Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
597/12.2GCOVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MELO LIMA
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
VIOLÊNCIA
ADEQUAÇÃO
Nº do Documento: RP20130417597/12.2GCOVR.P1
Data do Acordão: 04/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - Elemento objetivo do crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, n.º 1 do Código Penal, é o emprego de violência.
II - A violência inclui as formas de violência psíquica e de ofensa à integridade física, uma vez que, como flui do normativo, a ameaça grave (vis compulsiva) e a ofensa à integridade física (vis phisica) são mencionadas como modalidades da violência.
III - Para a consumação do crime necessário se torna que a acção violenta ou ameaçadora seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, isto é, que essa acção possa impedir o funcionário de concretizar a actividade por este prosseguida.
IV - Não comete o crime de resistência e coação sobre funcionário o agente que, ao ser-lhe dada voz de detenção, empurra dois agentes da GNR, começando a debater-se, a empurrar e a esbracejar para evitar a detenção, ao mesmo tempo que grita: “seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos” já que tal conduta não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais dos agentes da GNR.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
PROCESSO Nº 597/12.2GCOVR.P1
RELATOR: MELO LIMA

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório

1. Em processo comum, com intervenção do tribunal singular, na Comarca do Baixo Vouga [Ovar – Juízo de Instância Criminal – 1ºJuiz], o Ministério Público deduziu acusação contra B……, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real de infrações:
a. De um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347.º n.º 1 do Código Penal e
b. Dois crimes de injúria qualificada, p. e p. pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º n. 2 l), daquele diploma legal.
2. Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte deliberação:

a. Arquivar os autos, na parte atinente aos dois crimes de injúria qualificada, p. e p. pelos artigos 181.º, 184.º e 132.º n. 2 l), do Código Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para promover o processo quanto a estes crimes.
b. Condenar o Arguido B…… pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347.º n.º 1 do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos, na condição do Arguido entregar aos Serviços Sociais da Guarda Nacional Republicana a quantia de €300,00 (trezentos euros), no prazo máximo de três meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
3. Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o B…… rematando a respectiva Motivação com o seguinte elenco de CONCLUSÕES e PEDIDO:
3.1 O Arguido encontrava-se no posto da GNR, deslocou-se ao local voluntariamente porque tinha sido convocado na qualidade de testemunha, para prestar declarações. O mesmo não estava detido, era um cidadão livre e não existia nenhuma circunstância que o impedisse de abandonar livremente as instalações da GNR onde se encontrava;
3.2 O Arguido declarou ao agente C….. que pretendia abandonar o local, aliás intenção que se depreende da expressão que o mesmo utilizou (“vou-me embora, não tenho tempo para esta merda”); também, o mesmo foi encontrado no corredor, porque procurava a saída para abandonar o posto da GNR – nem o contrário decorre dos factos provados;
3.3 O Tribunal “a quo” deu como provado que o arguido, antes da sua detenção ter sido ordenada e concretizada, proferiu a seguinte expressão: “Vou-me embora, não tenho tempo para esta merda.” (que determinou a advertência feita ao mesmo, por parte do agente C….., para moderar a linguagem sob pena de ser detido), na sequência desta advertência, o mesmo terá proferido outras expressões, a saber: “eu falo como quero e quero que vocês se fodam”, “sou detido mas é o caralho”; (que determinaram de imediato a sua detenção, a consumação da advertência anteriormente realizada, sem quaisquer explicações) – conforme resulta do depoimento dos agentes C…… e D….., gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do juízo criminal;
3.4 A detenção é uma medida cautelar, não uma medida de coacção processual e tem como pressupostos cumulativos: a) Existência de flagrante delito; b) Tratar-se da prática de crime punível com pena de prisão; A detenção, como medida de privação de liberdade, satisfaz as finalidades processuais referidas no artigo 254º do Código Processo Penal, só sendo admissível, se adequada e proporcionada à gravidade dos factos, necessária face às específicas finalidades que a admitem e justificam – aliás, em respeito pelo Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 35/99 publicado in Diário da República II série, de 24.01.2001;
3.5 As expressões utilizadas pelo arguido, que concretamente determinaram a sua detenção, não configuram a prática de nenhum crime, nem sequer o crime de injúrias, uma vez que nenhuma das expressões utilizadas é injuriosa. As referidas expressões constantes da douta sentença recorrida não foram dirigidas aos agentes da GNR ali presentes, nem se refere às funções pelos mesmos exercidas. Tais expressões não constituem a imputação de qualquer facto, nem visam ofender a honra ou consideração dos referidos agentes, nem têm tal virtualidade.
3.6 As expressões utilizadas pelo Arguido, rigorosamente e objectivamente, são reveladoras de má educação, não podendo confundir-se a injúria com a indelicadeza, com a falta de polidez, com a grosseria, a utilização das mesmas releva para a existência de falta de educação, todavia, sem qualquer conotação de carácter penal; Uma conduta pode ser censurável em termos éticos, sociais, até profissionais e não ser censurável em termos penais, pois que não integra a tipicidade de qualquer crime, designadamente dos crimes contra a honra – como sucede no caso em apreço.
3.7 Tem de reconhecer-se a relatividade que envolve a acção típica, pois que, o carácter injurioso de determinada palavra, frase ou acto, está fortemente dependente das pessoas entre as quais ocorre, do respectivo nível cultural; está dependente, até, da classe social do arguido e do respectivo grau de educação e de instrução, do seu relacionamento, dos seus hábitos de linguagem.
3.8 Não pode considerar-se as expressões proferidas pelo arguido, que justificaram a detenção, susceptíveis de integrarem a prática do crime de injúrias; também, não tendo existido, por parte dos agentes da GNR, a manifestação da intenção de procedimento criminal contra o arguido, é tal facto revelador da ausência de gravidade dos factos concretos (pelo menos para determinar o recurso imediato à privação de liberdade); nem existiu proporcionalidade dos meios; sendo forçoso concluir que não estão verificados os pressupostos que justificariam a detenção do arguido, pelo que, a conduta dos militares foi ilegítima e não se enquadra no cumprimento dos seus deveres profissionais.
A detenção do Arguido foi assim manifestamente ilegítima, sem fundamento legal e violadora do seu direito à liberdade.
3.9 A douta sentença recorrida faz alusão ao passado criminal do arguido (factos provados 16 a 21), no entanto, este passado criminal não serve apenas para tornar o arguido consciente dos seus deveres, mas também, para o tornar consciente dos contornos que deve revestir uma detenção. O Arguido sentiu que não tinha praticado nenhum acto que justificasse a sua detenção – cujas razões de concretização nunca lhe foram explicadas – mas que uma vez concretizada, nos moldes em que ocorreu, a mesma legitimou-o a resistir e tentar impedir a consumação da detenção, também com recurso às restantes expressões a que alude a douta sentença recorrida, que mais não foram que o exercício do direito de resistência.
3.10 Em conformidade com o artigo 21º da Constituição da República Portuguesa, com a epígrafe direito de resistência «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública». Esta norma legitima constitucionalmente a resistência a ordem ilegítima atentatória da liberdade. Ora, o direito à resistência está constitucionalmente consagrado, legitimando o Arguido a opor-se à actuação dos militares da GNR, na medida em que a detenção ordenada pelos mesmos foi ilegítima, tornando lícito ao Arguido opor-lhe resistência;
3.11 No tipo legal de “resistência e coacção sobre funcionário” (que é um crime de perigo) protege-se directamente a autonomia intencional do Estado, tratando-se de uma protecção tão só funcional ou reflexa. A liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado. Já assim não será se estiver em causa uma acção ilegítima e ilegal dos agentes de autoridade, em, que não possa falar-se de prática de um acto relativo ao exercício das respetivas funções – como sucedeu no caso concreto;
3.12 No que concerne a este tipo legal, é possível concluir que não se mostram verificados (relativamente ao Arguido), os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º do Código Penal, pois não estão preenchidos os elementos integradores do tipo de ilícito de resistência e coacção sobre funcionário; e face ao que ficou referido supra, no que concerne à detenção e razões subjacentes à mesma, não existiu por parte do Arguido o impedimento da prática de acto relativo ao exercício das funções dos agentes da GNR;
3.13 Do tipo objectivo fazem parte, quer o fim da acção (opor-se a que a autoridade pública exerça as suas funções), quer o meio utilizado (violência ou ameaça grave). A violência ou ameaça devem surgir como pré-ordenadas e idóneas, como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade, devendo a adequação do meio ser aferida por um critério objectivo, tendo sempre em conta as específicas circunstâncias de cada caso. Ou seja, a consumação do crime exige a prática da acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação do funcionário;
3.14 Ora, a detenção nos moldes em que foi concretizada – sem precedência da prática de crime por parte do Arguido; sem ponderação se era adequada e proporcionada à gravidade dos factos, e até, necessária face às específicas finalidades que a admitem e justificam – torna ilegítima a conduta dos agentes da GNR, não se enquadrando no cumprimento dos seus deveres profissionais, pelo que não se verifica a vertente objectiva do crime de resistência e coacção de funcionário pelo qual o Arguido foi condenado;
3.15 A douta sentença recorrida violou o disposto no n.º 1 do artigo 347º e artigo 181º, ambos do Código Penal, os artigos 21º e 27º da Constituição da República Portuguesa, artigo 15º do Estatuto dos Militares da GNR (D.L. 297/2009 de 14 de Outubro), os artigos 254º, 255º e 256º, todos do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva o Arguido, ora Recorrente, do crime pelo qual foi acusado.
4. Respondeu, no Tribunal recorrido, o Exmo. Procurador-Adjunto pugnando no sentido da improcedência do recurso, assim concluindo:
4.1 Na decisão proferida pelo Mmo. Juiz “a quo”, pode-se ler na fundamentação da matéria de facto, no exame crítico da prova, a razão de ter sido valorada no sentido em que o foi;
4.2 No recurso que apresenta, o arguido, limita-se a manifestar a sua discordância sobre a matéria de facto dada como provada, sem apresentar argumentos válidos para essa discordância e sem indicar as provas que não foram valoradas pelo Tribunal e que impunham uma decisão diferente no sentido da sua absolvição;
4.3 O soldado C….. não excedeu o âmbito do cumprimento das suas funções quando confrontou o arguido com o facto de se encontrar a deambular pelo corredor do Posto, quando o arguido se encontrava ciente de que devia aguardar na sala de inquéritos pelo regresso da Militar que procedia à sua inquirição;
4.4 O arguido praticou o crime de injúria qualificada ao dirigir ao soldado C….. as expressões dadas como provadas na douta sentença sob censura;
4.5 A detenção do arguido foi válida por se mostrarem integralmente preenchidos os pressupostos legais da detenção em flagrante delito, a qual, nestas circunstâncias, é obrigatória para a entidade policial;
4.6 Questão diversa, é a de se apurar se relativamente a um determinado tipo de crime que não sendo um crime público, se encontram reunidas as condições para a sua prossecução penal;
4.7 Face à factualidade dada como provada, o Mmo. Juiz “a quo”, apenas podia dar como assentes todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo art. 347º n.º 1 do C.P., pelo qual o arguido foi condenado;
4.8 O Tribunal “a quo” não violou o disposto no n.º 1 do art. 347º e art. 181º, ambos do C.P., os arts. 21º e 27º da CRP, o art. 15º do Estatuto dos Militares da GNR e os arts. 254º, 255º e 256º, todos do C.P.P.,
5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto disse «VISTO»
6. Colhidos os vistos, realizada a Conferência, cumpre conhecer e decidir.

