Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
310/12.4TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE RECEPTAÇÃO
DOLO
Nº do Documento: RP20130403310/12.4TDPRT.P1
Data do Acordão: 04/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – O art° 231° do Cód. Penal apenas prevê e pune a recetação dolosa.
II – No n.º 1 exige-se que o agente tenha conhecimento efetivo, de “ciência certa”, de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património (dolo direto ou necessário; para o preenchimen­to do n° 2 basta que o agente admita a possibilidade de a coisa ter tal origem, conformando-se com a dita possibilidade, não se assegurando da sua proveniência legítima (dolo eventual).
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 310/12.4TDPRT.P1
1ª secção
Relatora: Eduarda Lobo
Adjunto: Des. Alves Duarte
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito dos autos de Inquérito que correram termos na 2ª secção do DIAP do Porto com o nº 310/12.4TDPRT, o Mº Público deduziu acusação contra B…., imputando-lhe a prática de factos que, em sua opinião, integram um crime de recetação negligente p. e p. no artº 231º nº 2 do Cód. Penal.
Remetidos os autos para a fase de julgamento, foi proferida decisão judicial que rejeitou a acusação deduzida, nos termos do artº 311º al. d) do C.P.P., por se entender que os factos narrados não constituíam crime.
Inconformado com tal decisão, dela veio o Mº Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Conhecendo de questão prévia nos termos do disposto no artigo 311º nº q do CPP, entendeu a Mma. Juíza a quo rejeitar a acusação deduzida contra B…., pela prática de um crime de recetação negligente, p. e p. pelo artº 231º nº 2 do Código Penal, com referência ao artº 15º al. a), também do mesmo Código Penal;
2. De acordo com os fundamentos explanados no douto despacho recorrido e citando Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código penal, Tomo II, p. 475 adere a Mmª. Juíza ao entendimento de que “a nível subjetivo, ambos os dispositivos exigem o dolo do agente, mas enquanto o nº 1 do artº 231º, exige um dolo específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património, e à intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros, no nº 2 o agente admite a possibilidade de a coisa ter origem num ilícito típico contra o património, atento em concreto o preço, qualidade da coisa, condição do disponente e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência ilegítima;
3. Pelo que, invocando o artº 13º do Código Penal, e considerando que o crime de recetação apenas comporta a sua autoria dolosa, e não a conduta negligente e que a conduta está imputada a título negligente, pois não está alegada a representação e conformação do agente com o que representou, mas apenas que representa como possível o facto mas atua sem se conformar com essa realização, conclui que os factos narrados na acusação não corporizam um crime por inexistir recetação negligente, mas apenas dolosa, rejeitando a acusação nos termos da al. d) do artigo 311º do CPP;
4. Salvo o devido respeito por aquele entendimento, afigura-se-nos que a douta decisão recorrida se mostra desconforme com a vigência do princípio do acusatório do nosso DPP;
5. As diversas alíneas do nº 3 do artº 311º do CPP definem, de forma clara, a área de atuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva, consagrando o nosso sistema processual penal a estrutura acusatória mitigada pelo princípio da investigação;
6. Nas palavras do douto Ac. RL de 16.05.2006, processo 836/2006-5 “manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência dos indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para com o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais”;
7. Assim, “se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho do presente artigo não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente. Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do nº 3 (se os factos não constituírem crime) se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime”;
