Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:063/20.2BALSB
Data do Acordão:04/21/2021
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:PLENO
IVA
Sumário:Nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações (inputs promíscuos) através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação.
Nº Convencional:JSTA000P27543
Nº do Documento:SAP20210421063/20
Data de Entrada:07/02/2020
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A……………, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso para uniformização de jurisprudência da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD no processo n.º 408/2019-T
Recorrente: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)
Recorrida: “A…………., S.A.”

1. RELATÓRIO

1.1 A AT veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, para uniformização de jurisprudência, da decisão arbitral proferida em 23 de Março de 2020 pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) no processo n.º 408/2019-T (Disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&id=4712.), por oposição com o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 15 de Novembro de 2017 no processo com o n.º 485/17 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/306d68b8ec0b1c8b802581df004ee563.). Alegou o recurso, com conclusões do seguinte teor:

«A. O Recurso Para Uniformização de Jurisprudência previsto e regulado no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos tem como finalidade a resolução de um conflito sobre a mesma questão fundamental de direito, devendo o STA, no caso concreto, proceder à anulação da decisão arbitral e realizar nova apreciação da questão em litígio quando suscitada e demonstrada tal contradição pela parte vencida.

B. Ora, desde logo, quanto ao estabelecido pelas regras que determinam os requisitos de admissibilidade deste tipo de recursos, resulta que, para que se tenha por verificada a oposição de acórdãos, é necessário que i) as situações de facto sejam substancialmente idênticas; ii) haja identidade na questão fundamental de direito; iii) se tenha perfilhado nos dois arestos uma solução oposta; e iv) a oposição decorra de decisões expressas e não apenas implícitas.

C. No que concerne ao requisito das situações de facto substancialmente idênticas, temos, subjacente ao acórdão recorrido, a factualidade melhor descrita nas alegações, para cuja leitura se remete.

D. Subjacente ao Acórdão Fundamento, encontrava-se factualidade também descrita nas alegações, e para cuja leitura igualmente se remete.

E. Aqui chegados, e considerando a factualidade supra aludida, fica, desde logo, demonstrado que entre o acórdão recorrido e o Acórdão Fundamento existe uma manifesta identidade de situações de facto.

F. Estava em causa em ambos os processos aferir da determinação da percentagem do IVA dedutível, resultante dos custos suportados pelo sujeito passivo com serviços de utilização mista, afectos tanto a operações tributadas como a operações isentas.

G. O acórdão fundamento entendeu que, de acordo com o decidido pelo TJUE, C-183/12, o artigo 23.º, n.º 2, 3 e 4 do CIVA constitui a transposição do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, desembocando na conclusão, de que os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira, a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

H. Mas, enquanto no Acórdão Fundamento se entendeu, na senda do Processo C-183/13, os Estados-Membros «podem obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira, a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos»,

I. Concluindo que “não ocorre, pois, violação do disposto neste apontado art. 23.º do CIVA, nem dos invocados arts. 74.º a 76.º da LGT, nem ilegalidade decorrente de violação dos invocados princípios (neutralidade fiscal do IVA, igualdade de tratamento entre sujeitos passivos, segurança jurídica, protecção da confiança legítima dos sujeitos passivos), nem se vislumbrando inconstitucionalidade por violação do princípio da separação de poderes (arts. 2.º e 111.º), do princípio da legalidade (art. 112.º, n.º 5), do princípio de reserva de lei [arts. 103.º e 165.º, n.º 1, al. i)] e do princípio do acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º e 268.º, n.º 4), todos da CRP.”

J. Já no acórdão recorrido se entendeu em sentido oposto, tendo o Tribunal arbitral entendido que a possibilidade conferida pelo artigo 173.º, n.º 2, c) da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, aos seus Estados Membros de «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», i.e., a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º não foi transposta para o Código do IVA nacional.

K. Em suma, entre a decisão recorrida e o Acórdão fundamento existe uma patente e inarredável contradição sobre as mesmas questões fundamentais de direito que importa dirimir mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação da decisão recorrida, com substituição da mesma por novo acórdão que decida definitivamente a questão controvertida acolhendo o decidido no acórdão Fundamento.

L. Sobre esta matéria já esse douto tribunal teve oportunidade de se pronunciar no sentido por nós defendido, vejam-se os Acórdãos de 29.10.2014 (proc. n.º 01075/13), 03.06.2015 (proc. n.º 0970/13), 07.06.2015 (proc. n.º 01874/13), 27.01.2016 (proc. n.º 0331/14), 5.11.2017 (proc. n.º 0485/17) 09.10.2019, (proc. n.º 0401/14.7BEPRT), de 04.03.2020 (proc. n.º 52/19.0BALSB) e (proc. n.º 7/19.4BALSB).

M. Neste mesmo sentido, aliás, também se pronunciaram os árbitros vencidos nos processos arbitrais n.ºs 442/2019-T (Professor Sérgio Vasques) e processo arbitral n.º 408/2019-T (Dra. Sofia Borges).

N. Termos em que é de concluir, também relativamente a esta matéria, dever esse Tribunal Superior acolher o entendimento perfilhado no Acórdão Fundamento.

O. De tudo o que acima se deixou, decorre encontrar-se o acórdão recorrido em desconformidade com todos os preceitos e princípios acima referidos, não merecendo, por isso, ser mantido na ordem jurídica.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência:
- ser admitido, por verificados os respectivos pressupostos; e
- ser julgado procedente, nos termos e com os fundamentos acima indicados e, consequentemente, revogada a decisão arbitral recorrida, sendo substituída por outra consentânea com o quadro jurídico vigente, como é de Direito e Justiça».

1.2 O recurso foi admitido.

1.3 A Recorrida apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:

«I. Perante decisão desfavorável à AT (proferida em Tribunal Arbitral), aquela entidade decidiu recorrer ao STA por entender que existem dois acórdãos que apesar de versarem sobre situações de facto substancialmente idênticas, e sobre a mesma questão fundamental de direito, comportam decisões opostas.

II. A AT alega que em ambos os arestos (Acórdão Recorrido e Acórdão Fundamento), se está perante sujeitos passivos que, a par de operações financeiras isentas de IVA, realizam operações sujeitas a IVA e do mesmo não isentas, tais como a locação mobiliária. E, no âmbito da determinação do IVA dedutível relativo a recursos de utilização mista, aplicaram um pro rata, tendo considerado, para efeitos da determinação da percentagem de dedução, no que concerne às operações de locação financeira, o montante anual correspondente aos juros e outros encargos, excluindo a componente de amortização de capital contida nas rendas da locação financeira.

III. Salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrida deixar de discordar de tal entendimento.

IV. Os factos que a AT elenca para justificar a existência de uma alegada identidade factual não são os factos relevantes para determinar a existência ou falta dessa identidade.

V. De facto, os dois acórdãos sob escrutínio não assentam sobre situações de facto substancialmente idênticas.

VI. Ao passo que, no Acórdão Fundamento apenas se verificam e, consequentemente, apenas se analisam os custos relativos ao financiamento e gestão no âmbito dos contratos de locação financeira, no Acórdão Recorrido reconhece-se que a AT, em momento algum concretizou ou provou que a utilização dos bens e serviços pela Recorrida fosse sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

VII. De referir, para além do imediatamente supra exposto que no Acórdão Recorrido, contrariamente ao que se verifica no Acórdão Fundamento, estão em causa sobretudo custos inerentes à disponibilização das viaturas.