II Fundamentação de facto
1. É a seguinte a factualidade considerada “Provada” pelo Tribunal de recurso:
1.1 No dia 26 de Setembro de 2012, durante a tarde, pelas 15h 20m, no interior do Posto da G.N.R. de Esmoriz, sito na Avenida da Praia, em Esmoriz, nesta comarca, o arguido, que ali estava a ser inquirido como testemunha no âmbito de um inquérito, decidiu a determinada altura, antes mesmo de terminar essa diligência abandonar o local.
1.2 Ao ser interpelado pelo guarda C….. que o advertiu que a diligência ainda não terminara, o arguido retorquiu-lhe – “vou-me embora, não tenho tempo para esta merda”.
1.3 Advertido por aquele guarda para moderar a linguagem, caso contrário seria detido, o arguido respondeu nos seguintes termos, dirigindo-se àquele guarda e também ao guarda D….. que se aproximara: -“eu falo como quero e quero que vocês se fodam”, “sou detido mas é o caralho”.
1.4 E, sendo-lhe dada voz de detenção, logo o arguido empurrou o guarda C….. e logo após, também o guarda D….., começando a debater-se, a empurrar e a esbracejar para evitar a detenção.
1.5 Simultaneamente o arguido gritava-lhes: - “seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos”.
1.6 O arguido estava bem ciente do local em que se encontrava, sabendo que estava num Posto da GNR onde fora chamado para ser ouvido num inquérito e sabia também que os militares da GNR, os ofendidos, C…. e D….., que aí o abordaram, se encontravam no exercício das suas funções de agentes da autoridade.
1.7 Ora, ao proferir as expressões acima referidas, designadamente “eu mato-vos”, “vocês vão pagar por isto” “estão fodidos”, pretendia o arguido impedir aqueles militares de levarem a cabo as suas funções, fazendo-lhes crer que algum mal lhe poderia suceder.
1.8 Com efeito, as expressões dirigidas àqueles, são de molde a fazer crer aos visados que o arguido poderá, de futuro, atentar contra as suas vidas ou integridade física, pretendendo o arguido impedir com a sua conduta acima descrita, que os militares prosseguissem com as suas funções.
1.9 Ao referir-se aos agentes da forma como o fez, dirigindo-lhes expressões tais como “seus filhos da puta”, “quero que vocês se fodam” e dizendo-lhes, “não tenho tempo para esta merda”, sabia o arguido que os insultava e atentava contra a honra e consideração daqueles agentes da autoridade, sendo certo que conhecia bem o significado das expressões que utilizou e dirigiu aos ofendidos, o que fez com o propósito de atingir o respeito, dignidade e estatuto profissional daqueles militares da GNR, em exercício de funções, objectivo esse que alcançou.
1.10 O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta é proibida e punida por lei criminal, não se abstendo, contudo, de a levar a cabo.
1.11 O Arguido aufere cerca de €500,00 mensais.
1.12 O Arguido é solteiro e não tem filhos.
1.13 O Arguido vive com a sua mãe, a quem entrega cerca de €250,00 mensais.
1.14 O Arguido tem o 9.º ano de escolaridade.
1.15 O Arguido é considerado como trabalhador, educado e correcto.
1.16 O Arguido foi condenado:
1.16.1 Em 06.03.2003, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do DL 2/98 de 3/01, praticado em 11.08.2002, na pena de 60 dias de multa à razão diária de €3,00, no âmbito do processo 378/02.1GCOVR, que correu termos no Tribunal Judicial de Ovar.
1.16.2 Em 19.04.2004, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º do Código Penal, praticado em 26.04.2003, na pena de 100 dias de multa à razão diária de €3,00, no âmbito do processo 264/03.8GCOVR, que correu termos no Tribunal Judicial de Ovar.
1.16.3 Em 24.06.2004, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º do Código Penal, praticado em 04.12.2003, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de dois anos, no âmbito do processo 743/03.7GCOVR, que correu termos no Tribunal Judicial de Ovar.
1.16.4 Em 29.06.2004, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º do Código Penal, praticado em 01.12.2003, na pena de 16 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de dois anos, no âmbito do processo 857/03.3PAOVR, que correu termos no Tribunal Judicial de Ovar.
1.16.5 Em 23.06.2005, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347.º do Código Penal, praticado em 12.06.2005, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de três anos, subordinada à condição de o Arguido, no prazo de 3 meses a contar do trânsito em julgado, pagar a cada um dos ofendidos a quantia de €200,00, no âmbito do processo 389/05.5GCOVR, que correu termos no Tribunal Judicial de Ovar.
1.16.6 Em 03.02.2009, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º do Código Penal, praticado em 11.09.2003, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com a condição de frequentar o CAT da sua residência, no âmbito do processo 823/03.9GAVFR, que correu termos no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.