8. Ora, no caso concreto, está em causa a punibilidade do crime de recetação, a título negligente, sendo conhecidos diferentes entendimentos da questão de direito, sinteticamente mencionados por Paulo Pinto de Albuquerque ao referir que “O tipo subjetivo do crime do nº 2 prevê a negligência e o dolo eventual (António José Barreiros, 1996, 240, e Jorge Godinho, 1999, 220; mas no sentido de se tratar de um tipo exclusivamente negligente, Leal Henriques e Simas Santos, 2000, 984; Maia Gonçalves, 2007, 841, Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2008, 619, e no sentido de se tratar de um tipo exclusivamente doloso, Rodrigo Santiago, 1994, 552 e Pedro Caeiro, anotação 75ª ao artº 231º, in CCCP, 1999);
9. Na jurisprudência permitimo-nos destacar, no sentido da previsão do tipo negligente, os doutos ACTRL de 13.04.2010 e AcTRE de 13.01.2011 e, em sentido contrário, o douto ATRG de 14.09.2009 consultados in simp.pgr,pt/intranet/bases mj/itij;
10. Conforme decorre do artº 283º nº 2 alíneas b) e c), a acusação compreende os factos e a sua qualificação jurídica;
11. A qualificação jurídica dos factos constante da acusação tem subjacente a opção por um entendimento possível entre as conhecidas posições divergentes na doutrina e na jurisprudência sobre o tipo de ilícito recetação previsto no nº 2 do artº 231º do C.P.;
12. Assim, contendo a acusação factualidade suscetível de integrar o crime, de acordo com uma das soluções plausíveis daquela questão de direito, ou seja, daquela que faz relevar a violação negligente do bem jurídico protegido, não poderá o tribunal, no despacho previsto no artº 311º do CPP, decidir postergando aquela solução;
13. Ao decidir pela rejeição da acusação, nos termos expostos, o despacho recorrido extravasa da natureza que lhe é atribuída e dos seus limites, incorrendo em violação do princípio do acusatório, numa interpretação do artº 311º do CPP que viola o disposto no artº 32º nº 5 da CRP e ainda o artº 231º nº 2 do Código Penal.
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O arguido respondeu às motivações de recurso concluindo pela manutenção do despacho recorrido.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, por entender que a acusação não se apresenta manifestamente infundada e, por isso, deve ser admitida, designando-se dia para julgamento.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., veio o arguido responder, reproduzindo os fundamentos oportunamente apresentados na resposta às motivações de recurso.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor da decisão recorrida: (transcrição)
«Registe e autue como processo coumum da competência do tribunal singular.
O Tribunal é competente.
Questão prévia:
O Ministério Público acusou o arguido B….., pela prática de factos que em seu entender integram a autoria material de crime de recetação negligente p. e p. pelo artº 231 nº 2 e 15 al. a) ambos do Código Penal.
Para tanto acusa o arguido de “No dia 17 de Dezembro de 2011, no período compreendido entre as 02h e as 06h, desconhecidos abeiraram-se do veículo ligeiro de passageiros de marca “Wolkswagen”, modelo “Golf”, com a matrícula ..-.., pertencente a C…., que se encontrava estacionado na Rua …., freguesia de …., no Porto, após o que rebentaram a fechadura da porta do lado esquerdo e se introduziram no interior do mesmo de onde retiraram e levaram consigo, fazendo-o seu, um telemóvel de marca “Sansung”, modelo “Giorgio Armani”, de cor preto, com o IMEI 356341/01/136682/8, também pertencente àquele.
Em data indeterminada mas anterior a 09 de Fevereiro de 2012, o arguido comprou pelo preço de € 35,00 aquele telemóvel a um indivíduo que não conhecia e que de si se abeirou na rua, na zona da Areosa, propondo-lhe, sem mais, a compra do mesmo.
Acordados quanto ao preço, naquele montante, o arguido, não obstante ter desconfiado que tal telemóvel pudesse ter origem criminosa, nomeadamente ter sido furtado ao seu dono, entregou a quantia monetária respetiva e ficou com o telemóvel, que ofereceu à sua namorada, D…., que por sua vez dele fez uso com o seu cartão de acesso nº 91491…. – no mesmo inserido. Entretanto, inquirida em sede de inquérito nos presentes autos, a D…. procedeu à entrega nos autos do aludido telemóvel.
Ao comprar aquele telemóvel a um indivíduo desconhecido que, para o efeito e sem mais, o abordou em plena rua, desconfiando, até por isso, que tal telemóvel pudesse ter origem criminosa, nomeadamente, ter sido desapossado do seu efetivo dono contra a vontade ou com desconhecimento do mesmo, o arguido não só não deveria ter afastado a possibilidade de tal telemóvel ter origem criminosa, como, por isso mesmo, deveria ter-se recusado a comprá-lo a semelhante indivíduo.
