Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0610978
Nº Convencional: JTRP00039335
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: OMISSÃO DE AUXÍLIO
Nº do Documento: RP200606210610978
Data do Acordão: 06/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 449 - FLS. 65.
Área Temática: .
Sumário: I. Nos termos do art. 200º, n.º 3 do CP, a omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível.
II. Para que se verifique a situação prevista na referida norma, o risco há-de ser relevante, sério e de dimensão bastante para justificar a conduta omissiva e deve ser objectivamente verificado nas circunstâncias concretas do caso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos autos de processo comum (singular), que sob o nº …../02.0TDPRT-4, correram termos pelo …º Juízo Criminal do Porto (2ª Secção), foi o arguido B…… submetido a julgamento, acusado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. pelo artº 148º, 1, em concurso real com um outro crime de omissão de auxílio, p.p. pelo artº 200º, 1 e 2, ambos do CP. Efectuado o julgamento, viria a ser proferida sentença que condenou o arguido na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 3 euros pelo primeiro dos citados crimes e na pena de 6 meses de prisão, substituídos por igual tempo de multa, á já referida taxa diária, pelo segundo.

Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso que motivou, concluindo, resumidamente, nos seguintes termos:
- Face ao depoimento do arguido e das testemunhas C……, D….., E….. e F……, deverá ser dado como provado que o arguido, após ter parado o seu veículo para verificar o estado do menor, se ausentou do local com receio das pessoas que após o acidente o abordaram, aos gritos, chegando a bater no seu automóvel, e como não provado que, após o acidente, continuou a sua marcha, deixando a vítima inconsciente no chão e que ela necessitava de ajuda imediata; no mínimo, diz, a pena de prisão aplicada pela prática de tal crime deverá ser substituída por uma outra, de 120 dias de multa, à mesma referida taxa diária, pois que o arguido é primário, revelou um bom comportamento anterior e posterior ao acidente e está perfeitamente inserido na sociedade.

Respondeu a Digna Magistrada do MP junto do tribunal recorrido, sustentando a decisão recorrida e concluindo pelo não provimento do recurso.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer em que conclui no mesmo sentido.

Ainda respondeu o recorrente, concluindo como anteriormente.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Vêm assentes os seguintes factos:

No dia 28 de Agosto de 2002, cerca das 21 horas e 35 minutos, o arguido circulava na Rua Nova da Alfândega, nesta cidade, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …-…-NZ, no sentido Nascente-Poente, pela metade da faixa de rodagem destinada a tal sentido de marcha, a uma velocidade não exactamente apurada, mas seguramente superior a 50 Km/hora; Regressava o mesmo de um encontro com amigos durante o qual ingeriu várias bebidas alcoólicas (pelo menos três cervejas).
Na mesma altura, o menor G……., de 5 anos de idade, iniciou a travessia da referida artéria, em passadeira própria para peões existente na faixa de rodagem, em frente ao edifício da Alfândega do Porto, com 5 metros de largura, seguindo numa bicicleta, no sentido Sul-Norte. Então, o arguido porque seguia desatento ao trânsito de peões, não se apercebeu de que o menor havia iniciado a travessia da passadeira, razão pela qual não travou atempadamente o veículo de modo a imobilizá-lo antes de atingir a vítima, e isto porque seguia também a uma velocidade superior à legalmente permitida, indo embater com a parte frontal direita do veículo na bicicleta e no menor quando este seguia pela mencionada passadeira e já na hemi-faixa em que seguia o arguido; No momento em que o menor se atravessa na sua frente, o mesmo trava a fundo e tenta desviar o veículo para a sua esquerda.
Em virtude de tal embate, o referido peão foi projectado pelo ar, caindo para o solo e ficando imobilizado a cerca de 16,10 metros face ao local do embate, sendo que o veículo do arguido continuou a sua marcha, deixando a vítima inconsciente caída no chão.
Como consequência directa e necessária desse atropelamento, o menor atingido sofreu traumatismo crânio-encefálico e escoriações na face e no cotovelo esquerdo, de que resultaram três cicatrizes com cerca de 0,5 cm de diâmetro na região frontal junto à inserção do cabelo e uma cicatriz com 1 cm de maior diâmetro na região supraciliar esquerda - lesões essas que lhe determinaram quinze dias de doença;
No local do acidente, a referida via configura uma recta com 6,40 metros de largura, com boa visibilidade. O tempo era seco e de acordo com a época do ano.
O arguido compareceu, cerca das 23 horas, na Divisão de Trânsito da P.S.P.-Porto, uma hora e meia após o atropelamento, onde foi submetido a exame quantitativo da taxa de alcoolémia no sangue, por teste no aparelho «Drager Alcotest 7110MKIII P», aprovado pelo I.P.Q., tendo acusado uma T.A.S. de 0,96 gramas/litro;
Ao circular naquela via sem tomar as cautelas a que as circunstâncias o obrigavam - designadamente não respeitando a paragem junto a passadeira destinada à travessia de peões, de modo a permitir a passagem segura do menor ofendido que iniciara a travessia da mesma, o arguido tornou inevitável o acidente, o qual ocorreu devido à sua falta de cuidado na condução, agravada pelo facto de conduzir após ingestão de bebidas alcoólicas, de modo a apresentar uma taxa de alcoolémia de 0,96 g/1, o que potenciou a sua condução irreflectida e pouco vigilante;
Podia e devia ter tomado outros cuidados na sua condução, designadamente parando junto da passadeira destinada à travessia de peões, de modo a permitir a passagem segura do menor, bem como abstendo-se de conduzir após a ingestão de bebidas alcoólicas, de modo a evitar pôr em perigo a integridade física ou a vida dos outros utentes da via;
Podia e devia igualmente ter previsto a ocorrência do evento, o que não fez, tendo confiado que este não se produziria;
0 arguido conduziu o referido veículo automóvel pela via pública após ingerir bebidas alcoólicas, de modo a apresentar uma taxa de alcoolemia de 0,96 g/1, o que potenciou a sua condução irreflectida e pouco vigilante, ciente de que tal não lhe era permitido;
Apesar de estar ciente de que tinha causado o descrito embate, com consequente queda do menor, com perfeito conhecimento que desta poderiam ter resultado lesões físicas e a perda de consciência do ofendido, e que este necessitava de ajuda imediata, o arguido, ao invés de imobilizar o seu veículo com vista a prestar-lhe os necessários socorros, transportando-o ao hospital mais próximo, ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato, prosseguiu a sua marcha, desinteressando-se das consequências da sua condução;
Ao abandonar o local do acidente por si originado, o arguido omitiu conscientemente o auxílio e socorros devidos ao ofendido, bem sabendo que estava obrigado a prestá-los;
Actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e puníveis por lei.
Só após, pelas 21h52m é que o arguido iniciou a realização de inúmeras chamadas telefónicas para um seu amigo Médico para se inteirar do estado de saúde do menor.
Manifestou ao Médico que queria ser informado naquele momento e que se prontificava a ajudar em alguma coisa que fosse necessário. O amigo Médico confirmou que nada de grave tinha acontecido ao menor e que teria alta nesse mesma noite. Nesse local, já com alguns amigos, recorda-se de terem bebido cerveja.
O arguido apenas se submeteu ao teste para aferir da existência de álcool no sangue cerca das 23h11m, hora em que se apresentou às autoridades.
Pediu a um amigo para contactar a família da vítima, inteirando-se do seu estado de saúde e para que lhe transmitisse os motivos pelos quais abandonou o local após o acidente. Os familiares do menor receberam-no e solicitaram-lhe o número da apólice e nome da Seguradora do veículo do arguido. Como não tinha esses elementos, voltou aí mais tarde, já na posse dos mesmos, que, o arguido, naturalmente, lhe facultou.
O arguido é funcionário público exercendo funções nos Serviços de água e Saneamento da C. M. do Porto auferindo mensalmente 720 euros (líquidos) a que deduz €. 236,93 a título de pensão alimentar a filho menor. O mesmo tem um filho de 16 anos de idade e habita com os seus progenitores, contribuindo quer para o sustento do seu filho quer nas despesas ocasionadas pela sua presença em casa de seus pais.
O arguido tem o 12.º ano de escolaridade.