VIII. Desta forma, ficando demonstrada a falta de identidade entre as situações de facto que cada um dos Acórdãos sob escrutínio comporta, resulta evidente que os pressupostos para que se esteja perante uma situação de oposição de acórdãos, susceptível de recurso para o STA, não estão verificados.

IX. Adicionalmente, não pode, também, a aqui Recorrida, deixar de notar que as questões de direito em causa no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento não são idênticas.

X. Entende a Recorrente que a questão de direito subjacente a ambos os Acórdãos aqui sob escrutínio era a de saber se esta (a AT), poderia impor a uma instituição de crédito que fosse sujeito passivo misto em sede de IVA, na determinação do seu pro rata dedutível para efeitos do cálculo deste imposto, que considerasse apenas os juros, excluindo da fracção a parte referente à amortização das rendas dos contratos de locação financeira e os valores de alienação / abate por destruição dos bens locados.

XI. No entanto, na decisão proferida no Acórdão Recorrido não se apreciou propriamente essa questão. Na verdade, a Recorrida imputou, a título principal, à autoliquidação impugnada e à decisão proferida no âmbito do pedido de revisão oficiosa que a confirmou, ilegalidades atinentes às normas regulamentares do Ofício-Circulado n.º 30108 e à sua validade.

XII. Mais concretamente, a Recorrida invocou aquando da submissão do pedido de pronúncia arbitral três ilegalidades, todas referentes ao Ofício-Circulado n.º 30108, sendo a questão da incompatibilidade dessa solução com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Directiva IVA meramente subsidiária.

XIII. Ora, além de não ter sido essa a questão invocada pela Recorrida, também não foi sobre essa mesma questão que versou a decisão arbitral aqui em análise. Foi antes sobre o vício de ofensa ao princípio da legalidade que se pronunciou o Tribunal Arbitral, dando procedência ao pedido, nunca chegando a ser apreciada a questão subsidiária de saber se o regime em apreço é ou não compatível com o Direito da União Europeia.

XIV. Com efeito, a questão de saber se, à face dos artigos 103.º n.º 2, 112.º n.º 5, e 165.º n.º 1 alínea i) da CRP é permitida a criação de normas inovatórias sobre métodos de efectuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável) por via de um ofício-circulado emitido pela Direcção Geral de Impostos, como se prevê no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (questão subjacente ao Acórdão Recorrido), é uma questão distinta da de saber se o Estado Português podia, por via legislativa, criar tais métodos, ante o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva IVA (questão subjacente ao Acórdão Fundamento).

XV. Falta, portanto, também identidade na questão fundamental de direito subjacente ao Acórdão Recorrido e ao Acórdão Fundamento.

XVI. Do exposto, nenhuma outra conclusão se pode retirar senão a de que o recurso por oposição de acórdãos, interposto pela Recorrente, não deverá proceder.

Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o recurso em apreço ser dado como improcedente, por não provado e, em consequência, manter-se válida na ordem jurídica a sentença proferida pelo Tribunal a quo, tudo com as legais consequências».

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso seja admitido, lhe seja concedido provimento e, em consequência, seja anulada a douta decisão arbitral recorrida, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal Arbitral para que profira nova decisão em conformidade com o presente julgado, após ampliação da matéria de facto fixada.
Quanto à admissão do recurso, o Procurador-Geral-Adjunto, após enunciar os requisitos de admissibilidade, deixou dito o seguinte:
«Na verdade, tanto no caso subjacente à decisão arbitral recorrida como no caso sob exame no acórdão fundamento estamos perante sujeitos passivos que são instituições de crédito abrangidas pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei 298/92, de 31/12 (RGICSF) e que exercem, entre outras, actividades de leasing (locação financeira) e de concessão de crédito ao consumo.
Nos exercícios fiscais sob análise em cada um dos processos, ambos os sujeitos passivos estavam enquadrados no regime normal mensal de I.V.A., enquanto sujeitos passivos mistos, ou seja, enquanto contribuintes que exercem actividades sujeitas a esse imposto e outras do mesmo tributo isentas.
Nos dois casos, ambos os sujeitos passivos corrigiram os valores deduzidos a título provisório ao longo do exercício fiscal por força da aplicação de um “pro rata” definitivo, que foi determinado para o respectivo ano ao abrigo das instruções veiculadas pelo Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30/01/2009.
No Acórdão Fundamento entendeu-se, na senda do Processo C-183/13, decidido pelo TJUE a 10 de Julho de 2014, que o artigo. 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE, do Conselho, de 17/05/1977, “não se opõe a que um Estado-membro obrigue um banco que efectue, concomitantemente com a respectiva actividade geral bancária, operações de locação financeira, dedução dos bens e serviços de utilização mista” apenas “a dita parte componente dos juros incluídos nas rendas de contratos de locação financeira, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão destes contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos”,
Mais incumbindo “ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efectivamente esse o caso”.
Em consequência, o mesmo acórdão considerou legal o acto tributário objecto do processo, o qual foi estruturado ao abrigo das instruções veiculadas pelo citado Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30/01/2009.
Na douta decisão arbitral recorrida pode ler-se “Não se desconhece a possibilidade conferida pelo artigo 173.º, n.º 2, c) da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, aos seus Estados Membros de «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», mas tal possibilidade não foi transposta para o Código do IVA nacional, i.e., a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do mesmo código.
E, não tendo essa possibilidade sido acolhida por via legislativa, não a pode aplicar a AT, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT)”.
É, pois, manifesto que em face de quadros factuais substancialmente idênticos e envolvidos no mesmo panorama jurídico, os arestos em confronto ditaram soluções divergentes sobre a mesma questão fundamental de direito.
Assim, nestes termos, verificam-se os requisitos para a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, porquanto:
As situações de facto na decisão arbitral recorrida e no acórdão fundamento são idênticas;
A matéria de direito apreciada na decisão recorrida e na decisão fundamento são idênticas;
Consequentemente, perfilham-se nos acórdãos em causa soluções opostas, pois tanto as situações de facto, como a matéria de direito são idênticas».
Quanto ao mérito do recurso, expendeu os seguintes considerandos:
«A questão controvertida traduz-se em saber se a AT pode corrigir o pro rata, desconsiderando o montante relativo à amortização financeira contido nas rendas.
Ressalvado o, sempre, devido respeito por opinião contrária, afigura-se ser de seguir a posição do acórdão fundamento.
Uma vez que, esta questão foi já objecto de decisão em três Acórdãos recentes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do S.T.A., em sentido que aqui se reitera e cujos textos estão integralmente disponíveis em www.dgsi.pt,
Orientação jurisprudencial que se pode, actualmente, ter por consolidada (cf. Acórdãos do S.T.A.-Pleno da 2.ª Secção, 4/03/2020, rec. 7/19.4BALSB; 4/03/2020, rec. 52/19.0BALSB; 30/09/2020, rec. 95/19.3BALSB).
Adere-se, pois, à jurisprudência consolidada do STA, cujo discurso fundamentador aqui se dá por reproduzido.
Não resulta do probatório e dos autos se a utilização dos bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.
Ora, a aquisição dessa matéria de facto para os autos e para a qual o STA é incompetente é essencial para, em função da jurisprudência do TJUE, aferir se a parcela das rendas dos contratos relativa à amortização do capital deve ou não constar do numerador e do denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução (Neste sentido citado acórdão do Pleno do STA, de 4/03/2020, rec. 7/19.4BALSB).
Termos em que se impõe anular, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, a decisão arbitral impugnada, para ser substituída por outra que decida após a ampliação da base factual necessária para a aplicação do direito, de acordo com o que o regime jurídico, ora, sustentado.
Pelo que se nos afigura que o recurso merece provimento».

