Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2051/13.6JAPRT-H.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO (RELATOR DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE PRISÃO
PRISÃO ILEGAL
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 04/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
I - Estando a prisão do requerente respaldada em duas decisões judiciais, transitadas em julgado, pela prática de factos qualificados na lei como crime, sancionados com pena de prisão, e não se mostrando excedidos os prazos de reclusão fixados nessas decisões, evidente se torna não estar verificado, no caso, qualquer dos fundamentos de habeas corpus previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 222.º do CPP.
II - A providência de habeas corpus não serve para sindicar a bondade de decisões judiciais transitadas em julgado, nem para iniciar procedimentos visando a sua revisão pela via de recurso extraordinário.
Decisão Texto Integral:

Processo nº 2051/13.6JAPRT-H.S1


Habeas Corpus


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Acordam, em audiência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório


1. AA, recluso nº ...26 do Estabelecimento Prisional ..., em cumprimento de pena de prisão – actualmente, à ordem do processo comum colectivo nº 35/10.5... –, veio pessoalmente requerer ao Exmo. Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a providência de habeas corpus, nos termos que, seguidamente, se transcrevem:


“(…).


Processo: 2051/13.6JAPRT


19 de Março de 2024


Exmos. Srs.


1 – Entende-se que perante a ilegalidade gritante dos bancos, no exercício da Lei 454/91 de 28 Dez. colocarem a conta bancária dos titulares dos cheques a negativo, deve a prisão efetiva dos arguidos ficar suspensa até decisão de juiz.


Assim se evoca o Habeas Corpus


2 – Caso este Habeas Corpus seja recusado pelo STJ, solicita-se notificação ao advogado nomeado para abertura de recurso extraordinário para decisão de juiz

Por razão da minha condição de recluso o presente requerimento teve de ser manuscrito

Atentamente

(…)”.

2. Foi prestada a informação referida na parte final do nº 1 do art. 223º do C. Processo Penal, nos seguintes transcritos termos:


“(…).


Exm.º Senhor Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça:


No âmbito do pedido de habeas corpus formulado pelo condenado AA e nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223º, nº1 do Código de Processo Penal, informo V. Exa. do seguinte:


AA foi condenado, por acórdão proferido nestes autos em 25.11.2021, pela prática, em autoria e em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, n.º 1, 218º, nº s. 1 e 2, alíneas a) e b), do Código Penal (na versão vigente à data da prática dos factos - 40ª versão, introduzida pela Lei n.º 110/2015, de 26/08), na pena de 6 (seis) anos de prisão.


O acórdão transitou em julgado a 21-02-2022. Nesse seguimento, no dia 7 de março de 2022 o arguido AA foi ligado aos presentes autos a fim de cumprir a referida pena de 6 anos de prisão.


Entretanto, por despacho proferido nestes autos a 06-03-2024 foi ordenada a emissão de mandados de desligamento destes autos e de ligamento do condenado ao processo nº 35/10.5..., deste Juízo Central Criminal ... (nos termos ordenados pelo Tribunal de Execução de Penas ...), para cumprimento efectivo [no seguimento do despacho proferido nesse Proc. Nº 35/10.5... a 15/09/2022, transitado em julgado, da revogação da suspensão da execução de tal pena de prisão] da pena de 4 anos e 6 meses de prisão em que aí foi condenado por acórdão proferido a 21/11/2016, transitado em julgado.


Os referidos mandados de desligamento/ligamento foram cumpridos no passado dia 07-03-2024, encontrando-se o condenado AA desde essa data em cumprimento da pena que lhe foi cominada no aludido processo nº 35/10.5...- J3, deste Juízo Central Criminal ....


Em função do acima relatado, o condenado AA não se encontra neste momento em cumprimento de pena à ordem dos presentes autos.


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Junte certidão, com nota de trânsito em julgado, do acórdão proferido nestes autos, de fls. 4029 e 4038, bem como do expediente remetido pela DGRSP no dia de hoje e, após, remeta o presente apenso ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça.


(…)”.


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Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Ilustre Defensor do requerente, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais, após o que o tribunal reuniu e deliberou (art. 223º, nº 3, segunda parte do C. Processo Penal), nos termos que seguem.


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II. Fundamentação


A. Dos factos


Com relevo para a decisão do pedido de habeas corpus, dos elementos que instruem o processo extraem-se os seguintes factos:


1. Por acórdão de 21 de Novembro de 2016, proferido no processo comum colectivo nº 35/10.5..., já transitado em julgado, foi o requerente condenado, pela prática de um crime de burla qualificada, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução, suspensão esta que veio a ser revogada por despacho de 15 de Setembro de 2022, já transitado em julgado.


2. Por acórdão de 25 de Novembro de 2021, proferido no processo comum colectivo nº 2051/13.6JAPRT, transitado em julgado em 21 de Fevereiro de 2022, foi o requerente condenado, pela prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, a) e b), do C. Penal, na pena de seis anos de prisão.


3. No dia 7 de Março de 2022 o requerente foi ligado ao processo referido em 2., a fim de cumprir a pena de seis anos de prisão.


4. Por despacho de 6 de Março de 2024, foi ordenada a emissão de mandados de desligamento do processo referido em 2., e de ligamento ao processo comum colectivo nº 35/10.5..., referido em 1., para cumprimento da pena de quatro anos e seis meses de prisão, em que o requerente foi condenado neste último processo.


5. Os mandados de desligamento/ligamento foram cumpridos em 7 de Março de 2024, passando o requerente, a partir desta data, a estar em cumprimento de pena à ordem do referido processo comum colectivo nº 35/10.5...


6. A petição de habeas corpus apresentada pelo requerente, com o teor supra transcrito, foi distribuído neste Supremo Tribunal no dia 27 de Março de 2024.


B. A questão objecto do habeas corpus


Embora o requerente não tenha indicado expressamente o fundamento do habeas corpus que apresentou, nem referido qualquer norma legal para suporte de tal apresentação, o que sempre cumprirá apreciar é se o mesmo se encontra em situação de prisão ilegal.


C. Do direito


Com raízes no sistema judicial britânico, a providência de habeas corpus foi pela primeira vez contemplada na Constituição de 1911, mantida na Constituição de 1933, e estando também presente na actual Constituição da República Portuguesa, enquanto garantia expedita e extraordinária contra situações ilegais de privação da liberdade.


Dispõe o art. 31º da Lei Fundamental:


1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.


2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.


3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.


No desenho constitucional o habeas corpus, enquanto garantia, tutela o direito fundamental liberdade, quando gravemente afectado por situação de abuso de poder, em consequência de prisão ou detenção ilegal, e pode ser requerido pelo interessado ou por qualquer cidadão, assim se aproximando da acção popular (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 509), devendo ser decidido pelo juiz competente no prazo de oito dias.


A nível infraconstitucional o habeas corpus encontra-se regulado nos arts. 220º e 221º do C. Processo Penal, quando seja determinado por detenção ilegal, e nos arts. 222º e 223º do mesmo código, quando seja determinado por prisão ilegal.


Embora o requerente não tenha concretizado, por mera referência que fosse a norma que considerasse aplicável, a ilegalidade da situação em que entende estar, porque o mesmo se encontra recluído no Estabelecimento Prisional ..., cremos que estará em causa uma situação de prisão ilegal, subsumível à previsão da alínea b) ou da alínea c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal.


Haverá, pois, que convocar o regime do habeas corpus em virtude de prisão ilegal.


Dando exequibilidade ao regime constitucional do habeas corpus, estabelece o art. 222º do C. Processo Penal:


1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.


2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:


a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;


b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou


c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.


Os fundamentos da ilegalidade da prisão para efeitos da petição de habeas corpus são, taxativamente, os previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal.


O fundamento previsto na alínea b) é susceptível de aplicação a distintas situações, designadamente, a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistia da infração imputada, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a impossibilidade legal de submissão do mesmo a prisão preventiva.


O fundamento previsto na alínea c) abrangerá, por exemplo, os casos de excesso de prisão preventiva ou a ultrapassagem dos cinco sextos de pena superior a seis anos de prisão.


Porém, o que é sempre necessário é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário (Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 909).


Em todo o caso, deve ter-se presente que o habeas corpus se traduz num remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação da liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, processo nº 139/10.4YFLSB.S1, in www.dgsi.pt).


D. O caso concreto


Extrai-se da petição de habeas corpus apresentada pelo requerente que este entende ser ilegal a actuação dos bancos levada a cabo no âmbito do processo comum colectivo nº 2051/13.6JAPRT, por terem colocado, como diz, as contas bancárias dos titulares dos cheques a negativo – esclarecendo-se que esses titulares, como resulta do teor da certidão do acórdão condenatório proferido no identificado processo, junta aos autos, são os vários ofendidos do crime de burla qualificada, por cuja prática foi o requerente condenado –, entendimento este que o leva a peticionar, pela via da presente providência, a suspensão da prisão até decisão de juiz.


Pois bem.


Decorre dos factos provados que o requerente iniciou o cumprimento da pena de seis anos de prisão imposta no processo comum colectivo nº 2051/13.6JAPRT – cujo acórdão condenatório transitou em julgado – no dia 7 de Março de 2022, e que no dia 7 de Março de 2024 iniciou o cumprimento da pena de quatro anos e seis meses de prisão imposta no processo comum colectivo nº 35/10.5... – cujo acórdão condenatório e cujo despacho revogatório da suspensão da execução da pena, igualmente, transitaram em julgado – sendo que, em ambos os processos as respectivas condenações foram impostas pela prática de crime de burla qualificada.


Deste modo, a reclusão do requerente mostra-se respaldada em duas decisões judiciais, transitadas em julgado, pela prática de factos qualificados na lei como crime, sancionados com pena de prisão, e sem que se mostrem ultrapassados os prazos de reclusão fixados em tais decisões judiciais.


É, pois, evidente, não estarem verificados, in casu, os fundamentos previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do art. 222º do C. Processo Penal. Como, igualmente, o não está, o fundamento da alínea a) do mesmo número e artigo, dado resultarem as penas de prisão em execução de decisões judiciais.


Finalmente, cumpre dizer que a providência de habeas corpus não serve para questionar a bondade, ou falta dela, de decisões judiciais transitadas em julgado, e muito menos, para dar início a procedimentos visando a sua revisão pela via de recurso extraordinário.


Nestes termos, sendo a petição de habeas corpus, manifestamente infundada, há lugar ao sancionamento do requerente, nos termos do disposto no nº 6 do art. 223º do C. Processo Penal.


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Em conclusão:


- Encontrando-se o requerente em cumprimento de penas de prisão impostas em acórdãos condenatórios transitados em julgado e não se mostrando ultrapassados os prazos de cumprimento dessas penas, não está verificado qualquer dos fundamentos da providência de habeas corpus previstos nas alíneas do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal;


- A providência de habeas corpus não serve para sindicar decisões judiciais transitadas em julgado, nem para dar início à sua revisão pela via de recurso extraordinário;


- Sendo, in casu, manifestamente infundada a petição, há lugar ao sancionamento do peticionante, nos termos do disposto no nº 6 do art. 223º do C. Processo Penal.


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III. Decisão


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:


A) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado por AA, nos termos do disposto no art. 223.º, n.º 4, a), do C. Processo Penal, por falta de fundamento bastante.


B) Condenar o requerente nas custas do processo, fixando em três UC a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa) e ainda, nos termos do art. 223º, nº 6 do C. Processo Penal, no pagamento da sanção processual de sete UC.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).


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Lisboa, 1 de Abril de 2024


Vasques Osório (Relator)


António Latas (1º Adjunto)


Agostinho Torres (2º Adjunto)


Maria Clara Sottomayor (Presidente)