Essas cautelas e consequente abstenção de comprar o aludido telemóvel eram não só adequadas como exigíveis ao arguido naquele aludido circunstancialismo concreto, o arguido agiu de modo livre e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta”.
Importa atender que:
Preceitua o artº 231º nº 1 do Código Penal que é o tipo base: “Quem, com intenção de obter para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem, mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
2. “Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
A recetação pode definir-se como o crime que acarreta a manutenção, consolidação ou perpetuidade de uma situação patrimonial anormal, decorrente de um crime anterior praticado por outrem. É um crime parasitário de outro crime (Nelson Hungria apud por Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 2º vol., pág. 256).
A norma imposta no nº 1 contém o tipo fundamental da recetação, que consiste em o agente estabelecer, através das várias modalidades de ação descritas, uma relação patrimonial com uma coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, sendo a conduta guiada pela intenção de alcançar, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial. O conteúdo do ilícito reside, pois, na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica” – Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 475.
Quanto ao nº 2, o legislador visou aqui punir “aquele que adquire ou recebe uma coisa que, por força de certas características (qualidade, preço ou condição do transmitente), faz razoavelmente suspeitar de que provém de facto ilícito típico contra o património, sempre que o agente, nessas circunstâncias, não se tenha assegurado da legítima proveniência da coisa” – autor e obra citados, pág. 486.
A nível subjetivo, ambos os dispositivos exigem o dolo do agente, mas enquanto o nº 1 do artº 231º exige um dolo específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património, e à intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros, no nº 2 o agente admite a possibilidade de a coisa ter origem num ilícito típico contra o património, atento em concreto o preço, qualidade da coisa, condição do disponente e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência legítima.
Nos termos do artº 13º do Código Penal, “Só é punívl o facto praticado com dolo ou, nos casos especificamente previstos na lei, com negligência.”
Como deixamos expresso o crime pelo qual o arguido vem acusado apenas comporta a sua autoria dolosa, e não a conduta negligente.
Analisada a factualidade alegada na acusação a nível subjetivo verificamos que a conduta está imputada a título negligente, pois não está alegada a representação e conformação do agente com o que representou, mas apenas que representa como possível o facto mas atua sem se conformar com essa realização.
Ora, sendo a culpa um facto, o qual está vertido na acusação como negligente em razão dos indícios que determinaram a decisão de acusar o qual não constitui crime, por a recetação só ser dolosa somos a concluir que e porque os factos narrados da acusação não corporizam um crime por inexistir a recetação negligente, mas apenas dolosa rejeita-se a acusação do Ministério Público deduzida contra B…., por os factos narrados não constituírem crime, nos termos da al. d) do artigo 311º do CPP.
Notifique.
Transitada arquive.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Considerando as motivações de recurso apresentadas pelo Mº Público, em especial o teor das respetivas conclusões, resulta que a questão colocada à apreciação deste Tribunal consiste em saber se, sendo controversa a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação – recetação negligente ou com dolo eventual -, o juiz de julgamento pode rejeitar a acusação com base no disposto no artº 311º nº 3 al. d) do C.P.P. (considerar a acusação manifestamente infundada por os factos não constituírem crime).
Vejamos:
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B…., imputando-lhe factos que, em seu entender, integram a prática de um crime de recetação negligente p. e p. no artº 231º nº 2 do Cód. Penal.
Remetidos os autos para a fase de julgamento, a Srª Juíza rejeitou a acusação nos termos do artº 311º nº 3 al. d) do C.P.P., com o fundamento de que “o crime de recetação apenas comporta a sua autoria dolosa e não a conduta negligente”.
Dispõe o artº 231º do Cód. Penal que «1. Quem, com intenção de obter para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até cinco anos, ou com pena de multa até 600 dias; 2. Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 120 dias; 3.[…]; 4 […].»