*
Factos não provados:
Que um veículo automóvel não identificado, que seguia no mesmo sentido Nascente-Poente, à frente do veículo conduzido pelo arguido, tenha efectuado paragem junto àquela passadeira, de modo a permitir a passagem do menor na bicicleta; que o arguido tenha efectuado manobra de ultrapassagem daquele veículo, a fim de seguir a sua marcha,
Que o arguido circulava a velocidade inferior a 50 Km/h.
Que o menor Eduardo, de 5 anos de idade, em cima de uma bicicleta, atravessou a faixa de rodagem a uma distância de 20 metros da passadeira para peões que existe no local e de forma súbita e inesperada. Atenta a intempestividade da travessia encetada pelo menor e o facto do veículo automóvel se encontrar em movimento, o arguido não teve tempo para evitar a colisão e sem que tenha conseguido evitar o choque entre a parte lateral esquerda da frente do seu veículo com a bicicleta onde circulava o menor.
Que em consequência de apenas ter travado no momento do choque, face à imprevista travessia, vai imobilizar o seu veículo cerca de 20 metros depois do local onde o acidente se verifica.
Que a vítima tenha sido arrastada pelo chão pelo veículo.
Após ter imobilizado o veículo, o arguido preparava-se para sair da sua viatura e verificar o estado do menor.
Sucede que nesse momento, começaram a correr em direcção ao seu veículo várias pessoas aos gritos.
Ainda chegaram a bater no carro do arguido.
0 mesmo, como receou represálias e de sofrer qualquer tipo de agressões, continuou a sua marcha.
Que tenha sido a perseguição de uma mota que o obrigou a fugir.
Apesar de estar ciente que no local estavam várias pessoas que auxiliariam o menor, caso o mesmo necessitasse,

DECIDINDO:

Sendo certo que o âmbito do conhecimento em via de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, uma primeira constatação se impõe: a de que o recurso se limita à discordância que ele demonstra relativamente à convicção do tribunal, no que tange, apenas, ao crime de omissão de auxílio e, subsidiariamente, ao tipo da respectiva pena, pois que no confronto entre penas alternativas de prisão ou multa, deveria ter-se optado pela segunda.

Pretende o recorrente que após o acidente teve o propósito de parar a sua viatura para prestar auxílio à vitima, que chegou a parar o automóvel mas que se viu obrigado a abandonar o local em virtude da reacção agressiva de algumas pessoas aos gritos, que chegaram a bater nos eu automóvel.
Sustenta a sua tese no seu próprio depoimento e bem assim no das testemunhas C….., D….., E…… e F….. .

Dispõe, a propósito, o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, desde já devemos acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é discricionário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se insindicável, desde que não se mostre inadmissível, face às regras da experiência comum.
Ora, analisando a fundamentação de facto da sentença recorrida, logo se vislumbra que se ela é exaustiva na indicação dos elementos de prova usados no processo de formação da convicção do julgador, concretizando-os e procedendo à sua análise individual e ao seu confronto crítico.
Por tudo isto, não pode agora a recorrente vir analisar desgarradamente os depoimentos das testemunhas que individualiza, esquecendo a demais prova e sem conjugar entre si todas as provas produzidas; aliás, a prova pessoal que individualiza não conduz no sentido por si pretendido.

