Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0513186
Nº Convencional: JTRP00040104
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: OMISSÃO DE AUXÍLIO
Nº do Documento: RP200702280513186
Data do Acordão: 02/28/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 476 - FLS. 101.
Área Temática: .
Sumário: Não deve ser condenado como autor do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º do C. Penal, o condutor que, apesar ter provocado um acidente e ter deixado a vítima caída no solo, sem ajuda, só o fez porque, momentos antes do acidente, a vítima, acompanhada de outra pessoa, se encontrava no meio da faixa de rodagem em atitude desafiadora e provocadora para qualquer condutor que ali circulasse.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum singular n.º ……/01.9TDPRT-2, do ….º Juízo Criminal do Porto, mediante acusação do M.º P.º, foi julgado o arguido C…………, solteiro, natural do Porto, onde nasceu a 07.10.76, filho de D………….. e de E……….., residente na Rua dos …….. n.° ….., pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art.º 137º, n.º 1 do C. Penal, em concurso efectivo com um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo art.º 200 n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma legal; e ainda pela prática das contra-ordenações p. e p. nos art.º 24, 25 n.º 1 c) e 146 c), todos do Código de Estrada.

Efectuado o julgamento foi proferida sentença, que assim decidiu:
Absolveu o arguido da prática do crime de homicídio por negligência simples, p. e p. no art.º 137 n.° 1 do Código Penal assim como das contra-ordenações p. e p. pelos art.º 24, n.° 1 c) e 146 c), todas do Código de Estrada.
Condenou o mesmo arguido, como autor de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º n.º 1 do C. Penal, na pena de 100 dias de multa à razão diária de 3 euros, ou na pena de prisão subsidiária de 66 dias.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
Temos presente a matéria provada transcrita em 1 das presentes alegações, com destaques nossos, a qual, por economia, não voltamos a transcrever.
Os factos provados permitem concluir que estamos perante o caso previsto no art.º 200º, n.º 3 do Código Penal, isto é, da não punibilidade da omissão de auxílio.
A análise da situação não poderá deixar de contemplar um juízo acerca da razoabilidade da conduta do arguido quando cotejada com a que um cidadão médio, nas mesmas circunstâncias, deveria, normalmente adoptar.
Tendo em atenção todo o circunstancialismo de facto, claro é que o arguido teve a noção de que, se parasse, correria o risco de ser atingido na sua integridade física e de forma particularmente grave.
E temeu pela sua integridade física de forma plenamente justificada.
O risco para a integridade física do arguido era efectivo.
É, pois a sua conduta enquadrável na primeira parte do n° 3 daquele art.º 200°, não sendo, portanto, punível.
O arguido foi acometido de forte choque emocional, que também foi causal do facto de não se ter imobilizado no local.
Todo o circunstancialismo de facto demonstrado é apto a provocar transtorno emocional no cidadão médio, impedindo-o, como ao arguido sucedeu, do normal discernimento.
Não era exigível ao arguido outro tipo de conduta.
Concluímos, pois, que todas estas circunstâncias são motivo relevante, conforme o preceituado na segunda parte do n° 3 do art. 200°, que fazem com que o auxílio não fosse exigível, com a mesma consequência da não punibilidade do facto.
O vertido sob os n.°s 3 e 4 das alegações e nas conclusões 2ª a 10ª, é, outrossim, subsumível ao disposto no art.º 35°, n.° 1, do Código Penal.
A omissão cometida foi a única forma de o aqui recorrente se ter posto a salvo de graves atentados à sua integridade física.
Teria, pois, em todo o caso, de se considerar que o arguido agiu sem culpa.
E se assim não fosse entendido, sempre seria adequado ao caso dos autos o uso da faculdade consignada no n° 2 do mesmo artigo, sendo o arguido dispensado da pena.
Para tanto militam também os factos provados relativos à personalidade, conduta e inserção social do arguido, bem como o facto de, voluntariamente se ter dirigido a uma esquadra dar conta do sucedido e identificar-se.
A douta sentença em crise viola, salvo o devido respeito, as disposições dos art.ºs 200°, n° 3, e 35° do Código Penal.

