Mendes, Processo n.º 129/93, in www.tribunalconstitucional.pt).
w. Acresce que, o regime de suspensão previsto no artigo 6º-A, nº 6, alínea b), da Lei 1-A/2020, de 19.03, com a alteração da Lei nº 16/2020, de 29/05, determina que “(…) Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório os actos a realizar em sede de processo executivo (…) relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
x. Esta opção legislativa, na actual situação de pandemia, tem o propósito de evitar a circulação e concentração de pessoas, dado a exposição ao contágio e disseminação do vírus, tem ainda o propósito de evitar o desalojamento das pessoas e a própria intervenção assistencial do Estado, ao ponto de se mostrar justificado que as pessoas não sejam obrigadas a, nesta fase, sair da sua residência e/ou mudar da mesma, mesmo que até possam ter condições económicas e financeiras para adquirir ou arrendar uma outra habitação.
y. Ante o exposto, não estão reunidos os pressupostos para que seja revogada a suspensão do ato de entrega do imóvel e ordenado o prosseguimento dos autos, nos termos do artigo 6º-A, nº 6, alínea b) e nº 7 da Lei 1-A/2020, de 19.03, com a alteração da Lei nº 16/2020, de 29/05.
z. Sendo assim, o Tribunal a quo decidiu bem quando indeferiu o requerido prosseguimento da execução com a entrega imediata coerciva do imóvel, de acordo com o disposto no artigo 6º-A, nº 6, alínea b) e nº 7 da Lei 1-A/2020, de 19.03, com a alteração da Lei nº 16/2020, de 29/05.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões, é atinente à legalidade da suspensão da diligência de entrega judicial do imóvel dos autos.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade relevante resume-se aos trâmites processuais atrás consignados no Relatório e ao teor da decisão recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV – SUSPENSÃO DE DILIGÊNCIA DE ENTREGA JUDICIAL DE IMÓVEL

A “Organização Mundial de Saúde” qualificou, no dia 11/03/20, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional.
Como refere Catarina Serra[2], “(…) a crise actual configura uma “modificação brusca das condicionantes estruturais da coexistência social”, isto é, uma “grande” alteração das circunstâncias – e uma em grau superlativo, que escapa às categorias dogmáticas habituais. Por isso, mais do que consentir intervenções pontuais, por iniciativa das partes, no domínio dos contratos, ela exige uma verdadeira reconformação legislativa do quadro em que se desenvolvem todas as relações jurídicas.” [3]
Como tentativa de prevenir a doença e conter a pandemia, foram adoptadas pela generalidade dos países medidas de forte restrição de direitos e liberdades, em particular no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas.
Em Portugal, para além da legislação atinente às declarações de estado de emergência e de estado de calamidade, foram estabelecidos alguns regimes excepcionais parcelares e temporários[4].
A regra geral é – como se sabe – a de que a lei especial e excepcional prefere à lei geral, no âmbito do respectivo perímetro de intervenção.
Atendendo a que estas normas excepcionais e temporárias se limitam a disciplinar aspectos parcelares de alguns institutos jurídicos, deve entender-se que a sua teleologia foi a de fixar os termos das modificações contratuais adequadas aos efeitos da pandemia por COVID-19 nos aspectos pontuais considerados fragilizados nos respectivos institutos jurídicos sobre que versam.
Neste sentido, veja-se Pestana de Vasconcelos[5]: “(…) estes diplomas visam introduzir alterações ao regime destes contratos, mas de forma muito pontual, estando, além disso, sempre dependentes da adesão dos beneficiários – que tem carácter potestativo. Daí a regulação decorrente da vontade das partes corporizada na modelação do conteúdo negocial (excepto naqueles pontos em que colida com estes regimes), assim como as disciplinas gerais dos diversos tipos contratuais, se manter.”
Bem como Higina Castelo[6]: “(…) as respostas de reequilíbrio contratual das leis temporárias objecto deste estudo são leves, afectam prestações escassas e não implicam modificações contratuais de relevo.”
A Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 enquadra-se precisamente neste conjunto de leis excepcionais e temporárias.
Prescrevia, no seu art.º 6.º-A, na redacção dada pela Lei n.º 16/2020, de 29/05[7], na parte potencialmente aplicável ao caso em análise, que: “(…) 6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório: (…) b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) As acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa; d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores; e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser feitas nos termos da alínea b) do n.º 2, da alínea b) do n.º 3 ou do n.º 7.
7 - Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes. (…).”
Este art.º 6.º-A foi, entretanto, revogado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, e substituído pelo art.º 6.º-B, do seguinte teor: “(…) 6 – São também suspensos: (…) b) Quaisquer actos a realizar em sede de processo executivo, com excepção dos seguintes: i) Pagamentos que devam ser feitos ao exequente através do produto da venda dos bens penhorados; e ii) Atos que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial. (…) 11 - São igualmente suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais actos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.”
Recentemente, a Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, revogou este art.º 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, substituindo-o pelo seu art.º 6.º-E, do seguinte teor: “(…) 7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo: (…) b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa; d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores; e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser realizadas nos termos dos n.os 2, 4 ou 8. 8 - Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.”