2. O Tribunal considerou inexistirem factos-não-provados, e relativamente àqueles provados
3. Motivou a decisão de facto proferida nos seguintes termos:
«A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e da livre convicção que o Tribunal formou sobre a mesma, sendo que foi uma tarefa norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, em conjugação com as regras de experiência.
Assim, quanto aos factos 1) a 5), os mesmos resultaram provados essencialmente através dos depoimentos de C….., D….. e E….., todos militares da GNR, a prestar serviço, ao tempo dos factos, no Posto da GNR de Esmoriz.
Por esta última, foi referido ter convocado o Arguido para o Posto da GNR de Esmoriz, porquanto a sua inquirição havia sido solicitada por carta precatória oriunda da PSP de Coimbra, onde se visava esclarecer da participação do ora Arguido numa situação de acidente com fuga.
Assim, e a fim de se inteirar sobre a intervenção do Arguido naquele acidente, ausentou-se da sala onde procedia à sua inquirição, para efectuar um telefonema à PSP de Coimbra.
Como deixara o Arguido sozinho na sala de inquéritos, solicitou ao seu colega C….. que se deslocasse àquela sala de inquéritos.
Nessa medida, C….. referiu que face àquela solicitação e enquanto se dirigia para a referida sala, cruzou-se com o Arguido a deambular no corredor.
Confrontando-o com aquela situação, uma vez que a circulação naquelas instalações se encontra (obviamente) sujeita a restrições, este respondeu-lhe “vou-me embora, não tenho tempo para esta merda”. Após ter comunicado ao Arguido para que não voltasse a dirigir-se-lhe naqueles modos, este retorquiu-lhe “eu falo como quero e quero que vocês se fodam”, enquanto lhe dava uma palmada/empurrão no ombro.
De imediato C….. deu voz de detenção ao Arguido, que lhe respondeu “sou detido mas é o caralho”, enquanto empurrava o soldado D…...
Assim, os soldados D….. e C….. projectaram o Arguido no chão, algemando-o e levando-o para uma cela, enquanto elaboravam o respectivo expediente, não sem antes o Arguido lhes gritar “seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos”.
O depoimento de D….. foi em tudo idêntico ao do soldado C….., corroborando o testemunho do seu colega.
Refira-se que estes três depoimentos foram levados em boa conta pelo Tribunal, porquanto foram prestados de modo tranquilo, claro e espontâneo, revelando conhecimento directo dos factos.
Ainda a este propósito, julga-se pertinente colocar a questão de saber se o soldado C….. excedeu o âmbito do cumprimento das suas funções, ao confrontar o Arguido com o facto de se encontrar a deambular no corredor das instalações do Posto da GNR.
A resposta só pode ser negativa.
Com efeito, o Regulamento Geral do Serviço da Guarda Nacional Republicana (aprovado por Despacho n.º 10393/2010 de 05 de Maio de 2010 e publicado no Diário da República, 2.ª série — N.º 119 de 22 de Junho de 2010) dispõe no seu artigo 81.º - Segurança física das instalações, que “A segurança física das instalações ou dos aquartelamentos visa impedir que pessoas não autorizadas tenham acesso a áreas ou parte de áreas consideradas restritas”.
E assim é porquanto tais instalações acomodam, entre outros, armamento e documentos sujeitos a segredo de justiça, pelo que se mostra justificada a interpelação do Arguido, que se encontrava a deambular no corredor das instalações do Posto da GNR.
Já as declarações do Arguido não se mostraram minimamente convincentes, porquanto o mesmo apresentou uma versão diametralmente oposta à que lhe era imputada e não sustentada.
Com efeito, segundo este, após a soldado E….. se ter ausentado da sala de inquéritos, perguntou ao soldado C….. se podia ir embora, uma vez que estava com muita pressa em ir trabalhar.
Ainda segundo o Arguido, este soldado da GNR ter-lhe-á respondido que se fosse embora teria de pagar 2 UC´s, pelo que o arguido pediu acesso ao livro de reclamações.
Acto contínuo, e ainda segundo a versão do Arguido, o soldado C….. agrediu-o, socando-o no olho e pontapeando-o nas coxas.
Questionado pelo Tribunal, acerca de uma possível justificação para a sequência de acontecimentos que relatara, o Arguido acabou por expressar que teria sido “um mau dia do agente C….”.
Ora, em resumo e segundo o Arguido, terá sido espancado pelos soldados da GNR por ter pedido para ir embora e ter solicitado o livro de reclamações.
Perante o acima dito, e tendo em consideração as regras da experiência, o Tribunal optou por desabonar as declarações do Arguido, que se apresentou flagrantemente incompatível com os factos que se lhe imputam, numa clara tentativa de desresponsabilização dos seus actos.
Ademais, não é verosímil que os militares da GNR, que se encontravam no interior do Posto, no exercício das suas funções, tenham procedido à detenção do Arguido e subsequente espancamento, apenas porque este queira ir embora e ter acesso ao livro de reclamações.
Tal desabono reverteu em favor dos depoimentos prestados pelas testemunhas acima identificadas, esses, sim, unânimes e consentâneos com a normalidade do acontecer, os quais se pautaram por espontaneidade e coerência.
Acresce que, e é bom que se refira, aquelas testemunhas não conheciam o Arguido, até ao momento dos factos acima referidos, pelo que se encontra excluída qualquer situação anterior de animosidade ou malquerença.
Assim, vislumbramos como possível causa de desejo de abandonar as instalações daquele Posto da GNR, o objecto da referida carta precatória, que pretendia esclarecer uma eventual responsabilidade do arguido num acidente de viação, o que lhe terá originado algum desagrado, e não uma eventual pressa em ir trabalhar.
Aliás, tal foi infirmado pela soldado E…., que referiu que em momento algum o Arguido lhe manifestou urgência em prestar o seu depoimento, por estar com pressa para ir trabalhar.
No que concerne aos factos 6) a 10), diremos que atento à idade do arguido e a sua experiência de vida e passado criminal (reflectido nos factos 16 a 21), este agiu de tal modo porque assim o desejou e quis.
Não tendo sido coagido a tal, resulta que o arguido actuou livre e conscientemente e que ao proferir as expressões e praticar os actos que lhe são imputados, sabia que atentava contra a sua honra e consideração dos ofendidos, bem como os impedia de praticar acto legítimo relativo ao exercício das sua funções.
Em sede de condições de vida (factos 11 a 14), designadamente no que concerne à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé nas suas declarações, uma vez que as mesmas se afiguraram credíveis, porquanto prestadas de forma espontânea.
Relativamente ao facto 15), atentou nos depoimentos de F….. (ex colega de trabalho do Arguido) e de G….. (amiga dos pais do Arguido), que nos pareceram sinceros e desinteressados.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido (factos 16 a 21, valeu o certificado de registo criminal de fls. 24 a 30.»