Respondeu o M.º P.º com as seguintes conclusões:
A prova produzida em audiência foi correctamente apreciada;
A sentença recorrida fez uma correcta aplicação dos preceitos legais, pelo que
Deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão do Tribunal recorrido nos seus precisos termos.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite o seguinte douto parecer: “Pelas razões expendidas na resposta da Ex.ma Magistrada do Ministério Público na 1ª ins­tância, com que estou fundamentalmente de acordo, sem que nada mais de relevante se me ofereça acrescentar, sou de parecer que o recurso interposto não merece provimento, deven­do manter-se e confirmar-se a douta sentença recorrida”.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade que, por não ter sido impugnada, nem se verificarem os vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP, se têm por definitivamente assentes:
No dia 13 de Julho de 2001, cerca das 04.50 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula n.° ..-..-JL, marca BMW, pela Avenida AIP (Avenida Sidónio Pais), nesta cidade comarca.
Tal estrada era, à data dos factos, e no local do acidente dos autos, constituída por duas faixas de rodagem, cada uma com duas hemi-faixas, para cada sentido de trânsito.
O arguido conduzia no sentido sudeste/noroeste, atenta a sua marcha, e a uma velocidade que não possível apurar, mas não inferior a 70/80/km hora, e seguia pela hemi-faixa do lado direito atento o sentido que seguia.
Entretanto, F………., tinha acabado de sair da bombas de gasolina Galp, que ficam à direita da referida artéria, atento o sentido de marcha do arguido, e encontrava-se de pé, no meio da hemi-faixa rodagem onde circulava o arguido, parado e de frente, com os braços abertos, na direcção do veículo do arguido cerca de 1,5 do passeio que fica à direita da referida artéria, isto é, do lado das referidas bombas de gasolina.
A infeliz vítima encontrava-se com uma taxa de álcool no sangue de 2,50 g/l de sangue (fls.14 dos autos).
O arguido ao aperceber-se da presença do peão, atenta a hora da madrugada e o local, perto de um bairro da cidade do Porto referenciado pela prática de delitos criminais, temendo pela sua integridade física e bens patrimoniais até porque a vítima se encontrava acompanhada, com a mesma atitude e posição, pela testemunha G…………, não se imobilizou, nem diminuiu a velocidade que imprimia ao seu veículo, mas tentou contornar o peão, desviando-se para a hemi-faixa esquerda.
Entendeu assim ser também a melhor forma de evitar embater nos de peões que avistou.
Simultaneamente, a infeliz vítima desviou-se para a mesma hemi-faixa esquerda, em vez de desviar para o passeio destinado aos peões, pelo que foi embatido violentamente com a parte dianteira do veículo do arguido, tendo sido projectado para cima do respectivo pára-brisas e após sobre a cobertura da mesma viatura, aí sempre em movimento, caindo por trás do mesma, indo, ainda, de seguida, colidir contra os rails separadores centrais.
O arguido prosseguiu a sua marcha, ficando o ofendido caído no solo, sem ajuda, cerca de quinze minutos.
Durante esse período de tempo a testemunha G…………., supra identificada, imobilizou-se junto da infeliz vítima, e ainda que tivesse consigo o seu telemóvel não lhe ocorreu pedir ajuda, o que só se explica pelo facto de ter estado anteriormente a ingerir bebidas alcoólicas, como o mesmo admitiu.
Durante esse mesmo período de tempo circularam outras viaturas na mesma via que, pese embora a infeliz vítima se encontrar prostrada no chão, junto aos rails separadores centrais, não se imobilizaram.
Em consequência directa e necessária do embate o F…………. sofreu lesões traumáticas toráxicas, descritas no relatório de autópsia de fls. 8 a 15 (que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais), que foram causa adequada da sua morte.
Era beneficiário da Segurança Social com o n.° …..80410.
No momento do embate não havia trânsito, o tempo estava bom, o piso encontrava-se em boas condições e local é uma recta, iluminada, com boa visibilidade, situada dentro de uma localidade.
O arguido, apesar de estar ciente de que tinha embatido num peão, com consequente queda do peão, com perfeito conhecimento que desta poderiam ter resultado lesões física e perda de consciência do ofendido, e que e necessitava de ajuda imediata, ao invés de imobilizar o seu veículo com vista a prestar-lhe os necessários socorros transportando-o ao hospital mais próximo, ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato, temendo pela sua integridade física e atento o choque emocional causado pelo acidente prosseguiu a sua marcha.