Ou seja, verifica-se que a redacção da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na redacção dada pela Lei n.º 16/2020, de 29/05, apesar de parcialmente alterada com a Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, foi integralmente reposta pela Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, no seu art.º 6.º-E, actualmente em vigor.
Assim sendo, apesar das sucessivas alterações legislativas, mantém-se inteiramente actual a questão suscitada no presente recurso.
Em termos esquemáticos, temos que o tribunal recorrido entendeu ser aplicável à situação vertente exclusivamente a disposição legal do art.º 6.º-A, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) enquanto a Recorrente advoga ser diversamente aplicável disposição legal do n.º 7 do mesmo preceito legal.
A interpretação da lei faz-se – nos termos prescritos pelo art.º 9.º do Código Civil – à luz da letra e espírito da lei, esta última através dos elementos racional, sistemático e histórico.
Como já se referiu acima, o espírito racional e histórico da promulgação do conjunto das actuais normas excepcionais e temporárias foi a de fixar os termos das modificações contratuais adequadas aos efeitos da pandemia por COVID-19 nos aspectos pontuais considerados fragilizados nos respectivos institutos jurídicos sobre que versam.
A norma do art.º 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) – na parte aqui potencialmente aplicável – tem por propósito específico assegurar a manutenção de condições de habitabilidade ou de utilização dos visados com diligências de entrega de imóveis, atendendo ao contexto actual de pandemia que obriga, em muitas situações, a confinamento obrigatório na habitação e que, por outro lado, é potenciador de diminuição dos rendimentos das famílias. Terá ainda reflexamente por intenção minorar situações de especial perigo de disseminação do vírus, que se verificariam caso os visados ficassem desalojados da sua casa de morada de família.
Analisando o texto da lei à luz deste espírito da lei, entendemos que o art.º 6.º-A, n.º 6, alíneas b) e c) e n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05)[8] prevê três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis: a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma; b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.” c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.”
Concordamos, pois, com a interpretação feita pelo tribunal recorrido, no sentido de que “(…) quanto aos actos executivos que impliquem a entrega de imóvel que constitua a casa de morada de família do executado, o legislador optou por determinar a suspensão desses actos, sem qualquer restrição ou condição, nomeadamente a propósito da necessidade do executado ou do prejuízo para o exequente.”
No caso em apreciação, as partes estão de acordo em que o imóvel objecto da diligência de entrega constitui a casa de morada de família da Executada.
A Exequente, aceitando esta situação de facto, “limita-se” a contrapor que a Executada não tem dificuldades económicas, tendo inclusive recebido milhares de euros pela sua cota parte do imóvel objecto da presente execução. Bem como a alegar que esta apenas não está a habitar um outro imóvel por opção, sendo que os serviços da Segurança Social já lhe disponibilizaram habitações que esta recusou e que ela própria também já lhe disponibilizou um imóvel que esta recusou. Ainda que pretende vender o imóvel e que a situação de suspensão lhe provocará um prejuízo irreparável.
Em face do acima exposto, estas alegações não têm qualquer relevo substantivo ou processual em face da actual situação de casa de morada de família do imóvel para a pessoa da Executada.
Igualmente em face da exposição acima feita, é inaplicável a estatuição do n.º 7 do art.º 6.º-A, da Lei 1-A/2020, de 19/03, com as alterações da Lei n.º 16/2020, de 29/05.
Por inerência, confirma-se a decisão recorrida, com a inerente improcedência do presente recurso, quer à luz do regime legal vigente à data do despacho recorrido, quer à luz do regime legal actualmente vigente.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso da Recorrente/Exequente, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente/Exequente – art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Porto, 27 de Abril de 2021
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil.
[2] In “Covid-19/Para uma legislação para a crise das empresas em tempos de “crise total” in https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/03/covid-19-para-uam-legislacao-para-a-crise-das-empresas-em-tempos-de-crise-total/ disponível em 20/06/20.
[3] Para mais esclarecimentos, veja-se Menezes Cordeiro (ob. cit. Tratado de Direito Civil, pág. 693 e ss.) que, em síntese, defende que a ocorrência de acontecimentos catastróficos deve dar lugar a juízos políticos de solidariedade, sendo esta assumida por toda a comunidade organizada e repartindo-se os danos não apenas pelas partes contratuais, mas por todos, através do Estado.
[4] Aliás, estas leis assumem expressamente, nos respectivos sumários, preâmbulos e texto de lei o seu carácter excepcional e temporário. Veja-se, designadamente, esta Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março que, de forma que se nos afigura exemplificativa do espírito de todas as demais leis, determina expressamente, no respectivo art.º 9.º que “Sem prejuízo das competências atribuídas pela Constituição e pela lei a órgãos de soberania de carácter electivo, o disposto na presente lei, bem como no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, prevalece sobre normas legais, gerais e especiais que disponham em sentido contrário, designadamente as contantes da Lei do Orçamento do Estado.”
[5] In “Legislação de emergência e contratos. O regime excepcional dos contratos de arrendamento e bancários” in Revista do Ministério Público – Número Especial COVID-19, Ano 41, Junho de 2020, pág. 260-261.
[6] In “O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020” in Revista do Ministério Público – Número Especial COVID-19, Ano 41, Junho de 2020, pág. 351.
[7] Vigente à data da prolação do despacho recorrido.
[8] E actualmente no art.º 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e c) e n.º 8 da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.