Quer na modalidade prevista no seu número um, quer na modalidade prevista no seu número dois, o crime de recetação pressupõe a prévia ocorrência de um facto ilícito típico contra o património, como claramente decorre do respectivo texto legal[3].
Por outro lado, certo é que na modalidade prevista no número um são seus elementos constitutivos a intenção de obtenção de vantagem patrimonial e a ocorrência de dolo direto relativamente à proveniência da coisa, a significar que o agente terá de saber que a coisa foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património[4]. Por sua vez, na modalidade prevista no número dois basta que o agente admita a possibilidade de a coisa provir de facto ilícito típico contra o património e com isso se conforme, não se assegurando da sua legítima proveniência, independentemente da intenção de obtenção de vantagem patrimonial[5].
Elemento comum às duas referidas modalidades é pois a proveniência da coisa, a qual terá de provir de facto ilícito típico contra o património.
No que respeita ao elemento subjetivo do crime em apreço, a maioria da doutrina tem entendido que «o elemento subjetivo, neste crime, preenche-se com o conhecimento da proveniência ilícita da coisa e especifica-se na intenção de obter para o agente ou para terceiro vantagem patrimonial» o que se reconduz a entender que no n ° 1 do art. 231° se prevê o tipo fundamental de crime de receptação, integrando o preenchimento do seu elemento subjetivo a verificação do dolo (em qualquer das suas modalidades, directo, necessário e eventual) e a exigência que o agente atue com intenção de obtenção para si ou para outrem de vantagem patrimonial (dolo específico), restringindo­-se a previsão do n ° 2 à chamada receptação culposa»[6].
Contudo, alguma jurisprudência, na esteira aliás de Pedro Caeiro[7], vem começando a defender que o crime de receptação do art. 231° do Cód. Penal é de natureza dolosa, mas enquanto no seu n ° 1 se exige um dolo direto (ou, pelo menos, necessário) relativamente à proveniência da coisa, no sentido do agente saber que ela provém de um facto ilícito contra o património e (um dolo específico) a intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros, o preenchimento do tipo do n ° 2, basta-se com a admissão pelo agente da possibilidade de as coisas terem tal origem e conformando-se com tal situação, não se assegurando da sua proveniência legítima (dolo eventual)[8].
Ou seja, enquanto o nº 1 exige que o agente tenha conhecimento efetivo de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, para o preenchimento do nº 2 é suficiente que o agente admita que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património.
Como realça Pedro Caeiro[9], «a principal diferença entre os dois tipos dolosos, encontra-se na espécie de dolo requerida por cada um deles: no nº 1 o recetador tem “ciência certa” de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, atuando com a intenção de obter vantagem da perpetuação de uma situação patrimonial anti-jurídica; no nº 2 o recetador admite a possibilidade de a coisa ter tal origem e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência legítima».
Concordamos com Pedro Caeiro e a jurisprudência citada no sentido de que o artº 231º do Cód. Penal apenas prevê e pune a recetação dolosa: com dolo direto ou necessário no nº 1 e com dolo eventual no nº 2.
Com efeito, para além da própria letra do preceito conduzir a tal conclusão, a punição do crime negligente é excecional e carece de disposição especial nesse sentido (artº 13º do CP). “Ora, tal disposição, pura e simplesmente não existe, pelo que não é lícito ancorar a natureza negligente da infração no estatuto que a norma anteriormente detinha”. Acresce que a imposição de um dever de informação acerca da proveniência legítima da coisa não se coaduna com a configuração negligente do tipo, ao menos nos casos em que o agente atua com negligência inconsciente. Tal imposição só faz sentido se o agente efetivamente suspeitou da proveniência da coisa, pois só aí se compreende que sobre ele impenda um especial dever de informação acerca dela, dever que não existe para o comum das transações patrimoniais. Se o agente nem sequer suspeita (não representa como possível a realização do facto) da proveniência ilícita da coisa, não se lhe pode impor tal dever de informação.