Ao abandonar o local do acidente no qual foi interveniente, sem se deter, o arguido omitiu conscientemente o auxílio e socorros devidos ao ofendido, bem sabendo que estava obrigado a prestá-los.
Conhecia a proibição e a punição legal da sua conduta.
Após o acidente, entre 20 a 30 minutos depois, e já acompanhado de um amigo, o arguido voltou a passar pelo local do acidente onde verificou que aí já se encontravam ambulâncias, tendo então e de imediato se dirigido a uma esquadra policial onde apresentou a sua versão do acidente.
O arguido era titular de carta de condução desde os seus vinte anos de idade, conduzindo regularmente há cerca de um ano.
O veículo do arguido apresentava danos no pára-brisas e parte frontal lado direito do capot.
O arguido é primário.
Aufere, como funcionário do Departamento comercial da “H…………..” a quantia de €430 euros mensais a que acrescem comissões e tem 1 filho menor.
Habita em casa de sua mãe.
O arguido tem o 10° ano de escolaridade.
A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo supra identificado encontrava-se transferida, à data do acidente, para a demandada Companhia de Seguros I…………, SA, mediante apólice de seguro ramo automóvel válido à data do mesmo.
Com base no falecimento da infeliz vítima foram requeridas e pagas pelo demandante as prestações por morte, a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência, nos períodos de 08/2001 e 02/2003 no valor €.1.828,60 euros.

E considerou não se haver provado que:
O arguido não tenha agido com o cuidado a que era obrigado e de que era capaz, não tendo representado o acidente, ou, representando-o, confiou que não se produziria, actuando com desrespeito das regras de prudência e pelo trânsito.
A infeliz vítima deslocava-se a pé, para casa, sita no Bairro de Francos, pretendendo virar na Rua Direita de Francos.
O arguido embateu com a parte dianteira do seu veículo nas costas do peão.
O arguido agiu livre e conscientemente, em desrespeito das regras estradais, conduzindo sem o cuidado e atenção exigidas a um condutor, e de que era capaz, e por não ter adequado a velocidade do seu veículo de modo a evitar perigo para a segurança das outras pessoas. Representou como possível que pudesse provocar um desastre de graves consequências para as pessoas nele intervenientes, embora não se tenha conformado com a sua ocorrência.
O arguido se tenha desinteressando das consequências da sua condução e do embate.

Pretende o arguido ver revogada a sentença condenatória porque, defende, a sua conduta não é punível, seja por força do disposto no n.º 3 do art.º 200º do C. Penal, seja porque agiu sem culpa.
Se assim não for entendido, sempre deverá ser dispensado de pena, nos termos do n.º 2 do art.º 35º do C. Penal

Vejamos
O arguido foi condenado pela prática de um crime de omissão de auxílio.
Dispõe o art.º 200º do C. Penal, sob a epígrafe “Omissão de auxílio”:
Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de pri­são até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível.
Defende o Recorrente que a sua conduta não é punível.
A Sr.ª Juíza fundamentou assim a condenação:
“Estamos pois perante um tipo legal que impõe aos cidadãos um dever de solidariedade social verificadas que estejam determinadas circunstâncias.
Ora, resulta dos factos provados e não provados que o arguido não foi o causador do acidente. Contudo, o mesmo, após o acidente em que foi interveniente, o qual pôs em perigo a vida da infeliz vítima não lhe prestou o auxílio necessário ao afastamento desse perigo. E note-se que o local àquela hora era de pouco trânsito, sendo certo que ao arguido incumbia o dever social de prestar auxílio, até porque era o único com veículo e sem ferimentos.
Porém, o arguido não lhe foi prestar o auxílio que lhe era exigível.
Face ao exposto, resulta claro que o arguido cometeu o crime de omissão de auxílio de que se encontra acusado nestes autos, ainda que apenas nos termos em que o mesmo vem previsto no n.º 1 do art.º 200 do Código Penal”.
Como se vê, a Sr.ª Juíza não tratou a questão jurídica da não punibilidade da conduta do arguido.
O que significa que a sentença é nula por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 379º do CPP.
Nulidade essa que não foi, como devia, arguida pelo Recorrente – cfr. art.º 120º do CPP.