Fundamentando devidamente o seu juízo lógico, de acordo com as regras da experiência da vida, a M.ma Juíza ‘a quo’ deixou dito, e citamos:
«Os factos dados como provados e não provados tiveram por base a seguinte prova: - fls.4 e 5, 16, 49 a 52, 65, 86 a 90, 94 a 97, 128, 160, 161;
- Depoimentos relevantes –
-. o do arguido no que toca à sua situação familiar, pessoal e económica; o mesmo confirmou o facto de ter ingerido bebidas alcoólicas antes do acidente;
-. essenciais os depoimentos das testemunhas presenciais C……., vizinha da vítima e presente no local, que embora não tenha visto o embate, assistiu ao início da travessia do menor pela passadeira e apercebeu-se da aproximação do carro do arguido. Após, apenas ouve o barulho do embate e observa o corpo da vítima a ser projectado pelo ar. Tal depoimento apresentou-se firme e coeso, sublinhando-se que se tratava de uma menor de 13 anos de idade à data do acidente, não tendo qualquer interesse na causa; a mesma testemunha refere que o arguido nunca chegou a imobilizar a sua viatura, seguindo sempre e desviando-se do corpo do menor que ocupava a sua via; referiu ainda, que só após a fuga do local por parte do arguido é que se juntaram mais populares; segundo a mesma, o menor perdeu a consciência; e o depoimento de D……., o qual se encontrava no patamar do lado direito, atento o sentido seguido pelo arguido, o qual confirmou que o menor iniciou a travessia da via pela passadeira, tendo então ouvido um chiar de pneus, visto o embate, o qual se verificou já na hemi-faixa de rodagem onde o arguido circulava e visto o corpo do menor a ser projectado pelo ar, batendo com a cabeça no passeio e imobilizando o resto do corpo ainda na via; confirma igualmente que quando o arguido se põe em fuga ainda lá não se encontravam mais populares que só surgiram posteriormente.
O agente policial E……. confirmou o teor do Auto de participação que elaborou no local.
Sublinha-se ainda o facto do arguido apenas se ter submetido ao teste para aferir da existência de álcool no sangue cerca das 23h11m.
Os depoimentos das testemunhas, amigos e conhecidos do arguido, H……., médico, o qual confirmou os termos em que o arguido o contactou, I……., a quem o arguido solicitou que contactasse a família do menor, tendo ambos confirmado o bom carácter daquele e J………, com quem o arguido terá bebido um copo após o acidente, não podendo, contudo esta testemunha precisar que tipo de bebida e quantidade da mesma o arguido então ingeriu.
A testemunha J……, amigo do arguido, não apresentou um depoimento credível já que, se estranha que o mesmo, circulando atrás do arguido, se tenha apercebido com clareza de que o menor iniciava a travessia, e que o arguido o não tenha visto, o que só confirmaria o estado de distracção e descuido por parte do mesmo. Estranha-se ainda que a testemunha, que seguiria atrás do veículo não tenha providenciado por socorrer o menor que um seu amigo acabava de atropelar. De todo o modo, o facto de se encontrar mais afastado do local do embate e com menor visibilidade para o mesmo torna o seu depoimento mais deficiente face aos depoimentos prestados pelas restantes testemunhas presenciais.
Os demais factos não provados devem-se a inexistência de prova.»