Feitas estas considerações e volvendo ao caso dos autos, entendemos que a divergência entre as posições do recorrente e da decisão recorrida se situam apenas nos conceitos, ou seja, na qualificação jurídica dos factos imputados na acusação.
Com efeito, enquanto o Mº Público integrou jurídico-penalmente os factos descritos na negligência, a decisão recorrida entendeu que a recetação negligente não constitui crime, razão por que rejeitou a acusação.
Porém, a descrição factual constante da acusação não é suscetível de integrar a figura da negligência. Na verdade, no que respeita ao elemento subjetivo, refere a acusação que “não obstante ter desconfiado que tal telemóvel pudesse ter origem criminosa, nomeadamente ter sido furtado ao seu dono, entregou a quantia monetária respetiva e ficou com o telemóvel”.
Para além de não se concretizar qual o dever objetivo de cuidado que foi omitido pelo arguido, o elemento subjetivo tal como é configurado na acusação integra antes a figura do dolo eventual: o agente conta seriamente com a possibilidade de realização do tipo, mas, apesar disso, segue atuando e resigna-se, assim, com a eventual realização de um crime, conforma-se com ela. No caso sub judice, e de acordo com a acusação, o arguido desconfia da proveniência criminosa do telemóvel cuja compra lhe é proposta e, não obstante, fica com ele, entregando a quantia pedida, ou seja, conformando-se com tal possibilidade.
Assim sendo, a divergência de entendimento sobre o alcance do artº 231º nº 2 do C.Penal (dolo eventual/negligência consciente) não impediria, em princípio, que a Srª Juíza proferisse despacho de recebimento da acusação, efetuando a alteração da qualificação jurídica que da mesma consta.
Existe, contudo, uma outra causa que justifica a rejeição da acusação nos termos do artº 311º nº 3 al. d) do C.P.Penal e que respeita ao elemento objetivo do tipo.
A ação típica do nº 2 do artº 231º do Cód. Penal consiste na aquisição ou recebimento, por qualquer título, de coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem a oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente supor que provém de facto ilícito contra o património, sem que o agente tenha cumprido o seu dever de informação sobre a proveniência legítima da coisa.
A coisa e as circunstâncias que rodeiam a sua aquisição têm de ser de molde a fazer razoavelmente suspeitar de que provém de facto ilícito típico contra o património; os factores suscetíveis de levantar a suspeita tipicamente relevante são elementos típicos e, por isso, estão descritos na lei de forma taxativa; a qualidade da coisa, a condição de quem a oferece e o montante do preço proposto. Outros factores aptos a criar a suspeita não preenchem o tipo.
Como refere Pedro Caeiro[10] “muitas vezes o carácter suspeito da coisa resultará da conjugação destes três factores (…). Na verdade, a coisa pode ser suspeita por força da relação qualidade-preço, ou da relação qualidade–condição de quem a oferece, embora nenhum desses factores, de per si, faça suspeitar de uma proveniência ilícita”.
Mas esses são apenas os únicos factores que podem criar a suspeita razoável de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património.
“O conteúdo deste elemento típico é eminentemente objetivo: trata-se tão só de determinar se as circunstâncias de transmissão da coisa descritas no tipo permitiam ou não qualificar a coisa como uma coisa suspeita. Se tal não acontecer, a conduta não preenche sequer o tipo objetivo”.
Por outro lado, ao preenchimento do tipo objetivo não basta a aquisição de uma coisa que, por força das referidas características, faça suspeitar de que provém de facto típico ilícito contra o património: é essencial que, perante esse quadro o agente não se assegure da legítima proveniência da coisa. Perante a oferta de uma coisa que, pelos motivos referidos no tipo – e só por esses -, se mostre uma coisa suspeita – e só relativamente às coisas nestas condições -, deve o eventual comprador promover as diligências exigíveis ao homem médio, naquela concreta situação para afastar a suspeita que tal oferta criou, de forma a poder afirmar-se que adquiriu a coisa com a fundada convicção de que ela não provinha de um facto ilícito típico contra o património.
