Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
891/21.1T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
FACTOS CONCLUSIVOS
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A cláusula inserta em contrato de compra e venda de títulos de biocombustíveis (TdB`s), de que “em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado (…), a adquirente pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2% sobre o valor em divida por cada dia de atraso no pagamento”, tem natureza sancionatória, visando castigar o não pagamento no prazo fixado, independentemente do direito do recebimento do preço em falta.

II. A intervenção judicial do controlo do montante da cláusula penal deve ser excepcional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter à forfait.

III. A parte que pretenda a redução da cláusula penal tem o ónus de alegar e provar os factos que revelam a respectiva “manifesta excessividade” invocada.

IV. Limitando-se a devedora a formular expressões conclusivas e/ou com natureza jurídica sem carrear qualquer facto que permita aferir da excessividade da cláusula penal, o tribunal não pode apoiar a redução em fundamentos que não foram invocados.

V. Decorridos mais de dois meses sobre o prazo limite para pagamento da prestação acordada sem que a mesma fosse efectuada, levando a Autora a denunciar o contrato e a interpelar a Ré para pagar a prestação em falta (correspondente a 482 TdB`s) e o valor respeitante à cláusula penal convencionada, tendo a Ré posteriormente “solicitado à A. que lhe permitisse ficar com os 482 TdB`s mediante o pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação” (assim conseguindo manter em vigor o contrato), o que a A. aceitou com a condição de que o pagamento que a Ré fizesse fosse “usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal” e concedendo à Ré novo prazo para pagar, condição que a Ré igualmente aceitou sem quaisquer reservas e logo no dia seguinte enviando mail à Autora com o comprovativo de transferência e ali referindo “segue nosso pagamento conforme acordado”,constitui abuso do direito (na modalidade dum «venire contra factum proprium») vir a Ré, no fito de se escusar ao pagamento do acordado no contrato e ulteriormente reafirmado, vir agora invocar a excessividade da cláusula penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível


I – RELATÓRIO

PRIO BIO, SA, instaurou contra ANCORALÍDER – COMBUSTÍVEIS E LUBRIFICANTES, LDA, acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo, a título do incumprimento dos contratos de compra e venda que referenciou, a condenação da Ré a pagar à A

a) com referência ao contrato celebrado em 30/04/2020, identificado nos artigos 4.º a 20.º desta p.i., do valor de € 236.528,16, correspondente ao valor da cláusula penal, bem como nos respetivos juros de mora, calculados sobre o referido valor, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 25/09/2020 e até integral pagamento, e que à data de 10/03/2021, ascendem ao valor de € 4.302,87 (quatro mil trezentos e dois euros e oitenta e sete cêntimos); e,

b) com referência ao contrato celebrado em 31/07/2020 e identificado nos artigos 21.º desta p.i

1. do valor de € 75.952,00 (setenta e cinco mil novecentos e cinquenta e dois euros), correspondente à diferença do valor da cláusula penal identificada no artigo 38.º da p.i. (€ 455.712,00) e o valor pago em outubro de 2020 (€ 379.760,00) referido no artigo 43.º, bem como respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 28/10/2020 e até integral pagamento, que à data de 10/03/2021 ascendem ao valor de € 1.107,03 (mil cento e sete euros e três cêntimos);

2. do valor de € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros) referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado, e melhor identificado nos artigos 25º, acrescido dos respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dividas comerciais, desde 10/11/2020 e até integral pagamento e que, à data de 10/03/2021, ascendem ao valor de € 4.994,10 (quatro mil novecentos e noventa e quatro euros e dez cêntimos)”.


*


A Ré contestou defendendo nada dever à A., mostrando-se as cláusulas penais inseridas nos contratos em causa como manifestamente abusivas, exageradas e desproporcionadas face ao equilíbrio da relação entre as partes, contendo em si uma desproporção sensível, evidente e substancial da pena relativamente ao risco/dano a ressarcir.

*


Saneado o processo e realizado o julgamento, foi proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 10.713,69 (dez mil setecentos e treze euros e sessenta e nove cêntimos) a título de cláusula penal pelo incumprimento dos contratos dos autos, e absolvo a ré dos restantes pedidos contra si formulados”.


*


A A. interpôs recurso de apelação, vindo a Relação de Coimbra em acórdão, a proferir a seguinte

DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, consequentemente, para além da condenação da Ré a pagar à A. a quantia de € 3.534,67 (três mil quinhentos e trinta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos), a título de cláusula penal devida pelo incumprimento do contrato celebrado em 30.04.2020 (já anteriormente decidida), revoga-se a decisão recorrida na parte objeto de impugnação, condenando-se também a Ré a pagar à A., pelo incumprimento do contrato de 31.07.2020, a quantia global de € 455.712 (quatrocentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e doze euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, às sucessivas taxa de juros comerciais aplicáveis, contados desde 10.11.2020.

Inconformada, a Ré (nos autos designada por ANCORALÍDER – COMBUSTÍVEIS E LUBRIFICANTES, LDA, mas agora designada PETROLIUM ENERGIAS, LDA) interpõe o presente recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes (por si assim designadas1)

CONCLUSÕES

1. A recorrente foi condenada, pelo Tribunal de 1.ª instância, no pagamento à recorrida da quantia de € 10.713,69 a título de cláusula penal pelo incumprimento dos contratos dos autos, tendo considerando que a cláusula penal prevista nos contratos era manifestamente excessiva, tendo reduzido equitativamente a cláusula penal de 2% ao dia, para 10% ao ano.

2. Inconformada com a douta decisão, veio a recorrida interpor recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, tendo a recorrente, por sua vez, sido condenada no pagamento da quantia global de €455.712,00, por entender que não existe motivos para impor uma redução equitativa da cláusula penal, conforme se irá expor mais à frente.

3. Nos termos do disposto no art.º 631.º, n.º 1 do CPC, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencida. Assim, considera-se parte vencida aquela que é objetivamente afetada pela decisão, ou seja, não obteve a decisão mais favorável aos seus interesses.

4. Assim, tendo a Recorrente sido condenada, por sentença proclamada pelo tribunal de 1ª instância, no valor de € 10.713,69, e em sede de acórdão proclamado pelo Tribunal da Relação de Coimbra no montante de € 455.712,00, a mesma ficou prejudicada em € 444.998,31, razão pela qual, salvo melhor opinião, tem legitimidade para recorrer.

5. No que concerne ao recurso em concreto, o ponto da discórdia passa pela correta interpretação do artigo 812.º do Código Civil, e da redução equitativa ou não da cláusula penal prevista nos contratos, bem como da condenação ou não dos juros moratórios.

6. A Recorrente é uma sociedade que se dedica à importação de combustíveis, pelo que, aquando da introdução do combustível no mercado nacional, necessita de entregar títulos de Biocombustíveis, junto da Entidade Nacional para o Setor Energético, EPE, relativos às importações que faz.

7. Importa desde já esclarecer que os TdB’s não se encontram disponíveis a todos os operadores económicos, uma vez que, os mesmos só se obtêm de duas formas: ou através de aquisição em leilão realizado pela Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG), em que o último se realizou em 2017 (não tendo havido qualquer outro, entretanto), ou através da produção de biocombustíveis, havendo muito poucas empresas autorizadas à produção dos mesmos.

8. Desta forma, as empresas autorizadas à produção de biocombustíveis estão numa situação privilegiada relativamente às empresas que necessitam de adquirir os TdB´s, como é o caso, da Recorrida.

9. Ora, a Recorrente viu-se confrontada com a falta de TdB’s, em virtude da notificação da ENSE, e viu-se, igualmente, confrontada com a obrigação de rapidamente apresentar(adquirir)TdB’s para os entregar na ENSE, razão pela qual celebrou dois contratos com a ora, Recorrida, da forma como o fez.

10. No caso em apreço, os contratos em causa, elaborados pela recorrida contêm cláusulas penais para o atraso no pagamento das prestações em 2,0% ao dia sobre o valor em dívida, pelo que estas cláusulas revelam-se manifestamente abusivas, ou leoninas, visto que a recorrida, tal como vem sendo referido, aproveitou-se da situação de urgência da recorrente, pois esta estava em risco de ter de pagar uma penalização de €2.000,00 por cada título em falta, à ENSE.

11. Sobre a questão da penalização de €2.000,00 por cada titulo, o Douto Acórdão refere que “...Antes de mais porque se faz apelo a um “prejuízo máximo” que não resulta dos factos provados (terá sido afirmado pelas testemunhas, mas não consta do elenco dos factos provados)...”

12. É verdade que não consta da matéria dada como provada, no entanto, tal penalização resulta do nosso ordenamento jurídico. Nos termos do artigo 24.º, N.º 1 do Decreto Lei N.º 117/2010 de 25 de Outubro, na versão dada pelo artigo 4.º do Decreto Lei N.º 152-C/2017, de 11 de Dezembro, que esteve em vigor desde 1 de Janeiro de 2018 até 21 de Janeiro de 2021 (período relevante para os presentes autos), era referido o seguinte: “1. O incumprimento das obrigações de apresentação dos TdB como comprovativo da incorporação de biocombustíveis (...) determina o pagamento de compensações no valor de (euro) 2 000, por cada TdB em falta.”

13. Assim, apesar de não constar na matéria dada como provada, o Tribunal a quo não poderia ignorar a penalização que consta da lei, pelo que, no que concerne apenas ao contrato de 31/7/2020, relativamente ao 800 TdB’s, a indemnização que a Recorrente teria que pagar em resultado da legislação à altura, era de €1.600.000,00 (€2.000,00 *800TdB’s), pelo que, era mais que justificado a utilização da expressão “prejuízo máximo”, bem como o desespero e dependência negocial da Recorrente na negociação das cláusulas contratuais.

14. A Recorrente não pode concordar com a argumentação que compara o valor devido em virtude da penalização legalmente imposta e o montante da cláusula penal, inferindo que, se esta continuar a beneficiar a Recorrente, deverá considerá-la proporcional. A Recorrente não poderá estar mais em desacordo com tal argumentação!

15. A punição constante na legislação supra indicada, era considerada tão elevada que com a entrada em vigor da nova redação dada pelo Decreto-Lei N.º 8/2021 de 20 de Janeiro, tal punição passou a ser “...por cada TdB em falta, no montante correspondente a duas vezes o valor mais elevado do TdB licitado, no conjunto dos três últimos leilões realizados pela DGEG.”

16. Ora, considerando que o valor mais elevado nos últimos três leiloes realizados pela DGEG, não ultrapassou os €599,00. Assim, por força da legislação atual, o valor da penalização é de €1.198,00 por cada TdB em incumprimento, isto é, uma redução de aproximadamente 40% sobre o anterior valor. A redução operada na legislação, manifesta claramente que o valor da penalização era altamente desproporcional, o que permitia uma posição negocial para quem possuía TdB’s (um bem altamente escasso) negociasse de uma forma altamente prepotente e autoritária, na imposição das cláusulas negociais.

17. Tal situação demonstra a desigualdade entre as partes, impondo cláusulas penais totalmente absurdas e leoninas, e que lesam a boa-fé que deveria ser transversal à negociação contratual.

18. Tal como resultou da sentença proclamada em sede de 1ª instância “(…) resulta que o não pagamento dos TdB´s à autora, ou a sua não devolução não acarreta prejuízos acrescidos ao seu preço de comercialização. (…)”, ou seja, para a recorrida os contratos não têm qualquer tipo de risco e o atraso no pagamento tão pouco causou qualquer tipo de dano de tal forma gravoso para justificar os valores reclamados.

19. A cláusula inserida nos contratos celebrados entre recorrente e recorrida, têm um fim punitivo que só será ilegítimo se houver uma chocante desproporção, entre os danos que previsivelmente o devedor causar com a sua conduta.

20. O Tribunal a quo fez uma errada aplicação do direito aos factos dados como provados pelo tribunal de 1ª instância, pois resultou demonstrado que, o atraso no pagamento das prestações, em nada acarretou qualquer prejuízo para a recorrida.

21. Na verdade, a recorrente só se atrasou no pagamento em virtude de se encontrar com dificuldades económicas, tal como resulta da matéria de facto dada como provada “A R. encontrava-se com dificuldades económicas, mas tentou sempre continuar com o negócio e cumprir com as suas obrigações.”

22. Entre o valor do pagamento das prestações e o valor da cláusula penal verifica-se uma manifesta e evidente desproporção e esta desproporção só ocorre em virtude da urgência e da necessidade na obtenção dos TdB’s que a Recorrente necessita, e nesta “negociação” a Recorrente teve que aceitar as condições que a Recorrida a seu belo prazer impôs.

23. Para além da necessidade, existe igualmente uma brutal diferença de capacidade financeira entre as duas empresas, conforme indicia o capital social de cada uma das empresas, onde a Recorrida tem um capital social de €8.700.000,00, ao invés do capital social da Recorrente se cifrar em apenas €350.000,00.

24. É certo que, nos termos do disposto no art. 810.º do Código Civil, as partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal. Sucede que, nos termos do disposto no art. 19.º, n.º 1, al. c) do Dec. Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, “são proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir”. O valor que a recorrida imputa à recorrente, é desproporcional ao valor do prejuízo sofrido, até porque, a recorrida foi ressarcida do valor resultante da compra e venda de TdB´s.

25. Nos termos do disposto no art. 811.º, nº 3 do C.C. “...o credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal...”. Em momento algum a recorrente deixou de cumprir a prestação principal, contudo, e face às dificuldades económicas, nem sempre conseguiu cumprir a prestação principal nos prazos acordados, mas cumpriu, sem prejuízo do que se dirá à frente.

26. Em suma, tendo a recorrente procedido ao pagamento integral das prestações pela aquisição de TdB´s, ainda que algumas prestações não tenham ocorrido no prazo estabelecido, a cláusula penal estabelecida revela-se desproporcional e manifestamente excessiva face ao prejuízo em que a recorrida efetivamente incorreu face à mora da recorrente.

27. Sendo a cláusula penal excessiva, o Tribunal a quo não poderia deixar de atender à natureza e condições de formação do contrato; à situação económica e social das partes; aos seus interesses patrimoniais e não patrimoniais; ao prejuízo previsível no momento da outorga do contrato e ao efetivo prejuízo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa e má fá do devedor; ao próprio carácter a forfait da cláusula; à salvaguarda do seu valor cominatório. 28.Nos termos do disposto no art.º 812.º, n.º 1 do C.C., a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente, é nula qualquer cláusula em contrário.

29. O tribunal a quo aquando da determinação do valor em que a recorrente foi condenada, não teve em atenção ao estatuído no disposto no n.º 3 do art.º 811.º do C.C., que determina que o credor não pode exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo.

30. Mais, o tribunal a quo aquando da apreciação da cláusula penal não recorreu aos critérios de equidade, e consequentemente, não fez uma correta ponderação da natureza e condições do contrato, nem dos contornos que mediaram a negociação e assinatura dos contratos (nomeadamente do contrato de 31/7/2020) e tão pouco ao prejuízo previsível sofrido pelo credor. 31.Senão vejamos, o contrato datado de 31 de Julho de 2020, tinha como prazo de pagamento o dia 4/8/2020 (€250.000,00) e no prazo de 20 dias, isto é, 20/8/2020 (€379.760,00). Assim, este contrato deveria alegadamente ter sido pago na totalidade até ao dia 20 de Agosto de 2020, sob pena da aplicação da cláusula penal de 2% ao dia, sobre o valor em divida, para além dos 20 dias.

32. Repare-se que a data limite de pagamento da 2.ª e última prestação era o dia 20 de Agosto de 2020, mas nesta data, o contrato ainda nem se encontrava assinado pela Recorrida, conforme se poderá constatar pelo texto do email de AA, em 20 de Agosto de 2020, pelas 10:36, que consta de DOC. N.º 7 da petição inicial. Em 15 de Outubro de 2020, isto é, quase 2 meses após a data limite de pagamento do contrato, a Sr.ª BB (funcionaria da Recorrente) envia um email (11:15) ao Sr. AA da Recorrida, solicitando o envio do contrato assinado (DOC. N.º 7 da petição inicial). O Sr. AA responde a 16 de Outubro de 2020 (09:51) dizendo que irá enviar naquele próprio dia (DOC. N.º 7 da petição inicial).

33. À luz do Princípio da Aquisição Processual, o teor do DOC. N.º 7, apesar de não constar especificamente na matéria dada como provada, deverá ser levado em consideração, por ser muito relevante, na análise das especificidades na negociação deste contrato, e por consequência, da aceitação ou não das cláusulas penais, que segundo a Recorrente, são claramente abusivas e ilegais.

34. Assim, constata-te que pelo menos até dia 16 de Outubro de 2020, quase 2 meses após a data limite de pagamento do contrato, a Recorrente, nem uma copia digital (assinada pela Recorrida) tinha na sua posse!

35. Acrescenta-se ainda, que ao contrário do 1.º contrato (Abril de 2020), este 2.º contrato de 31/7/2020, não foi alvo de reconhecimento de assinaturas, por parte da Recorrente, em virtude da urgência, na altura da assinatura, e por parte da Recorrida, supõem-se que a motivação terá sido a divergência da data que constava no contrato e a data efetiva do reconhecimento das assinaturas.

36. Perante tais factos, pergunta-se, é legitimo por parte da Recorrida exigir uma cláusula penal no valor de 2% ao dia, por falta de pagamento de uma prestação, quando não tem na sua posse uma cópia do contrato devidamente assinada pela Recorrida?? Não nos parece que possa ser legitimo à luz das mais elementares regras do Direito, nomeadamente da boa-fé e da equidade! 37.O valor da 2.ª prestação no contrato de 31/7/2020, que deveria ter sido paga em 20 de Agosto de 2020 (facto provado 10), apenas foi paga em 28 de Outubro de 2020 (facto provado 16), mas a Recorrente apenas recebeu o contrato assinado de uma forma digital, (e não original) no dia 16 de Outubro de 2020 (12 dias antes do efetivo pagamento).

38. Será justo e equitativo a aplicação à recorrente de uma penalização a título de cláusula penal no valor de €455.712,00 que deriva da aplicação de 2% ao dia!!??Mais uma vez, não nos parece razoável, justo, equitativo, uma cláusula penal onde a Recorrente seja condenada a pagar uma cláusula penal diária no valor de €7.595,20.

39. Por fim, no que concerne à condenação sobre os juros moratórios, para além da condenação da cláusula penal, mais uma vez, salvo o devido respeito por opinião diversa, a Recorrente entende que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação da norma, defendendo por completo a argumentação utilizada pela Sentença da 1.ª Instância, para que não sejam devidos juros moratórios por parte da Recorrida, sobre o valor que veio a ser atribuído equitativamente. 40.Perante o exposto, deverá o Tribunal ad quem julgar o recurso procedente por provado, revogando a decisão proferida pelo Tribunal a quo, mantendo-se a decisão proclamada pelo Tribunal de 1ª instância, em virtude de a cláusula penal ter sido reduzida de acordo com os critérios de equidade, como é de inteira justiça!

Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, substituindo-se o douto acórdão recorrido, por outro, com o mesmo sentido da douta sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª instância, assim se fazendo, como sempre, sã, serena e esclarecida JUSTIÇA.


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Contra-alegou a Autora /Recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir reduz-se a saber se bem andou a Relação em condenar a Ré/Recorrente, na “quantia global de €455.712” e juros de mora, “pelo incumprimento do contrato de 31.07.2020”, nos termos em que o fez.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (apurada na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

«1. A A no exercício da sua atividade dedica-se, entre outras, a produção e comercialização de biocombustíveis e a R, no exercício da sua atividade dedica-se, entre outros, à comercialização de petróleo bruto e seus derivados.

2. No âmbito das suas atividades A e R, no ano de 2020, celebraram dois contratos de compra e venda de Títulos de Biocombustíveis, mediante os quais a R comprou à A, e esta vendeu, Título de Biocombustíveis que daqui em diante apenas serão designados por TdB’s.

3. Em 30/04/2020, A e R celebraram um contrato de compra e venda de TdB’s, mediante o qual a A vendeu à R, pelo preço total de € 2.093.600,00 (dois milhões, noventa e três mil e seiscentos euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, 2.617 (dois mil seiscentos e dezassete) Tdb’s.

Nos termos do número um da cláusula terceira, o preço seria pago em três prestações, sendo a primeira, no valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), paga no dia da assinatura do contrato, a segunda, no valor de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), seria paga no prazo de 20 dias após a assinatura do contrato, ou seja até 20 de maio de 2020, e, a terceira prestação, no valor de € 1.075.128,00 (um milhão, setenta e cinco mil e cento e vinte e oito euros), seria paga no prazo de 45 dias após a assinatura do contrato, ou seja até ao 14 de Junho de 2020.

4. Autora e ré fixaram no número dois da cláusula segunda do contrato que “Em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado nas alíneas b) e c) supra, a ÂNCORALIDER pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2,0% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento para além dos 20 e dos 45 respetivamente.”.

5. Apesar das diversas interpelações feitas pela A à R, quer por contacto telefónico quer por mail, para que procedesse ao pagamento das prestações nas datas acordadas a R não pagou a terceira prestação em 14 de junho de 2020, mas apenas em 26/06/2020.

6. A A, em 25/09/2020, emitiu a competente fatura – fatura n.º ........87, no valor de € 236.528,16 (duzentos e trinta e seis mil quinhentos e vinte e oito euros e dezasseis cêntimos), que enviou à R., que a recebeu e não reclamou ou devolveu.

7. Em 31 de Julho de 2020, A e R celebraram um novo contrato de compra e venda de TdB’s, através do qual, pelo preço total 512.000,00 (quinhentos e doze mil euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, a A vendeu à R 800 (oitocentos) TdB’s.

8. Em 31/07/2020, a autora emitiu a competente fatura em nome da R, no valor total de 629.760,00 (seiscentos e vinte e nove mil setecentos e sessenta euros).

9. Os 800 (oitocentos) TdB foram entregues à R no dia da assinatura do contrato.

10. Nos termos do número um da cláusula terceira do identificado contrato, o preço deveria ser pago em duas prestações, a primeira em 04/08/2020, no valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), e a segunda no valor de € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros), deveria ser paga no prazo de 20 dias a contar da data da assinatura do contrato, ou seja até ao dia 20/08/2020.

11. A primeira prestação do pagamento do preço no valor de € 250.000,00 foi paga pela R em 04/08/2020, tendo a A emitido o competente Recibo.

12. Em 20/08/2020, a ré não pagou a segunda prestação, no valor de € 379.760,00.

13. Em 26 de outubro de 2020, como a R não havia, ainda, feito a transferência do valor correspondente à segunda prestação do pagamento do preço do contrato assinado em 31 de julho de 2020, a autora, como se verificava já um atraso superior a 60 dias desde a data de vencimento da segunda prestação, procedeu à denúncia do acordo de venda de TdB’s.

Nos termos da qual, e nos termos do número quatro da clausula terceira do contrato, interpelou também a R para proceder à entrega dos TdB’s correspondentes ao valor em falta, ou seja para proceder à devolução de 482 (quatrocentos e oitenta e dois) TdB’s.

Já que, considerando que cada TdB tinha o custo de € 640,00, mais IVA, ou seja € 787,20 (setecentos e oitenta e sete euros e vinte cêntimos), e encontrava-se em divida o valor de € 379.760,00, este valor corresponde, de forma arredondada, a 482 TdB’s.

Interpelou, também, a R para nos termos do número dois da mesma cláusula proceder ao pagamento do valor de € 455.712,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco mil setecentos e doze euros), correspondente ao valor da cláusula penal, calculada nos termos ali previstos.

14. A carta a denunciar o contrato, atrás identificada, foi enviada pela A à R não só por carta registada com aviso de receção como também por mail enviado em 27/10/2020.

15. A R, através do seu representante Sr. CC, aceitando o seu incumprimento, solicitou à A que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s e que procederia ao pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato.

16. Assim, e respondendo à proposta que lhe havia sido apresentada pelo referido Sr. CC, a A, através do seu colaborador AA, em 27/10/2020, envia um mail à R dizendo que “… aceitaremos dar mais 10 dias uteis de prazo para pagamento no pressuposto de que é feita hoje a transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€…” (doc. n.º 7, folha 3),

Tendo a R, em 28 de outubro de 2020, através da sua colaboradora DD, enviado um mail em que envia o comprovativo da transferência e dizendo “Segue nosso pagamento conforme acordado” e clarifica que os 10 dias uteis para pagamento do remanescente “… terminam a 10 Novembro.”

17. Apesar do que havia sido acordado com a A, a R inscreveu no descritivo da transferência do valor de € 379.760,00, “PRIO FT ........16”,

18. A A logo que reparou no “lapso” ocorrido, pois que havia sido acordado que o pagamento seria para pagar parte da cláus5ula penal, através do referido AA enviou 28/10/2021, um mail à R com essa mesma referência

19. A R. encontrava-se com algumas dificuldades económicas, mas tentou sempre continuar com o negócio e cumprir com as suas obrigações.

20. A R. em 23 de Dezembro de 2020, apresentou-se a um Processo Especial de revitalização, o qual corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo 2, no Processo n.º 4261/20.0..., tendo sido proferida sentença homologatória do plano em a 04-06-2021, transitada em julgado a 05-07-2021».


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Antes de mais, convém recordar que, como é sabido, o recurso constitui um meio de impugnação das decisões judiciais, através do qual se procura um reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida (art. 627.º CPC). Não é viável a colocação de novas questões no recurso, não tendo sido as mesmas objecto de qualquer menção no Tribunal a quo.

Este tem sido o entendimento dominante na jurisprudência do nosso Tribunal superior, pois que, visando os recursos modificar as decisões do Tribunal a quo e não criar decisões sobre matéria nova, não é lícito invocar nas alegações questões que não tenham sido objecto da decisão impugnada, nem pode conhecer-se neles de questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal inferior. O entendimento proposto conhece, todavia, uma excepção: amenos que se trate- é bom frisá-lo – de questões de conhecimento oficioso.

Assim, portanto, não podemos “fugir” do âmbito das questões que na apelação foram suscitadas e vieram a ser apreciadas no acórdão recorrido – relembrando-se aqui, como nesse acórdão se consignou, que, face às conclusões avançadas no recurso de apelação, “a única questão a apreciar e decidir” consistia em “saber se, relativamente ao contrato celebrado em 31.07.2020” eram “devidos à A. as quantias de

- € 75.952,00, correspondente à diferença do valor da cláusula penal identificada no artigo 38.º da petição inicial (€ 455.712,00) e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€ 379.760,00), bem como respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 28/10/2020 e até integral pagamento,

- € 379.760,00 referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado, e melhor identificado nos artigos 25º, acrescido dos respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dividas comerciais, desde 10/11/2020 e até integral pagamento.”.

Assim, insurgindo-se a aqui Recorrente sobre o decidido pela Relação sobre tal questão, é essa mesma questão que ora cumpre incidir a fim de aferir se alguma censura merece o aresto da Relação.

Com efeito, perante o que fora vertido nas alegações da apelação – as questões ali suscitadas – e considerando que Ré, aí apelada, não respondeu, sequer, a tais alegações, parece claro que é extemporâneo vir agora (e só agora) procurar, designadamente, questionar a exigibilidade do peticionado valor da cláusula penal acordada, argumentando – percute-se que só agora, em sede de revista – que tal cláusula penal é manifestamente excessiva e que nos termos do disposto no art.º 812.º, n.º 1 do C.C se impõe a sua redução, fundamentando, agora, para tal que “o Tribunal a quo não poderia deixar de atender à natureza e condições de formação do contrato; à situação económica e social das partes; aos seus interesses patrimoniais e não patrimoniais; ao prejuízo previsível no momento da outorga do contrato e ao efetivo prejuízo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa e má fá do devedor; ao próprio carácter a forfait da cláusula; à salvaguarda do seu valor cominatório.”.

O mesmo vale para a só agora invocada ausência de atempada assinatura do contrato!

Bom, compreende-se a preocupação da Ré/Recorrente.

Mas é mais que evidente que, perante o teor das alegações de recurso de apelação (em que a Autora, aí recorrente, concluía, com toda a clareza, que: i) “A cláusula penal prevista no contrato celebrado em 31/07/2023, além de livremente acordada pelos outorgantes do contrato de compra e venda, foi expressamente aceite pela ré aquando do incumprimento e resolução do contrato, e por ela cumprida ainda que de forma parcial, tal como ficou provado – facto provado n.º 15”; ii) as partes acordaram “na imputação do pagamento ocorrido em 28/10/2020 no pagamento da cláusula penal – facto provado n.º 16”, razão pela qual “advertia” a recorrente que “não podia o Tribunal a quo vir alterar essa mesma imputação em sentido contrário ao que havia sido acordado, quando tal não havia sido pedido, dizendo que naquela data a ré havia pago a segunda prestação do preço”), já se não percebe que só agora a Ré tenha “despertado” e, num inversão de posições, venha desdizer o que antes dissera, livremente assumira, está provado e fora, aliás, a razão para que a Autora (em jeito de alguma “benevolência”) acabasse por deixar “cair” a “denúncia do acordo de venda de TdB `s” que havia feito operado e por carta regista datada de 26.10.2020 e bem assim por email enviado em 27.10.2020, na sequência da qual peticionara, precisamente, e também, à Ré para, nos termos do clausulado, “proceder ao pagamento do valor de €455.712,00, correspondente ao valor da cláusula penal, calculado nos termos ali previstos”.

Insiste-se que a Autora só não avançou com o aludido terminus do contrato porque a Ré (ora recorrente), “através do seu representante Sr. CC”, comunicou que “aceitava o seu incumprimento esolicitou à A que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s e que procederia ao pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato.”, tendo a Autora, em resposta, respondido que acedia ao pedido da Ré, a qual veio, de facto, a proceder ao pagamento à Autora “conforme acordado” (facto 16).

Ora, se a Ré discordava do vertido na apelação da Autora, obviamente que se deveria ter “acautelado”. Ou seja, prevendo a hipótese de o tribunal da Relação vir a dar razão à Autora – o que acabou por acontecer, revogando a decisão da 1ª instância e precisamente no que tange ao pagamento do acordado supra referido, em sintonia com o alegado nas conclusões da apelação – , deveria ter-se “manifestado”, respondendo à alegação (e até, eventualmente, apresentando recurso subordinado a peticionar o que ora vem pedir, seja a redução da cláusula penal para a hipótese de se considerar que a mesma tem cabimento legal).

Mas nada: a Autora escudou-se no silêncio, preocupando-se apenas em que a Autora não pusesse fim (antecipado) ao contrato, assumindo, para tal, de forma expressa e peremptória o pagamento do peticionado pela Autora, para agora, numa inversão de 360 graus vir questionar o acordo firmado, numa postura que se nos afigura mesmo abusiva.


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Portanto, em causa está (apenas) o contrato de 31.07.2020, no que tange ao seu (alegado) incumprimento e respectivas consequências, face ao seu clausulado – mais precisamente, o não pagamento atempado da segunda prestação do preço acordado (em dívida à data da demanda – daí ser (também) peticionada pela Autora) e a cláusula penal, para tal, convencionada).

Fundamentou assim o acórdão recorrido:

«Nos termos acordados entre as partes, o preço respeitante a esse contrato, o preço (€ 512.000, acrescido de IVA) devia ser pago em 2 prestações: € 250.000 até 04.08.2020 e € 379.760 no prazo de 20 dias a contar da data da assinatura do contrato, ou seja até ao dia 20/08/2020.

Ficou estabelecido nesse contrato que “em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado (…), a ÂNCORALIDER pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2,0% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento” (cfr. cláusulas 3.ª, n.º 2).

A segunda prestação, que, recorde-se, devia ter sido paga até 20.08.2020, não o foi, o que motivou a A. a, por comunicação de 26.10.2020, “denunciar” o contrato.

Denuncia essa com apoio na cláusula 3.ª, n.º 4 e que prevê “após o decurso de 60 dias após o término do prazo de pagamento, sem que o valor total se encontre pago, o incumprimento da ÂNCORALIDER confere ainda à PRIO o direito de denunciar unilateralmente o contrato e reaver os TdB´s correspondentes ao valor em dívida”.

A A. arrogava-se então de ser credora dos montantes de € 379.760 (correspondente à prestação em falta) e de € 455.712 (valor da cláusula penal), tendo ainda interpelado a Ré para restituir 482 TdB´s [preço em falta (€ 379.760) a dividir pelo valor de cada TdB (787,20, IVA incluído)].

A este posicionamento da A. respondeu a Ré solicitando à A. que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s mediante o pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato2.

Ou seja, a Ré aceitou de forma inequívoca pagar os valores reclamados pela A. (€ 835.472,60 - preço e cláusula penal), desde que mantivesse os 482 TdB´s.

A A. aceitou essa contraproposta, na condição de, no próprio dia, ser efetuada pela Ré a “transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€”3.

A A. cumpriu essa condição transferindo para a Ré o aludido montante de € 379.760, vinculando-se ainda a efetuar o pagamento do remanescente no prazo de 10 dias que “ terminam a 10 Novembro”.

Ou seja, a ser válida e não passível de alteração a cláusula penal, na estrita observância da vontade das partes, assiste à A. o direito ao recebimento dos montantes de:

- € 75.952, correspondente à diferença do valor da cláusula penal (€ 455.712,00) e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€ 379.760,00),

- € 379.760 referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado.».

Não vemos como censurar a decisão da Relação: a cláusula penal em causa foi assumida e aceite pela Ré de forma clara, assumindo, inequivocamente – e, repete-se sem questionar, objectar ou contrapropor o que quer que fosse – , quer o seu valor, quer a obrigação do seu ressarcimento à Autora.

Não pode, de facto, descurar-se que a questão do pagamento da segunda prestação – que deveria ter sido paga até 20.08.2020, mas não foi, donde estar com mais de dois meses de atraso – foi alvo de reacção da Autora, que, como lhe era permitido, desencadeou a denúncia do contrato. E, como acima ficou dito, se a Autora, após decorridos mais de dois meses de incumproimneto, “recuou” e deu nova chance à Ré, “suspendendo” os efeitos da desencadeada “denúncia”, foi porque a Ré lho pediu, solicitando à A. que lhe permitisse ficar com os 482 TdB`s mediante o pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação.

Ora, se assim é – como foi, de facto (cfr. factos provados) – insiste-se que se não percebe bem por que razão só depois de ter reassumido, quer o pagamento da cláusula penal, quer da dívida (primeiro aquando da outorga do contrato e posteriormente com aquela solicitação à Autora, na sequência da desencadeada “denúncia” contratual), vem tentar dar sem efeito o que (reiteradamente) assumiu cumprir.

Não é demais relembrar os factos provados:

» (…)

7. Em 31 de Julho de 2020, A e R celebraram um novo contrato de compra e venda de TdB’s, através do qual, pelo preço total 512.000,00 (quinhentos e doze mil euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, a A vendeu à R 800 (oitocentos) TdB’s,

10. Nos termos do número um da cláusula terceira do identificado contrato, o preço deveria ser pago em duas prestações, a primeira em 04/08/2020, no valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), e a segunda no valor de € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros), deveria ser paga no prazo de 20 dias a contar da data da assinatura do contrato, ou seja até ao dia 20/08/2020.

12. Em 20/08/2020, a ré não pagou a segunda prestação, no valor de € 379.760,00.

13. Em 26 de outubro de 2020, como a R não havia, ainda, feito a transferência do valor correspondente à segunda prestação do pagamento do preço do contrato assinado em 31 de julho de 2020, a autora, como se verificava já um atraso superior a 60 dias desde a data de vencimento da segunda prestação, procedeu à denúncia do acordo de venda de TdB’s.

Nos termos da qual, e nos termos do número quatro da clausula terceira do contrato, interpelou também a R para proceder à entrega dos TdB’s correspondentes ao valor em falta, ou seja para proceder à devolução de 482 (quatrocentos e oitenta e dois) TdB’s,

Já que, considerando que cada TdB tinha o custo de € 640,00, mais IVA, ou seja € 787,20 (setecentose oitenta e sete euros e vinte cêntimos), e encontrava-se em divida o valor de € 379.760,00, este valor corresponde, de forma arredondada, a 482 TdB’s.

Interpelou, também, a R para nos termos do número dois da mesma cláusula proceder ao pagamento do valor de € 455.712,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco mil setecentos e doze euros), correspondente ao valor da cláusula penal, calculada nos termos ali previstos,

14. A carta a denunciar o contrato, atrás identificada, foi enviada pela A à R não só por carta registada com aviso de receção como também por mail enviado em 27/10/2020.

15. A R, através do seu representante Sr. CC, aceitando o seu incumprimento, solicitou à A que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s e que procederia ao pagamento da cláusula penal e da prestação do contrato, 16. Assim, e respondendo à proposta que lhe havia sido apresentada pelo referido Sr. CC, a A, através do seu colaborador AA, em 27/10/2020, envia um mail à R dizendo que “… aceitaremos dar mais 10 dias uteis de prazo para pagamento no pressuposto de que é feita hoje a transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€…” (doc. n.º 7, folha 3),

Tendo a R, em 28 de outubro de 2020, através da sua colaboradora DD, enviado um mail em que envia o comprovativo da transferência e dizendo “Segue nosso pagamento conforme acordado” e clarifica que os 10 dias uteis para pagamento do remanescente “… terminam a 10 Novembro.” – destaque nosso)

Assim se vê, de forma apodíctica, que a ré, ora Recorrente, aceitou expressamente o seu incumprimento e aceitou expressamente e sem qualquer reparo que pagaria a cláusula penal à recorrida – cfr. os mails trocados entre as partes em 27/10/2020 e que fazem parte do documento n.º 7 da petição inicial, e principalmente o mail de 28/10/2020 (folha 1 do documento 7 da p.i.), no qual a ré, aqui recorrente, referindo-se à transferência de 379.760,00 que havia feito nessa mesma data afirma Tem toda a razão esse valor será para alocar à clausula penal.”!


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Face a esta factualidade, cremos que razão assiste à Recorrida quando observa até se afigurar que a discussão da validade da cláusula penal constante do contrato de 31/07/2020, não era, e não é passível de alteração, uma vez que a ré, aqui recorrente, aquando da verificação do seu incumprimento contratual, não só reiterou a sua expressa aceitação da cláusula penal como, e principalmente, cumpriu-a pagando parcialmente o seu valor, pelo que vir depois discutir a validade da mesma seria um «venire contra factum proprium» traduzindo-se num claro abuso de direito.

Em reforço da censura a fazer à Ré, atente-se que entre a data em que o contrato de compra e venda de TdB foi celebrado (31/07/2020) e a data em que a cláusula penal foi accionada e, pela ré, parcialmente cumprida, já haviam decorridos quase três meses. Ou seja a ré desde o momento em que entrou em incumprimento sabia perfeitamente que a qualquer momento lhe podia ser exigido o pagamento da cláusula penal e que esta era contabilizada ao dia, mas mesmo assim, conformando-se com essa sanção contratual compulsória, a ré manteve a sua situação de incumprimento, vindo no fim (como vimos, após solicitação que expressamente endereçara à Autora) a aceitar, de forma expressa, clara e consciente, o pagamento não só da segunda prestação do preço como também da própria cláusula penal.


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DA CLÁUSULA PENAL E DA SUA REDUÇÃO

Sem embargo do exposto supra – e que já bastaria para a improcedência do recurso – , a propósito da cláusula penal em causa – mais precisamente, da pretendida redução da mesma com que só agora, em sede de revista, se vem lembrar a Ré – , acrescente-se o seguinte:

O incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação - mormente do contrato - constitui o inadimplente na obrigação de indemnizar nos termos aplicáveis à responsabilidade contratual, sendo a medida da indemnização determinada, ou pela restauração natural, sendo possível, ou pela indemnização em dinheiro sendo aplicáveis as normas dos arts. 798º, 562º, 564º e 566º do CC.

Quando assim é, compete ao credor a prova da dimensão dos danos para que o tribunal determine o quantum indemnizatório.

Todavia, as partes no contexto da responsabilidade contratual, podem, desde logo, acordar o montante da indemnização exigível em caso de incumprimento puro e simples, ou em caso de mora - estamos, então, diante da denominada “Cláusula penal” (arts. 810º a 812º do CC).

Extrai-se do artigo 810.° do CC, titulado «Cláusula penal», que as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível em caso de incumprimento contratual - é o que se chama cláusula penal.

E retira-se do artigo 811.°, n.° 1 («Funcionamento da cláusula penal»), que:

«1. O credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação; é nula qualquer estipulação em contrário.

2. O estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes.

3. O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal».

A doutrina vem definindo a cláusula penal como sendo a estipulação mediante a qual as partes (qualquer delas ou apenas uma) convencionam ou fixam antecipadamente, antes de ocorrer o facto constitutivo da responsabilidade, uma determinada prestação, normalmente uma quantia em dinheiro, que o devedor deverá satisfazer ao credor, na eventualidade do incumprimento das obrigações assumidas como sejam os casos de não cumprimento, cumprimento defeituoso ou não cumprimento perfeito (mora)4.

A cláusula penal é empregue com muita frequência, sendo extremamente útil dado que dispensa o credor da prova da existência de prejuízos ou do seu montante e, em consequência, também da existência de um nexo causal entre o facto ilícito e os danos causados5.

Como referido, a cláusula que prevê sanções pelo atraso no pagamento de quantia acordada é uma cláusula penal. E o cumprimento da cláusula penal não pode ser outra coisa senão o seu exercício, i.e., a indemnização a pedir deve ser o valor convencionado na cláusula penal e não ter outro fundamento, designadamente o exercício das regras gerais indemnizatórias.

Por outro lado, anote-se que a cláusula penal não é de funcionamento automático, só podendo funcionar havendo culpa do devedor6 Se o incumprimento do devedor não for culposo, o accionamento da cláusula penal é ilegítimo mesmo que o credor não tenha culpa pela situação financeira adversa que enfrenta o devedor. Não é a culpa do credor que releva, mas a culpa do devedor.


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Perante a factualidade provada, não restam dúvidas de que houve culpa efectiva da Ré no incumprimento do acordo prestacional (cfr. factos provados sob os nºs 7 a 15 – no que tange ao contrato celebrado em 31.07.2020, único aqui em discussão, bastando atentar que na data acordada “a ré não pagou a segunda prestação, no valor de €379.760,00”, ut facto 12, tendo, por isso, a Autora desencadeado os “mecanismos” contratualmente firmados).

Não resta, portanto, senão dar-se seguimento ao que as partes, livremente (ao abrigo do princípio da autonomia privada e liberdade contratual ínsito no artº 405º do CC), acordaram, ou seja, que, em caso de falta de pagamento pontual de qualquer uma das prestações a Autora ficava obrigada a pagar à exequente a cláusula penal ali plasmada.

Assim, portanto, tinha a Autora direito a accionar a cláusula penal acordada no número dois da cláusula segunda do contrato.


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Como é sabido a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando (e apenas quando) for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente (art. 812.º/1 CCiv.). Como refere CALVÃO DA SILVA7, "a intervenção judicial do controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excepcional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter à forfait. Daí que, por toda a parte, apenas se reconheça ao Juiz o poder moderador, de acordo com a equidade, quando a cláusula penal for extraordinária ou manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente".

E acrescenta o mesmo Autor:

"A decisiva condição legal da intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva — não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano —, de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra de excesso extraordinário, enorme, que salte aos olhos. Tem de ser, portanto, uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si"8.

Remata o mesmo Autor: "Do que fica dito, é claro que o Juiz tem o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir a cláusula penal manifestamente excessiva, e que só tem o poder de reduzir a cláusula penal manifestamente excessiva e não já a cláusula excessiva. Uma cláusula penal de montante superior (mesmo excessivo) ao dano efectivo não é proibida por lei, não tendo o Juiz poder para a reduzir. Do mesmo modo, a ausência de dano, por si só, não legitima a intervenção judicial"9.

Percutindo, o tribunal deverá usar da faculdade de redução da cláusula penal, que lhe é conferida pelo citado art. 812.º/1 CCiv., quando houver elementos (ou seja, factos provados) que, segundo um critério de equidade e de justiça, apontem para um manifesto excesso da cláusula penal10.

Estamos, afinal, a trazer à colação, sendo aqui aplicável, o instituto do abuso de direito consagrado no artº 334º do CC. Assim, por via do recurso a este mecanismo ou “válvula de escape”, se conseguirá a redução de cláusulas penais, sempre que se constate que as mesmas se revelam manifestamente excessivas ou desproporcionadas ao fim que visam prosseguir e ao conteúdo do direito que se propõem realizar11.

Com efeito, nada impede que a cláusula penal convencionada, à semelhança do que ocorre com qualquer outra inserida num contrato, seja sujeita ao controlo que é exercido, nos termos gerais, pelas regras que limitam a liberdade das partes, nomeadamente seja submetida ao crivo de princípios de alcance geral, como são a boa-fé ou o abuso de direito. A expressa consagração legislativa de um poder especial de controlo (art. 812.º do CC) não afasta o recurso a medidas de alcance geral, igualmente destinadas a controlar as manifestações de autonomia privada (art. 334.º CC). A válvula de escape que o sistema consagrou para a específica situação que integra a previsão do artigo 812.º acresce às regras gerais de controlo da autonomia da vontade, não as substituindo, designadamente ao regime do abuso de direito, se os respetivos pressupostos estiverem preenchidos12.


*


Ora, sem embargo do que supra ficou dito a propósito da intempestiva e, a nosso ver – pelo que se referiu e ficou provado – até abusiva invocação da pretensão de redução da cláusula penal (pois, reitera-se que foi a Ré quem, após a Autora lhe ter comunicado o terminus do contrato aqui em causa (de 31.07.2020) – por ausência de pagamento da ré apesar de já se verificar um atraso superior a sessenta dias desde a data do vencimento da segunda prestação (facto 13) e lhe solicitar a entrega dos 482 TdB`s em falta e, outrossim, o pagamento do valor da cláusula penal calculada nos termos contratuais – veio solicitar/pedir à Autora que reconsiderasse, questão que, pelo que se disse, se nos afigura como uma questão nova (extravasando do âmbito da apelação e só suscitada em sede de revista suscitada) que não se nos afigura de conhecimento oficioso do Tribunal), a pretensão de redução de tal cláusula nunca teria provimento, pelo que vem fundamentado/justificado neste excerto do acórdão recorrido, com que se concorda:

«… o tribunal recorrido, invocando o disposto no art. 812.º, n.º 1 do Código Civil, procedeu à sua redução, por a considerar manifestamente excessiva (no seguimento do pedido efetuado pela Ré na contestação - art. 35.º dessa peça processual).

Fê-lo, com dois argumentos:

- o não pagamento dos TdB´s à autora, ou a sua não devolução não acarreta prejuízos acrescidos ao seu preço de comercialização. Ou seja, os TdB´s não desvalorizam ou se evaporam…

- o prejuízo máximo para a ré era a da multa pela entidade reguladora (e que as testemunhas reputaram em 2000 por TdB em falta).

Salvaguardado o devido respeito, estes argumentos, sendo os únicos que este tribunal pode sindicar, não se apresentam convincentes.

Antes de mais porque se faz apelo a um “prejuízo máximo” que não resulta dos factos provados (terá sido afirmado pelas testemunhas, mas não consta do elenco dos factos provados).

Ainda que assim não fosse, o dano de € 2.000 por TdB implicaria, relativamente ao contrato sob apreciação, o montante de € 964.000 (482x2000), muito superior ao valor ao reclamado na cláusula penal acionada.

Por outro lado, olvidou-se que o incumprimento não se situa quanto aos TdB´s (sua desvalorização ou desaparecimento), mas quanto ao pagamento do preço acordado para a sua venda, a envolver montantes tão significativos, cuja falta de pagamento tempestivo pode colocar em crise a situação de caixa ou financeira de qualquer empresa (o que eventualmente justificará a dimensão da penalização).

Finalmente, é entendimento maioritário13 que a parte que pretenda a redução da cláusula penal terá de efetuar a alegação e prova dos factos que revelem a sua excessividade manifesta (v.g. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, págs. 735 a 737, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., pág. 81, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 275, e na jurisprudência os acórdãos do STJ de 12.09.2013, de 18.01.2018, e de 19.06.2018; da Relação de Guimarães de 04.06.2020 e da Relação do Porto de 3.03.2016, de 5.05.2016, de 26.10.2017 e de 23-01-2020, todos disponíveis in www.dgsi.pt.).

Ora, a este propósito, a Ré limitou-se a formular expressões conclusivas e/ou com natureza jurídica (cfr. arts. Arts. 35 a 41.º e 56.º da contestação), sem carrear qualquer facto que permita concluir no sentido proposto, o que sempre impediria o tribunal de apoiar a decisão nos argumentos que serviram de suporte à redução operada.

Do exposto se deve concluir no sentido da procedência do recurso nesta parte, com a revogação da decisão no segmento em que procedeu à redução da cláusula penal relativa ao incumprimento do contrato de 31.07.2020.».

Ou seja: à falta de prova da pertinente e necessária factualidade – que, note-se, a ré/recorrente não havia, sequer, concretamente alegado – que pudesse sustentar ou justificar a redução da cláusula penal, não vemos censura a fazer ao acórdão recorrido ao ter concluído que a cláusula penal era devida, decidindo, a final, que a ré/recorrente, a este título, teria de pagar à autora, ora recorrida, o valor de € 75.952,00 (setenta e cinco mil novecentos e cinquenta e dois euros), correspondente à diferença do valor da cláusula penal (€ 455.712,00)e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€379.760,00).

Assim, também por esta via a revista não pode ter provimento.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação de Coimbra.

Custas da revista a cargo da Recorrente.

Lisboa, 4 de Abril de 2024

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Catarina Serra (Juíza Conselheira 1º adjunto) - com a declaração de voto que segue.

Afonso Henriques (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)


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Declaração de voto

Concordo com a decisão. O comportamento da Ré configura um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Embora concorde com a decisão, há alguns passos da fundamentação que não acompanho plenamente pelas razões que se seguem.

O Direito privado português dá ao ónus da prova uma feição essencialmente objectivista: “a cada uma das partes aproveita todo o material de instrução recolhido no processo, independentemente da consideração da pessoa que para o processo o carreou" [cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. III – Artigos 487.º a 549.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (4.ª ed.) (reimpressão), p. 272].

Entendo que, em concreto, os factos dados como provados eram suficientes para que se concluísse que a pena era excessiva. A pena de 2% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento corresponde a uma pena anual de 730% (considerando exorbitante uma pena anual de 1% ao ano, cfr., paradigmaticamente, o Acórdão do STJ de 3 de Novembro de 1983, in: Boletim do Ministério da Justiça, 1983, n.º 331, e Revista da Ordem dos Advogados, 1985, ano 45.º, pp. 113-127).

Sendo, em concreto, os factos dados como provados suficientes para que se concluísse que a pena era excessiva, o artigo 812.º do CC deveria aplicar-se desde que o devedor deduzisse um pedido de redução. Ora o pedido de redução pode ser deduzido de forma directa ou indirecta (por exemplo, contestando o seu valor) [cfr. designadamente, na doutrina, António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 734 e 736 s., e, na jurisprudência o Acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2019 (Proc. 9018/16.0T8LSB.L1.S2), de que fui relatora].

O facto de a devedora contestar o valor da pena, ainda que através de expressões conclusivas, seria suficiente, a meu ver, para que considerasse que deduziu um pedido indirecto de redução da pena convencional. Em consequência, se o comportamento da Ré não configurasse um abuso do direito, creio que estariam preenchidos os pressupostos da redução.

Catarina Serra

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1. Com efeito, de conclusões nada têm, pois mais não são do que uma quase réplica do corpo alegatório, em desconformidade com o estatuído no artº 639º, nº1, do CPC – apenas se não convida à apresentação de “verdadeiras” conclusões para não se perder mais tempo na apreciação do mérito da causa, dado que pelo teor de tais “Conclusões” se percebe a questão ou questões a apreciar.

2. - Cfr. facto 15 “A R, através do seu representante Sr. CC, aceitando o seu incumprimento, solicitou à A que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s e que procederia ao pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato”.

3. - Cfr. facto provado 16 - “Assim, e respondendo à proposta que lhe havia sido apresentada pelo referido Sr. CC, a A, através do seu colaborador AA, em 27/10/2020, envia um mail à R dizendo que “… aceitaremos dar mais 10 dias uteis de prazo para pagamento no pressuposto de que é feita hoje a transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€…” e “só com a confirmação de que transferiram hoje com a confirmação de receção do valor nas nossas contas amanhã é que daremos por suspenso o envio da nota de denúncia do contrato e respetiva devolução de TdB`s à ENSE (doc. n.º 7, folha 3).

4. Cfr. PINTO MONTEIRO, «Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil», pág. 136, e «Sobre a Cláusula Penal», Scientia Iuridica, T. XVII, 1993, n°s. 244/246, pág. 231; VAZ SERRA, «Pena Convencional», BMJ n.° 67, pág. 185; ALMEIDA COSTA, «Direito das Obrigações», pág. 658; e MENEZES CORDEIRO, «Direito das Obrigações», pág. 426.

5. Neste sentido, JOSÉ MARQUES ESTACA, «A Cláusula Penal e a Responsabilidade Civil», in "Estudos em Homenagem do Professor Doutor INOCÊNCIO GALVÃO TELLES ", Volume IV, 2003, pág. 300.

6. Cfr., v.g., Acórdão do TRG de 07/12/2005, proc. n.º 2024/05-2, disponível em www.dgsi.pt.

7. Cit. "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória", 1987, p. 273.

8. Ob. cit., p. 274.

9. Ob. cit., p. 276. Cfr., ainda, o Ac. da Rel. de Lisb. De 20.05.96, CJ 1996, III, 203 – os destaques são nossos.

10. Ac. S.T.J. de 7‑11‑89, Bol. 391‑565.

  Na apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal, o juiz não poderá deixar de atender: à natureza e condições de formação do contrato; à situação económica e social das partes; aos seus interesses patrimoniais e não patrimoniais; ao prejuízo previsível no momento da outorga do contrato e ao efectivo prejuízo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má fé do devedor; ao próprio carácter à forfait da cláusula; à salvaguarda do seu valor cominatório.

11. Vide Acórdão STJ de 09/10/2003, proc. n.º 03B2503, e Acórdão TRC de 20/06/2017, proc. 95/05.0TBCTB-H.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt: na doutrina, cfr. NUNO OLIVEIRA, Cláusulas Acessórias ao Contrato, 2.ª ed., págs. 160/163.

12. Ver o Acórdão TRC de 03/11/2015, proc. n.º 92/14,5TVLSB.C1, disponível em www.dgsi.pt.

13. - Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, pág. 1175.