A conjugação destes depoimentos entre si mostra-se concordante com o bom senso e a experiência comum pelo que é plenamente justificada a conclusão probatória retirada em julgamento.
É ao julgador que incumbe avaliar cuidadosamente da idoneidade dos que depõem e prestam declarações, em regime de oralidade e de imediação, cuja avaliação está fora do alcance do Tribunal da Relação.
Mas, como aliás já deixámos dito, e pese embora o desacordo manifestado pela recorrente, o certo é que o juízo feito a propósito no decurso do julgamento cuja sentença ora é impugnada, contém-se estritamente dentro dos limites do princípio da livre apreciação, não se vislumbrando que padeça de qualquer vício e muito menos que este seja «notório», pois o tribunal ‘a quo’ decidiu bem, já que a sua convicção se formou a partir das provas produzidas em audiência e do seu confronto crítico.
Analisando a fundamentação de facto da sentença recorrida, e confrontada com as provas produzidas na fase de julgamento, logo se vislumbra que aí é feita exaustiva referência aos meios de prova que foram atendidos e aos que não foram considerados, fazendo-se ainda demonstração dos raciocínios básicos efectuados na formação da convicção do tribunal, por referência aos diversos meios de prova. O juízo crítico final resultou, como aí é referido, do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e àquele poder de livre apreciação, o tribunal entendeu ser o que decorria de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual tiveram interferência todas aquelas cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum, já referidas. E não se vislumbra que a conclusão do silogismo judiciário haja sido tirada ao arrepio dessas regras e bem assim do artº 127º, do CPP, antes se afigurando que a convicção se mostra formada assente em elementos objectivos e ‘para além de qualquer dúvida razoável’.

Com efeito, sendo embora certo que o arguido afirma que:
- chegou a parar após o acidente, mas «não cheguei a sair fora do carro porque entretanto chamaram-me nomes (…) e com medo arranquei. Quando arranquei, entretanto fui perseguido por um senhor de mota (…)»;
- que tinha um telemóvel na sua posse mas não se deu ao trabalho de solicitar a comparência de meios de socorro, porque estava ali muita gente.

A testemunha C….. deixou dito que:
- o carro que bateu seguiu;
- o carro não parou;
- com o choque o carro abrandou;
- ele nem parou, só abrandou um bocadinho.

A testemunha D……. disse:
- ele «abrandou, abrandou quase a parar mas quando eu vou a correr para a criança, o carro arrancou. Pronto fugiu, se calhar não sei, eu faria a mesma coisa se calhar»;
- «quando comecei a dirigir-me para a criança, ele já tinha arrancado»;
- «quando arrancou só lá estava eu, estava só eu e estava a dirigir-me para a criança»;
- quando a polícia chegou, passados 6, 7, talvez mais … apareceu um moço de mota a dizer que tinha visto a viatura ir até Massarelos».

(O depoimento da testemunha E……, agente da PSP, a quem o arguido disse que abandonou o local com medo de «ser ameaçado», não tem qualquer potencialidade, quanto a esse pretendo medo, já que é indirecto, de ouvir o próprio arguido dizer).

No que se refere à desconsideração do depoimento da testemunha J……, colega de trabalho do arguido, que diz que seguia num outro carro atrás do dele e se apercebeu da dinâmica do acidente, procurando ‘justificar’ o abandono do local pelo amigo, reeditamos aqui todas as afirmações a propósito tecidas pela M.ma Juíza ‘a quo’, por se nos afigurarem pertinentes e actuais.

Desta resenha factual pode desde logo retirar-se uma primeira conclusão: - a de que o arguido não parou após o atropelamento, como pretende, o que é referido pelas testemunhas que afirmam que ele terá abrandado, o que se mostra normal, na sequência da dinâmica do acidente, logo após o embate; o arguido terá então abrandado mas imediatamente se pôs em fuga.
Por outro lado, pretende ele que abandonou o local (após ter parado, o que concluímos já não ser verdadeiro!) com medo das reacções violentas dos circunstantes… Todavia, dos já referenciados depoimentos testemunhais, de nenhum deles, resulta qualquer tipo de ameaça que porventura pudesse criar esse medo no arguido. Com efeito (e desconsiderando o depoimento do próprio arguido, por óbvias razões, e até porque infirmado pela prova testemunhal), apenas a testemunha D…… refere que o arguido ‘avançou’ quando apenas ela correu para a criança, sem estabelecer qualquer nexo entre esse facto e a fuga, deixando apenas escapar que «se calhar faria a mesma coisa».
Também não é atendível a pretensão do arguido, com base no depoimento da mesma testemunha, de que poderia ali ter sido linchado, por se tratar de zona perigosa, pois que a assim ser, ninguém seria obrigado a prestar assistência em certas zonas do país (e em quais?). Esse perigo, que não se demonstrou, deveria ter sido objectivamente verificado no caso concreto e ser de tal modo intenso que, no confronto entre a obrigação de prestar assistência (posição de garante face à situação de ingerência por si criada, o que agrava o tipo legal do nº 1, cfr. nº 2) e esse medo, se mostrasse justificada a fuga do agente; mas então, essa conduta justificada deveria ser acompanhada de outros sinais exteriores, designadamente a imediata chamada de meios de socorro e a ‘entrega’ às autoridades policiais. Mas não foi isso que o arguido fez.