Ora, a acusação deduzida é completamente omissa sobre os concretos motivos que levaram o arguido a “desconfiar da origem criminosa do telemóvel que adquiriu”. Atenta a tipicidade dos motivos da suspeita, a mera alegação de abordagem em plena rua por um indivíduo desconhecido, não constitui elemento objetivo do tipo. Por outro lado, nada se refere na acusação sobre o incumprimento do dever de informação por parte do arguido, e que igualmente constitui um elemento objetivo do tipo.
A acusação, como refere o Prof. Germano Marques da Silva[11], “é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado (…) É um pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento”. Já sobre o princípio da acusação discorre o Ilustre Prof. “limita (…) o objeto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada como garantia da imparcialidade do tribunal e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objeto da acusação, não tendo qualquer “responsabilidade” pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que a partir da acusação sabe de que é que se tem de defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspetivas dos mesmos factos para os quais não estruturou a defesa”[12].
Em caso de insuficiência factual da acusação, se o tribunal a quo viesse a alargar a investigação para além dos limites de factos traçados por aquela, estaria a violar, além da garantia constitucional consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da CRP, o art.º 339.º, n.º 4, do CPP e a tornar nula a decisão de procedência que viesse a firmar, nos termos dos arts. 359.º e 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código.
Concluindo, dir-se-á que, perante a imputação omissa quanto a aspetos fundamentais, designadamente ao nível do tipo, sem suporte bastante para a qualificação jurídica do crime, jamais poderia ser proferido despacho de recebimento da acusação, enfermando a acusação do vício estruturante do artigo 311.º, n.º 3, al. d) do CPP, sendo como tal manifestamente infundada.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, confirmando, consequentemente, o despacho de rejeição da acusação, embora por fundamento diverso.
Sem tributação.
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Porto, 03 de Abril de 2013
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
__________________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Como refere Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal (1999), pág. 479, o preenchimento deste tipo legal de crime depende da prova de que a coisa recetada foi obtida por facto ilícito típico contra o património.
[4] Neste preciso sentido Pedro Caeiro, ibidem, 494/495; Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado (1995), 787/788; Borges de Pinho, Dos Crimes Contra o Património e Contra o Estado no Novo Código Penal, 20/21; Rodriguez Devesa/Serrano Gomez, Derecho Penal Español – Parte Especial (1995), 569; na jurisprudência o Ac. Rel. Coimbra de 89.10.10, sumariado no BMJ, 390/474.
[5] Cf. a doutrina citada com destaque para Pedro Caeiro, ibidem, 497/499.
[6] No sentido desta posição, v. Simas Santos e Leal-Henriques, in "Código Penal Anotado", II Volume, Editora Rei dos Livros 2000, págs.983-985; José António Barreiros, in "Os Crimes Contra O Património" Universidade Lusíada 1996, págs.239-240, ponto n ° 8; Mala Gonçalves, in " Código Penal Anotado", comentário ao art. 231°, págs. 714.
[7] Ob. e loc. citados.
[8] Cfr. Ac. R. Coimbra de 27.04.2005, Proc. nº 1142/05, Des. Oliveira Mendes; Ac. Rel. Guimarães de 14.09.2009, Proc. nº 869/02.4PBGMR, Des. Ricardo Silva; Ac. R. Porto de 07.05.2003, Proc. n ° 0242128, Des. Isabel Pais Martins; Ac. R. Lx. de 02.07.2002, Proc. nº 0019055, Des. Margarida Blasco; Ac. R. Porto de 28.11.2007, Proc. nº 0744033, Des. Pinto Monteiro; Ac. R. Lx. 13.04.2010, Proc. nº 1863/07.4PBPDL.L1-5, Des. Pedro Martins, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Ob. cit., pág. 499.
[10] Ob. cit., pág. 487.
[11] In Curso de Processo Penal, Vol. III, 2009, pág. 118.
[12] In ob.cit., Vol. I, pág. 76.