1.5 Cumpre apreciar e decidir em conferência no Pleno desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 O acórdão arbitral recorrido deu como provados os seguintes factos:

«1- A Requerente desenvolve a actividade de “Outra Intermediação Monetária” encontrando-se enquadrada no CAE 64190.

2- Para efeitos de IVA, configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.

3- Caracteriza-se por ser um sujeito passivo “misto”, uma vez que exerce actividades que conferem direito à dedução (nas quais se incluem as relativas à locação financeira mobiliária) e também realiza operações no âmbito da actividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.

4- No âmbito dos contratos de Leasing outorgados pela Requerente nos primeiros três períodos de 2011, a Requerente, a solicitação e indicação do locatário (cliente), adquiriu veículos a terceiros, procedendo ao pagamento integral e a pronto do mesmo, acrescido de IVA, entregando-o de imediato para uso e fruição ao respectivo locatário.

5- Como contrapartida pela referida prestação de serviços, o Locatário ficou obrigado a pagar à Requerente uma retribuição a qual assumiu a forma de renda.

6- Para a determinação do valor da renda foram considerados o preço de aquisição do bem (veículo), os encargos e a margem de lucro.

7- Nos termos dos contratos de Leasing outorgados pelo Requerente, o locatário podia, no final do contrato e se assim o pretendesse, adquirir o bem ao locador, mediante o pagamento do valor residual, correspondendo este, em média, a 5% do valor do contrato.

8- Em 2010, foram outorgados pela Requerente 2850 contratos de Leasing, tendo a maior parte dos mesmos sido integralmente cumpridos e uma pequena parte resolvidos por incumprimento do locatário.

9- Nos contratos efectivamente cumpridos foi transferida a propriedade dos veículos, por força da cláusula de opção pela compra do bem e mediante o pagamento do valor residual, em cerca de 97% dos casos.

10- No âmbito dos contratos de ALD Financeiro outorgados pela Requerente, nos primeiros três meses de 2011, esta adquiriu veículos a terceiros, procedendo ao pagamento imediato do mesmo, cedendo-o, ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato, ao Locatário, para uso e fruição que abrangesse “a maior parte da vida útil do bem”.

11- Como contrapartida pela prestação de serviços realizada, o locatário ficou obrigado a pagar à Requerente uma retribuição, a qual assumiu a forma de renda.

12- Para a determinação do valor da renda foram considerados, designadamente, o preço de aquisição do bem (veículo), os demais encargos e a margem de lucro.

13- Nos contratos de ALD Financeiro outorgados pela Requerente, o locatário tinha a possibilidade de, no final do contrato, adquirir o bem ao locador mediante o pagamento de um montante adicional.

14- Em 2010, foram outorgados 4747 contratos de ALD Financeiro, parte dos quais foram integralmente cumpridos e os restantes foram resolvidos por incumprimento e, dos contratos efectivamente cumpridos, foi transferida a propriedade, por força da cláusula de opção pela compra do bem e mediante o pagamento do valor residual, em cerca de 87% dos casos.

15- Nas situações em que não houve transmissão de propriedade, os veículos foram vendidos pela Requerente a diversas entidades (leiloeiras), acrescendo nas vendas o IVA.

16- Nos casos em que os contratos foram resolvidos por ocorrência de perda total do bem, o locatário ficava obrigado, nos termos do contrato de locação financeira, a pagar o capital em dívida.

17- Nestes casos, a Requerente emitiu uma factura pelo montante em dívida ao qual acresceu o respectivo IVA.

18- Em 18-02-2011, a Requerente submeteu via Internet a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Janeiro de 2011.

19- Em 07-03-2011, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Fevereiro de 2011.

20- Em 06-04-2011, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Março de 2011.

21- Para efeitos de dedução do IVA dos bens de utilização mista, e porque no âmbito da sua actividade realizou operações de locação financeira (Leasing e ALD), a Requerente adoptou o método de coeficiente de imputação específico previsto no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 Janeiro 2009, e apurou uma percentagem de dedução definitiva de 24% para o ano de 2011, do qual resultou uma dedução de IVA de € 134.510,65.

22- A Requerente deduziu nas declarações periódicas relativas aos três primeiros períodos de 2011, o IVA com base no cálculo do pro rata, utilizando o critério previsto no referido Ofício-Circulado.

23- Na determinação do pro rata a Requerente desconsiderou no numerador as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.

24- Caso a dedução do IVA dos recursos comuns de 2011 tivesse sido efectuada tendo em conta no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA, e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, o pro rata ascenderia a 68%, sendo que o IVA susceptível de dedução ascenderia a € 381.113,52 e não a € 134.510,65 como apurou.

25- A Requerente apresentou em 19-05-2011, impugnação judicial tendo por objecto os actos de autoliquidação de IVA relativos aos períodos de 2011/01, 2011/02 e 2011/03.

26- O processo de impugnação judicial n.º .../11...BELRS, encontrava-se a aguardar decisão em primeira instância, na Unidade Orgânica 2, do Tribunal Tributário de Lisboa pelo que a Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro requereu a extinção do processo de impugnação judicial para ser submetido ao tribunal arbitral que funciona sob a égide do CAAD»;

2.1.1.2 considerou-se ainda, quanto ao julgamento da matéria de facto:

«[…] o Requerente não alegou, nem consequentemente, provou, que “nas operações de locação financeira para o sector automóvel, como as que estão em causa nos presentes autos, que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de electricidade ou outros serviços transversais, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos”, pelo que não pode o presente Tribunal dar como provados, ou não provados tais factos».

2.1.2 No acórdão fundamento, consideraram-se provados os seguintes factos:

«1) Foi emitida, pela Área de Gestão Tributária do IVA – Gabinete do Subdiretor-Geral dos Impostos, instrução administrativa, correspondente ao ofício n.º 30.108, de 30.01.2009, da qual consta designadamente o seguinte:
“1. O ofício circulado n.º 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23.º do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista.
2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23.º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (n.º 3 art. 23.º).
3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o nº 2 do artigo 23.º, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante.
4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.
5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.
6. Face à anterior redacção do artigo 23.º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas.
No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um pro rata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.
7. Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.
8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.
9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.
Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA” (cfr. fls. 165 a 167).

2) A impugnante foi constituída por escritura pública outorgada em Dezembro de 1996, então com a designação B………….., SA, tendo sido indicado como objecto social a realização de operações bancárias e financeiras e prestação de serviços conexos, designadamente a concessão de crédito ao consumo e a locação financeira (cfr. fls. 175 e 176).

3) A impugnante, no exercício da sua actividade e nomeadamente em 2010, estava enquadrada no regime normal mensal de IVA e realizou operações financeiras isentas de IVA, a par de operações sujeitas a IVA, designadamente operações de locação mobiliária, consubstanciadas em celebração de contratos de locação financeira (leasing) e contratos de aluguer de veículo automóvel sem condutor (ALD financeiro), onde se prevê a possibilidade de compra do veículo pelo locatário (cfr. fls. 258 a 283).

4) No âmbito das operações de locação mencionadas em 3), designadamente em 2010, a impugnante, em alguns casos a solicitação e por indicação dos locatários, adquiriu determinados veículos, pagando integralmente o respectivo preço e entregando-os ao locatário para seu uso e fruição (cfr. fls. 258 a 283).