A questão da perseguição por «um moço de mota» é aproveitada pelo arguido, na sequência do depoimento da testemunha D…….. que refere que apenas veio a tomar conhecimento disso posteriormente à fuga do arguido; ademais, é necessariamente compreensível e legitima a conduta do cidadão que presenciando um atropelamento, persegue o automóvel causador com intenção de identificar o seu condutor – e não há factualidade provada que permita concluir que, na sequência dessa perseguição, o «moço da mota» haja molestado, ou sequer tentado molestar, o arguido.

A norma do artº 200º do CP, contém uma autêntica válvula de segurança, ao instituir, no seu nº 3, uma causa de desculpabilização, ao estatuir que «a omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou para a integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível». Nestes casos, «a acção não é juridicamente imposta, quando a sua realização coenvolver riscos graves para a vida ou integridade física (substancial – artº 144º) do que se encontra na posição de garante» (Comentário Conimbricense ao CP, Tomo I/854). Por outro lado, «o risco há-de pois ser relevante, sério, de dimensão bastante para justificar a conduta omissiva “suficientemente importante para que uma pessoa razoável, colocada em condições idênticas e possuindo as mesmas aptidões e capacidades pessoais, recue em face do perigo em que se traduziria a intervenção”» (Maria Leonor Assunção, in ‘Contributo Para a Interpretação do artº 219º do CP’, pag. 95). Mas, vimos já que não se reuniram no caso concreto as premissas que permitiriam fazer apelo a tal causa de inexigibilidade.

Para a circunstância de não procederem as suas conclusões formuladas a titulo principal, o recorrente formula um pedido subsidiário que se prende com a natureza da pena que lhe foi fixada pela prática do crime de omissão de auxílio, p.p. pelo artº 200º, 2, CP.
Para tal fim invoca a sua situação de delinquente primário, o seu bom comportamento anterior e posterior, a sua integração social, e conclui dizendo que «não obstante existirem factos a considerar contra o arguido, assumindo ainda que a prevenção geral neste tipo de crime é de fulcral importância, a aplicação da pena de prisão não é adequada a realizar a finalidade da dita pena», pelo que requer a substituição da pena de prisão (substituída por igual tempo de multa) por uma pena de multa directa.

O crime em causa (artº 200º, 2, do CP é enquadrado por uma moldura alternativa de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Assim, atentas todas as circunstâncias que militam a favor ou contra o recorrente e devidamente explanadas na sentença impugnada (destacando-se, todavia, a circunstância de conduzir em excesso de velocidade, com uma TAS de 0,96 g/l – o que ajuda a compreender a motivação da sua fuga – e ainda as necessidades de prevenção a que o próprio recorrente faz apelo, e que são prementes no que concerne a este tipo de comportamentos), mostra-se justificada a opção pela pena de prisão, já que a de multa directa não é susceptível de «realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (artº 70º, CP) Essa pena de prisão, ainda que substituída por multa, é a que melhor se mostra capaz de retratar o grau de culpa do recorrente.

Por todo o exposto acorda-se, nesta Relação, em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a douta decisão recorrida.

As custas serão suportadas pelo recorrente, fixando-se em 6 UC´s a taxa de justiça.

Porto, 21 de Julho de 2006
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva