Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2634/17.5T9LSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
INADMISSIBILIDADE LEGAL
REJEIÇÃO PARCIAL
AMNISTIA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :

I – Nos termos das disposições conjugadas nos artigos 400º, n.ºs 1, als. e) e f), e 432º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, não é admissível recurso para o STJ da decisão do tribunal da relação que confirme, ainda que in mellius e mesmo in pejus, no caso daquela al. e), a decisão condenatória do tribunal de primeira instância quanto às penas concretamente aplicadas não superiores a 5 nem a 8 anos de prisão, devendo, se tiver sido interposto e admitido, ser rejeitado nessa parte.


II – Essa irrecorribilidade decorrente da designada “dupla conforme” abrange a medida das penas e quaisquer outras questões de natureza jurídica às mesmas direta e exclusivamente atinentes que no caso se pudessem colocar quanto à violação dos princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da presunção da inocência, dos vícios e nulidade do acórdão e do reenvio do processo à 1ª instância para novo julgamento.


III - E, após a entrada em vigor da atual redação dos artigos 432º e 434º do CPP, introduzida pela Lei n.º 94/21, de 21.12, os recursos interpostos para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º”, previstos na al. b) do n.º 1 daquele primeiro preceito, não podem ter como fundamento os vícios e nulidades referidas no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma legal.


IV - Nesses casos, ainda que tenha sido admitido pelo tribunal da relação sem qualquer restrição, decisão que não vincula o tribunal ad quem, o recurso tem de ser rejeitado parcialmente, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com as dos artigos 414º, n.ºs 2 e 3, e 420º, n.º 1, al. b), também do CPP, sem prejuízo, naturalmente, do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultarem evidentes.


V O artigo 474º, n.º 2, do CPP, só impõe o conhecimento e aplicação pelos tribunais de recurso da amnistia e outras medidas de clemência decretadas, quando o processo neles se encontre, se os arguidos estiverem presos à sua ordem e de tal aplicação resultar um evidente e imediato benefício para os mesmos, “cabendo essa competência ao tribunal da condenação de 1ª instância nos outros casos (não urgentes), sob pena de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º, n.º 2, e 13º da CRP”, na medida em que, de outra forma, ficaria prejudicado o direito ao recurso da correspondente decisão pelo arguido e pelo Ministério Público, entendimento que, de resto, a Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, consagrou expressamente, no seu artigo 14º.


VI - A pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis>) meses de prisão em que o arguido foi condenado, numa moldura penal abstrata de 7 (sete) a 17 (dezassete) anos de prisão [resultante das penas parcelares de 7 (sete) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do DL n.º 15/93, de 22.01, e de 1 (um) ano de prisão por cada um dos 10 (dez) crimes de condução sem habilitação legal, p, e p, pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3.05] deve sofrer um ajustamento, fixando-a em 8 (oito) anos, por se mostrar mais justa, proporcional e bastante para acautelar as finalidades de prevenção geral e especial que neste caso se fazem sentir, em linha, de resto, com a habitual bitola do STJ para situações semelhantes.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2634/17.5T9LSB.L1.S1.


(Recurso Penal)


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


*


I. Relatório


1. Por acórdão de 13.04.2023, do Juízo Central Criminal de ... (J.....) – J ., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi, entre outros, o arguido AA, nascido a ... de ... de 1995, com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve na parte que ora releva:


«III - DECISÃO


Pelo exposto, decide o Tribunal Colectivo:


I.


(…)


h) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma consumada, p.p. nos arts.21.º, n.1 do Decreto-lei n.15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma, na pena de sete anos de prisão;


i) Condenar o arguido AA, pela prática de dez crimes de condução ilegal, na forma consumada, p.p. no artº.3º. nºs.1 e 2 do Decreto-lei 2/98 de 3 de Maio, na pena de um ano de prisão por cada um deles;


j) Em cúmulo, aplicar ao arguido AA a pena única de nove anos e seis meses de prisão, pela prática dos referidos crimes;


(…)».


2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 14.06.2023, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que, por acórdão de 14.11.2023, o julgou totalmente improcedente, nos termos do seguinte dispositivo, que igualmente se transcreve:


«III – Decisão:


Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em:


1 - Julgar o recurso interposto pela arguida BB parcialmente procedente e em consequência:


(…)


2 - Julgam os recursos interpostos pelos arguidos (…) AA (…) totalmente improcedentes.


3 - No mais, mantém-se o decidido no acórdão recorrido, sem prejuízo da ponderação do perdão emergente da Lei 38-A/2023, de 2/8.».


3. Ainda inconformado, interpôs o arguido AA, em 13.12.2023, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):


« IV – Das Conclusões


1. O presente recurso tem como objeto o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, decidiu confirmar a pena aplicada pelo Tribunal de 1.ª Instância.


2. A verdade e salvaguardado o devido respeito, o ora recorrente com tão severa condenação não se pode de maneira alguma conformar.


3. Consabidamente, os recursos são configurados como remédios jurídicos e não como meios de perfeccionismo jurisprudencial.


4. Neste particular, dispõe o art.º 127 º do CPP que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.


5. «O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiencia comum, da lógica, regras de natureza cientifica que se devem incluir no âmbito do direito probatório», (Cavaleiro Ferreira, in “ Curso de Processo Penal”, 1986, 1º Vol; pág. 211).


6. Tendo presente que, na formação da convicção do juiz não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, outrossim, elementos intraduzíveis e subtis, tais como mímica e todo o aspecto exterior do depoente e mesmo as próprias reacções quase imperceptíveis do auditório, que vão agitando o espírito de quem julga.


7. O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiencia, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.


8. Ao juiz que há-de julgar segundo a livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar.” ( cfr. O Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Vol. IV, pg.566).


9. Daqui decorre que o conhecimento de factum do tribunal de 2ª instancia é necessariamente, limitado. E isto a partida, impõe que a matéria de facto só possa 1


10. Ora, o douto Tribunal a quo, na sua motivação, formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal.


11. Assim e salvo melhor opinião, estamos, pois, perante um erro notório na apreciação da prova, conforme previsto no Artigo 410º, nº2, alínea c), do CPP.


12. Uma ponderação correcta, obrigava a uma decisão diferente daquela que foi tomada.


13. Entende, assim, o ora Recorrente, terem existido erros notórios na apreciação da prova, conforme previsto no Artigo 410º, nº2, alínea c), do CPP, impunham ao julgador, mormente em primeira instância, que cumpre formar a sua convicção na legalidade e objetividade da prova produzida, devidamente conjugada entre si e ligada por um fio condutor lógico, que decorre das regras da experiência comum, uma decisão diferente.


14. E, assim sendo como cremos dever ser, face à manifesta e notória contradição entre a fundamentação de facto e a decisão tomada pelo tribunal a quo, deveria ter sido o ora Recorrente absolvido dos crimes de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº1 do Decreto-lei 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela IA, I-C e II-A anexa ao mesmo diploma legal.


15. Por outro e sem prescindir, dir-se-á.


16. com a entrada em vigor da Lei 38-A/2023, a qual entro em vigor no dia 1 de Setembro do corrente ano, prevê a amnistia/perdão de penas , quanto às sansões penais relativas a ilícitos praticados até 19 de Junho de 2023, por indivíduos cuja idade não seja superior a 30 anos, àquela data.


17. Considerando que o tipo legal do crime de condução sem habilitação legal não se encontra excluído do âmbito daquela lei…sendo pois suscetível de integrar as situações abrangidas pela Lei em apreço…somos em crer que tal Lei deverá ser aplicada ao Recorrente, com todos os efeitos legais daí decorrentes.


18. Sendo certo que, o douto Tribunal a quo, deveria na sua douta decisão ter em atenção a aplicação da Lei, a qual, é sempre de conhecimento oficioso.


19. Não só pelos fundamentos ora invocados, mas também e, consequentemente, em obediência ao princípio in dubio pro reo, princípio basilar do direito, mormente, do processo penal, que decorre da presunção constitucional de inocência.


20. Do Acórdão Recorrido retira-se uma manifesta e brutal insuficiência da Prova para a Decisão a que o Tribunal a quo logrou chegar quanto à prática destes Ilícitos, o que faz com que esta não assente sequer nos factos provados.


21. E seja antes - e com todo o respeito que é devido ao Tribunal a quo nomeadamente ao Colectivo que o compõe - consequência de uma construção lógico-dedutiva totalmente desfasada da realidade e contrária à factualidade, verdadeiramente, apurada.


22. Deste modo, o Tribunal a quo decidiu tendo por base factos que para além de não provados, alguns deles nem sequer foram alegados, o que, por si só, prejudica o próprio silogismo judiciário.


23. O que, para além disso, faz com que seja patente a Insuficiência para a decisão da matéria Em consequência, e de forma inegável, está-se perante uma manifesta violação do Principio do In Dubio Pro Reo que, como refere a mencionada Autora, na esteira do qual o Juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afectada pela dúvida”, pelo que “quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório”.


24. Na verdade, o Tribunal a quo ao prolatar o Acórdão Recorrido, nos termos em que o fez, agrediu duplamente o Principio do In Dubio Pro Reo, porquanto, refere-o a mesma Autora, a boa Doutrina e melhor Jurisprudência que “O universo fáctico – de acordo com o pro reo – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige certeza.”


25. Ao não fazê-lo, o Tribunal a quo violou, também, o N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.


26. A inexistência de prova para suporte da resposta a estas, primordiais, questões implica, necessariamente, que, sem necessidade de se hastear muito alto os estandartes da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo, as mesmas fiquem por responder e se tenham de considerar as factualidades aí vertidas como não praticadas pelo Recorrente.


27. Por conseguinte, a condenação do Recorrente na forma e pelos crime em que foi condenado, viola o Principio da Presunção da Inocência - acolhido no N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, N.º 2 do Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e N.º 1 do Artigo 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - e o Principio do In Dubio Pro Reo, motivo pelo qual devem V/Ex.ªs declarar Nulo o Acórdão Recorrido e reenviarem o Processo para novo Julgamento.


28. Ainda que a Prova produzida em julgamento, pelas razões já aduzidas, não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim – por mera cautela de patrocínio de quem já viu demasiados inocentes injustamente condenados em penas privativas da liberdade - pronunciamo-nos por uma Pena mais reduzida a aplicar ao Recorrente.


29. Mais se dirá que, a fixação concreta da Pena é tarefa compósita, de pura aplicação do Direito, confluindo nela as notas de discricionariedade e de vinculação, nos mesmos termos que sucede com qualquer operação comum de aplicação do Direito, na qual relevam Regras de Direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações (Cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas da Pena,Prof. Figueiredo Dias, pág. 251).


30. O Direito não é matemática nem ciência exacta, é certo, porém a Justiça impõe e a Sociedade reclama que casos idênticos, senão iguais, sejam censurados em sede de Culpa e Medida da Pena em quantuns senão iguais pelo menos aproximados. O que bem vistas as coisas não ocorreu no Acórdão Recorrido, para mais quando são conhecidos - e V/Ex.ªs sabê-lo-ão melhor que o Recorrente - outros Autos em que as Penas aplicadas em iguais circunstâncias foram inferiores à que foi aplicada ao Recorrente pelo Tribunal a quo.


31. Consabidamente, as Penas, todas elas, visam a protecção dos Bens Jurídicos (fim público) e a Reinserção do agente do crime no tecido social, por forma a impedir que o ostracize (Artigo 40.º n.º 1 do Código Penal).


32. Essa discricionariedade, na tarefa de fixação da Medida Concreta da Pena, é porém balizada por aquilo que não se mostra positivado na Lei, fora disso o Direito Penal Moderno fornece regras centrais para a determinação da Pena, funcionando, como dissemos, a Culpa como seu limite inultrapassável, devendo tomar-se em conta os seus efeitos sobre a pessoa do Delinquente (prevenção especial) e sobre a Sociedade em geral (prevenção geral) (Artigos 40.º n.ºs 1 e 2 e 71.º do Código Penal).


33. A Medida Concreta da Pena é um puro derivado da posição tomada pelo Ordenamento Jurídico-Penal e Constitucional em matéria de sentido, limites e finalidades das penas (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, pág. 258) cabendo à Culpa fornecer o limite máximo da Pena a aplicar no caso concreto, nos termos do Artigo 40.º do Código Penal, sendo em função de considerações de Prevenção Geral e Especial de Ressocialização, que deve ser determinada abaixo daquela moldura máxima, e em função daquelas submolduras, a Medida Concreta.


34. Há um ponto óptimo de protecção dos Bens Jurídicos, reclamada pela colectividade, mas abaixo desse pode encontrar-se um outro, agora inultrapassável, pois a Sociedade já não tolera a perda de eficácia preventiva da Pena, ainda consentâneo com tal eficácia e que integra o limiar mínimo da Pena encontrado em função das necessidades de Prevenção Especial (Cfr. Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12, N.º 2 - Abril-Junho, 2002) onde se jogam aquelas circunstâncias que não fazendo parte do Tipo depõem a favor ou contra o Agente do Crime - Artigo 71.º n.º 2, do Código Penal.


35. Assim, a ponderação da Culpa do agente serve propósitos que são fundamentalmente garantísticos e portanto do interesse do Arguido, aqui Recorrente.