5) Na sequência do mencionado em 3) e 4), eram pagas à impugnante, pelos locatários, rendas, as quais englobam uma parte relativa a amortização financeira e outra parte relativa a juros e outros encargos, renda essa sujeita a IVA (cfr. fls. 258 a 283 e 286).

6) A parte da renda mencionada em 5) relativa a amortização financeira era registada na contabilidade da impugnante a crédito da conta 22.

7) A parte da renda mencionada em 5) relativa a juros era registada na contabilidade da impugnante como proveito.

8) No âmbito dos contratos de locação mencionados em 3), resolvidos por motivo de perda total do bem, os locatários pagaram à impugnante o valor correspondente ao capital em dívida, sendo emitida a correspondente factura pela impugnante com IVA (cfr. fls. 258 a 272 e 285).

9) Na sequência da celebração dos contratos de locação mencionados em 3), resolvidos por incumprimento ou nos quais não houve transmissão da propriedade, a impugnante vendeu os veículos a diversas entidades, sendo emitida a correspondente factura pela impugnante, com IVA (cfr. fls. 284).

10) Na concessão de crédito para estudo, viagens ou mobiliário e outras não sujeitas a IVA a impugnante não liquidou IVA, liquidando o Imposto do Selo na parte relativa aos juros (cfr. fls. 288 e 289).

11) Durante o ano de 2010 a impugnante apurou um volume de facturação, relativo a leasing e ALD financeiro no valor de 264.684.163,31 Eur. (cfr. fls. 163).

12) Durante o ano de 2010 a impugnante apurou um volume de facturação, relativo a concessão de crédito no valor de 84.914.092,66 Eur. (cfr. fls. 163).

13) Durante o ano de 2010, a impugnante suportou custos, em relação aos quais não conseguiu determinar especificamente a que operações, das mencionadas em 3), respeitavam.

14) Durante o ano de 2010, a impugnante utilizou dois métodos para cálculo do IVA dedutível:
a) Afectação real, relativo à actividade de locação financeira e à actividade isenta de IVA, quanto aos custos nos quais foi possível estabelecer um nexo directo e imediato;
b) Pra rata específico, relativo aos custos comuns à actividade tributada e à actividade isenta, mencionados em 13) (cfr. fls. 163).

15) Durante o ano de 2010, a impugnante utilizou, nas declarações periódicas de IVA relativas aos meses compreendidos entre Janeiro e Novembro, um pro rata provisório de 69% (cfr. declarações periódicas constantes de fls. 129 a 162 e 210 a 219).

16) O pro rata provisório mencionado em a incluiu, nos respectivos numerador e denominador, entre outros os valores mencionados em 5), 8) e 9).

17) A impugnante calculou um pro rata definitivo para 2010 de 24%, com base em entendimento da AT mencionado na instrução administrativa referida em a), calculado considerando no numerador o valor de 25.826.262,96 Eur. e no denominador o valor de 110.740.355,62 Eur. (cfr. mapa de cálculo constante de fls. 163).

18) Na sequência do referido em 17), a impugnante apresentou declaração de periódica de IVA relativa ao mês de Dezembro de 2010, considerando os métodos mencionados em 14) e o valor do pro rata mencionado em 17), na qual declarou os seguintes valores:
a) Campo 61: 943.442,32 Eur.;
b) Campo 94: 1.632.562,74 Eur. (fls. 206 e 207)»

No mesmo acórdão, ainda no âmbito do julgamento da matéria de facto, ficou ainda registado:

«Com interesse para a decisão e em cumprimento do ordenado no douto Acórdão do STA, de 03.06.2015 referido supra (Recurso n.º 970/13-30), considera-se não provado o seguinte facto:

A) Os custos mencionados em 13) respeitam em parte à disponibilização, por parte da impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3) e 5).

Não existem outros factos, provados ou não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».
Assim, o regime de interposição do recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo difere do regime do recurso previsto no art. 152.º do CPTA, na medida em que aquele tem de ser apresentado no prazo de 30 dias contado da notificação da decisão arbitral, enquanto neste o prazo se conta do trânsito em julgado do acórdão recorrido, como decorre da alínea a) do n.º 2 do referido art. 152.º (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, pág. 230.).
Já quanto ao acórdão fundamento, o recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe o seu trânsito em julgado (art. 688.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 140.º, n.º 3, do CPTA e do 281.º do CPPT), como tem vindo a afirmar este Supremo Tribunal Administrativo (Vide os seguintes acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 3 de Julho de 2013, proferido no processo n.º 1136/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5de4971b1ddd0a7580257ba400383aad;
- de 18 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 1158/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/295e8f40a7270b6480257bf600347ab3;
- de 26 de Fevereiro de 2014, proferido no processo n.º 1470/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8e637a116db5400680257c94005c11e8.), condição verificada no caso sub judice.
Assim, e não havendo dúvidas quanto aos demais requisitos formais (legitimidade da Recorrente e tempestividade do recurso), há que passar a averiguar se estão verificados os requisitos substanciais da admissibilidade do recurso.
Só depois, se for caso disso, passaremos a conhecer do mérito do recurso.

2.2.2 DOS REQUISITOS SUBSTANCIAIS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

2.2.2.1 Nos termos do referido art. 25.º, n.º 2, do RJAT, que remete, com as devidas adaptações, para o art. 152.º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral que tenha conhecido do mérito da pretensão deduzida para uniformização de jurisprudência são os seguintes:
i) que exista, relativamente à mesma questão fundamental de direito, contradição entre essa decisão e uma outra decisão arbitral ou de um acórdão proferido por algum dos tribunais centrais administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, relativamente à mesma questão fundamental de direito,
ii) que a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984 e da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:

i. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;
ii. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica;
iii. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

2.2.2.2 Cumpre ter presente que a AT tem recorrido de idênticas decisões do CAAD com fundamento em oposição de acórdãos e invocando como fundamento o mesmo acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, recursos que o Pleno tem vindo a decidir, sempre no mesmo sentido, sendo até que já uniformizou jurisprudência quanto à questão controvertida (Vide, por mais recentes, os seguintes acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 20 de Janeiro de 2021, proferido no processo n.º 101/19.1BALSB, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/91bfabc98c8f5cef802586680048da06;
- de 24 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 84/19.8BALSB, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/56b3dcf61913aeab8025868b0050cb9a;
- de 24 de Março de 2021, proferido no processo com o n.º 87/20.0BALSB, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/c4ba25ab6080f680802586a4005e821f.).
Assim, tendo presente o disposto no art. 8.º, n.º 3, do Código Civil e a finalidade dos acórdãos de uniformização de jurisprudência (Que visam garantir a certeza do direito e o princípio da igualdade, evitando que decisões judiciais que envolvam a mesma lei e a mesma questão de direito obtenham dos tribunais respostas diferentes.), limitamo-nos a remeter, nos termos dos arts. 663.º, n.º 5, e 679.º do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT, para a fundamentação do referido acórdão de 24 de Março de 2021, proferido no processo com o n.º 87/20.0BALSB – que uniformizou jurisprudência no sentido de que «[n]os termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação» –, para concluirmos, como aí, pela procedência do recurso e pela anulação da decisão arbitral recorrida.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em tomar conhecimento do mérito do recurso e, concedendo-lhe provimento, anular a decisão arbitral recorrida.

Custas pela Recorrida, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por o presente acórdão ser meramente remissivo, o que configura a menor complexidade da causa para este efeito [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi da do art. 281.º do CPPT, e art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais].