III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

1. Delimitação objetiva do recurso.
Na decorrência das conclusões do recurso, são questões a conhecer:
a) A detenção ordenada pela autoridade policial foi ilegítima, conferindo ao recorrente o exercício do direito (constitucional) à resistência?
b) Preenche a factualidade provada os elementos do tipo do ilícito por que condenado o recorrente?

2. CONHECENDO.

2.1 Questão prévia.
Na resposta apresentada pelo Exmo. Procurador Adjunto, suscita ele a questão de uma impugnação da decisão de facto produzida pelo Recorrente, no sentido de que o tribunal recorrido tivesse incorrido em erro de procedimento ou erro de julgamento (error in procedendo/error in iudicando).
Significativa a este propósito a seguinte conclusão tirada do dito articulado/resposta em causa: «No recurso que apresenta, o arguido, limita-se a manifestar a sua discordância sobre a matéria de facto dada como provada, sem apresentar argumentos válidos para essa discordância e sem indicar as provas que não foram valoradas pelo Tribunal e que impunham uma decisão diferente no sentido da sua absolvição». [Supra I, 4.2]
Compreende-se a tentativa do Exmo. Procurador Adjunto em procurar chegar à compreensão de qual fosse, em termos da questão de facto, o exato propósito do recorrente.
Na verdade, começou o recorrente por enunciar o seguinte:
«Assim, não será limitado (dizer, o recurso interposto) apenas à matéria de direito, incidindo também sobre a matéria de facto. De qualquer modo, o âmbito do presente recurso sempre incidiria sobre a matéria de facto, por entender o recorrente que se verificam os pressupostos do artigo 410º n.º 2 do Código de Processo Penal
Verdade é que, apontando tanto para os vícios da decisão – sem concretizar um só dos três possíveis – quanto para eventual erro de julgamento, o Recorrente não chegou a levar avante nem uma cousa nem outra, assim na motivação, assim nas conclusões, sendo certo que estas delimitam o objeto do recurso.
Apresentou, ainda assim, uma justificação para a desistência do primigénio propósito:
«O Arguido negou, e continua a negar, a utilização destas expressões, contudo, não conseguiu demonstrar que não as utilizou, nem estava ao seu alcance faze-lo pois encontrava-se sozinho no posto da GNR

Daí o passo seguinte:
«A presente motivação terá por base o teor da douta sentença recorrida e o que na mesma ficou provado, sem que tal signifique a aceitação por parte do arguido em relação às expressões constantes dos factos provados e alegadamente utilizadas»

Tanto assim que, nas conclusões, o Recorrente argumenta, sem vislumbre de sombra, a respeito da questão de facto:
«As expressões utilizadas pelo arguido, que concretamente determinaram a sua detenção, não configuram a prática de nenhum crime, nem sequer o crime de injúrias, uma vez que nenhuma das expressões utilizadas é injuriosa» [Supra I, 3.5]
«O Arguido sentiu que não tinha praticado nenhum acto que justificasse a sua detenção – cujas razões de concretização nunca lhe foram explicadas – mas que uma vez concretizada, nos moldes em que ocorreu, a mesma legitimou-o a resistir e tentar impedir a consumação da detenção, também com recurso às restantes expressões a que alude a douta sentença recorrida, que mais não foram que o exercício do direito de resistência.»
Dizer, pois: inexiste questão de facto a conhecer.