36. Aliás, com este entendimento, tem-se visto uma consonância com o imperativo constitucional do N.º 2 do Artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”


37. Deste modo acredita-se que outra Pena, em concreto mais benévola, logo mais Justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica, não se frustrando a Justiça com isso, antes pelo contrário, será ela sem qualquer dúvida a sua grande vencedora!


38. Atento o supra expendido, a medida concreta da pena é, manifestamente, excessiva e desproporcional.


39. Tudo analisado e devidamente ponderado, deverá o recorrente ser condenado numa pena que lhe permita beneficiar, da aplicação do regime de suspensão da execução da pena de prisão, prevista no Artigo 50º, nº1 do Código Penal.


Termos em que: 1. Deve ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência, absolver o arguido dos crimes amnistiados pela Lei 38-A,/2023, de 2 de Agosto;


2. Absolver o Arguido do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº1 do Decreto-lei 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela IA, IC e II-A anexa ao mesmo diploma legal.


3. Caso ainda assim não se entenda, deverá o arguido ser condenado numa pena não superior a 5(cinco) anos, suspensa na sua execução. Fazendo-se pois, a mais LIDIMA JUSTIÇA!!!».


4. O recurso foi admitido por despacho do Juiz Desembargador relator, de 12.01.2024, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.


5. O Ministério Público junto do TRL respondeu, em 22.01.2024, ao recurso do arguido, que rematou com as seguintes conclusões (transcrição):


« CONCLUSÕES


1. O TRL teve necessariamente de ter presente a verificação da existência do vício de erro notório na apreciação da prova, tal como dos demais vícios a que se refere o n.º 2 do art. 410.º, do CPP, não só porque é de conhecimento oficioso como foram invocados pelos coarguidos CC, DD, EE e FF e, sendo o caso, a sua verificação aproveitaria a todos os coarguidos, incluindo o recorrente, nada de criticável tendo encontrado na decisão da 1.ª instância, pelo que a manteve em toda a sua abrangência.


2. O recorrente alegou a existência deste vício sem o sustentar nalguma passagem do texto do acórdão recorrido que, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, permita concluir que o TRL aceitou como boa a decisão do Tribunal da 1.ª instância quando esta deu como provado ou como não provado algo que notoriamente está errado, ou que, usando um processo racional e lógico, retirou de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum ou ainda que determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão ou que a prova de um facto assentou na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis.


3. O recorrente convoca a existência deste vício por considerar que o TRL, à semelhança do que sucedeu com o Tribunal da 1.ª instância, apreciou e valorou incorretamente a prova, situação que não se enquadra na previsão do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, mas antes no erro de julgamento cuja invocação e resolução tem lugar em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto, que foi rejeitado pelo TRL.


4. A violação do princípio in dubio pro reo deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, pelo que a verificação da sua existência é de conhecimento oficioso e, como aquele vício, a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, decorrer, por forma mais do que evidente, que o Tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.


5. Do texto da decisão de facto deve resultar que o julgador, em face da prova produzida, ficou num estado de dúvida irremovível sobre um facto e, nesse estado, decidiu contra o arguido, ou que o julgador decidiu contra o arguido de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao sentido da decisão.


6. O recorrente nada aduz que permita perceber porque entende ter sido violado este princípio na prova dos factos relativos ao crime de tráfico de estupefaciente, no que à sua responsabilidade concerne, e como essa violação se expressa na decisão, ou seja porque entende existir uma dúvida objetivável e razoável quanto à factualidade dada como provada quanto a este crime.


7. O que se percebe é que a razão da discordância do recorrente prende-se tão só com a sua própria convicção sobre a prova que foi produzida e a sua idoneidade para o responsabilizar criminalmente pelo crime de tráfico de estupefaciente, sem qualquer sustentáculo crítico no texto da decisão, e nalguma prova nele relatada e criticamente analisada, que prejudique irremediavelmente a sua participação nos factos julgados provados.


8. No caso, como se vê do texto da decisão da 1.ª instância, confirmado pelo acórdão recorrido, nenhuma dúvida assombrou o julgador.


9. O estado de certeza sobre os factos, vertido na fundamentação da decisão de facto, sem o mínimo de indício de dúvida/incerteza, como é o caso, afasta a violação pelo Tribunal recorrido do princípio in dubio pro reo associado ao princípio da inocência.


10.A realização do cúmulo jurídico, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 77.º, do CP, implica a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, tendo a pena única aplicável como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo exceder 25 anos, e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.


11.A pena aplicada de 9 anos e 6 meses de prisão situa-se em medida inferior ao ponto médio que resultaria entre os limites inferior e superior da pena abstrata relativa ao cúmulo, compreendida entre os 7 anos e os 17 anos, que se situa nos 12 anos de prisão.


12.Tal significa que o TRL, na ponderação conjunta dos factos, da gravidade das suas consequências, com realce, neste aspeto, para as consequências do crime de tráfico de estupefaciente na sociedade em geral atendendo a que seriam colocados no mercado 1.023,15 quilogramas de canábis, das respetivas circunstâncias [o crime de condução sem habilitação ocorreu por incumbir ao recorrente fazer a vigilância e controlo dos locais a seguir pelo transporte desde a chegada até à distribuição do produto estupefaciente; ocorreu durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão aplicada em condenação por igual crime quando o recorrente já havia sido condenado anteriormente por crime de tráfico de estupefaciente], da personalidade do recorrente [inconsequente em face das condenações anteriormente sofridas, que se revelaram ineficazes na dissuasão da prática delituosa – facto provado 100] sobrevalorizou as condições pessoal, social e laboral do recorrente após 14/01/2022 [constituiu uma família estruturada, não regista práticas delituosas ocorridas desde 10/2020, obteve licença para conduzir veículos automóveis, tem atividade laboral, está inserido – factos provados 179 a 189].


13.Dentro do contexto fáctico referente aos ilícitos penais, que se apresentam conexos entre si, que as condutas delituosas correspondem a uma atuação padronizada e estratificada, em que cada um dos arguidos teve a sua função, qualquer uma delas essencial para a concretização do crime de tráfico de estupefaciente, a sua acentuada gravidade, atentos os bens jurídicos tutelados, o elevado grau de ilicitude, à personalidade do recorrente revelada antes, durante e após os factos, e às suas condições, temos que a decisão quanto ao cúmulo jurídico das penas não merece reparo.


14.Não tem, por isso, qualquer razoabilidade a pretensão do recorrente de ver aplicada uma pena unitária de 5 anos de prisão, por que a pena de 9 anos e 6 meses de prisão não pode ser mais comprimida do que foi, sob pena de se não efetuar uma real e concreta justiça, o que geraria insegurança na comunidade e frustraria as suas expetativas face ao Ordenamento Jurídico na proteção dos bens jurídicos.


15.Sendo a pena única de prisão superior a 5 anos não tem cabimento legal a suspensão da execução da pena, à luz do disposto no art. 50.º, do CPP.


16.O crime de condução sem habilitação legal não se encontra excecionado pelo art. 7.º da Lei 38-A/2023, e reportando-se a ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19/06/2023, quando o recorrente tinha idade inferior a 30 anos àquela data, beneficia o recorrente do perdão de 1 ano de prisão na pena única em que foi condenado.


Merece o recurso provimento quanto ao perdão de 1 ano na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, não o merecendo quanto aos demais fundamentos.


Vossas Excelências, como sempre, melhor DECIDIRÃO.»


6. Neste Tribunal, o Ministério Público, em 22.03.2024, emitiu fundamentado parecer, de que se transcrevem os seguintes excertos, sem notas de rodapé:


«(…) 5 – Suscita-se a questão prévia da irrecorribilidade (parcial), da decisão firmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, afigurando-se dever ser rejeitado parcialmente o recurso, como a seguir se analisará.


5.1 – Em primeiro lugar, na parte relativa aos vícios da decisão previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, segundo o recorrente, afectariam o acórdão recorrido, a saber, e como alega: erro notório na apreciação da prova e manifesta e notória contradição entre a fundamentação de facto e a decisão tomada pelo tribunal a quo, que, defende, deveriam ter conduzido à sua absolvição do crime de tráfico de estupefacientes.


Com efeito, e sem perder de vista a absoluta falta de concretização do que o recorrente entende serem os vícios da decisão que invoca, o que, nesta parte, sempre votaria ao fracasso o recurso, a verdade é que, de acordo com o actual regime de recursos, na sequência das alterações ao C.P.P. introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, apenas nas situações previstas no artigo 432.º, n.º 1, alíneas a) e c) do C.P.P. o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer, a requerimento, da existência dos vícios da decisão previstos no n.º 2 do artigo 410.º, igualmente do C.P.P., como fundamento do recurso.


Assim o preceitua, com efeito, o artigo 434.º do C.P.P., disposição que, com a epígrafe Poderes de cognição, estabelece: O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do artigo 432.º.


E dispõe actualmente o artigo 432.º do C.P.P., no que ora importa: 1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º; (…) c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º; (…)


Assim sendo, após as alterações da Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, impõe-se concluir que o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer da impugnação da matéria de facto e da eventual violação do disposto no artigo 410.º, n.º 2 e 3, do C.P.P., a não ser nas situações acabadas de enunciar.


Em nenhuma das quais se enquadra a que é objecto do presente recurso, parece claro.


In casu, está-se na presença de decisão proferida por tribunal da Relação, em sede de recurso interposto de acórdão da 1ª instância, visando o recurso a impugnação da matéria de facto, com a invocação dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição entre a fundamentação e a decisão.


Sobre esta problemática, considere-se ainda a decisão contida em despacho do Senhor Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 05.01.2023 em sede de reclamação apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405.º do C.P.P. no processo n.º 5711/20.1T9CBR.C1-A.S1:


(…)


5.2 – Depois, porque, e como já se referiu, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ora objecto de recurso para este Supremo Tribunal confirmou integralmente a decisão da 1ª instância, mantendo a condenação do recorrente AA pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes e de condução ilegal em 11 penas parcelares que se compreendem entre 1 ano de prisão (dez delas) e 7 anos de prisão, a restante, e na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão. Ora, dispõe o artigo 432.º do C.P.P., com a epígrafe Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e no que ora releva: 1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: (…) b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º; (…) Por seu turno, o artigo 400.º do C.P.P., estabelece o seguinte regime relativo a decisões que não admitem recurso, sua epígrafe, também no que ora importa considerar: 1 - Não é admissível recurso: (…) e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;


f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos; (…)


Daqui resulta, como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência do S.T.J., que os poderes de cognição do nosso mais Alto Tribunal estão, nos casos das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do C.P.P., delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas pelo Tribunal da Relação.


No caso da alínea e), se a pena aplicada não for superior a 5 anos, ou se se tratar de pena não privativa de liberdade, não é admissível recurso, a menos que se trate de caso em que tenha havido decisão absolutória em 1ª instância.


No caso da alínea f), não é admissível recurso se ocorrer uma situação de verificação de dupla conforme, isto é, se as penas aplicadas, em confirmação da decisão da 1ª instância, não forem superiores a 8 anos de prisão.


Da conjugação das referidas disposições resulta, assim, que só é admissível recurso de acórdãos das Relações proferidos em recurso que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso da prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso.


O regime de recursos para o S.T.J. definido pelas normas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 432.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais).


O artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P., não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, isto é, um duplo grau de recurso em relação a quaisquer decisões condenatórias.


E a irrecorribilidade da decisão abrange toda a matéria que se prenda com as infracções penais em causa, “todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a matéria de facto, nulidades, vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais.”


É basta a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que consagra tal entendimento, de forma pacífica e reiterada ao longo do tempo.


(…)


Resultam claras, afigura-se, as razões legais que impedem o conhecimento do recurso interposto para este S.T.J. pelo arguido AA, na parte relativa à sua condenação pelos assinalados crimes nas apontadas penas parcelares, e, também, porque é que a sua insubsistência não atenta contra qualquer garantia constitucional que lhe fosse devida, sendo que a circunstância de o mesmo ter sido admitido não obsta a tal desfecho, já que de acordo com a norma do n.º 3 do artigo 414.º do C.P.P., “a decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior”.


6 – Assim, só a pena única aplicada ao recorrente, pelo seu quantum, de 9 anos e 6 meses de prisão, será passível de apreciação e decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça. À medida da pena reporta-se o recorrente nas conclusões 28 a 39 da sua motivação de recurso, em que, fundamentalmente, enuncia alguns dos pressupostos legais que devem presidir à sua determinação, terminando por requerer a sua absolvição ou, pelo menos, a redução da pena aplicada, para 5 anos de prisão, ademais suspensa na sua execução. Nas considerações tecidas, aí, como no segmento expositivo da motivação, genéricas e abstractas, sem tradução concreta da situação do recorrente, não se descortina a menor razão que possa levar a considerar um eventual menos bem fundado da decisão do Tribunal a quo, na fixação da pena única.


Certo é que, estabilizadas as penas parcelares, como se deixou expresso, fluindo da decisão recorrida terem sido apreciados e valorados todos os elementos que era mister atender, nenhuma censura suscita essa pena de 9 anos e 6 meses de prisão – fixada no primeiro terço, mas aquém do seu limite, da penalidade a considerar, balizada pelos limites mínimo de 7 anos de prisão, correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e máximo de 17 anos, soma de todas as penas aplicadas– por se revelar conforme aos critérios legais fixados nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, sendo, por conseguinte, justa, por adequada e proporcional à gravidade dos factos e à perigosidade do agente, não se descortinando razões para que a mesma seja reduzida, como inculca o acórdão recorrido na fundamentação em que se confirma a decisão da 1ª instância.


7 – Suscita ainda o recorrente a questão da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (aos crimes de condução ilegal, só pode ser).


Não é esta a sede própria, afigura-se.


Na verdade, e independentemente do juízo de valor que se possa fazer sobre a aplicação, e em que termos, do referido normativo de clemência, sobre o que se pronunciou circunstanciadamente o Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa na sua resposta ao recurso, o Tribunal a quo não tomou qualquer decisão sobre tal matéria, antes a relegou para a 1ª instância, pelo que tratando-se de matéria não abrangida pela decisão recorrida não poderá, por razões óbvias, constituir objecto do recurso que daquela foi interposto.


8 – Pelo exposto, emite-se parecer, no sentido de que o presente recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça deverá ser 1) rejeitado, nos sobreditos termos, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do C.P.P., e 2) julgado improcedente, no que respeita ao quantum da pena única em que foi condenado o recorrente AA.


(…)».


7. Observado o contraditório, o arguido, por requerimento de 8.04.2024, respondeu ao parecer do Ministério Público, consignando “por uma questão de economia processual, remete a sua resposta para as conclusões do recurso”.


8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso


1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:


a) à violação dos princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo e da presunção da inocência, a par dos vícios do(s) erro(s) notório(s) na apreciação da prova, da contradição entre a fundamentação e a decisão e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da nulidade da decisão e do reenvio do processo à 1ª instância para novo julgamento, [conclusões 1ª a 14ª e 19ª a 27ª];


b) à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto [conclusões 15ª a 18ª];


c) à medida e espécie das penas de prisão aplicadas, parcelares e única, e à suspensão da execução desta última [conclusões 28ª a 39ª].


2. Antes delas, porém, deverá conhecer-se da questão prévia suscitada pelo Ministério Público no parecer emitido neste STJ, relativa à rejeição parcial do recurso, por inadmissibilidade legal2


III. Fundamentação


1. O acórdão recorrido confirmou integralmente o da 1ª instância, de facto e de direito, no que concerne ao recorrente, sem qualquer repercussão na sua situação da procedência parcial nele concedida ao recurso da coarguida BB.


Por conseguinte, os factos considerados provados e não provados no acórdão da 1ª instância que lhe respeitam são imodificáveis, salvo ocorrência de algum vício ou nulidade de conhecimento oficioso pelo STJ, e foram os seguintes, tal como consignado no acórdão recorrido (transcrição):


«(…) 2.2- Matéria de facto dada como assente:


No Acórdão recorrido, o tribunal coletivo julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):


1. No dia 1 de Abril de 2018 o arguido AA conduziu o veículo ligeiro de passageiro de marca BMW, modelo X5, o qual tinha aposta a chapa de matrícula com o escrito “..-CB-..”, e ao seu lado seguia como passageira a arguida BB.


2. O veículo conduzido pelo AA, circulava com uma chapa de matrícula com inscrição que não correspondia à matrícula que lhe fora atribuída pelo Instituto da Mobilidade e Transportes, uma vez que tal entidade atribuíra a esse veículo a matrícula ..-EO-...


3. No dia 3 de Setembro de 2018 o arguido AA conduziu o veículo de matrícula 6714JBY na via pública.


4. No dia 6 de Setembro de 2018 o arguido AA conduziu o veículo de matrícula 6714JBY na via pública.


5. Elementos da Polícia de Segurança Pública abordaram o arguido AA na área do ... e porque o mesmo não era titular de carta de condução, o referido veículo tinha matrícula que não correspondia à sua e tinha sido alvo de furto, em Espanha, o mesmo arguido foi detido.


6. O veículo em causa tinha no seu interior areia, palha e serapilheira.


7. No dia 11 de Outubro de 2018, a arguida BB conduziu um veículo de marca BMW, modelo X5, de matrícula não apurada, na auto-estrada ..., em ....


8. No dia 15 de Junho de 2019, pelas 19H42, a arguida BB conduziu um veículo de marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ..-XE-.., na autoestrada ..., em ....


9. No dia 15 de Junho de 2019, pelas 23H51, o arguido AA conduziu um veículo de marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ..-XE-.., na Rua ...


10.No dia 22 de Junho de 2019, pelas 12H06, a arguida BB conduziu um veículo de marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ..-XE-.., no ..., em ....


11.No dia 26 de Junho de 2019, os arguidos BB e AA conduziram, na Rua ..., na ..., o veículo automóvel de matrícula ..-HU-...


12.No dia 28 de Junho de 2019, o arguido AA conduziu, na Rua ..., na ..., o veículo automóvel de matrícula ..-HU-...


13.No dia 18.07.2019, a arguida BB conduziu o veículo de matrícula ..-OJ-...


14.No mesmo dia, a determinada altura, o arguido AA, passou a conduzir o veículo de matrícula ..-OJ-.., na via pública.


15.No dia 24 de Julho de 2019, pelas 02H37, na ..., na ... o arguido AA conduziu o veículo automóvel de matrícula ....HMH e a arguida BB conduziu o veículo automóvel de matrícula ..-HU-...


16.No dia 28 de Agosto de 2019, os arguidos GG e FF estavam em Espanha, mais precisamente no porto desportivo ..., em ..., local para onde se deslocaram utilizando o veículo de matrícula ....KXC. Os dois arguidos tinham na sua posse a quantia de € 10.000,00, em numerário e foram interceptados pela Guardia Civil.


17.Durante o mês de Setembro de 2019, o arguido e HH negociou com dois indivíduos o arrendamento de duas garagens, uma na ... e outra no ....


18. No dia 30 de Outubro de 2019, pelas 11H00, na ..., a arguida BB conduziu o veículo automóvel de matrícula ..-..-RL e, pelas 12H14, na ..., o arguido AA conduziu o veículo automóvel de matrícula ..-..-HM.


19. No dia 5 de Novembro de 2019, o arguido HH alugou o veículo de matrícula ..-UZ-.. e, de seguida, entregou esse veículo aos arguidos BB e AA que se deslocaram para Espanha, sendo o veículo conduzido pela arguida BB.


20. No dia 19 de Novembro de 2019, a arguida BB conduziu o veículo de matrícula ..-PU-.. na via pública.


21. No dia 20 de Novembro de 2019, pelas 23H30, a arguida BB conduziu, nos IC’s ..., na ..., o veículo de matrícula ..-..-RL.


22. No dia 22 de Novembro de 2019, pelas 21H28, a arguida BB conduziu, na Av. ..., em ..., o veículo de matrícula ..-PU-...


23. No dia 25 de Novembro de 2019, a arguida BB conduziu o veículo de matrícula ..-PU-.. na via pública.


24.No dia 27 de Novembro de 2019, pelas 14H34, a arguida BB conduziu, na Av. ..., na ..., o veículo de matrícula ..-ZM-...


25.No dia 2 de Dezembro de 2019, pelas 19H27, a arguida BB conduziu, na Av. ..., em ..., o veículo de matrícula ..-XU-...


26.No dia 4 de Dezembro de 2019, a arguida BB conduziu o veículo de matrícula ..-XU-.. na via pública.


27.No dia 11 de Dezembro de 2019, pelas 23H20, a arguida BB conduziu, na autoestrada ..., em ..., o veículo de matrícula ..-XV-...


28.A partir do dia 29 de Maio de 2020, o arguido EE passou a utilizar o veículo de marca Mercedes, modelo A35, com a matrícula ..-ZP-.., com o valor de € 55.000,00.


29.No dia 15 de Julho de 2020, os arguidos BB e AA deslocaram-se para Espanha, utilizando o veículo automóvel de marca Audi, modelo A3, com a matrícula ..-TX-.., o qual era conduzido pela arguida BB.


30.No dia 16 de Setembro de 2020, pelas 14H30 e 15H53, a arguida BB conduziu, no parque de estacionamento da ..., em ..., o veículo de matrícula AB-..-HD.


31.No dia 9 de Outubro de Outubro de 2020, o arguido GG, por via da aplicação Whatsapp, entrou em contacto com o arguido AA e pediu-lhe que ele e a arguida BB fossem ter consigo ao ..., em ..., a fim de viajarem para o ... e transportarem objectos e vigiarem a actividade de elementos e veículos policiais.


32.Percebendo que estava próximo um transporte de canábis e que o seu trabalho no mesmo era de vigilância e de alerta, os arguidos BB e AA anuíram ao pedido do arguido GG e, nesse mesmo dia, deslocaram-se para o referido Bairro.


33.Ai chegados, ali se encontravam os arguidos II e GG à sua espera, sendo que o arguido II entregou ao arguido AA um veículo de marca Peugeot, um telemóvel com um número gravado para onde devia telefonar a relatar o que se passava e a quantia de € 500,00 em numerário a fim de fazer face às despesas da viagem.


34.Os arguidos BB e AA, no cumprimento do determinado designadamente por GG, deslocaram-se para o ... onde circularam aleatoriamente, sem destino, apenas com o objectivo de vigiarem eventuais operações policiais e passaram junto da M.... .. .... onde um individuo desconhecido os aguardava e lhe entregaram lonas que transportavam.


35.Até ao dia 13 de Outubro os arguidos BB e AA repetiram diariamente estas viagens, sempre financiadas além do mais pelo arguido GG, deslocando-se para várias cidades do ... e ...) a fim de vigiarem e relatarem eventuais operações policiais, bem como para entregarem objectos diversos ao mesmo indivíduo desconhecido e sempre junto do estabelecimento M.... .. .....


36.Numa destas viagens, os arguidos BB e AA pararam o veículo no embarcadouro de ... a fim de vigiarem a eventual movimentação da Polícia Marítima.


37.Pela realização de todas as viagens, que os arguidos BB e AA sabiam serem preparatórias de um transporte de canábis, prometeram ao arguido AA pagar-lhe montante monetário que não indicou, o que faria, como disse, “no fim do trabalho”.


38.No dia 13 de Outubro de 2020, pelas 22H00, o arguido AA saiu de ... em direcção ao ... a conduzir um veículo de marca BMW e foi acompanhado pela arguida BB que seguia a conduzir o já referido veículo de marca Peugeot.


39. Pelas 00H29 do dia 14 de Outubro de 2020, indivíduos não identificados deslocaram-se ao Stand de automóveis denominado “D.........”, sito na ..., em ..., onde lhes foram entregues os veículos de marca Mercedes, com a matrícula AD-..-FS e de marca BMW, com a matrícula ..-ZX-...


40. Esses dois veículos e, ainda, dos veículos de marca Mercedes, com a matrícula AB-33PN e de marca Peugeot, com a matrícula ..-XT-.., dirigiram-se para ..., sendo o arguido CC quem ia a conduzir o veículo de matrícula AB-..-PN.


41. Cerca das 02H30 do dia 14 de Outubro de 2020, os arguidos BB e AA chegaram ao ... e imobilizaram os dois veículos junto do estabelecimento M.......... de ..., local onde surgiu o arguido EE que ia a conduzir um veículo.


42. Ao verem o arguido EE, logo os arguidos BB e AA retomaram a marcha dos veículos que conduziam e foram atrás do mesmo.


43. Os três veículos imobilizaram-se numa zona residencial sita junto do estabelecimento P.... .... .. ......... e os três arguidos dirigiram-se para uma residência, na qual já se encontravam, juntamente com outro indivíduo, os arguidos GG, FF, JJ e CC.


44. Cerca das 02H30 do dia 15 de Outubro, segundo instruções que receberam, a arguida BB foi, a conduzir o veículo Peugeot, para a zona de ... a fim de vigiar a eventual movimentação da Polícia Marítima e o arguido AA a conduzir conduzir um veículo de marca Opel para a zona de ... a fim de ambos vigiarem a movimentação de qualquer força policial.


45.Os arguidos BB e AA conduziram os referidos veículos por várias artérias de ... e de ..., vigiando as eventuais movimentações da Polícia Marítima e das demais forças policias.


46. Juntamente com outro indivíduo, os arguidos GG, FF, JJ, CC e EE dirigiram-se para os outros veículos e dirigiram-se para local não concretamente apurado, sito perto da localidade de KK, junto da estrada nacional ..., entre ... e ..., à beira-mar.


47. Chegou a esse local uma lancha rápida, tripulada por indivíduos não identificados, a qual estava carregada com, pelo menos, 1.023,15 quilogramas de canábis, sendo que, de imediato, os arguidos GG, FF, JJ, CC e EE descarregaram essa canábis da lancha e carregaram 16 fardos de canábis com o peso global 477,5 quilogramas no veículo de matrícula AD-..-FS e, também, carregaram 16 fardos de canábis com o peso global 546,1 no veículo de matrícula ..-ZX-...


48. O peso líquido desta canábis era de 933,60762 gr e correspondia a 4.003.540 doses médias diárias individuais e valia, a preço de venda ao consumidor o montante global de € 2.044.600,00 (dois milhões, quarenta e quatro mil e seiscentos euros).


49.Com os veículos assim carregados, o arguido GG tomou o lugar de condutor do veículo de marca BMW com a matrícula ..-ZX-.., ao seu lado sentou-se outro indivíduo, sendo que aquele iniciou a marcha do veículo em direção a ....


50.Em simultâneo, o arguido JJ tomou o lugar de condutor do veículo de marca Mercedes com a matrícula AD-..-FS e ao seu lado sentou-se um dos outros arguidos, ao mesmo tempo que os outros dois arguidos e o arguido FF se sentaram no outro veículo de marca Mercedes, com a matrícula AB-..-PN e ambos os veículos iniciaram a marcha em direcção a ....


51.Em cumprimento de instruções que o arguido AA recebeu por telefone, este e a arguida LL juntaram-se no veículo de marca Opel e, com a arguida a conduzir, iniciaram o trajecto com destino a ....


52.Assim, os condutores dos quatro veículos seguiram na direcção de ..., sendo que o veículo de marca BMW, com a matrícula ..-ZX-.., conduzido pelo arguido GG e o veículo de marca Mercedes, com a matrícula AD-..-FS, conduzido pelo arguido JJ transportavam canábis nos termos acima narrados e os veículos de marca Opel conduzida pela arguida BB e o veículo de marca Mercedes, com a matrícula AB-..-PN, conduzido pelo arguido FF seguiam o mesmo caminho em direcção a ... com função de vigiar eventuais operações policiais.


53.Devido ao peso elevado nos dois veículos e à elevada velocidade imprimida pelos respectivos condutores, os veículos nos quais era transportado a canábis avariaram (o Mercedes, com a matrícula AD-..-FS, sofreu problemas de motor e o rebentamento de um pneu e o BMW, com a matrícula ..-ZX-.., sofreu o rebentamento de um pneu), razão pela qual os seus tripulantes pediram auxílio aos tripulantes dos demais veículos.


54.Cerca das 09H20, ao quilómetro 133 da autoestrada n.A-2, o veículo mercedes, com a matrícula AB-..-PN e conduzido pelo arguido FF parou junto do veículo Mercedes com a matrícula AD-..-FS, que transportava a canábis e, de seguida, os arguidos JJ, CC, EE, MM e FF procederam ao descarregamento da cannabis que colocaram na zona de mato ao lado da fazia de rodagem a fim de posteriormente aí irem buscar o mesmo produto.


55.Logo depois, o arguido JJ ficou no local a terminar o descarregamento da canábis e os demais arguidos voltaram a entrar no Mercedes, com a matrícula AB-..-PN, e retomaram a marcha a fim de auxiliarem GG e outro indivíduo que estavam também imobilizados ao quilómetro 85 da mesma artéria.


56.Pelas 09H50, o veículo Mercedes, com a matrícula AB-..-PN, chegou junto do veículo BMW, com a matrícula ..-ZX-.., e os arguidos CC, EE e FF, juntamente com o arguido GG e outro indivíduo procederam ao descarregamento da cannabis que colocaram na zona de mato ao lado da faixa de rodagem a fim de posteriormente aí irem buscar o mesmo produto.


57. Terminada tal tarefa, estes arguidos ausentaram-se do local na direcção de ..., porém, apesar do pneu rebentado, ainda conduziram o veículo BMW, com a matrícula ..ZX-.., para longe do local onde colocaram a canábis a fim de evitarem que terceiros vissem os fardos de canábis.


58. Pelas 20H00 do mesmo dia 15 de Outubro de 2020, os arguidos BB e AA guardavam no interior da sua residência, sita na Precate..., 41,563 gramas de cannabis, bem como uma faca com vestígios do mesmo produtor e uma balança de precisão.


59. Estes arguidos destinavam esta canábis, que correspondia a 135 doses médias indivíduas diárias, para entrega a terceiros, mediante contrapartida monetária.


60. No dia 10 de Novembro de 2020, pelas 13H00, o arguido FF guardava consigo várias notas do Banco Central Europeu no montante global de € 1.740,00 e, dentro do veículo de matrícula a ..-XU-.., que tinha alugado, um molho de notas do Banco Central Europeu no montante global de € 5.000,00 e um saco de ráfia com vários molhos de notas do Banco Central Europeu no montante global de € 141.070,00. Todo este dinheiro, no montante global de € 148.810,00 era resultado da venda de canábis.


61. No dia 19 de Novembro de 2020, pelas 19H15, o arguido GG guardava no interior da sua residência, sita na Av. ..., n.362, 2.03, na ..., a quantia de € 1.140,00 em notas do banco Central Europeu que o arguido tinha recebido como contrapartida pela entrega de canábis, bem como 74,23 gramas de canábis.


62.Este arguido destinava esta canábis, que correspondia a 346 doses médias individuais diárias, para entrega a terceiros, mediante contrapartida monetária.


63.No dia 14 de Janeiro de 2021, pelas 07H05, os arguidos NN e OO guardavam no interior da sua residência, sita na Rua ..., em ..., a quantia de € 140,00 em notas do Banco Central Europeu que estes dois arguidos tinham recebido como contrapartida pela entrega de canábis, bem como 11 sacos de plástico próprios para embalar doses individuais de canábis, 77,974 gramas de canábis (resina), correspondente a 204 doses médias diárias individuais, e 0,985 gramas de canábis (folhas e sumidades) correspondente a 1 dose média diária individual.


64.Os arguidos NN e OO destinavam esta canábis para entrega a terceiros, mediante contrapartida monetária.


65. No dia 14 de Janeiro de 2021, pelas 07H10, o arguido PP guardava no interior da sua residência, Rua ..., em ..., uma arma de fogo semiautomática, de marca Gelesi, com o nº de série rasurado, de calibre 6,35 mm, com o comprimento total de 11,5 cm e com cano estriado de 5,8 cm.


66. A mencionada arma de fogo estava em boas condições de funcionamento e apta a produzir deflagrações.


67. O arguido PP não tinha autorização para uso e porte da mesma arma, nem esta se encontrava registada em seu nome.


68. No dia 14 de Janeiro de 2021, pelas 07H00, o arguido DD guardava no interior da sua residência, ..., uma arma de fogo semiautomática, de marca Magtech, com o nº de serie rasurado, de calibre .32 ou 7,65 mm, com o comprimento total de 16,5 cm e com cano estriado de 9,5 cm, a qual estava municiada com uma munição, bem como 22 munições do mesmo calibre.


69. A mencionada arma de fogo estava em boas condições de funcionamento e apta a produzir deflagrações e as munições estavam em bom estado e aptas a serem deflagradas.


70. O arguido DD não tinha autorização para uso e porte da mesma arma, nem esta se encontrava registada em seu nome.


71. A testemunha QQ, durante período de tempo não apurado e, pelo menos, em Junho de 2020 adquiria, em média, uma vez a cada duas semanas canábis aos arguidos NN e OO a quem pagava montante variável entre € 20,00 e € 30,00 por cada aquisição.


72. Em todas as situações acima referidas em que os arguidos BB, AA e CC conduziram viaturas automóveis na via pública, os mesmos não eram titulares de carta de condução, nem de qualquer outro documento que legalmente os habilitasse a conduzir os referidos veículos.


73. Os arguidos NN e OO são irmãos e procediam, em conjunto, com conjugação de vontades e em união de esforços, à compra e revenda de canábis, o que faziam por preço superior ao da aquisição, assim obtendo luro que partilhavam entre si.


74. Os arguidos FF, GG, EE, BB, AA, JJ, CC, conhecendo as características da canábis, agindo em comunhão de vontades e em conjugação de esforços, representaram a possibilidade de deterem, transportarem, guardarem, com vista à sua venda, o mesmo produto, para daí retirarem proveito económico, tendo agido deliberadamente com o fim de atingirem tal objectivo, o que lograram concretizar.


75. Mais sabiam estes arguidos que a detenção, a guarda e o transporte da canábis, a qualquer título, são proibidos e punidos por lei, o que não os impediu de agirem de forma livre, voluntária e consciente para deterem, guardarem e transportarem esse produto.


76. Os arguidos OO e NN conheciam as características da canábis e representaram a possibilidade de, em comunhão de vontades e em conjugação de esforços, deterem e transportarem tal produto para o entregar a terceiros, deles recebendo dinheiro e agiram deliberadamente com o fim de atingirem tal objectivo, o que lograram alcançar.


77. O arguido AA idealizou, por dez vezes, a possibilidade de conduzir na via pública veículos automóveis e motociclos sem para tal estar habilitado e agiu com a intenção de concretizar tal desiderato, o que logrou conseguir.


78. A arguida BB idealizou, por vinte vezes, a possibilidade de conduzir na via pública veículos automóveis e motociclos sem para tal estar habilitada e agiu com a intenção de concretizar tal desiderato, o que logrou conseguir.


79. O arguido CC idealizou a possibilidade de conduzir na via pública veículo automóvel sem para tal estar habilitado e agiu com a intenção de concretizar tal desiderato, o que logrou conseguir.


80. Todos os arguidos agiram sempre e em todas as condutas acima descritas, de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as mesmas condutas eram proibidas e punidas por lei.


(…)


Antecedentes criminais:


(…)


100. O arguido AA foi anteriormente condenado:


- pela prática, em 13.08.2011, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, substituída por 50 horas de trabalho, por decisão de 02.09.2011, transitada em julgado a 02.09.2011;


- pela prática, em 14.02.2014, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão de 14.02.2014, transitada em julgado a 15.01.2019;


- pela prática, em 16.04.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de oito meses de prisão efectiva, por decisão de 21.03.2019, transitada em julgado a 10.09.2020;


- pela prática, em 11.09.2013, de um crime de tráfico de estupefacientes de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão de 23.06.2014, transitada em julgado a 15.01.2019;


- pela prática, em 07.07.2011, de dois crimes de tráfico de estupefacientes de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, por decisão de 01.10.2014, transitada em julgado a 07.03.2018;


- pela prática, em 08.08.2014, de um crime de furto simples, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão de 19.02.2015, transitada em julgado a 15.01.2019;


- pela prática, em 16.11.2012, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um crime de condução sem habilitação legal, na pena de um ano e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova, por decisão de 13.05.2015, transitada em julgado a 02.05.2019;


- pela prática, em 05.09.2011, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 150 dias de multa, substituída por 150 horas de trabalho, por decisão de 06.09.2011, transitada em julgado a 26.09.2011;


- pela prática, em 12.06.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, por decisão de 12.06.2012, transitada em julgado a 02.07.2012;


- pela prática, em 22.09.2012, de um crime de condução sem condução legal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, por decisão de 19.11.2012, transitada em julgado a 19.11.2012;


- pela prática, em 11.07.2013, de um crime de tráfico de estupefacientes de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão de 19.01.2017, transitada em julgado a 29.01.2019;


- pela prática, em 04.10.2011, de um crime de actos preparatórios (p. e p. no art. 275º, por referência do art. 272º/1, al. b), do C. Penal), na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, por decisão de 16.05.2013, transitada em julgado a 17.06.2013;


- pela prática, em 28.03.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, com regime de prova e sujeição ao dever de inscrição em escola de condução, frequência das respectivas aulas e sujeição a provas, a comprovar nos autos, por decisão de 05.04.2018, transitada em julgado a 21.05.2018, tendo tal suspensão vindo a ser revogada;


- pela prática, em 05.02.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, com regime de prova, por decisão de 26.09.2018, transitada em julgado a 29.03.2019;


- pela prática, em 01.05.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 18 meses de prisão, e de um crime de receptação, na pena de três meses de prisão, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo, a pena única de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão de 21.01.2020, transitada em julgado a 20.02.2020;


- pela prática, em 16.11.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por decisão de 23.11.2020, transitada em julgado a 24.06.2021;


- pela prática, em 27.09.2018, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de quatro meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, por decisão de 11.11.2021, transitada em julgado a 24.03.2022;


- pela prática, em 04.08.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, e de um crime de tráfico de estupefacientes para consumo, na pena de 60 dias de multa, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo, a pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por decisão de 16.12.2020, transitada em julgado a 20.05.2021;


(…)


Condições pessoais:


(…)


AA


160.AA apresenta um percurso de vida marcado pela instabilidade e ausência de um ambiente familiar estruturado e securizante.


161.Até aos quatro anos de idade viveu com os progenitores num contexto caracterizado por comportamentos de violência doméstica que culminaram com a separação dos mesmos.


162.Na sequência de um quadro de maus tratos e negligência foi entregue à guarda e cuidados da avó paterna, que também não se constituiu como uma figura de substituição afetiva, sendo caracterizada pelo arguido como ríspida e detentora de problemas etílicos.


163.Perante a ausência de respostas de integração no seio familiar, AA foi institucionalizado aos nove anos de idade, situação que manteve até aos 16 anos de idade.


164.Durante o período em que se manteve institucionalizado, entre os 9 e os 16 anos de idade, refere ter integrado diferentes instituições no país, registando diversas fugas e comportamentos descritos pelo próprio como impulsivos e rebeldes.


165.A instabilidade vivenciada refletiu-se no insucesso escolar, tendo completado apenas o 6º ano de escolaridade, pese embora refira o contexto escolar como prazeroso.


166.Frequentou, tendo abandonado a um ano da sua conclusão, um curso de Educação e Formação de Adultos de ... de Instalações.


167.Paralelamente informou o início do consumo de haxixe com cerca de 10 anos de idade, comportamento que manteve desde então, e que sempre normalizou, sem atribuição de qualquer relevância negativa.


168.Aos 16 anos de idade optou por abandonar a instituição onde se encontrava, tendo obtido para o efeito a colaboração de um amigo mais velho que assumiu a sua tutoria.


169.Voltou então a viver num contexto de bairro social da zona de ..., ambiente que conhecia e onde se sentia integrado.


170.Reconhece ter adoptado um estilo de vida imediatista e facilitista, sem prática laboral regular, que, aliado às lacunas evidenciadas ao nível da interiorização de determinados valores ético-morais e sociais, promoveram a assunção de comportamentos que originaram posteriores contactos com o sistema de aplicação da justiça penal.


171.Em termos emocionais iniciou um relacionamento amoroso aos 17 anos de idade, com uma jovem oriunda do bairro onde vivia à data, e que manteve durante cerca de nove anos, tendo terminado já durante o recente período de reclusão vivenciado pelo arguido.


172.A sua então companheira, coarguida nos presentes autos, constituía-se como o seu principal elemento de estabilidade afetiva, tendo-o acompanhado ao longo do seu percurso de vida.


173.Após cumprimento de pena de prisão em que foi condenado, em 15/01/2022, reintegrou o agregado familiar da progenitora.


174.À data dos factos subjacentes ao presente processo AA, mantinha o relacionamento em união de facto com a sua ex-companheira, coarguida nos presentes autos, descrevendo a dinâmica relacional do casal como de confiança mutua, caracterizada por sentimentos de afetividade e entreajuda.


175.Pese embora mantivesse contactos com a progenitora e com a sua irmã, era a companheira que se constituía como a sua principal referência afetiva e relacional.


176.Não mantinha uma ocupação laboral regular, referindo a realização de trabalhos pontuais, assumindo contudo o sustento económica do casal.


177.Em termos habitacionais registava alguma instabilidade, alterando a morada com alguma frequência de acordo com os condicionalismos económicos vivenciados.


178.Socialmente mantinha convívio regular com pares que conhecia do bairro onde viveu, alguns coarguidos nos presentes autos, e em relação aos quais existiam laços relacionais antigos e fortes sentimentos de respeito e lealdade.


179.Posteriormente, desde 14.01.2022, voltou a residir com a mãe e o padrasto, numa pequena aldeia do concelho de ..., sendo a dinâmica familiar descrita como funcional, caracterizada por sentimentos de entreajuda.


180.A mãe e o padrasto assumem pretender apoiar o arguido assegurando todas as despesas decorrentes da alimentação e alojamento.


181.Em termos profissionais manteve ocupação com o padrasto que trabalha por conta própria na realização de trabalhos de eletricidade, e inscreveu-se na escola de condução Ouriquense, frequentado regularmente as aulas.


182.Entretanto, obteve a carta de condução e encontra-se empregado na “a........”, auferindo vencimento mensal ilíquido de € 730,00, a que acrescem € 7,23 por cada dia de trabalho, a título de subsídio de alimentação.


183.Iniciou um novo relacionamento amoroso com uma jovem que mantém um modo de vida estruturado e socialmente enquadrado, trabalhando no H....... .. ... ...., onde aufere um vencimento líquido de € 900,00.


184.Recentemente, ambos iniciaram a sua vida em união de facto, residindo uma casa arrendada em ..., pela qual pagam uma renda mensal de € 650,00.


185.O arguido mantém ainda o apoio familiar e convive regularmente com a mãe – cuja casa frequenta semanalmente – e irmãos.


186.Socialmente, mantém convívio apenas com um grupo restrito de pessoas, que são sobretudo familiares próximos do casal.


187.O arguido compreende a sua situação processual, adotando um discurso coerente e autocritico, expressando receio face a eventuais consequências do presente processo.


188.Em abstrato reconhece a censurabilidade de factos similares aos que lhe são imputados no presente processo.


189.Confrontado com a possibilidade de eventual aplicação de uma sanção penal, caso venha a ser condenado, assumiu uma posição de conformismo pelo que vier a ser determinado judicialmente, revelando adesão quanto à possibilidade de cumprimento de injunções judiciais.


(…)».


*


2. Avancemos para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra da sua precedência lógica também ali referida.


2. 1. A questão prévia da rejeição parcial do recurso, por inadmissibilidade legal.


O arguido interpôs recurso da decisão do TRL quanto à medida de todas as penas, parcelares e única, em que foi condenado, o qual foi admitido sem qualquer restrição pelo mesmo Tribunal.


O Ministério Público, no parecer emitido neste STJ, suscitou, no entanto, a questão prévia da sua rejeição parcial, por inadmissibilidade legal, no que tange às penas concretamente aplicadas não superiores a 5 nem a 8 anos de prisão, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 400º, n.ºs 1, als. e) e f), 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), e, 432º, n.º 1, al. b), todos do CPP, convocando em abono da sua posição a jurisprudência uniforme e constante do STJ relativamente à designada “dupla conforme”, é dizer, a confirmação pelo tribunal da relação, ainda que in mellius e, no caso da al. e), mesmo que in pejus, se a pena aplicada não ultrapassar os 5 anos de prisão, da decisão condenatória do tribunal de primeira instância relativamente a penas que se contenham em tais medidas e circunstâncias3.


Como resulta do teor dos excertos supratranscritos das decisões condenatórias do J..... e do TRL, o recorrente foi condenado nas seguintes penas:


a) 7 (sete) anos de prisão, pela prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22.’1, com referência à Tabela I-C ao mesmo anexa;


b) 1 (um) ano de prisão por cada um, pela prática de 10 (dez) crimes de condução sem habilitação legal, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3.05;


c) em cúmulo jurídico das referenciadas 11 penas parcelares, na pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.


*


2. 1. 1. Como referido, todas as penas parcelares foram confirmadas pelo TRL.


Concluiu-se, por isso, no parecer do Ministério Público, pela irrecorribilidade das penas parcelares aplicadas, por todas elas se situarem nos patamares e condições da irrecorribilidade estabelecidos no artigo 400º, n.ºs 1, als. e) e f), do CPP, irrecorribilidade que abrangeria não apenas a respetiva medida, mas também quaisquer outras questões de natureza jurídica às mesmas atinentes que no caso se pudessem colocar e, efetivamente, colocam no que concerne às questões da nulidade, inconstitucionalidade e vícios da decisão recorrida, outrossim às dos princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova.


Ora, como diz o Ministério Público, em face da atual redação das citadas normas processuais, as vigentes à data da prolação das decisões sob escrutínio, e tal como é jurisprudência uniforme do STJ e do TC, também acolhida doutrinalmente, tem-se por indiscutível a irrecorribilidade das referidas penas parcelares, seja quanto à sua medida, seja quanto à apreciação das demais questões suscitadas no recurso a elas direta e exclusivamente referidas, sem que daí, como também afirma essa orientação jurisprudencial e doutrinal, resulte qualquer violação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente quanto ao direito ao recurso, que a CRP impõe, pelo menos (mas apenas) num grau, o suficiente para assegurar o duplo grau de jurisdição, em respeito pelos ditames dos seus artigos 20º e 32º, que consagram o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva e as garantias do processo criminal, e correspondentes instrumentos de direito internacional a que Portugal se encontra vinculado, designadamente a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH – artigo 2.º do Protocolo n.º 7), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE – artigo 48º) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP - artigo 14.º, n.º 5).


Donde, sob o prisma penal, recorrível será somente, no caso em apreço, a pena única, na respetiva medida e espécie, que o recorrente pretende ver reduzida para o mínimo legal e suspensa na respetiva execução4, e outras questões que com a mesma possam contender.


Termos em que, porque a admissão do recurso pelo tribunal recorrido não vincula o tribunal superior, se julga procedente a questão prévia da rejeição parcial do recurso em matéria penal, por inadmissibilidade legal, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.º 1, als. e) e f), 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), e 432º, n.º 1, al. b), do CPP, prosseguindo o seu conhecimento limitado às questões suscitadas relativamente à pena única resultante do cúmulo jurídico.


2. 1. 1. 1. Acresce que, conforme supra enunciadas, as questões suscitadas pelo recorrente no presente recurso coincidem praticamente com as que havia suscitado no recurso interposto do acórdão da 1ª instância para o TRL e neste apreciadas e decididas no sentido da respetiva improcedência e da manutenção daquele primitivo acórdão.


Entre elas figura a da impugnação da matéria de facto, ainda que maquilhada na violação dos princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da presunção da inocência, da inconstitucionalidade do acórdão, nos termos dos artigos 127º do CPP e 32º, n.º 2, da CRP, e nos vícios e consequente nulidade e reenvio do processo à 1ª instância para novo julgamento, nos termos conjugados dos artigos 410º, n.sº 2 e 3, e 426º do CPP [conclusões 1ª a 14ª e 19ª a 27ª].


Ora, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 434º e 432º, n.º 1, al. b), do CPP, “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”, sendo que na al. b) deste preceito se prevê precisamente a hipótese de recurso como o presente, é dizer aquele interposto para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.


Hipótese, portanto, em que, ao contrário do que sucede nas suas alíneas a) e c), relativas, respetivamente, aos recursos interpostos para o STJ “de decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º” e “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, não se contempla como fundamento do recurso os vícios e nulidades referidas neste artigo 410º, n.ºs 2 e 3.


Assim sendo, também por esta via, apesar de ter sido admitido pelo TRL sem qualquer restrição, esta decisão não vincula o tribunal ad quem e o recurso teria de ser rejeitado nessa parte, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com o disposto nos artigos 414º, n.ºs 2 e 3, e 420º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, sem prejuízo, naturalmente, do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultassem evidentes, o que, manifestamente, aqui não ocorre5.


É essa, de facto, a orientação uniforme e constante da jurisprudência do STJ, após a entrada em vigor da atual redação daqueles artigos 432º e 434º do CPP, introduzida pela Lei n.º 94/21, de 21.12, com início de vigência no dia 20 de março de 2022, antes, portanto, do início do julgamento em 1ª instância e, consequentemente, aqui aplicável, nos termos do artigo 5º, n.º s 1, e 2, a contrario, do CPP6.


Ainda assim diga-se que, como resulta cristalino do texto de qualquer dos acórdãos escrutinados, por si ou conjugados com as regras da experiência comum, não ocorre, in casu, qualquer nulidade ou vício da decisão, nomeadamente os do erro notório na apreciação da prova, da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada7, tão pouco se verificando neles a violação do princípio da livre apreciação da prova, nomeadamente por valoração proibida de provas não produzidas e examinadas em julgamento ou por desrespeito dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, o qual, relembra-se, “(…) como princípio atinente à apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dento dos seus limites de cognição, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º n.º 28, tal como se decidiu no acórdão do STJ, de 25.10/2023, proferido no processo n.º 96/16.3T9ALD.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota, disponível no sítio https://www.dgsi.pt.


No caso em apreço não se verifica, assim, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova convocado pelo recorrente, bastando para tanto ter em conta a fundamentação dos acórdãos recorrido e da 1ª instância por ele confirmado, nos quais, para além da indicação e identificação das provas consideradas, se procedeu ao seu exame crítico de modo objetivo e conjugado com as regras da experiência, numa cabal demonstração do iter racional percorrido na sua apreciação, valoração e contributo para a formação da convicção do tribunal, de molde a permitir o seu escrutínio externo pelos sujeitos processuais e pelos tribunais de recurso, sem que delas ressalte qualquer dúvida capaz de justificar a intervenção da “contra face” daquele princípio, é dizer o do in dubio pro reo, quanto a essa convicção, cuja violação poderia, na verdade, analisar-se também como vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP, como tem sido entendido pelo STJ9, mas que, repete-se, aqui não ocorre, porque plenamente respeitado o disposto no artigo 127º do CPP.


Termos em que improcedem as questões aqui em apreço, suscitadas nas conclusões 1ª a 14ª, 19ª a 27ª e 28ª a 39ª, na parte em que se referem às penas parcelares, com a consequente rejeição do recurso nessa parte, quedando-se, por conseguinte, a apreciação do recurso sub judice às questões da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, e da espécie e medida da pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão em que o recorrente foi condenado e outras por ele convocadas que com elas diretamente possam contender.


*


2.2. Aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto [conclusões 15ª a 18ª];


O recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por não ter considerado e aplicado oficiosamente a amnistia e/ou o perdão estabelecidos pela Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, na medida em que tinha menos de 30 anos à data da prática dos factos por que foi condenado, ocorridos antes de 19 de junho de 2023, estando os crimes de condução sem habilitação legal por que foi condenado abrangidos no respetivo âmbito objetivo de aplicação.


Como se observa na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto do TRL, o recorrente não esclarece se pretende ver amnistiados os 10 crimes de condução sem habilitação legal por que foi condenado ou que lhe seja aplicado o perdão, por referência a esses crimes, cuja inclusão no âmbito objetivo da Lei reconhece, admitindo, por isso, a aplicação do perdão à pena única, por referência àqueles crimes e, nessa medida, a procedência do recurso.


Por sua vez, no parecer emitido pelo Ministério Público no STJ, considera-se que essa questão não foi objeto de conhecimento pelo acórdão recorrido, sendo, assim, uma questão nova insuscetível de apreciação neste recurso.


E, na verdade, assim tem sido em geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência, como supra se consignou a propósito da definição do objeto do recurso, entendido como “remédio jurídico” e não como um novo julgamento


Todavia, como aí também se referiu, questões há que, mesmo não tendo sido suscitadas em recurso, são de conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem, nomeadamente os vícios e nulidades da decisão recorrida e outras questões de natureza estritamente jurídica.


Será que nestas se pode ou deve incluir a da aplicação de uma lei de amnistia com potencial ou real impacto na punição?


À luz do n.º 2 do artigo 474º do CPP, poderia sustentar-se, como faz o recorrente, que a aplicação da amnistia e de outras medidas de clemência, como as que estão aqui em discussão, estabelecidas pela Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, incumbe ao tribunal da condenação, como a qualquer outro onde o processo se encontra, incluindo os de execução das penas e de recurso.


Nessa linha de pensamento, a omissão da sua aplicação pelo TRL poderia analisar-se como omissão de pronúncia sobre questão de conhecimento obrigatório, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. c), do ´CPP, como o seria a repetição dessa omissão pelo STJ, mais ainda se, como alguma doutrina e jurisprudência têm sustentado, ela for de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, por força do disposto no n.º 2 do mesmo preceito10, problema que aqui não releva, visto a questão ter sido expressamente suscitada pelo recorrente.


Sucede que o próprio STJ tem vindo a fazer uma interpretação restritiva da norma do artigo 474º, n.º 2, do CPP, no sentido de ela só impor o conhecimento e aplicação pelos tribunais de recurso da amnistia e outras medidas de clemência decretadas, quando o processo neles se encontre, se e quando os arguidos e/ou condenados estejam presos à sua ordem e de tal aplicação resultar um evidente e imediato benefício para os mesmos, “cabendo essa competência ao tribunal da condenação de 1ª instância nos outros casos (não urgentes), sob pena de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º, n.º 2, e 13º da CRP”, na medida em que, de outra forma, ficaria prejudicado o direito ao recurso da correspondente decisão pelo arguido e pelo Ministério Público, como pode ver-se dos acórdãos do STJ referenciados por Manuel Lopes Maia Gonçalves, em anotação ao referido preceito no “Código de Processo Penal, Anotado e Comentado”, 12ª edição, Almedina 2001.


Posição a que se adere e aqui acolhe sem reservas e que permite concluir pelo acerto da decisão do TRL ao ressalvar a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, mas relegando-a para o tribunal da condenação, tanto mais quanto é certo não se verificar a referida urgência, pois o recorrente não está preso à ordem deste processo.


Acresce que, como vem sendo repetidamente afirmado neste Tribunal, aquela Lei consagrou expressamente, no seu artigo 14º, caber a sua aplicação ao tribunal da condenação, pelo que sempre prevaleceria relativamente à referida disposição do CPP, perante o qual se perfila como lei especial.


Nesse sentido, podem ver-se os acórdãos de 27.09.2023, 19.12.2023 e 31.01.2024, proferidos nos processos n.ºs 179/22.0PSLSB.S1, 417/22.0JGLSB.L1:S1 e 2540/22.1JAPRT.P1.S1, relatados pelos Conselheiros Maria do Carmo Silva Dias, Pedro Branquinho Dias e o do presente, respetivamente, todos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.


Termos em que improcede este segmento do recurso.


*


2. 3. Medida e espécie da pena única de prisão aplicada [conclusões 28ª a 39ª].


Como resulta das transcritas conclusões, o recorrente discorda da medida e da espécie da pena única que lhe foi aplicada, considerando-a excessiva e desproporcionada, pondo a tónica na desigualdade que entende verificar-se relativamente a casos semelhantes já julgados, que não identifica, e aos coarguidos deste processo, pretendendo vê-la reduzida para o mínimo legal e suspensa na respetiva execução, à luz dos artigos 40º, 50º e ss., e 71º do CP,


2. 3. 1. Vejamos se lhe assiste razão.


Antes de prosseguir, importa relembrar que, face à rejeição parcial do recurso relativamente às penas parcelares aplicadas pela prática de 10 (dez) crimes de condução sem habilitação legal e 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, além da limitação deste segmento do recurso à pena única, fixada no acórdão recorrido em 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão, a moldura abstrata a considerar, nos termos dos artigos 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, e 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 23.05, e 77º, n.º 2, do CP, é a considerada no acórdão recorrido, ou seja, a pena de 7 (sete) a 17 (dezassete) anos de prisão.


*


Na esteira de Figueiredo Dias11, escreveu Adelino Robalo Cordeiro, in “A Determinação da Pena”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, Volume II, Centro de Estudos Judiciários , Lisboa 1998, a pp. 30 a 54:


«a determinação da pena é susceptível de ser analisada em três perspectivas, correspondentes a outras tantas fases ou operações em que se desdobra a aplicação judicial de uma pena: a determinação da respetiva medida ou moldura legal (também chamada pena abstracta), da sua medida judicial ou individualizada (pena concreta) e da espécie de pena a aplicar (escolha da pena)


Acrescentando relativamente à determinação da pena concreta, que, como dito, é o que aqui está em causa e limitado à pena conjunta.


«Em síntese e à guisa de conclusão:


A culpa posiciona-se como pressuposto e limite (não fim) da pena, cuja medida (e forma de execução ou cumprimento) há-de ser fixada em função das exigências de prevenção, concebidas como finalidades da punição, e a necessidade da pena (para realizar o fim que visa) assume-se como fundamento da sua legitimidade, a sobrepor-se à concepção retributiva da pena (arts. 40º, n.ºs 1 e 2 e 71º, n.º 1; v., ainda, embora diretamente relativos à aplicação das penas de substituição e, portanto, à escolha da pena, arts. 45º, n.º 1, 48º, n.º 1, 50º, n.º 1, 58º, n.º 1, 59º, n.º 6, 60º, n.º 2, e 70º).


A quantificação da culpa e bem assim da intensidade ou grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da ponderação das circunstâncias gerais presentes no caso concreto (…. circunstâncias que … depuserem a favor do agente ou contra ele … - art.71º, n.º 2).


Estas circunstâncias – sob pena de sair maltratada a proibição da dupla valoração, também aqui relevante (… circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime … -art. 71º, n.º 2) – não hão-de ter sido já levadas em conta na determinação da medida abstrata da pena, seja através da sua contribuição para a formação do tipo de crime, de que seriam então elementos típicos (….), seja porque já antes funcionaram como circunstâncias modificativas estranhas ao tipo (…), e até na medida em que já utilizadas para a escolha da pena. O que não significa que algumas delas não possam ser reavaliadas, embora numa perspectiva diferente, sem ofensa do ne bis in idem (p. ex., numa visão global ou conjunta, para efeito de aplicação da pena relativamente indeterminada ou da pena única no concurso – arts. 77º, n.º 1, e 83º, n.º 1; (…).


Uma vez identificadas, com recurso aos exemplos padrão do art. 71º, n.º 2 (e até do art. 72º, n.º 2, desde que fora da previsão do seu n.º 1), as circunstâncias que relevam para a pena concreta, impõe-se classificá-las enquanto se repercutem nesta através da culpa ou da prevenção – ou mesmo por ambas as vias, já que podem ser ambivalentes (p. ex., a utilização de um instrumento de trabalho – digamos, uma foice – como arma do homicídio, se agrava a ilicitude do facto, é igualmente susceptível de suscitar, nomeadamente se tal uso se mostra frequente, uma determinada postura ou expectativa da comunidade quanto aos termos da reação penal, e ainda de traduzir uma certa atitude ou modo de ser desajustados do agente, havendo então de refletir-se na pena concreta respetivamente através da culpa e da prevenção, geral e especial».


Em suma, a determinação concreta da pena não está dependente de qualquer exercício discricionário ou “arte de julgar” do juiz, não se compadece com o recurso a critérios de índole aritmética, nem almeja uma “precisão matemática”, antes reclama a ponderação e valoração das finalidades das penas e dos critérios da sua escolha e dosimetria, sempre por referência à culpa do agente, como seu necessário pressuposto e limite inultrapassável, em conformidade com o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do CP, no que às penas singulares concerne, ao que acresce, quanto à pena única, conjunta, resultante do cúmulo jurídico das penas fixadas para os crimes em concurso, um critério peculiar estabelecido no seu artigo 77º, n.º 1, in fine, qual seja, o da consideração, “em conjunto, (d)os factos e (d)a personalidade do agente”.


Conforme, aliás, constitui jurisprudência constante do STJ e pode ver-se do seguinte trecho extraído do acórdão de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, que aqui se segue de perto, «A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).


Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).


Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.


Estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º 1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.


Estando em causa a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º 1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.


Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.


Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.


Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no Processo 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.».


À luz de tais considerações, importa verificar a fundamentação do acórdão recorrido a este propósito e se dela emerge ou não alguma dúvida sobre a sua observância, devendo, em caso negativo e em princípio, o tribunal de recurso abster-se de qualquer modificação, pois como tem sido jurisprudência constante do STJ “Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada12.


No que aqui releva, essa fundamentação foi do seguinte teor:


«(…) i) Medida concreta das penas de prisão:


(recursos dos arguidos BB, AA, JJ, FF)


Os recorrentes insurgem-se contra a medida concreta das penas em que foram condenados, que consideram excessivas.


Vejamos.


(…)


Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos e da reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe só o mal necessário, em homenagem ao princípio da subsidiariedade do direito penal, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura penal assim encontrada.


Como acima já aflorado, a respeito da fixação da pena de multa da arguida BB, dando concretização aos vectores enunciados no n.º1 do artigo 71º do Código Penal (culpa do agente e exigências de prevenção), o n.º 2 daquele preceito legal enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação e determinação concreta da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.


A propósito da intervenção do tribunal de recurso, quanto ao controle da fixação concreta da pena, ensina Figueiredo Dias, Direito Penal Português, in As consequências Jurídicas do Crime, cit, págs. 196-197, e constitui jurisprudência uniforme do STJ, que tal intervenção “tem de ser necessariamente “parcimoniosa”, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada (cfr. por todos, Ac STJ de 28-06-2006, Ac Rel. do Porto de 6-1-2013 eAc Rel. de Guimarães de 13-5-2019 e de 17-04-2023, in wwwdgsi.pt)


Ora, no caso em apreço, entende este Tribunal da Relação que as medidas das penas de prisão fixadas aos recorrentes não violam as regras de experiência nem a sua quantificação se revela de todo desproporcionada.


Vejamos mais pormenorizadamente


(…)


(arguido AA)


O arguido AA julga, também ele, serem excessivas as penas parcelares de prisão em que foi condenado. para além de desproporcionais em relação àquelas que sofreu a arguida BB.


Aqui, mais uma vez têm de ser valoradas as elevadas exigências de prevenção geral positiva e a elevada ilicitude e a gravidade das consequências da conduta criminosa, pelas razões acima aduzidas a respeito dos arguidos BB e JJ, que aqui se reproduzem.


Agiu também ele com dolo direto, sendo os sentimentos e motivação da conduta os mesmos dos demais arguidos, acima referido.


Quanto às exigências de prevenção especial, sob a forma de ressocialização do arguido, são muito elevadas. O que se retira dos antecedentes criminais do arguido, com reflexo neste processo, é a ausência de vontade em se deixar motivar pela advertência resultante das condenações anteriores. De facto, foi já condenado pela prática de diversos crimes, como consta da factualidade provada, em penas de multa, em penas de prisão suspensa na sua execução e em penas de prisão efetiva, que cumpriu, incluindo pela prática dos crimes pelos quais foi condenado no Acórdão recorrido. Nenhuma destas condenações serviu pois de suficiente advertência ao arguido no sentido de este infletir o seu percurso criminoso e passar a conduzir a sua conduta pelo respeito ao direito. Demonstra pois o arguido possuir uma personalidade pouco permeável à influência das penas em que foi condenado e indiferente ao dever-ser jurídico-penal.


O arguido está inserido em termos familiares, o que deve ser valorado de forma favorável ao arguido e encontra-se empregado na “a........”, auferindo vencimento mensal ilíquido de € 730,00, a que acrescem € 7,23 por cada dia de trabalho, a título de subsídio de alimentação. Tem um relacionamento amoroso estável com uma jovem que mantém um modo de vida estruturado e socialmente enquadrado, trabalhando no Hospital ..., onde aufere um vencimento líquido de € 900,00.


O arguido compreende a sua situação processual, adotando um discurso coerente e autocritico, expressando receio face a eventuais consequências do presente processo e em abstrato reconhece a censurabilidade de factos similares aos que lhe são imputados no presente processo.


Ponderando todas estes factores, entende-se que a medida concreta da pena está bem fixada e que à pretensão do recorrente de que a pena concreta seja fixada em limite inferior aos 7 anos se opõem, fundamentalmente, as elevadas exigências de prevenção especial, sob a forma de ressocialização do arguido. Saliente-se que esta pena está fixada na metade inferior considerando a moldura penal cominada.


Quanto ao crime de condução sem habilitação legal, têm de se ponderar, as elevadas exigências de prevenção geral positiva, dada a frequência com que crimes de condução sem habilitação legal são cometidos em todo o País e a elevada sinistralidade que se verifica, muita da qual associada ao crime em causa, importando reforçar assim a ideia da validade dos bens jurídicos inerentes às normas violadas.


Por outro lado, o grau de ilicitude do facto é elevado, considerando os locais em conduziu e o período de tempo prolongado em que o fez e o arguido agiu com dolo direto.


No que respeita aos fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, que integram a alínea e), n.º 2 do art.71.º do Código Penal, o Tribunal da Relação, temos de considerar desde logo os antecedentes criminais do arguido, que constam dos factos provados e, nestes, em especial, as condenações que sofreu pela prática de crime de condução sem habilitação legal em penas de multa e de prisão suspensa na sua execução.


Em suma, a condenação do arguido nos presentes autos não é um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito; pelo contrário, é a repetição de condutas criminosas.


As exigências de prevenção especial, sob a forma de ressocialização do arguido são no entanto atenuadas, no que a este crime respeita, pelo facto do arguido ter entretanto obtido a carta de condução, a denotar que de facto interiorizou já a censurabilidade da sua conduta e tirou a carta, não podendo pois cometer novamente este crime e pela inserção familiar e profissional, nos termos já acima expostos.


Considerando todos estes factos entende este Tribunal da Relação que efetivamente é adequada a condenação do arguido na pena de um ano de prisão por cada um destes crimes, pena esta situada no meio da moldura penal.


Se as penas aplicadas a este arguido são superiores àquelas em que a arguida foi condenada é porque as exigências de prevenção especial são distintas quanto aos dois arguidos.


Tudo para concluir pela improcedência do recurso.


(…)


j) Da pena única do concurso: (recursos dos arguidos BB e AA)


. fixação da pena única relativamente à arguida BB:


Em consequência da alteração das penas parcelares, a pena única da arguida BB deve ser reformulada.


Entre nós vigora um sistema de pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico, onde é feita a combinação das várias penas parcelares concretamente fixadas pelo Tribunal, as quais não perdem a sua natureza de fundamentos da pena do concurso. Desta forma, a pena aplicável ao concurso de crimes é uma pena única.


Dispõe o art.º 77º, n.º 1 do CP que: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”


A pena aplicável tem como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, n.º 2, do Código Penal).


Na formação da pena única no concurso de crimes, o Supremo Tribunal de Justiça, evidenciando preocupações de justiça relativa e de equidade, tem adoptado maioritariamente um critério segundo o qual a pena conjunta se há-de encontrar, em resultado da apreciação conjunta dos factos e da personalidade do agente, fazendo acrescer à pena mais grave o produto de uma operação que consiste em comprimir a soma das restantes penas com factores variáveis, mas que se situam, normalmente, entre um terço e um quinto, salvo casos excepcionais, devidamente fundamentados (cfr. Simas Santos-Leal Henriques, Código Penal Anotado, 4ªed., Lisboa, 2015, vol. II, pág. 213).


Sustenta-se no Acórdão STJ de 14-09-201, in www.dgsi.pt: “na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele «pedaço» de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respectiva personalidade, destarte se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade. É esta avaliação global resultante desta interconexão geral, que permite apurar legitimamente o ilícito e culpa global, e perante tais conclusões, aferir in concreto a necessidade de prevenção especial e geral, à luz da amplitude que a apreciação total da actividade criminosa do agente permite”.


Ora, uma vez que a arguida cometeu vinte crimes de condução sem habilitação legal e um crime de tráfico de estupefacientes antes de transitada em julgado a condenação por qualquer um deles, deverá ser-lhe aplicada uma pena única ou de concurso.


Estando em causa penas de diferente natureza- pena de prisão e pena de multa- elas manterão a sua natureza na pena única a fixar.


Relativamente às penas de multa, dentro a moldura fixada nos termos do art.º 77º n.º 2 do CP, a medida da pena deverá ser fixada em função das exigências concretas (já expostas) de culpa e de prevenção, apreciando ainda, de modo conjunto, a personalidade do agente e os factos (art.º 78º n.º 1 do CP).


Assim, considerando que o conjunto dos factos praticados é expressivo de uma atitude de intensa desconsideração pelas regras estradais, por uma deficiente interiorização da importância do bem jurídico por elas diretamente tutelado - a segurança rodoviária - não reconduzível a uma tendência criminosa julgo adequado fixar em 500 dias a pena de multa.


O quantitativo diário da pena de multa fixa-se em €:7,00.


A arguida será assim condenada na pena de 5 anos e 6 meses de prisão e de 500 dias de multa, à taxa diária de €:7,00, o que perfaz €: 35.000,00.


(arguido AA)


O arguido AA foi condenado na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.


O recorrente insurge-se contra a medida da pena única que entende dever antes situar-se no máximo nos 5 anos, sendo suspensa na sua execução


Se bem compreendemos o teor do recurso, a impugnação da pena única foi feita no pressuposto da propugnada elevação das penas parcelares. Nessa perspectiva, a questão estaria prejudicada por se entender que as penas parcelares deverão ser mantidas.


Porque, porém, o recorrente também refere, sem qualquer referência às penas parcelares, que a pena única aplicada ao arguido não dá satisfação às necessidades de “ressocialização e regeneração” que o caso requer, entende-se dever apreciar a questão, embora em termos sintéticos.


Ora, valorando em conjunto as circunstâncias referentes à gravidade dos factos no seu conjunto e o comportamento anterior e posterior aos factos e a personalidade do arguido manifestada nos factos, afigura-se não haver qualquer fundamento para diminuir pena única de 9 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado.


k)- Da substituição da pena aplicada: (recursos dos arguidos BB, AA, FF e CC)


Pugnam os recorrentes pela suspensão da execução da pena de prisão, mas a verdade é que, considerando que as penas de prisão em que foram condenados são superiores a 5 anos, à luz do disposto no art.º 50 do CPP, não tem cabimento legal esta pretensão, improcedendo os recursos interpostos neste segmento.».


*


Na motivação e conclusões do recurso, o arguido AA sustenta o excesso e a desproporcionalidade das penas que lhe foram aplicadas, essencialmente por comparação com as aplicadas à sua então companheira e coarguida BB.


Por isso, optou-se por transcrever também parcialmente a fundamentação do acórdão recorrido relativa às penas, parcelares e única, aplicadas à coarguida BB, de molde e permitir aferir se essa alegação tinha ou não algum fundamento.


Por outro lado, essa parcial transcrição mostra-se igualmente relevante para compreender os fundamentos da fixação da pena única aplicada ao recorrente, na medida em que ela foi sucintamente justificada e em parte por remissão para as considerais gerais a esse propósito desenvolvidas quanto às penas parcelares e à pena única de multa em que aquela coarguida foi condenada.


Dessa transcrição resulta evidenciada a razão da diferenciação da espécie e da medida das penas aplicadas a um e a outro, fundamentalmente assentes nas exigências de prevenção especial, muito mais acentuadas e prementes relativamente ao recorrente, em razão dos seus vastos antecedentes criminais e da ausência deles por parte da coarguida BB.


Tal diferença conduziu à qualificação da conduta da coarguida BB como episódica e não reveladora de uma qualquer tendência criminosa.


A do recorrente, por seu turno e como evidenciado pelos factos provados, apresenta-se quase como o natural culminar de uma vida instável, marcada pelo precoce desenquadramento familiar, escolar e social, de que resultaram múltiplos contactos com o sistema tutelar desde tenra idade e com o próprio sistema de justiça penal, desde o limiar da imputabilidade penal.


Sofreu quinze condenações entre 2011 e 2020, a maioria por crimes da mesma natureza daqueles por que aqui foi condenado, embora, no que ao crime de tráfico concerne, sempre de menor gravidade, e, quanto ao de condução sem habilitação legal, sem registo de acidentes rodoviários, em penas de multa, de substituição e de prisão efetiva por revogação de uma pena de substituição.


Revelou, assim, uma tendência para o cometimento de crimes de condução sem habilitação legal, cuja prática repetida, mesmo depois de por eles condenado, patenteia uma total desconsideração pela advertência contida nessas condenações e pelos valores subjacentes à exigência legal de habilitação, designadamente os da segurança rodoviária e os bens pessoais e patrimoniais associados, como a vida, a integridade física e os inerentes custos de saúde e indemnizatórios socialmente assumidos, pois que não tinha rendimentos lícitos conhecidos, nem hábitos regulares de trabalho, embora sem registo da sua efetiva lesão.


Igual atitude se pode, de certa maneira, descortinar quanto ao tráfico, face ao número de crimes dessa natureza cometidos e pelos quais foi condenado, apesar da sua menor gravidade, sem sentido crítico da sua parte relativamente a esse envolvimento, que assume como normal, porventura por serem práticas associadas ao seu crescimento, considerando o início do consumo de substâncias estupefacientes por volta dos 10 anos de idade.


A par desses e como é comum, outras práticas criminosas foi protagonizando, com as consequentes condenações, sempre benévolas e concedentes de novas e sucessivas oportunidades, que também sistematicamente desaproveitou, como mostram as condenações por crimes de furto, atos preparatórios de crime de perigo, de recetação, resistência e coação e de injúria, atentatórios de outros bens jurídicos socialmente importantes, como o património, a segurança, a autoridade e a honra, assim construindo uma personalidade marcada e assumidamente desconforme ao direito e à convivência social orientada pelos normais padrões da sociedade portuguesa, aos quais se mostrou alheio e indiferente, embora sem nunca atingir graus de superior ou extrema gravidade, como resulta das referidas tipologias criminais e das penas que ao longo daqueles anos lhe foram sendo aplicadas.


Tudo, portanto, a justificar a questionada diferenciação na escolha e medida das penas entre o recorrente e a sua coarguida e companheira BB, mas que, na verdade, não colhe arrimo na comparticipação de ambos nos factos julgados neste processo, de contornos muito semelhantes, em quantidade e em qualidade, agindo quase sempre em conjunto, em operações de vigilância sobre eventuais operações e movimentações policiais, ao serviço e a mando dos “donos do negócio” de aquisição, detenção e transporte dos cerca de 1.000,00 Kg (mil quilogramas) de cannabis descarregados numa praia do ..., embora cientes de que elas tinham em vista a concretização sem sobressaltos policiais desse mesmo negócio.


Não estando agora em causa apreciar as penas parcelares, face à rejeição do recurso nessa parte, optou-se por transcrever parcialmente o acórdão recorrido quanto à fundamentação da escolha e medidas dessas penas, por dela emergir com maior clareza a justificação da referida diferenciação, mas também para perceber se e em qua medida, conjugada com o especial critério determinativo das penas conjuntas, ou seja a apreciação global da ilicitude dos factos na sua unidade relacional e conjunta com a personalidade dos arguidos neles projetada e por eles refletida, se mostram excessivas e desproporcionadas, como alega o recorrente relativamente à que lhe foi imposta.


Ora, dessa apreciação comparativa é possível entrever alguma razão ao recorrente quando alude a um tratamento relativamente injusto do seu caso, não tanto pela diferenciação com a coarguida BB, cuja justificação encontra suporte na sua atuação episódica e não tendencialmente criminosa, ao invés da sua, mas antes pela igualização com os arguidos “donos do negócio”, também eles com significativos antecedentes criminais por crimes da mesma e diferente natureza, a quem foram aplicadas penas de prisão iguais à que lhe foi aplicada pelo crime de tráfico.


Porém, sendo de rejeitar parcialmente o recurso, nomeadamente quanto à impugnação da medida das penas parcelares, aquela circunstância vale como mero registo que não interfere com a manutenção da pena de 7 (sete) anos de prisão sofrida pelo recorrente pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, nem com a sua inelutável consequência de se constituir como limite mínimo da pena única a fixar em cúmulo jurídico das penas em concurso, nos termos do artigo 77º, n.ºs 1 e 2, do CP.


A este propósito, como resulta da correspondente fundamentação acima transcrita, ainda que sucinta e em parte por remissão, pode afirmar-se que o acórdão recorrido se mostra fundado quanto à medida da pena única fixada e aqui em apreço, mantendo-a nos 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão, talqualmente decretada na 1ª instância, 2 (dois) anos e 6 (seis) meses acima do limite mínimo da sua moldura abstrata ou legal.


Ainda assim, considerando o que acima se referiu a propósito da abstenção de princípio do tribunal de recurso na definição do quantum concreto das penas fixadas no acórdão recorrido e da sua observância e respeito pelas operações a realizar e das finalidades e critérios legalmente definidos para a determinação da medida das penas parcelares, haverá, in casu, razões justificativas da redução da pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão nele fixada, dentro da respetiva moldura abstrata, situada entre os 7 (sete) anos e os 17 (dezassete) anos de prisão, nele igualmente considerada?