*

Dispensamos a junção do acórdão para que remetemos, por indicarmos onde o mesmo pode ser consultado.

*

Comunique-se ao CAAD.

*

Assinado digitalmente pelo relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros que integram a formação de julgamento.

*
Lisboa, 21 de Abril de 2021. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (Relator) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Paulo José Rodrigues Antunes - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Anabela Ferreira Alves e Russo.

Segue acórdão de 24 de Novembro de 2021:

Arguição de nulidade do acórdão proferido pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo no recurso para uniformização de jurisprudência da decisão proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD no processo n.º 408/2019-T
Requerente: “A…………, S.A.”
Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1.
1.1 Notificada do acórdão por que a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo pretendeu decidir o recurso para uniformização de jurisprudência de decisão arbitral proferida pelo CAAD acima identificada – concedendo provimento ao recurso e anulando a decisão arbitral recorrida – veio a sociedade Recorrida, ao abrigo do disposto no 125.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT, arguir a nulidade desse aresto, por nele, por erro manifesto, se ter considerado outra factualidade que não a que foi dada como assente na decisão arbitral recorrida e pedir que, declarada que seja essa nulidade, a mesma seja suprida, com a prolação de novo acórdão.
Para a eventualidade de se considerar que o referido erro não constitui nulidade, pediu, subsidiariamente, que se proceda à reforma do acórdão, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 616.º do CPC.

1.2 A AT – Recorrente e ora Requerida – não respondeu.

1.3 Cumpre apreciar e decidir em conferência (como o impõe o n.º 2 do art. 666.º do CPC, subsidiariamente aplicável) do Pleno desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

2.
2.1. É manifesta a razão da Requerente quanto ao invocado erro na indicação da matéria de facto, que manifestamente não respeita à decisão arbitral recorrida. Por incorrecta utilização dos meios informáticos, a matéria de facto aí transcrita é de uma outra decisão arbitral que não a sob recurso.

2.2 Independentemente da qualificação jurídica desse erro e das suas repercussões sobre a fundamentação jurídica do acórdão, é manifesto que cumpre supri-lo, anulando o acórdão recorrido e substituindo-o por outro.

3.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em deferir a reclamação, anular o acórdão proferido nestes autos em 21 de Abril de 2021 e substituí-lo, o que passamos a fazer de imediato:
Processo n.º 63/20.2BALSB
Recurso para uniformização de jurisprudência da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD no processo n.º 408/2019-T
Recorrente: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)
Recorrida: “A…………, S.A.”

1. RELATÓRIO

1.1 A AT veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, para uniformização de jurisprudência, da decisão arbitral proferida em 23 de Março de 2020 pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) no processo n.º 408/2019-T (Disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&id=4712.), por oposição com o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 15 de Novembro de 2017 no processo com o n.º 485/17 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/306d68b8ec0b1c8b802581df004ee563.). Alegou o recurso, com conclusões do seguinte teor:

«A. O Recurso Para Uniformização de Jurisprudência previsto e regulado no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos tem como finalidade a resolução de um conflito sobre a mesma questão fundamental de direito, devendo o STA, no caso concreto, proceder à anulação da decisão arbitral e realizar nova apreciação da questão em litígio quando suscitada e demonstrada tal contradição pela parte vencida.

B. Ora, desde logo, quanto ao estabelecido pelas regras que determinam os requisitos de admissibilidade deste tipo de recursos, resulta que, para que se tenha por verificada a oposição de acórdãos, é necessário que i) as situações de facto sejam substancialmente idênticas; ii) haja identidade na questão fundamental de direito; iii) se tenha perfilhado nos dois arestos uma solução oposta; e iv) a oposição decorra de decisões expressas e não apenas implícitas.

C. No que concerne ao requisito das situações de facto substancialmente idênticas, temos, subjacente ao acórdão recorrido, a factualidade melhor descrita nas alegações, para cuja leitura se remete.

D. Subjacente ao Acórdão Fundamento, encontrava-se factualidade também descrita nas alegações, e para cuja leitura igualmente se remete.

E. Aqui chegados, e considerando a factualidade supra aludida, fica, desde logo, demonstrado que entre o acórdão recorrido e o Acórdão Fundamento existe uma manifesta identidade de situações de facto.

F. Estava em causa em ambos os processos aferir da determinação da percentagem do IVA dedutível, resultante dos custos suportados pelo sujeito passivo com serviços de utilização mista, afectos tanto a operações tributadas como a operações isentas.

G. O acórdão fundamento entendeu que, de acordo com o decidido pelo TJUE, C-183/12, o artigo 23.º, n.º 2, 3 e 4 do CIVA constitui a transposição do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, desembocando na conclusão, de que os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira, a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

H. Mas, enquanto no Acórdão Fundamento se entendeu, na senda do Processo C-183/13, os Estados-Membros «podem obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira, a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos»,

I. Concluindo que “não ocorre, pois, violação do disposto neste apontado art. 23.º do CIVA, nem dos invocados arts. 74.º a 76.º da LGT, nem ilegalidade decorrente de violação dos invocados princípios (neutralidade fiscal do IVA, igualdade de tratamento entre sujeitos passivos, segurança jurídica, protecção da confiança legítima dos sujeitos passivos), nem se vislumbrando inconstitucionalidade por violação do princípio da separação de poderes (arts. 2.º e 111.º), do princípio da legalidade (art. 112.º, n.º 5), do princípio de reserva de lei [arts. 103.º e 165.º, n.º 1, al. i)] e do princípio do acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º e 268.º, n.º 4), todos da CRP.

J. Já no acórdão recorrido se entendeu em sentido oposto, tendo o Tribunal arbitral entendido que a possibilidade conferida pelo artigo 173.º, n.º 2, c) da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, aos seus Estados Membros de «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», i.e., a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º não foi transposta para o Código do IVA nacional.

K. Em suma, entre a decisão recorrida e o Acórdão fundamento existe uma patente e inarredável contradição sobre as mesmas questões fundamentais de direito que importa dirimir mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação da decisão recorrida, com substituição da mesma por novo acórdão que decida definitivamente a questão controvertida acolhendo o decidido no acórdão Fundamento.

L. Sobre esta matéria já esse douto tribunal teve oportunidade de se pronunciar no sentido por nós defendido, vejam-se os Acórdãos de 29.10.2014 (proc. n.º 01075/13), 03.06.2015 (proc. n.º 0970/13), 07.06.2015 (proc. n.º 01874/13), 27.01.2016 (proc. n.º 0331/14), 5.11.2017 (proc. n.º 0485/17) 09.10.2019, (proc. n.º 0401/14.7BEPRT), de 04.03.2020 (proc. n.º 52/19.0BALSB) e (proc. n.º 7/19.4BALSB).

M. Neste mesmo sentido, aliás, também se pronunciaram os árbitros vencidos nos processos arbitrais n.ºs 442/2019-T (Professor Sérgio Vasques) e processo arbitral n.º 408/2019-T (Dra. Sofia Borges).

N. Termos em que é de concluir, também relativamente a esta matéria, dever esse Tribunal Superior acolher o entendimento perfilhado no Acórdão Fundamento.

O. De tudo o que acima se deixou, decorre encontrar-se o acórdão recorrido em desconformidade com todos os preceitos e princípios acima referidos, não merecendo, por isso, ser mantido na ordem jurídica.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência:
- ser admitido, por verificados os respectivos pressupostos; e
- ser julgado procedente, nos termos e com os fundamentos acima indicados e, consequentemente, revogada a decisão arbitral recorrida, sendo substituída por outra consentânea com o quadro jurídico vigente, como é de Direito e Justiça».

1.2 O recurso foi admitido.

1.3 A Recorrida apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:

«I. Perante decisão desfavorável à AT (proferida em Tribunal Arbitral), aquela entidade decidiu recorrer ao STA por entender que existem dois acórdãos que apesar de versarem sobre situações de facto substancialmente idênticas, e sobre a mesma questão fundamental de direito, comportam decisões opostas.

II. A AT alega que em ambos os arestos (Acórdão Recorrido e Acórdão Fundamento), se está perante sujeitos passivos que, a par de operações financeiras isentas de IVA, realizam operações sujeitas a IVA e do mesmo não isentas, tais como a locação mobiliária. E, no âmbito da determinação do IVA dedutível relativo a recursos de utilização mista, aplicaram um pro rata, tendo considerado, para efeitos da determinação da percentagem de dedução, no que concerne às operações de locação financeira, o montante anual correspondente aos juros e outros encargos, excluindo a componente de amortização de capital contida nas rendas da locação financeira.

III. Salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrida deixar de discordar de tal entendimento.

IV. Os factos que a AT elenca para justificar a existência de uma alegada identidade factual não são os factos relevantes para determinar a existência ou falta dessa identidade.

V. De facto, os dois acórdãos sob escrutínio não assentam sobre situações de facto substancialmente idênticas.

VI. Ao passo que, no Acórdão Fundamento apenas se verificam e, consequentemente, apenas se analisam os custos relativos ao financiamento e gestão no âmbito dos contratos de locação financeira, no Acórdão Recorrido reconhece-se que a AT, em momento algum concretizou ou provou que a utilização dos bens e serviços pela Recorrida fosse sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

VII. De referir, para além do imediatamente supra exposto que no Acórdão Recorrido, contrariamente ao que se verifica no Acórdão Fundamento, estão em causa sobretudo custos inerentes à disponibilização das viaturas.

VIII. Desta forma, ficando demonstrada a falta de identidade entre as situações de facto que cada um dos Acórdãos sob escrutínio comporta, resulta evidente que os pressupostos para que se esteja perante uma situação de oposição de acórdãos, susceptível de recurso para o STA, não estão verificados.

IX. Adicionalmente, não pode, também, a aqui Recorrida, deixar de notar que as questões de direito em causa no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento não são idênticas.

X. Entende a Recorrente que a questão de direito subjacente a ambos os Acórdãos aqui sob escrutínio era a de saber se esta (a AT), poderia impor a uma instituição de crédito que fosse sujeito passivo misto em sede de IVA, na determinação do seu pro rata dedutível para efeitos do cálculo deste imposto, que considerasse apenas os juros, excluindo da fracção a parte referente à amortização das rendas dos contratos de locação financeira e os valores de alienação / abate por destruição dos bens locados.

XI. No entanto, na decisão proferida no Acórdão Recorrido não se apreciou propriamente essa questão. Na verdade, a Recorrida imputou, a título principal, à autoliquidação impugnada e à decisão proferida no âmbito do pedido de revisão oficiosa que a confirmou, ilegalidades atinentes às normas regulamentares do Ofício-Circulado n.º 30108 e à sua validade.

XII. Mais concretamente, a Recorrida invocou aquando da submissão do pedido de pronúncia arbitral três ilegalidades, todas referentes ao Ofício-Circulado n.º 30108, sendo a questão da incompatibilidade dessa solução com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Directiva IVA meramente subsidiária.

XIII. Ora, além de não ter sido essa a questão invocada pela Recorrida, também não foi sobre essa mesma questão que versou a decisão arbitral aqui em análise. Foi antes sobre o vício de ofensa ao princípio da legalidade que se pronunciou o Tribunal Arbitral, dando procedência ao pedido, nunca chegando a ser apreciada a questão subsidiária de saber se o regime em apreço é ou não compatível com o Direito da União Europeia.

XIV. Com efeito, a questão de saber se, à face dos artigos 103.º n.º 2, 112.º n.º 5, e 165.º n.º 1 alínea i) da CRP é permitida a criação de normas inovatórias sobre métodos de efectuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável) por via de um ofício-circulado emitido pela Direcção Geral de Impostos, como se prevê no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (questão subjacente ao Acórdão Recorrido), é uma questão distinta da de saber se o Estado Português podia, por via legislativa, criar tais métodos, ante o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva IVA (questão subjacente ao Acórdão Fundamento).

XV. Falta, portanto, também identidade na questão fundamental de direito subjacente ao Acórdão Recorrido e ao Acórdão Fundamento.

XVI. Do exposto, nenhuma outra conclusão se pode retirar senão a de que o recurso por oposição de acórdãos, interposto pela Recorrente, não deverá proceder.

Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o recurso em apreço ser dado como improcedente, por não provado e, em consequência, manter-se válida na ordem jurídica a sentença proferida pelo Tribunal a quo, tudo com as legais consequências».

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso seja admitido, lhe seja concedido provimento e, em consequência, seja anulada a douta decisão arbitral recorrida, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal Arbitral para que profira nova decisão, após ampliação da matéria de facto fixada.
Quanto à admissão do recurso, o Procurador-Geral-Adjunto, após enunciar os requisitos de admissibilidade, deixou dito o seguinte:
«Na verdade, tanto no caso subjacente à decisão arbitral recorrida como no caso sob exame no acórdão fundamento estamos perante sujeitos passivos que são instituições de crédito abrangidas pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei 298/92, de 31/12 (RGICSF) e que exercem, entre outras, actividades de leasing (locação financeira) e de concessão de crédito ao consumo.
Nos exercícios fiscais sob análise em cada um dos processos, ambos os sujeitos passivos estavam enquadrados no regime normal mensal de I.V.A., enquanto sujeitos passivos mistos, ou seja, enquanto contribuintes que exercem actividades sujeitas a esse imposto e outras do mesmo tributo isentas.
Nos dois casos, ambos os sujeitos passivos corrigiram os valores deduzidos a título provisório ao longo do exercício fiscal por força da aplicação de um “pro rata” definitivo, que foi determinado para o respectivo ano ao abrigo das instruções veiculadas pelo Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30/01/2009.
No Acórdão Fundamento entendeu-se, na senda do Processo C-183/13, decidido pelo TJUE a 10 de Julho de 2014, que o artigo. 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE, do Conselho, de 17/05/1977, “não se opõe a que um Estado-membro obrigue um banco que efectue, concomitantemente com a respectiva actividade geral bancária, operações de locação financeira, dedução dos bens e serviços de utilização mista” apenas “a dita parte componente dos juros incluídos nas rendas de contratos de locação financeira, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão destes contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos”,
Mais incumbindo “ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efectivamente esse o caso”.
Em consequência, o mesmo acórdão considerou legal o acto tributário objecto do processo, o qual foi estruturado ao abrigo das instruções veiculadas pelo citado Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30/01/2009.
Na douta decisão arbitral recorrida pode ler-se “Não se desconhece a possibilidade conferida pelo artigo 173.º, n.º 2, c) da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, aos seus Estados Membros de «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», mas tal possibilidade não foi transposta para o Código do IVA nacional, i.e., a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do mesmo código.
E, não tendo essa possibilidade sido acolhida por via legislativa, não a pode aplicar a AT, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT)”.
É, pois, manifesto que em face de quadros factuais substancialmente idênticos e envolvidos no mesmo panorama jurídico, os arestos em confronto ditaram soluções divergentes sobre a mesma questão fundamental de direito.
Assim, nestes termos, verificam-se os requisitos para a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, porquanto:
As situações de facto na decisão arbitral recorrida e no acórdão fundamento são idênticas;
A matéria de direito apreciada na decisão recorrida e na decisão fundamento são idênticas;
Consequentemente, perfilham-se nos acórdãos em causa soluções opostas, pois tanto as situações de facto, como a matéria de direito são idênticas».
Quanto ao mérito do recurso, expendeu os seguintes considerandos:
«A questão controvertida traduz-se em saber se a AT pode corrigir o pro rata, desconsiderando o montante relativo à amortização financeira contido nas rendas.
Ressalvado o, sempre, devido respeito por opinião contrária, afigura-se ser de seguir a posição do acórdão fundamento.
Uma vez que, esta questão foi já objecto de decisão em três Acórdãos recentes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do S.T.A., em sentido que aqui se reitera e cujos textos estão integralmente disponíveis em www.dgsi.pt,
Orientação jurisprudencial que se pode, actualmente, ter por consolidada (cf. Acórdãos do S.T.A.-Pleno da 2.ª Secção, 4/03/2020, rec. 7/19.4BALSB; 4/03/2020, rec. 52/19.0BALSB; 30/09/2020, rec. 95/19.3BALSB).
Adere-se, pois, à jurisprudência consolidada do STA, cujo discurso fundamentador aqui se dá por reproduzido.
Não resulta do probatório e dos autos se a utilização dos bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.
Ora, a aquisição dessa matéria de facto para os autos e para a qual o STA é incompetente é essencial para, em função da jurisprudência do TJUE, aferir se a parcela das rendas dos contratos relativa à amortização do capital deve ou não constar do numerador e do denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução (Neste sentido citado acórdão do Pleno do STA, de 4/03/2020, rec. 7/19.4BALSB).
Termos em que se impõe anular, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, a decisão arbitral impugnada, para ser substituída por outra que decida após a ampliação da base factual necessária para a aplicação do direito, de acordo com o que o regime jurídico, ora, sustentado.
Pelo que se nos afigura que o recurso merece provimento».