2.2 Ilegitimidade da ordem de detenção/direito de resistência

No propósito de justificar um direito de resistência a ordem ilegítima, o Recorrente assenta a sua argumentação na ilegitimidade da detenção.
Detenção ilegítima porquê?
Explica o recorrente:
«Resulta dos factos considerados provados que quando o Arguido se cruzou no corredor com o guarda C….. lhe terá dito:
Vou-me embora, não tenho tempo para esta merda.”
Decorre também da douta sentença recorrida (cfr. pontos 2 e 3 dos factos provados), que feita esta afirmação, o Arguido foi advertido pelo agente para moderar a linguagem sob pena de ser detido, e na sequência da “ameaça” de detenção o mesmo terá afirmado: “eu falo como quero e quero que vocês se fodam”, “sou detido mas é o caralho” (ponto 3 dos factos provados).»
«Na sequência da utilização das expressões supra transcritas, o Arguido recebeu voz de detenção e foi efectivamente detido»
Ora,
«O arguido sabia que não podia ser detido por manifestar a intenção de abandonar o local, mesmo utilizando expressões que nada abonam a favor do seu nível de educação, porque reveladoras da ausência da mesma, mas também, indelicadeza, falta de polidez e grosseria, no entanto, salvo o devido respeito, sem qualquer conotação de carácter penal
Porém, a incorrecção das palavras usadas não justificava a detenção. Pois:
«Face ao sucedido, designadamente, face à utilização das expressões já referidas por parte do arguido, será que estavam reunidos os pressupostos susceptíveis de conferirem legitimidade para ordenar a detenção do Arguido?
Ao proferir as expressões constantes dos factos provados: “vou-me embora não tenho tempo para esta merda”; “eu falo como quero e quero que vocês se fodam” e “sou detido mas é o caralho”,
Qual foi o crime cometido pelo Arguido?
Considerando o princípio da tipicidade, analisando objectivamente as expressões utilizadas, será a utilização das mesmas susceptível de configurar a prática de qualquer crime?»
Conclui, então:
«(…) as expressões utilizadas não configuram nenhum crime, nem sequer o crime de injúrias, pois nenhuma das expressões no contexto em que foram utilizadas é injuriosa, ou visa ofender a honra e consideração seja de quem for.
………..
Rigorosamente e objectivamente estão em causa expressões reveladoras de má educação quando utilizadas, seja por quem for – sendo menor, ou maior o grau de “má-educação” consoante o nível cultural de quem as utiliza»
Cumpre apreciar a questão assim suscitada pelo recorrente, não obstante a relativa importância de que a mesma se reveste, tendo em conta a questão fundamental relativa à razão por que o arguido/recorrente veio a ser condenado.
Em termos gerais, a reportagem fáctica que o recorrente assume, coincide com o elenco fáctico comprovado.
Em termos gerais, apenas, visto a correção a introduzir: onde o recorrente refere «na sequência da “ameaça” de detenção» deverá passar a ler-se: «Advertido por aquele guarda para moderar a linguagem, caso contrário seria detido».
Detenhamo-nos no essencial.
Dúvidas não subsistem que ao recorrente foi dada ordem de detenção. [Supra II, 1.4]
Será, porém, que tal ordem de detenção ocorre sem fundamento que a legitimasse, como vem reclamado? E, assim, na consideração da inexistência de qualquer prática delituosa?
Não é de acolher a argumentação deduzida.
Recolhe-se da economia dos factos – elenco comprovado e motivação da decisão de facto – que,
«No dia 26 de Setembro de 2012, durante a tarde, pelas 15h 20m, no interior do Posto da G.N.R. de Esmoriz, …., o arguido, que ali estava a ser inquirido como testemunha no âmbito de um inquérito, decidiu a determinada altura, antes mesmo de terminar essa diligência abandonar o local. Ao ser interpelado pelo guarda C….. que o advertiu que a diligência ainda não terminara, o arguido retorquiu-lhe - “vou-me embora, não tenho tempo para esta merda”. Advertido por aquele guarda para moderar a linguagem, caso contrário seria detido, o arguido respondeu nos seguintes termos, dirigindo-se àquele guarda e também ao guarda D….. que se aproximara: -“eu falo como quero e quero que vocês se fodam”, “sou detido mas é o caralho”.
Ato imediato, foi «dada voz de detenção» ao arguido. [Supra I, 1.1 a 1.4]
Questão é, agora, saber se a atitude assumida pelo ora recorrente podia ou não justificar a detenção.
Entende-se que sim.
Nos termos do artigo 255º do CPP,
«1.Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão: a) Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção»
Mas, diz o recorrente: eu não cometi nenhum crime! Apenas fui malcriado!
Pois: não é mau que reconheça a má-criação. Melhor seria que reconhecesse, também, a atitude ofensiva dos valores juspenalmente protegidos.
Exatamente em sentido contrário ao consignado pelo recorrente - «nenhuma das expressões no contexto em que foram utilizadas é injuriosa» - deve entender-se que na atenção às pessoas a quem se dirige e no concreto circunstancialismo de tempo e lugar em que o faz não pode deixar de ser considerada a atitude do recorrente senão uma injúria.
Pratica o crime de injúria tanto a pessoa que injuria outra, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da sua honra ou consideração, como aquela que dirige a outrem palavras ofensivas da sua honra ou consideração.
No segmento «palavras ofensivas», tem-se por certo, “não ser possível defender uma qualquer compreensão sustentada na ideia de um dolus in re se ipsa” “mesmo quando perante palavras comunitariamente tidas como obscenas ou soezes”.
Porém, não pode deixar de ter-se por igualmente certo que “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado”.
Já no segmento «honra/consideração», se a honra deve ser vista “como um bem jurídico complexo que inclui o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade” (dignitas) protegendo-se nela “a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora (…) de valores espirituais e morais» ”, importará ter bem presente que o ordenamento jurídico-penal português alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores ou dizer, ainda, à valência decorrente daqueles valores espirituais e morais, à sua boa reputação no seio da comunidade.([1])
Deixou-se referida a necessidade da ponderação, em concreto, das palavras que hajam sido proferidas, com referência às pessoas a quem foram dirigidas e no circunstancialismo de tempo e lugar em que foram efetivamente proferidas.
Quando, no caso concreto, o recorrente decidiu, de seu livre e inopinado alvedrio, sem explicações ou pedido de escusa e/ou de saída, abandonar o posto da GNR, antes de terminar a diligência para que, no âmbito de um Inquérito, havia sido chamado, e ao ser interpelado pelo guarda C….. que o advertiu que a diligência ainda não terminara, retorquiu-lhe - “vou-me embora, não tenho tempo para esta merda” e, depois de advertido para moderar a linguagem, caso contrário seria detido, respondeu dirigindo-se àquele guarda e também ao guarda Joaquim Moreira que se aproximara, “eu falo como quero e quero que vocês se fodam”, “sou detido mas é o caralho”, o desvalor das expressões assim proferidas, dirigidas a dois agentes da autoridade, em pleno exercício das suas funções, na casa do exercício de uma função pública de soberania de um Estado democrático, não pode deixar de consubstanciar prolação de palavras ofensivas da consideração devida a cada um dos agentes em causa.
O recurso a tais expressões, dirigidas a pessoas no exercício de uma específica função de autoridade pública, num local reservado ao exercício de atos atinentes à segurança e ordem públicas e no âmbito de um concreto ato de função pública, não pode deixar de comportar uma carga axiologicamente ofensiva que exclui qualquer outro animus que não seja o de desonrar, desacreditar, menosprezar, de assumir, enfim, uma atitude verdadeiramente provocadora e de des-consideração.
Dizer, então, uma atitude consubstanciadora da prática de um crime de injúria pº e pº pelas disposições conjugadas dos artigos 181º/1 e 184º do Código Penal.
Logo a consentir a detenção, nos termos do artigo 255º do CPP.
Independentemente da sua valia jurídico-constitucional, soçobra, destarte, o recorrente na pretensão de ver reconhecido o direito de resistência com apelo a uma detenção ilegítima.

2.3 Sobre a verificação, in concreto, dos elementos do tipo do ilícito “Resistência e coação sobre Funcionário”

Tem o recorrente por certo que, independentemente da solução dada à questão precedente, não se mostram verificados os elementos objectivo-subjectivos do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º do Código Penal.
Assevera, neste sentido, que “não existiu por parte do Arguido o impedimento da prática de acto relativo ao exercício das funções dos agentes da GNR”.
Acrescenta, melhor explicitando: “Do tipo objectivo fazem parte, quer o fim da acção (opor-se a que a autoridade pública exerça as suas funções), quer o meio utilizado (violência ou ameaça grave). A violência ou ameaça devem surgir como pré-ordenadas e idóneas, como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade, devendo a adequação do meio ser aferida por um critério objectivo, tendo sempre em conta as específicas circunstâncias de cada caso. Ou seja, a consumação do crime exige a prática da acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação do funcionário”.

Adiantando, entende-se que nesta parte a razão está com o recorrente.
Assim, fundamentalmente, por apelo ao princípio da adequação e/ou idoneidade.

Nos termos do artigo 347º/1 do Código Penal pratica o crime de resistência e coação sobre funcionário,
«Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das sua funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres».
Elemento objetivo relevante do tipo do ilícito, desde logo, o emprego de violência.
Violência a incluir as formas de violência psíquica e de ofensa à integridade física, uma vez que, como flui do normativo, a ameaça grave (vis compulsiva) e a ofensa à integridade física (vis phisica) são mencionadas, exatamente, como modalidades da violência.

Assumiu na decisão sob recurso particular relevância o pressuposto “ameaça grave”.
Sem necessidade de uma abordagem exaustiva do que deva entender-se por ameaça grave, julga-se pertinente reter, pelo menos os seguintes fundamentos: (i) desde logo que a ameaça, enquanto meio do crime de coação, não pode deixar de assumir uma das suas principais características, vale dizer, o mal ameaçado tem de ser futuro, que o mesmo é dizer, ainda, “o mal objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal”; (ii) constitui critério orientador da definição concreta do ‘mal importante’, a adequação da ameaça a constranger o ameaçado, que o mesmo será dizer: «o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objetivo-individual: objetivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (….) do ameaçado (….)» ([2])
Em termos simples, dir-se-ia que a violência supõe uma coação, em que, mais do que a própria ação, é o efeito coercitivo que assume caráter mais decisivo.
Importante é que o meio coercivo utilizado seja adequado/eficaz, tendo em vista o resultado pretendido.
Na conformidade do que fica já referido, para a consumação do crime “necessário se torna que a acção violenta ou ameaçadora seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, isto é, que essas acções os possam impedir de concretizar a actividade por estes prosseguida”.
Corolário, se bem se interpreta, dos princípios jus-fundamentais da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito [Artigo 18º da CRP] ([3]) é de eleger a idoneidade para a perturbação e/ou oposição à prática de ato relativo ao exercício da sua função por parte de funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, como critério reitor com sentido jus-prático-normativo. ([4])
Socorramo-nos do ensinamento de Cristina Líbano Monteiro:
«Os meios utilizados – violência ou ameaça grave – devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coação (…). Há-de considera-se, em todo o caso, que os destinatários da coação possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros da Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objetivo-individual (…) há-se assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de ação do funcionário. Assim, será natural que uma mesma ação integre o conceito de violência relevante nos caos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja nalgumas hipóteses desta concreta coação que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas ‘sobre-capacidades» ([5]) ([6])
Dê-se conta aliás, que esta exigência de idoneidade – dizer: constituirá violência todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança – é pressuposto comum à generalidade da jurisprudência deste Tribunal da Relação. ([7])
Esta valoração do grau de idoneidade não prescinde, como parece óbvio, das circunstâncias concretas concorrentes no caso. ([8])
Assim importará proceder na situação sub iudicio, apreciando conjugadamente a força militarizada presente e interveniente, no exercício da sua função de segurança, ordem e salvaguarda da paz pública e a atitude assumida pelo arguido.
Em que se traduziu esta e em que concreto circunstancialismo?
Vimos já o circunstancialismo concreto que precedeu a “voz de detenção”.
É, exatamente, a partir desta “voz de detenção” que ocorrem os factos pretensamente enformadores de um crime de resistência e coação sobre funcionário.
Quais sejam:
«(…) sendo-lhe dada voz de detenção, logo o arguido empurrou o guarda C…. e logo após, também o guarda D….., começando a debater-se, a empurrar e a esbracejar para evitar a detenção.
Simultaneamente o arguido gritava-lhes: - “seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos”.

Concluiu o tribunal – em juízo de facto – que «ao proferir as expressões acima referidas, designadamente “eu mato-vos”, “vocês vão pagar por isto” “estão fodidos”, pretendia o arguido impedir aqueles militares de levarem a cabo as suas funções, fazendo-lhes crer que algum mal lhe poderia suceder.Com efeito, as expressões dirigidas àqueles, são de molde a fazer crer aos visados que o arguido poderá, de futuro, atentar contra as suas vidas ou integridade física, pretendendo o arguido impedir com a sua conduta acima descrita, que os militares prosseguissem com as suas funções

A questão de adequação e /ou idoneidade que se coloca é exatamente a de saber se as expressões proclamadas pelo recorrente em reação à detenção - seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos” – de par com o esbracejar, empurrando, constituem, à luz do apontado critério objetivo-individual, acto de força ou hostilidade idóneo a coagir dois membros de forças militarizadas e de segurança.
De realçar desde logo que, com referência à cominação de um mal futuro, o arguido fica-se, quando muito, pela vaguidade do «vocês vão pagar por isto».
Salvo o devido respeito p.m.o., as demais expressões – eu vou-vos foder, eu mato-vos…estão fodidos – mais não constituem do que a ameaça de um mal iminente, numa situação que acima ficou referenciada como constituindo “uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal”.
Dizer: a atuação do arguido, que se traduz apenas numa relativa violência verbal mais do que em uma qualquer ameaça séria com representação de perigo para a vida dos dois militares da GNR, de par com uns inócuos empurrões, não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais acima concretizados, como não o foi minimamente, porque não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos dois Militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum
Nesta conformidade, retomando o quadro concreto do interior de um Posto da Guarda, a atitude assumida pelo arguido/recorrente perante dois agentes da GNR – consubstanciadora, sem dúvida, de um crime de injúria agravada, não considerado segundo fundamentação prestada pelo tribunal, a partir da ausência de queixa e sem objeção recursiva – não comporta o pressuposto da adequação/idoneidade que a violência decorrente do normativo sob apreciação exige.

IV DECISÃO
São termos em que, na procedência do recurso, revoga-se a decisão recorrida, absolvendo-se o recorrente do crime de resistência e coação sobre funcionário por que era acusado
Sem tributação.

Porto, 17 de Abril de 2013
Joaquim Maria Melo Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
_____________________
[1] Seguiu-se de perto JOSÉ DE FARIA COSTA, COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 607 e 630
[2] AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, TOMO I, Coimbra Editora, 1999, págs,´. 343, 355 e 358
[3] «….em se tratando de leis restritivas, o que está em causa é a relação que se estabelece entre os meios usados pelo legislador, no regime jurídico gizado, e os fins que ele mesmo se propõe alcançar». «….enquanto na adequação interessa saber se a providência legislativa adotada se mostra apta a alcançar o objetivo almejado, já na necessidade o que importa averiguar é se não existirá um outro meio que, podendo produzir sensivelmente o mesmo resultado, seja menos gravoso ou agressivo do ponto de vista dos direitos fundamentais. E, por sua vez, o que se prescreve na proporcionalidade stricto sensu é uma exigência de racionalidade e de justa medida, no sentido de que o órgão competente proceda a uma correta avaliação da providência adotada em termos qualitativos e quantitativos e, bem assim, para que esta não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido – nem mais, nem menos.» JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA, TOMO I, Coimbra editora, 2ªed, pág. 373
[4] No sentido da exigibilidade prático-normativa do princípio da proporcionalidade: CÓDIGO PENAL, COMENTADO Y COM JURISPRUDENCIA – LUIS RODRIGEZ RAMOS (Director), AMPARO MARTÍNEZ GUERRA (Coordinadora), 3ªEdición, La Ley grupo Wolters Kluwer, pág. 1409
[5] COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, TOMO III, Coimbra Editora, 2001, pág. 341
[6] No mesmo sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE,COMENTÁRIO DO CÓDIGO PENAL à luz da CRP e da CEDH, Universidade Católica Editora, Lx. 2008, pág. 417: «A ação de violência ou ameaça deve ser adequada ao resultado do constrangimento (isto é, à ação, omissão ou tolerância de uma atividade). Neste juízo de adequação devem ser ponderadas, por um lado, as características físicas e psíquicas da pessoa vítima do constrangimento e do agente do crime e, por outro lado, as competências técnicas da vítima para resistir à violência, como é o caso de agentes de autoridade (TRONDLE/FISCHER, anotação 32ª ao § 240º, LK-SCHFER, anotação 52ª ao §240º, MK-GROPP/SINN, anotação 78ª ao §240..»
[7] Ex.g.: Acs. 26.11.2008, Processo 0815669, Relatora: Maria do Carmo Silva Dias [«Em termos genéricos, podemos dizer que se entende por violência todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança e, considera-se que há ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido»], 21.09.2005, Processo 0540048, Relator: Coelho Vieira [«…..violência consiste em todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança. A utilização do critério objectivo individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário»]; 22.02.2006, Processo 0515856, Relator: Joaquim Gomes [«A violência aqui prevista não necessita de ser grave e nem sequer tem de consistir numa qualquer agressão física, consistindo antes num acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir, a impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário ou equiparado»].
[8] Neste sentido, «La gravedad de la intimidación y la resistência debe medirse com un critério objetivo, teniendo en cuenta las circunstancias de cada caso», Muñoz Conde, Derecho Penal, Parte Especial, 18ªEdição, Valencia 2009, pág.820]