Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5149/20.0T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
OBJETO DO RECURSO
FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR
COMPETÊNCIA
CASO JULGADO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONHECIMENTO PREJUDICADO
CONSTITUCIONALIDADE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
PRESIDENTE
CONVOLAÇÃO
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
A decisão da Formação de que, excepcionalmente, cabe recurso de revista do Acórdão da Relação não implica mais do que o dever de este Supremo Tribunal apreciar e decidir as questões suscitadas no recurso, não tendo a virtualidade de “transformar” estas questões noutras questões, designadamente em questões que não tenham sido apreciadas e decididas no Acórdão da Relação.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Notificada do Acórdão proferido em 8.02.2024 por este Supremo Tribunal de Justiça, que negou provimento à revista, vem a recorrente Rodo Cargo, Transportes Rodoviários de Mercadorias, S.A., apresentar reclamação, ao abrigo dos “Artigos 685°, 666° e n°1 e 615° n°1 alínea d) do Código de Processo Civil”.

Os termos da reclamação são os seguintes:

1. Na sua decisão que ora se Reclama, este Colendo Supremo Tribunal decide que a questão de direito perfeitamente autonomizada pela Autora nos articulados 42 a 53 das suas Conclusões de Recurso de Revista Excecional e articulados AA) a HH) das suas Conclusões de Recurso de Apelação não configuram uma questão de apreciação jurídica autónoma, antes apresenta um nexo de dependência face à solução da questão de facto.

2. Salvo melhor entendimento, essa questão encontra-se prejudicada pela decisão proferida pela Formação do Supremo Tribunal de Justiça a que alude o artigo 672º nº3 do Código de Processo Civil.

3. Com efeito, dispõe este artigo o seguinte, nos seus números 3 e 4:

3- A decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis.

4 - A decisão referida no número anterior, sumariamente fundamentada, é definitiva, não sendo suscetível de reclamação ou recurso.

4. Salvo melhor opinião, a referência, no número 4 do artigo 672º do Código de Processo Civil a «decisão definitiva, não sendo suscetível de reclamação ou recurso», importa a formação de caso julgado formal quanto à admissibilidade e apreciação do Recurso de Revista Excecional apresentado perante o Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

5. Assim, foi decidido e determinado pela Formação do Supremo Tribunal de Justiça a que alude o artigo 672º nº3 do Código de Processo Civil que:

Já no que concerne à invocada relevância social, importa deixar expresso que, muito embora o quadro fáctico considerado nos autos seja muito específico, a verdade é que a apreciação a empreender por este Supremo Tribunal de Justiça é suscetível de generalização, tendo em especial consideração a circunstância de proliferarem nos nossos Tribunais litígios associados ao incumprimento, por parte das seguradoras, dos procedimentos legais tendentes à regularização de sinistros. A intervenção clarificadora por parte deste Supremo Tribunal de Justiça poderá assumir-se como referência, quer para os Tribunais que sejam colocados perante questões similares às dos autos, quer ainda para as seguradoras e sinistrados no âmbito da regularização de litígios.

A existência de um referencial decisório nesta matéria servirá, estamos certos, para clarificar e orientar os diversos intervenientes na regularização de sinistros em situações futuras.”. Ora, esta considerações são, inteiramente, transponíveis para o caso que nos ocupa, na medida em que também aqui se discute em que situações pode a ré seguradora ser condenada a pagar aos segurados uma indemnização pelo atraso na assunção ou não assunção de responsabilidade pelos danos emergentes de sinistro automóvel.

5.1. Em face do exposto, mantendo-se atuais as considerações então tecidas, deve a presente revista ser admitida com fundamento na relevância social da questão em análise nos autos.


6. Dispõe o artigo 205º nº2 da Constituição da República Portuguesa que as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.

7. O Colendo Tribunal Reclamado não respeitou a decisão proferida anteriormente quanto à admissibilidade da Revista Excecional, violando tal preceito Constitucional, o que importa a invalidade do douto Acórdão Reclamado, nos termos e para os efeitos do artigo 3º nº3 da Lei Fundamental.

8. Não obstante, sempre se dirá que o douto Tribunal Reclamado viola ainda e concomitantemente o disposto no artigo 620º nº1 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

9. Dúvidas não existem que o Acórdão proferido pela Formação do Supremo Tribunal de Justiça a que alude o artigo 672º nº3 do Código de Processo Civil determinou expressamente o seguinte:

10. No seguimento do que expressamente se invoca nas Conclusões 2 e 3 do Recurso de Revista Excecional apresentado perante este Colendo Supremo Tribunal:

1. As questões que se ora se colocam sob apreciação deste Supremo Tribunal e que se encontram prejudicados pela solução de Direito preconizada pelo Venerando Tribunal Recorrido, são:

A definição do que se deve considerar assunção, ou não assunção de responsabilidade, nos termos resultantes da conjugação dos números 1 e 2 do artigo 38º, dos números 1 e 2 do artigo 40º e do número 1 do artigo 43º do Decreto-Lei 291/2007;

A violação do artigo 483º do Código Civil, no que diz respeito, em bloco, ao Instituto da Responsabilidade Civil Aquiliana, em especial em que nenhum dos dois intervenientes de um acidente de viação foi ressarcido dos prejuízos sofridos;

A incorreta atribuição de culpa ao condutor do veículo propriedade da ora Recorrente, decorrente da presunção legal do artº 503º, nº 3º, do C.C., que assim se entende dever ser objeto de reapreciação quanto à prova produzida, bem como quanto à presunção jurídica que foi ilidida, constituindo este tema objeto do Recurso de Apelação.

2. No que diz respeito à aplicação do Decreto-lei 291/2007, em especial, qual a natureza que essas normas especiais revelam face ao ordenamento jurídico nacional e europeu e se quer a aplicação dos prazos previstos nos artigos 38º, 40º e 43º, conjugados com o artigo 36º, do Decreto-Lei 291/2007, assim como a aplicação da figura da sanção cível prevista no número 2 do artigo 40º do citado normativo, se encontram condicionadas à aplicação de qualquer figura de direito interno, como a culpa do lesado ou abuso de direito ou mesmo se é possível estender a interpretação da lei de tal forma que nela caibam soluções não previstas pelo legislador europeu.

11. O Colendo Tribunal Reclamado violou expressamente este trecho decisório, pois inexistem dúvidas para a Formação do Supremo Tribunal de Justiça a que alude o artigo 672º nº3 do Código de Processo Civil que a questão de Direito é autónoma e foi autonomizada para ser devidamente apreciada por este Colendo Tribunal Reclamado.

12. Face à gravidade da violação do Acórdão proferido pela Formação do Supremo Tribunal de Justiça a que alude o artigo 672º nº3 do Código de Processo Civil, que não só determinou a apreciação do Recurso de Revista Excecional como delimitou a sua apreciação de forma expressa e inequívoca à apreciação da assunção de responsabilidade da Ré, nos termos resultantes da conjugação dos nºs 1 e 2 do artigo 40º e do nº1 do artigo 43º do Decreto-lei 291/2007, deverá a questão da violação do caso julgado formal e, consequentemente, dos artigos 620º nº1 do Código de Processo Civil e 205º nº2 da Constituição da República Portuguesa, ser apreciada pelo Presidente deste Colendo Tribunal Reclamado”.


*


Como resulta, designadamente, da parte final da alegação 12, a presente reclamação é dirigida ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

A apresentação de reclamação dirigida ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não é, definitivamente, um meio idóneo para reclamar do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal.

Como se verá, o que está em causa é a arguição da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e, sendo assim, ao abrigo do princípio da gestão processual (cfr. artigo 6.º do CPC), convola-se a presente reclamação para o Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em reclamação para a Conferência, nos termos do artigo 615.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC.

Aprecie-se, pois.

Dispõe-se no artigo 613.º do CPC:

1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos”.

Tentando encontrar, no quadro das alegações, fundamento para uma reclamação deste tipo e não se vendo que haja lugar a qualquer rectificação de erros materiais ou à reforma do Acórdão – nem havendo sinal de que o reclamante o requeira –, resta apreciar se existe alguma nulidade que caiba suprir.

A única norma relevante para este efeito que se encontra em toda a reclamação é do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, pelo que é à luz dela que se apreciará a presente reclamação.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC:

É nula a sentença quando: (…) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Interpretando esta arguição à luz das alegações, parece poder concluir-se que aquilo que o recorrente pretende alegar é a omissão de pronúncia, portanto, o disposto na parte inicial deste preceito.

Ora, lendo o Acórdão reclamado, logo se verifica que tal nulidade não se verifica.

Como se refere neste Acórdão, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).

Não havendo questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir era, em concreto, a de saber se o Tribunal recorrido [havia] decidi[do] bem ao considerar prejudicada a apreciação da questão de direito”.

E esta (única) questão foi decidida naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ora impugnado – foi decidida no sentido da confirmação da decisão recorrida e com a seguinte fundamentação:

Resulta claro deste excerto que o Tribunal recorrido, não obstante ter formulado, a partir do recurso de apelação da autora, duas questões a apreciar (1. - A impugnação da matéria de facto; 2. – Na procedência da [impugnação da] matéria de facto, se foi ilidida a presunção de culpa atribuída ao motorista da Recorrente e as consequências dessa ilisão), não apreciou senão a questão de facto.

Decidiu o Tribunal recorrido – e esta foi a única decisão apreciada e decidida – que era improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e que, face a isto, estavam prejudicadas a apreciação e a decisão da questão de direito.

Consequentemente, a única questão que é possível apreciar neste recurso admitido pela Formação é a de saber se o Tribunal recorrido decidiu bem ao considerar prejudicada a apreciação da questão de direito, com o fundamento a que a recorrente alude, mais ou menos explicitamente, nas conclusões 1 e 18 a 24, qual seja a violação dos artigos 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.

Para responder é preciso conhecer os precisos termos em que são enunciadas as duas questões no recurso de apelação.

Ora, analisando de perto as conclusões de apelação, o que se verifica é que, depois de numerosas considerações exclusivamente relevantes para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a autora / apelante termina assim:

“Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão na realização do nobre míster de sindicância judicial, deverá a douta sentença recorrida ser revogada, e após (re)apreciação da prova, substituída por outra que considere ilidida a presunção de culpa atribuída ao motorista da Recorrente, e único culpado o condutor do veículo seguro na Recorrida, o Sr. AA, e em consequência condenar esta ultima a ressarcir os danos considerados como provados nos autos, condenando-a ainda na compensação legal reclamada pela Recorrente por violação, por aquela, do disposto no artº 40º do D.L. nº 291/2007, pelo seu comportamento omissivo que resultou no não impulsionar, tal como lhe competia, o processo de regularização de sinistro dos seus segurados, do qual resultaram os prejuízos reclamados pela ora Recorrente, tudo como resulta do legalmente prescrito, dos factos provados e do senso comum, assim se realizando em resultado da conjugação de todos estes fatores, o que ora se pede, que é justiça”.

Quer isto dizer que foi a própria autora / apelante que subordinou a apreciação da questão de direito à procedência da alteração da decisão sobre a matéria de facto, estabelecendo, assim, uma relação de dependência entre os dois grupos de questões (de direito e de facto).

Ora, se assim foi, é apenas lógico que o Tribunal recorrido, depois de ter rejeitado a alteração da decisão sobre a matéria de facto, tenha considerado prejudicada a apreciação da questão de direito.

Dispõe-se no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que a recorrente entende ter sido violado, na parte relevante:

“O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

Como é visível, o Tribunal recorrido não só não violou esta norma como actuou em plena conformidade com ela: decidiu a questão que tinha o dever de decidir (questão de facto) e só não decidiu a outra questão (questão de direito) porque a sua decisão ficou prejudicada pela decisão da questão anterior, ou seja, a questão que não tinha o dever nem o poder de decidir.

O argumento a que a recorrente insistentemente se refere – a questão de direito ser autonomízável – não altera o facto de que a questão não é ou surge, com efeito, como autónoma. É que a recorrente, enquanto apelante, não a autonomizou, estabelecendo, pelo contrário, um nexo de dependência relativamente à solução da questão de facto, como se viu acima.

Nesta linha de raciocínio, não resta senão concluir que não há, tão-pouco, a nulidade por omissão de pronúncia a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.

Quanto à alegada violação dos artigos 607.º, n.º 4, e 639.º, n.º 2, do CPC, só pode dizer-se que não se enxerga – e nem a recorrente explica – como o Tribunal recorrido poderia tê-los violado, dado que, para começar, nem se vê que eles tenham alguma relevância para a questão aqui em apreço. Não se vislumbra, em suma, qualquer violação1.

Esclareça-se ainda – já que o reclamante se lhe refere – que a única função da Formação é a de, em apreciação liminar sumária, verificar os pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 672.º do CPC e, em consequência, decidir sobre a admissibilidade do recurso.

Assim, a decisão da Formação de que, excepcionalmente, cabia recurso de revista do Acórdão da Relação proferido nos presentes autos não implica mais do que um dever para este Supremo Tribunal – o dever de apreciar e decidir a única questão suscitada, não tendo a virtualidade de “transformar” esta única questão noutra questão que não houvesse sido apreciada nem decidida naquele Acórdão da Relação.

Finalmente, quanto à inconstitucionalidade arguida pelo reclamante, diga-se que ela tão-pouco se verifica.

A norma da lei fundamental cuja violação é invocada é a do artigo 205.º, n.º 2.

Dispõe-se nesta norma:

As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”.

Pressupõe-se que, com esta arguição, o reclamante pretende alegar que o Acórdão reclamado desrespeitou decisão da Formação.

Mas não lhe assiste razão.

Em apreciação liminar sumária, a Formação pronunciou-se no sentido da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 672.º do CPC, logo, no sentido do cabimento do recurso. Em respeito por esta decisão da Formação, o recurso foi apreciado e decidido, pelo que não há de todo desrespeito.


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DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.


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Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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Lisboa, 4 de Abril de 2024

Catarina Serra

Isabel Salgado

Fernando Baptista

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1. Sublinhados nossos.