Todavia, atentos os poderes de cognição da Relação, e o facto de no processo constarem todos os elementos necessários à sua decisão, dela passaremos a conhecer.
Não estando em causa no presente recurso o crime de homicídio negligente, é importante sabermos como raciocinou a Sr.ª Juíza para decidir absolver o arguido da prática desse crime.
“Provou-se que o arguido, conduzia no sentido sudeste / noroeste, atenta a sua marcha, e a uma velocidade que não foi possível apurar, mas não inferior a 70/80/km hora, e seguia pela hemi-faixa do lado direito atento o sentido que seguia.
Entretanto, F……….., tinha acabado de sair da bombas de gasolina Galp, que ficam direita da referida artéria, atento o sentido de marcha do arguido, e encontrava-se de pé, no meio da hemi-faixa de rodagem onde circulava o arguido, parado e de frente, com os braços abertos, na direcção do veículo do arguido, cerca de 1,5 a 2 metros do passeio que fica à direita da referida artéria, isto é; do lado das referidas bombas de gasolina.
O arguido ao aperceber-se da presença do peão, atenta a hora da madrugada e o local, perto de um bairro da cidade do Porto referenciado pela prática de delitos criminais, temendo pela sua integridade física e bens patrimoniais até porque o arguido se encontrava acompanhado, e com a mesma atitude e posição, pela testemunha G………., não se imobilizou, nem diminuiu a velocidade que imprimia ao seu veículo, mas tentou contornar o peão, desviando-se para a hemi-faixa esquerda. Simultaneamente, a infeliz vítima desviou-se para a mesma hemi-faixa esquerda, em vez de se desviar para o passeio destinado aos peões, pelo que foi embatido violentamente com a parte dianteira do veículo do arguido, tendo sido projectado para cima do respectivo pára-brisas e após sobre a cobertura da mesma viatura, esta sempre em movimento, caindo por trás do mesma, indo, ainda, de seguida, colidir contra os rails separadores centrais.
O arguido prosseguiu a sua marcha, ficando o ofendido caído no solo, sem ajuda, cerca de quinze minutos.
Dos factos descritos resulta que a vítima se encontrava no meio da hemi-faixa de rodagem, onde circulava o arguido, em atitude desafiadora e provocadora para qualquer condutor que ali circulasse, de frente para aquele e acompanhado por um terceiro, na mesma atitude.
A questão que se coloca é a se era exigível ao arguido que agisse de forma diversa daquela que foi dada por assente e se a sua conduta foi causadora do acidente e morte da infeliz vítima.
Na verdade, àquela hora da madrugada, naquele local (referenciado criminalmente), encontrando-se o arguido sozinho, é de aceitar a circunstância do mesmo ter optado por tentar contornar a infeliz vítima pela hemi-faixa esquerda, a qual se encontrava livre de trânsito, evitando imobilizar a sua viatura com receio das intenções dos dois indivíduos que assim se apresentavam.
Dos factos supra descritos decorre que a conduta do arguido não foi causal do acidente. Causal do acidente foi a conduta da infeliz vítima a qual, para além de se apresentar no meio da hemi-faixa de rodagem do lado direito atento o sentido em que seguia o arguido, face à iminência do choque, optou ainda, erradamente, por se desviar para referida hemi-faixa esquerda ao invés de se refugiar no local mais seguro para os peões e onde os mesmos devem circular, que é o passeio.
E note-se que, mesmo que o arguido circulasse a uma velocidade igual ou inferior a 50 Km/h, não se pode retirar a conclusão de que então o mesmo conseguiria evitar o acidente já que opção tomada em contornar a vítima seria a mesma face aos supra alegados receios e sempre a mesma vítima poderia optar por fugir igualmente para mesma hemi-faixa, ocorrendo sempre o embate.
De todo o exposto, conclui-se necessariamente, que a conduta da vítima foi temerária e imprevisível, pelo que a mesma foi a única causadora do acidente de que foi vítima. A mesma foi a única e exclusiva responsável pela ocorrência do acidente.
Assim sendo não se pode aferir que o acidente se verificou porque o arguido não agiu com a cautela segurança adequadas à situação em concreto, não se podendo concluir pela falta de atenção por parte do arguido, com violação dos deveres gerais de prudência e cuidado necessário na condução (Ac. RE de 11.12.90 in CJ, tomo V, 281).