Como antes se sublinhou, essa possibilidade de intervenção corretiva apenas deverá ter lugar se ocorrer desvio daqueles critérios e parâmetros de que resulte uma situação de injustiça da pena, por desproporcionalidade ou desnecessidade.


Como também já referido, aos critérios gerais de determinação da medida da pena estabelecidos no artigo 71º do CP, acresce, para a pena única, o critério peculiar ou específico previsto no artigo 77º, n.º 1, do mesmo diploma legal, segundo o qual “na medida da pena são considerados , em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, de modo a poder concluir-se se a ilicitude dos factos considerados em conjunto e na sua unidade relacional e em conjugação com a personalidade do arguido neles refletida e por eles evidenciada, aponta para uma “tendência ou mesmo carreira delinquente”, ou antes para uma atuação isolada, episódica ou “(pluri)ocasional”, desvanecendo ou acentuando as necessidades de prevenção especial e, em função disso, fixar a medida da pena em função delas dentro da moldura da prevenção geral, com o limite inultrapassável da culpa.


Vejamos.


O arguido AA, nascido em ........1995, contava à data da prática dos factos, ocorridos entre 1 de abril de 2018 e o dia 15 de outubro de 2020, 23/25 anos, tendo, entretanto, completado os 29 anos.


Apesar da vivência conturbada e dos traços de personalidade antes referidos, com manifestações de uma certa tendência criminosa, quanto ao tráfico de estupefacientes e de condução sem habilitação legal, como os que aqui estão em causa, perspetivando-os como se de algo normal se tratasse e, por conseguinte, com indiferença pelo perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados pelos correspondentes tipos legais, a verdade é que, até ao seu envolvimento no caso sub judice, a ilicitude dos crimes praticados e pelos quais foi condenado, num total de 15, se quedou sempre num nível que se pode qualificar de média/baixa criminalidade, como evidenciam as penas sofridas, só num caso de prisão efetiva, por revogação da suspensão da execução da primitiva pena de prisão, a não obtenção de proventos relevantes dessa atividade e a ausência de acidentes provocados ou de outras graves consequências.


Acresce que, após o cometimento dos factos objeto deste processo, regressou ao lar materno, passando a trabalhar com o padrasto, que exercia a atividade de ... por conta própria, precisamente a área onde tinha feito formação profissional, sem a completar, e conseguiu obter título habilitador do exercício da condução automóvel, apesar da sua baica escolaridade, eliminando o risco de continuação criminosa nesse domínio, que, a par do pequeno trafico, constituiu a parte significativa dos seus antecedentes criminais.


Iniciou também um novo relacionamento com outra companheira, social e laboralmente ativa, enquanto o próprio passou a trabalhar por conta de outrem formalmente enquadrado, auferindo rendimentos conjuntos de cerca de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) mensais, o suficiente para o respetivo sustento, incluindo as despesas com a habitação que arrendaram na cidade de ..., onde coabitam.


Pese embora a referida perspetiva de normalidade com que encarava os delitos cometidos no âmbito do tráfico e da condução de veículos, manifestou no processo sentido crítico e consciência do seu desvalor, o que, associado ao volte-face na organização e estruturação da sua vida pessoal, familiar e social, legitima um juízo de prognose favorável ao seu enquadramento futuro segundo a normatividade vigente.


Atitude que, juntamente com a sua consciência da gravidade dos factos praticados e aceitação das consequências penais deles necessariamente resultantes, designadamente quanto à inevitabilidade e necessidade de cumprimento de um alargado período de reclusão, reforçam aquele juízo de prognose e permitem vislumbrar uma personalidade ainda apta à mudança no sentido do respeito pelas normas e regras jurídicas e sociais, atenuando as necessidades de prevenção geral positiva, de proteção dos bens jurídicos e da manutenção e reforço da vigência das normas infringidas e da confiança no funcionamento do sistema de justiça, e, em particular, as necessidades de prevenção especial de socialização que no caso se fazem sentir, como, aliás, expressamente se reconheceu no acórdão recorrido quanto aos crimes de condução sem habilitação legal.


Juízo positivo e de justificada crença na capacidade regeneradora do arguido também suportado na ausência de registo de novas condenações ou prática de infrações posteriores aos factos por que foi julgado neste processo.


Tudo circunstâncias que, apesar de nele provadas e referidas a propósito da determinação da medida das penas, não se mostram suficientemente valoradas em seu favor no acórdão recorrido, em particular no que à determinação da pena única respeita, pois que, apesar da relativa severidade da pena imposta pelo crime de tráfico de estupefacientes, que fixou o mínimo legal dessa pena em 7 (sete) anos de prisão e, só por si, já reflete a gravidade da conduta do arguido e da sua personalidade neles projetada e refletida, cuja unidade relacional é patente face a natureza instrumental da condução ilegal relativamente à comparticipação no crime de tráfico.


E podia, por questões de justiça relativa e de proporcionalidade, comprimindo o remanescente da moldura penal abstrata do cúmulo, precisamente os 10 (dez) anos de prisão correspondente aos 10 (dez) crimes de condução sem habilitação legal até muito próximo daquele limite mínimo, assim correspondendo à acentuada diminuição das necessidades de prevenção especial que nesse domínio se fazem sentir, sem pôr em risco a satisfação das necessidades de prevenção geral também presentes e sem ofensa dos limites impostos pela culpa, no caso acentuada e na modalidade de dolo direto .


Neste quadro, mesmo considerando que o conjunto dos factos, analisados na sua unidade relacional e por referência à personalidade do arguido, são suscetíveis de revelar uma anterior propensão para a prática daquelas tipologias criminais, situada na denominada média/baixa criminalidade, afigura-se que dela emerge também um vislumbre de possibilidades regeneradoras do arguido, mediante uma forte punição, em prisão efetiva, sob pena de se postergarem as elevadas necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir, mas, do mesmo passo, compatível com as menos acentuadas necessidades de prevenção especial positiva ou de reintegração que nele, agora como à data da condenação, se fazem sentir, em vista da melhor e mais célere ressocialização do recorrente.


Assim sendo, afigura-se que dentro da referida moldura penal abstrata ou legal do cúmulo jurídico, situada entre os 7 (sete) anos e os 17 (dezassete) anos, a pena única de prisão deve sofrer um ajustamento, face à de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses decretada pelo acórdão da primeira instância e confirmada pelo acórdão recorrido, fixando-a em 8 (oito) anos, por se mostrar mais justa, proporcional e bastante para acautelar as finalidades de prevenção geral e especial que neste caso se fazem sentir, em linha, de resto, com a habitual bitola do STJ para situações semelhantes, como ilustra o acórdão de 23.11.2022, proferido no processo n.º 543/19.2PALGS.E1.S1, relatado pelo Conselheiro Ernesto Vaz Pereira, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.


*


Mantendo-se a pena única em medida superior a 5 (cinco) anos de prisão, fica irremediavelmente prejudicada a possibilidade de suspender a respetiva execução, por não verificação do pressuposto formal a tanto necessário estabelecido no artigo 50º, n.º 1, 1ª parte, do CP


IV. Decisão


Em face do exposto, acorda-se em:


a) Rejeitar parcialmente o recurso interposto pelo arguido AA, quanto às penas parcelares sofridas pela prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes e 10 (dez) crimes de condução sem habilitação legal e demais questões suscitadas no recurso a elas direta e exclusivamente respeitantes, outrossim quanto à violação dos princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da presunção da inocência, da inconstitucionalidade, vícios e nulidade do acórdão e do reenvio do processo à 1ª instância para novo julgamento, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.ºs 1, als. e) e f), 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), 432º, n.º 1, al. b), e 434º, todos do CPP;


b) Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido na parte em que confirmou a pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada pela 1ª instância, e condenar o recorrente na pena única de 8 (oito) anos de prisão:


c) Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido;


d) Sem custas.


Lisboa, d. s. c.


(Processado pelo relator e integralmente revisto e assinado digitalmente pelos subscritores)


João Rato (relator)


Vasques Osório (1º adjunto)


Leonor Furtado (2º adjunto)





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1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, ainda inédito.↩︎

2. Considerando a regra da precedência lógica decorrente da aplicação conjugada dos artigos 368º e 369º do CPP, aqui aplicáveis por remissão do seu artigo 424º, nº 2.↩︎

3. Sobre o assunto e em sentido concordante com a posição sustentada no parecer do Ministério Público em sede penal, embora crítico quanto à consagração legal do critério da pena concreta (aplicada) em detrimento da pena abstrata (aplicável), pode ver-se a anotação de Pereira Madeira ao artigo 400º do CPP, in ob. e loc. cit., assim como a resenha jurisprudencial, do Tribunal Constitucional (TC) e do STJ, nela incluída, de que ali também se dá conta.

E, ainda, para além dos muitos indicados no parecer do Ministério Público, os acórdãos do STJ, de 14.10.2021, proferido no processo n.º 255/19.7GAVFX.L1.S1, relatado pelo Conselheiro António Gama, de 17.05.2023, proferido no processo n.º 333/14.9TELSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Pedro Branquinho Dias, e de 29.02.2024, proferido no processo n.º 864/20.1JABRG.G1.S1, relatado pelo Conselheiro Agostinho Torres, todos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

4. Ainda que, como se afirmou no acórdão do STJ, de 31.01.2024, proferido no processo n.º 2540/22.1JAPRT.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, de que foi relator o do presente, com referências doutrinárias e jurisprudenciais no mesmo sentido, essa conclusão não prejudique o dever de retirar da eventual procedência de idênticas questões relativas à pena única recorrível as consequências legalmente impostas quanto às restantes penas aplicadas, numa interpretação aplicativa extensiva, que se tem por necessária, adequada e sem oposição da orientação afirmada no corpo texto, do disposto no artigo 403º, n.º 3, conjugado com o disposto no artigo 402º, do CPP.↩︎

5. A propósito do conhecimento oficioso destes vícios e nulidades e em sintonia com o afirmado no texto, vejam-se Pereira Madeira e Oliveira Mendes em anotação aos artigos 432º e ss. e 410º e 379º do CPP, respetivamente, no Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar [et al.], 3ª Edição Revista, Almedina 2021.↩︎

6. Cfr, entre outros, os acórdãos, de 1.03.2023, 9.03.2023, 11.08.2023 e 15.02.2024, que referencia os três anteriores, cujos relatores são, respetivamente, os Conselheiros Ernesto Vaz Pereira, Helena Moniz, Pedro Branquinho Dias e o do presente, proferidos nos processos n.ºs 589/15.0JABRG.G2.S1, 1368/20.8JABRG.G1.S1, 31/21.7JGLSB.L1.S1 e 135/22.9JAFUN.L1.S1, assim como o antes referenciado, de 29.02.2024, relatado pelo Conselheiro Agostinho Torres, todos disponíveis em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

No mesmo sentido e em geral sobre as implicações, em matéria de recursos, decorrentes da Lei n.º 94/2021, de 21.12, veja-se Nuno A. Gonçalves, Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, in Alterações ao regime do recurso ordinário, no n.º 1 de “A Revista do Supremo Tribunal de Justiça, acessível em https://arevista.stj.pt/?page_id=624.↩︎

7. Cuja alegação se poderia vislumbrar nas conclusões 11ª a 14ª e 19ª a 27ª, ainda que, como se sublinha na resposta do Ministério Público no TRJ, sob a forma de meras proclamações genéricas e sem qualquer concretização por referência ao texto do acórdão recorrido.↩︎

8. Conforme se afirma no citado acórdão do STJ, de 11.08.2023, proferido no processo n.º 31/21.7JGLSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro. Pedro Branquinho Dias, aderindo e citando o acórdão referenciado no texto.↩︎

9. V.g., acórdãos de 30.10.2001 e 2.05.2002, proferidos nos processos n.ºs P2630 e 611/02, respetivamente, relatados pelo Conselheiro Armando Leandro, disponíveis em Sumários dos ACSTJ, no sítio https://www.juris.stj.pt, e de 16.03.2022, proferido no processo n.º 150/11.8JAAVR.P2.S1, relatado pela Conselheira Conceição Gomes, disponível no mesmo sítio e também no https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/,↩︎

10. Nesse sentido, pode ver-se Oliveira Mendes, em anotação ao artigo 379º, no “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar {et..all], supra citado, e correspondente resenha jurisprudencial. Contra, podem ver-se Rui Soares Pereira e Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 379ª, no “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Declaração Europeia dos Direitos Humanos” / org. [de] Paulo Pinto de Albuquerque – Lisboa: UCP Editora, 2023, 2 vol., com vasta resenha jurisprudencial e doutrinária, em ambos os sentidos.↩︎

11. Direito Penal 2, Parte Geral – As consequências Jurídicas do Crime.↩︎

12. Conforme ponto IV do sumário publicado do acórdão de 8.11.2023, proferido no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1, relatado Pela Conselheira Ana Barata Brito, sem prejuízo, naturalmente, da amplitude sindicante dos tribunais de recurso, quando, ainda assim, concluam pela injustiça da pena, por desproporcional ou desnecessidade, como se afirmou, v. g., no acórdão do STJ, de 14.06.2007, proferido no processo n.º 07P1895, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