1.5 Cumpre apreciar e decidir em conferência no Pleno desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 O acórdão arbitral recorrido deu como provados os seguintes factos:

«a) O Requerente é uma instituição de crédito cujo objecto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, com sede em território nacional.

a) [ (A alínea a) está repetida no original.)] No âmbito da sua actividade, o Requerente realiza determinadas operações que se enquadram nas operações financeiras que se encontram abrangidas pelo n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, nomeadamente, financiamento/concessão de crédito, que configuram isenções simples ou incompletas, não conferindo direito à dedução.

b) O Requerente pratica simultaneamente outro tipo de operações financeiras, como a celebração de contratos de locação financeira mobiliária e custódia de títulos que conferem direito à dedução (artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA).

c) Nestes termos, tendo em consideração a natureza das actividades praticadas, o Requerente qualifica-se como sujeito passivo “misto”.

d) Para efeitos de exercício do direito à dedução, nas situações em que identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, o Requerente aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa ao abrigo do n.º 1 do artigo 20.º do Código do Código do IVA, como foi o caso da aquisição de viaturas para locação financeira.

e) Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem direito à dedução, o Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

f) Por outro lado, nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objectivos do nível/grau de utilização efectiva, aplicou o método da afectação real, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, como foi o caso dos encargos especificamente associados à aquisição de Terminais de Pagamento Automático.

g) Relativamente às restantes operações, afectas à aquisição de bens e serviços de utilização mista (comuns ou residuais), recorreu ao método de coeficiente de imputação específico, obedecendo à fórmula prevista no Ofício-Circulado n.º 30.108, da Área da Gestão Tributária do IVA que, no que concerne às operações de leasing determina que apenas deve ser considerado, no cálculo da percentagem de dedução, o montante anual correspondente aos juros e outros encargos, excluindo-se a componente de amortização de capital contida nas rendas da locação financeira.

h) Nessa medida, o Requerente apurou uma percentagem de dedução definitiva de 7%.

i) A aplicação da referida percentagem aos bens e serviços de utilização mista, determinou um valor a deduzir de € 110.868,71.

j) Na hipótese de não ter excluído da fracção (do numerador e do denominador, como fez) os montantes respeitantes às amortizações financeiras do leasing a percentagem de dedução definitiva teria sido de 28%.

k) A aplicação de uma percentagem de 28% conduziria a um IVA dedutível no valor de € 443.474,84.

l) O Requerente entregou ao longo do exercício de 2014, mensalmente, as declarações periódicas de IVA para os vários períodos, determinando o montante de IVA a deduzir provisoriamente, tendo procedido ao respectivo ajustamento/regularização do IVA deduzido na declaração do último período do ano em causa, ou seja, em Dezembro de 2014, através do cálculo e aplicação do coeficiente de imputação específico definitivo determinado de acordo com o previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA.

m) O Requerente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 98.º do Código do IVA, Pedido de Revisão Oficiosa da autoliquidação de imposto referente ao referido período de imposto, em 28 de Dezembro de 2018 (cfr. PA).

n) O Pedido de Revisão Oficiosa veio a ser indeferido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, por despacho de 14 de Março de 2019».


*

2.1.2 No acórdão fundamento, consideraram-se provados os seguintes factos:

«1) Foi emitida, pela Área de Gestão Tributária do IVA – Gabinete do Subdiretor-Geral dos Impostos, instrução administrativa, correspondente ao ofício n.º 30.108, de 30.01.2009, da qual consta designadamente o seguinte:
1. O ofício circulado n.º 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23.º do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista.
2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23.º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (n.º 3 art. 23.º).
3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o nº 2 do artigo 23.º, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante.
4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.
5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.
6. Face à anterior redacção do artigo 23.º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas.
No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um pro rata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.
7. Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.
8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.
9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.
Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA” (cfr. fls. 165 a 167).

2) A impugnante foi constituída por escritura pública outorgada em Dezembro de 1996, então com a designação B…………, SA, tendo sido indicado como objecto social a realização de operações bancárias e financeiras e prestação de serviços conexos, designadamente a concessão de crédito ao consumo e a locação financeira (cfr. fls. 175 e 176).

3) A impugnante, no exercício da sua actividade e nomeadamente em 2010, estava enquadrada no regime normal mensal de IVA e realizou operações financeiras isentas de IVA, a par de operações sujeitas a IVA, designadamente operações de locação mobiliária, consubstanciadas em celebração de contratos de locação financeira (leasing) e contratos de aluguer de veículo automóvel sem condutor (ALD financeiro), onde se prevê a possibilidade de compra do veículo pelo locatário (cfr. fls. 258 a 283).

4) No âmbito das operações de locação mencionadas em 3), designadamente em 2010, a impugnante, em alguns casos a solicitação e por indicação dos locatários, adquiriu determinados veículos, pagando integralmente o respectivo preço e entregando-os ao locatário para seu uso e fruição (cfr. fls. 258 a 283).

5) Na sequência do mencionado em 3) e 4), eram pagas à impugnante, pelos locatários, rendas, as quais englobam uma parte relativa a amortização financeira e outra parte relativa a juros e outros encargos, renda essa sujeita a IVA (cfr. fls. 258 a 283 e 286).

6) A parte da renda mencionada em 5) relativa a amortização financeira era registada na contabilidade da impugnante a crédito da conta 22.

7) A parte da renda mencionada em 5) relativa a juros era registada na contabilidade da impugnante como proveito.

8) No âmbito dos contratos de locação mencionados em 3), resolvidos por motivo de perda total do bem, os locatários pagaram à impugnante o valor correspondente ao capital em dívida, sendo emitida a correspondente factura pela impugnante com IVA (cfr. fls. 258 a 272 e 285).

9) Na sequência da celebração dos contratos de locação mencionados em 3), resolvidos por incumprimento ou nos quais não houve transmissão da propriedade, a impugnante vendeu os veículos a diversas entidades, sendo emitida a correspondente factura pela impugnante, com IVA (cfr. fls. 284).

10) Na concessão de crédito para estudo, viagens ou mobiliário e outras não sujeitas a IVA a impugnante não liquidou IVA, liquidando o Imposto do Selo na parte relativa aos juros (cfr. fls. 288 e 289).

11) Durante o ano de 2010 a impugnante apurou um volume de facturação, relativo a leasing e ALD financeiro no valor de 264.684.163,31 Eur. (cfr. fls. 163).

12) Durante o ano de 2010 a impugnante apurou um volume de facturação, relativo a concessão de crédito no valor de 84.914.092,66 Eur. (cfr. fls. 163).

13) Durante o ano de 2010, a impugnante suportou custos, em relação aos quais não conseguiu determinar especificamente a que operações, das mencionadas em 3), respeitavam.

14) Durante o ano de 2010, a impugnante utilizou dois métodos para cálculo do IVA dedutível:
a) Afectação real, relativo à actividade de locação financeira e à actividade isenta de IVA, quanto aos custos nos quais foi possível estabelecer um nexo directo e imediato;
b) Pro rata específico, relativo aos custos comuns à actividade tributada e à actividade isenta, mencionados em 13) (cfr. fls. 163).

15) Durante o ano de 2010, a impugnante utilizou, nas declarações periódicas de IVA relativas aos meses compreendidos entre Janeiro e Novembro, um pro rata provisório de 69% (cfr. declarações periódicas constantes de fls. 129 a 162 e 210 a 219).

16) O pro rata provisório mencionado em a) incluiu, nos respectivos numerador e denominador, entre outros os valores mencionados em 5), 8) e 9).

17) A impugnante calculou um pro rata definitivo para 2010 de 24%, com base em entendimento da AT mencionado na instrução administrativa referida em a), calculado considerando no numerador o valor de 25.826.262,96 Eur. e no denominador o valor de 110.740.355,62 Eur. (cfr. mapa de cálculo constante de fls. 163).

18) Na sequência do referido em 17), a impugnante apresentou declaração de periódica de IVA relativa ao mês de Dezembro de 2010, considerando os métodos mencionados em 14) e o valor do pro rata mencionado em 17), na qual declarou os seguintes valores:
a) Campo 61: 943.442,32 Eur.;
b) Campo 94: 1.632.562,74 Eur. (fls. 206 e 207)»

No mesmo acórdão, ainda no âmbito do julgamento da matéria de facto, ficou também registado:

«Com interesse para a decisão e em cumprimento do ordenado no douto Acórdão do STA, de 03.06.2015 referido supra (Recurso n.º 970/13-30), considera-se não provado o seguinte facto:

A) Os custos mencionados em 13) respeitam em parte à disponibilização, por parte da impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3) e 5).

Não existem outros factos, provados ou não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa».

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».
Assim, o regime de interposição do recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo difere do regime do recurso previsto no art. 152.º do CPTA, na medida em que aquele tem de ser apresentado no prazo de 30 dias contado da notificação da decisão arbitral, enquanto neste o prazo se conta do trânsito em julgado do acórdão recorrido, como decorre da alínea a) do n.º 2 do referido art. 152.º (Cf. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, pág. 230.) .
Já quanto ao acórdão fundamento, o recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe o seu trânsito em julgado (art. 688.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 140.º, n.º 3, do CPTA e do 281.º do CPPT), como tem vindo a afirmar este Supremo Tribunal Administrativo (Vide os seguintes acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 3 de Julho de 2013, proferido no processo n.º 1136/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5de4971b1ddd0a7580257ba400383aad;
- de 18 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 1158/12, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/295e8f40a7270b6480257bf600347ab3;
- de 26 de Fevereiro de 2014, proferido no processo n.º 1470/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/8e637a116db5400680257c94005c11e8.), condição verificada no caso sub judice.
Assim, e não havendo dúvidas quanto aos demais requisitos formais (legitimidade da Recorrente e tempestividade do recurso), há que passar a averiguar se estão verificados os requisitos substanciais da admissibilidade do recurso.
Só depois, se for caso disso, passaremos a conhecer do mérito do recurso.

2.2.2 DOS REQUISITOS SUBSTANCIAIS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

2.2.2.1 Nos termos do referido art. 25.º, n.º 2, do RJAT, que remete, com as devidas adaptações, para o art. 152.º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral que tenha conhecido do mérito da pretensão deduzida para uniformização de jurisprudência são os seguintes:
i) que exista, relativamente à mesma questão fundamental de direito, contradição entre essa decisão e uma outra decisão arbitral ou de um acórdão proferido por algum dos tribunais centrais administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, relativamente à mesma questão fundamental de direito,
ii) que a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984 e da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:

i. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;
ii. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica;
iii. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

2.2.2.2 Cumpre ter presente que a AT tem recorrido de idênticas decisões do CAAD com fundamento em oposição de acórdãos e invocando como fundamento o mesmo acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, recursos que o Pleno tem vindo a decidir, sempre no mesmo sentido, sendo até que já uniformizou jurisprudência quanto à questão controvertida (Vide, entre outros, os seguintes acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 20 de Janeiro de 2021, proferido no processo n.º 101/19.1BALSB, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/91bfabc98c8f5cef802586680048da06;
- de 24 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 84/19.8BALSB, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/56b3dcf61913aeab8025868b0050cb9a;
- de 24 de Março de 2021, proferido no processo com o n.º 87/20.0BALSB, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/c4ba25ab6080f680802586a4005e821f.).
Assim, tendo presente o disposto no art. 8.º, n.º 3, do Código Civil e a finalidade dos acórdãos de uniformização de jurisprudência (Que visam garantir a certeza do direito e o princípio da igualdade, evitando que decisões judiciais que envolvam a mesma lei e a mesma questão de direito obtenham dos tribunais respostas diferentes.), limitamo-nos a remeter, nos termos dos arts. 663.º, n.º 5, e 679.º do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT, para a fundamentação do referido acórdão de 24 de Março de 2021, proferido no processo com o n.º 87/20.0BALSB – que uniformizou jurisprudência no sentido de que «[n]os termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação» –, para concluirmos, como aí, pela procedência do recurso e pela anulação da decisão arbitral recorrida.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em tomar conhecimento do mérito do recurso e, concedendo-lhe provimento, anular a decisão arbitral recorrida.

Custas pela Recorrida, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por o presente acórdão ser meramente remissivo, o que configura a menor complexidade da causa para este efeito [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi da do art. 281.º do CPPT, e art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais].


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Dispensamos a junção do acórdão para que remetemos, por indicarmos onde o mesmo pode ser consultado.

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Comunique-se ao CAAD.

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Lisboa, 24 de Novembro de 2021. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Gustavo André Simões Lopes Courinha - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Anabela Ferreira Alves e Russo.