Face ao exposto, não se provando que a conduta do agente consubstancie a violação de um dever objectivo de cuidado, julga-se improcedente a acusação pública no que toca ao crime de homicídio negligente imputado ao arguido assim como se absolve o mesmo das contra-ordenações p. e p. pelas disposições supra referenciadas” (realces nossos).
Esta fundamentação convenceu os sujeitos processuais e, por isso, também o M.º P.º, que respondeu ao recurso.
Ora a transcrição efectuada, com destaque para os vocábulos sublinhados e a bold, são suficientes para concluir que a conduta do arguido não é punível face ao disposto no n.º 3 do art.º 200º do C. Penal.
Fixemos a matéria de facto provada com interesse para o presente recurso:
6. O arguido ao aperceber-se da presença do peão, atenta a hora da madrugada e o local, perto de um bairro da cidade do Porto referenciado pela prática de delitos criminais, temendo pela sua integridade física e bens patrimoniais até porque a vítima se encontrava acompanhada, com a mesma atitude e posição, pela testemunha G………, não se imobilizou, nem diminuiu a velocidade que imprimia ao seu veículo, mas tentou contornar o peão, desviando-se para a hemi-faixa esquerda.
15. O arguido, apesar de estar ciente de que tinha embatido num peão, com consequente queda do peão, com perfeito conhecimento que desta poderiam ter resultado lesões física e perda de consciência do ofendido, e que e necessitava de ajuda imediata, ao invés de imobilizar o seu veículo com vista a prestar-lhe os necessários socorros transportando-o ao hospital mais próximo, ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato, temendo pela sua integridade física e atento o choque emocional causado pelo acidente prosseguiu a sua marcha.
18. Após o acidente, entre 20 a 30 minutos depois, e já acompanhado de um amigo, o arguido voltou a passar pelo local do acidente onde verificou que aí já se encontravam ambulâncias, tendo então e de imediato se dirigido a uma esquadra policial onde apresentou a sua versão do acidente.
Como se prescreve no n.º 3 do art.º 200º do C. Penal, a omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível.
Como diz a Sr.ª Juíza a quo – e os sujeitos processuais aceitaram -, é de aceitar, no que toca à produção do acidente, que o arguido não pudesse ter conduta diferente, face ao receio das intenções da vítima e companheiro, porquanto estavam em atitude desafiadora e provocadora para qualquer condutor que ali circulasse, de frente para aquele e acompanhado por um terceiro, na mesma atitude.
Se essa atitude provocadora torna inexigível ao arguido, a adopção de atitude diferente em termos de condução, dentro de um veículo em movimento, mais a torna em termos de não paragem, devendo sair do veículo, face a um juízo de prognose que tem de se fazer por referência ao momento em que os factos ocorreram (e não aquilo que posteriormente se sabe).
Na realidade, sabendo-se da atitude desafiadora e provocadora da infeliz vítima e seu companheiro, antes do embate, é de supor que este, ao ver o companheiro molestado, iria reagir mais provocadoramente, quiçá pondo em perigo a vida do condutor.
Só um cidadão afoito ou temerário pararia, nestas circunstâncias.
Qualidades (?) que não tem o cidadão médio, em cuja categoria se integrara o arguido, como se vê da factualidade apurada, o que torna a sua conduta desculpável.
Assim, sendo inexigível comportamento diferente, porque “desculpável a não prestação de auxílio, de forma alguma poderia o omitente ser punido” - Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense”, tomo 1, pg. 854.
Acresce que o arguido temeu pela sua integridade física e bens patrimoniais pelas razões referidas.
E temeu por força da conduta da vítima e seu acompanhante.
Ora, também esta perturbação - não censurável - levaria a exclusão da culpa, o que implicaria a absolvição do Recorrente (cfr. Taipa de Carvalho, obra citada, pg. 858).

Procedem, pois, as conclusões da motivação.

DECISÃO:
Termos em que, na procedência do recurso, se revoga a douta sentença recorrida, que se substitui por acórdão que absolve o arguido da acusação que sobre ele impendia.
Sem tributação.

Porto, 28 de Fevereiro de 2007
Francisco Marcolino de Jesus
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins