Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:035/21.0BEPRT
Data do Acordão:03/08/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:TAXA DE OCUPAÇÃO DO SUBSOLO
REPERCUSSÃO FISCAL
CONSUMIDORES
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Sumário:I - A taxa pode definir-se como uma prestação coactiva, devida a entidades públicas, com vista à compensação de prestações efectivamente provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos. Em contraste com o imposto, de características unilaterais, a taxa caracteriza-se pela sua natureza comutativa ou bilateral, devendo o seu valor concreto ser fixado de acordo com o princípio da equivalência jurídica. A natureza do facto constitutivo que baseia o aparecimento da taxa pode consistir na prestação de uma actividade pública, na utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares (cfr.artº.4, nºs.1 e 2, da L.G.Tributária).
II - Relativamente à taxa de ocupação do subsolo (TOS) deve vincar-se que a jurisprudência, do Tribunal Constitucional e do S.T.A., é uniforme no sentido de concluir que os tributos liquidados visando a ocupação de via pública e, mais especificamente, o subsolo, revestem a natureza de taxas.
III - A repercussão fiscal consiste na transferência do imposto que legalmente incide sobre um sujeito passivo, para um terceiro, alheio à relação jurídica tributária, com quem aquele tem relações económicas. Nas palavras de alguns autores, o repercutido será um mero "contribuinte de facto" (titular da capacidade contributiva), por contraposição ao "contribuinte de direito", aquele a quem é juridicamente exigível o pagamento do tributo.
IV - A norma constante do artº.85, nº.3, da Lei do OE/2017 para 2017 (Lei 42/2016, de 28/12), ostenta validade ou conformidade constitucional e plena eficácia, assim produzindo efeitos desde 1/01/2017, passando a ser ilegal a repercussão da TOS nos consumidores.
V - A circunstância da entidade que praticou o acto lesivo (repercussão ilegal) ser uma entidade privada, uma sociedade anónima, não determina a sua exclusão do âmbito de aplicação do artº.43, nº.1, da L.G.T., interpretado em conformidade com o artº.22, da C.R.Portuguesa.
VI - No contexto de facto e de direito que emerge dos autos, é de considerar a sociedade comercializadora de gás ora recorrente integrada no conceito de "serviços" consagrado no citado artº.43, nº.1, da L.G.T. Em consequência, entendemos que não existe qualquer obstáculo em reconhecer à sociedade recorrida o direito de reaver o que ilegalmente lhe foi exigido e pagou e, bem assim, o direito a receber o valor correspondente aos juros indemnizatórios.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P30690
Nº do Documento:SA220230308035/21
Data de Entrada:04/07/2022
Recorrente:A..., S.A. – SUCURSAL PORTUGAL
Recorrido 1:B..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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"A..., S.A. - SUCURSAL EM PORTUGAL", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. do Porto, exarada a fls.381 a 384-verso do processo, a qual julgou procedente a presente impugnação visando o acto de repercussão da taxa de ocupação do subsolo (TOS), no valor total de € 10.248,01, montante incluído na factura relativa ao fornecimento de gás natural do mês de Março de 2019, liquidada à impugnante e ora recorrida, "B..., S.A.", em consequência do que anulou o acto impugnado e condenou a sociedade recorrente a restituir à recorrida o tributo pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.
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A recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.387 a 396-verso do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
1-O Tribunal recorrido julgou procedente a impugnação judicial por entender que a repercussão da Taxa de Ocupação do Subsolo ao cliente final, por desrespeito à alteração que decorreu da Lei n.º 42/206 de 28.12 (LOE de 2017) é ilegal, não podendo ser repercutida.
2-Na óptica da Apelante, tal norma, não obstante de fazer parte do Orçamento de Estado que entrou em vigor no dia 1/Janeiro/2017, nunca chegou a ser eficaz.
3-Aliás, a norma contida no OE de 2017 serve apenas como ponto de partida para uma alteração de um quadro legal.
4-E é isto que decorre do artigo 70.º da Lei de Execução Orçamental para 2017 (Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de Março) que deve ser considerado como um acto de interpretação autêntica do art. 85.º, n.º 3 da LOE de 2017, já que, provindo ambas as normas de fontes equivalentes (lei e decreto-lei têm igual valor, nos termos do disposto no art. 112.º, n.º 2 da CRP), uma (a mais recente) permite perceber o alcance que a outra (a mais antiga) é suposto ter.
5-A norma da Lei de Execução Orçamental define as condições em que o art. 85.º poderá vir a ser executado (cumprindo, dessa forma, a função de uma lei de execução orçamental).
6-Impõe um cumprimento do dever de comunicação das empresas titulares das infraestruturas do cadastro das suas redes até ao final do mês de abril de 2017 à DGAL e decorrido esse prazo as entidades reguladoras sectoriais avaliariam a informação recolhida e as consequências económico-financeiro das empresas operadoras, para que, posteriormente, tendo em conta essa avaliação o Governo proceda à alteração do quadro legal em vigor.
7-Só assim se cumprirá a proibição da repercussão da TOS prevista na LOE para 2017.
8-Sendo claro que este artigo vem dar aplicação ao que se previa na LOE 2017.
9-Pelo que sem a aprovação deste regime jurídico por parte do Governo não se pode considerar que tenha existido uma alteração normativa eficaz, nomeadamente, não se pode dizer que está em vigor a proibição da repercussão da TOS no consumidor final.
10-Tal entendimento tem sido consensual em várias instituições.
11-Em especial, o Governo que volta a inscrever tal compromisso, para alterar o quadro legal enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor, no art. 246.º, n.º 1 da LOE de 2019 (Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro), obrigação que deveria ser cumprida até ao final do 1º semestre de 2019 e, ainda, no art. 133.º da LOE de 2021 (Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro).
12-Admitindo por isso que não está em vigor a proibição da repercussão da TOS.
13-Acompanhando-se na íntegra a conclusão dos estudos da ERSE: “Concluímos, em suma, que a norma do n.º 3 do artigo 85.º da Lei n.º 42/2016 é parcialmente ineficaz, seja porque não reúne as condições necessárias para projectar os seus efeitos na realidade, seja porque o legislador expressamente explicitou o condicionamento da produção de efeitos até ao momento da entrada em vigor do novo regime jurídico sobre a repercussão da TOS.”
14-E foi assim que entendeu o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, nas sentenças proferidas nos Processos 144/21.5BEPRT, 111/21.9BEPRT e 769/21.9BEPRT sobre questão igual à que aqui está em causa, que decidiu, em todos, que enquanto não existir um novo quadro legal sobre a matéria, persiste a possibilidade legal de repercussão da TOS nos consumidores, pelo que a repercussão não padece de ilegalidade.
15-Entendeu também o Tribunal recorrido, erradamente a nosso ver, que o procedendo a impugnação são devidos juros indemnizatórios à Impugnante.
16-Mesmo que a impugnação venha a ser julgada procedente, o que só se admite por mera hipótese de raciocínio, não é devido o pagamento de juros indemnizatórios uma vez que não é aplicável o art, 43.º da LGT, segundo o qual, “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
17-Na verdade, não estamos perante um acto praticado pela Administração Fiscal ou ente público equiparado pelo que não se verificam os requisitos previstos no art. 43.º.
18-Pelo que não se percebe o entendimento do Tribunal recorrido ao julgar procedente a impugnação da Recorrida nem a condenação no pagamento dos juros indemnizatórios.
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A sociedade recorrida produziu contra-alegações no âmbito da instância de recurso (cfr.fls.403 a 411 do processo físico), as quais encerra com o seguinte quadro Conclusivo:
A-A TOS é liquidada pelo Município da Maia ao distribuidor de gás natural (a C..., S.A.), tendo vindo a ser, a final, suportada através do mecanismo da repercussão legal pela Impugnante, ora Recorrida, através da fatura n.º FT RN1908/01510, da A..., S.A. – Sucursal Portugal, emitida a 3 de abril de 2019.
B-No entanto, o artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017 determina que a "taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores”.
C-Assim, sem prejuízo de - mesmo após a entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2017 - a TOS ter continuado a ser repercutida à ora Recorrida, sendo esta consumidora de gás natural, a repercussão da TOS, nomeadamente a efetuada através da fatura acima identificada é ilegal, por violação do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017.
D-O quadro normativo em que se baseava a possibilidade de repercussão legal foi profundamente alterado com o artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017.
E-Assim, desde o dia 1 de janeiro de 2017 que as taxas municipais de ocupação do subsolo não podem ser suportadas pelos consumidores.
F-Por outras palavras, sendo a ora Recorrida consumidora final de Gás, esta não poderá suportar a TOS por repercussão legal.
G-A TOS é uma taxa municipal criada e liquidada pelos respetivos municípios pela “utilização e aproveitamento de bens do domínio público e privado municipal”.
H-Conforme previsto na Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008 que aprovou as minutas dos contratos de concessão de serviço público de distribuição regional de gás natural a celebrar entre o Estado Português e as distribuidoras, existe a possibilidade de repercussão das TOS nos consumidores de gás natural de cada Município.
I-Perante este contexto, a relação jurídico-tributária aqui em discussão processa-se nos seguintes moldes: a Câmara Municipal da Maia liquida uma taxa ao distribuidor de gás natural (a D..., S.A.), que é repercutida ao comercializador (a A..., S.A. – Sucursal Portugal) que, por sua vez, a repercute no consumidor final de gás natural, a ora Recorrida.
J-Do quadro descrito tal como estava estabelecido resultava a existência de um mecanismo de repercussão legal da TOS nos consumidores finais pelas concessionárias.
K-Todavia, desde 1 de janeiro de 2017 que foi expressamente consagrada a proibição de fazer repercutir no consumidor final as taxas municipais de ocupação do subsolo (cfr. artigos 85.º, n.º 3, e 276.º, da LOE 2017).
L-Não obstante a sua ilegalidade, a repercussão que tem vindo a ser efetuada à ora Recorrida encontra a sua razão de ser no facto de o Repercutente fazer uma interpretação errada do quadro jurídico em vigor, nomeadamente do artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017.
M-Ou seja, reitera-se, o que se discute na impugnação judicial é a lesão sofrida por força da repercussão de uma taxa municipal, que a Impugnante considera ser ilegal - e cuja ilegalidade foi confirmada pelo Tribunal a quo, mas que lhe continua a ser efetuada por força de um entendimento da lei que ignora os efeitos do disposto no artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017.
N-Saliente-se, aliás, que a matéria ora em discussão já foi objeto de apreciação por parte deste douto Tribunal em várias ações intentadas contra os respetivos Municípios, tendo o Tribunal decidido pela ilegitimidade passiva dos mesmos. Assim, é na sequência destas decisões que a Impugnante, ora Recorrida, intentou novas ações, desta feita, contra a comercializadora, vindo, deste modo, acompanhar o entendimento do STA a propósito desta questão.
O-Entendimento este que tem suporte na norma do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017 o qual impede que a TOS seja repercutida na Recorrida. Ora, não sendo o Município parte legítima na ação, sempre teria a Recorrente que intentar a mesma contra a entidade que lhe repercutiu indevidamente o tributo, sob pena de se considerar que a norma acima referida não produz qualquer efeito prático.
P-Com efeito, um Decreto-Lei de Execução Orçamental não pode afastar a aplicação de uma Lei do Orçamento do Estado.
Q-Do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017 resultam dois imperativos claros, precisos e incondicionais: (i) a TOS tem que ser paga pelas empresas operadoras de infraestruturas; e (ii) não pode ser refletida na fatura dos consumidores.
R-O artigo 85.º, n.º 3, não impõe qualquer requisito nem limitação à sua interpretação ou aplicação. Não se lê “sem prejuízo do disposto no número x”, “assim que y”, “verificado que esteja z”, nem tão pouco se prevê um diferimento temporal para aplicação do referido regime.
S-Mais, a norma não refere que “serão pagas” ou “poderão vir a ser pagas”, antes referindo “são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores”.
T-Salienta-se que a lei é especialmente cuidadosa na terminologia utilizada ao referir que não podem ser “refletidas na fatura dos consumidores”, afastando qualquer possibilidade de repercussão legal e económica. Nada se diz sobre como operará a repercussão, para além da obrigação de a fazer cessar quanto aos consumidores.
U-Relativamente ao artigo 70.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental - invocado pela Recorrente - esta norma que não é exequível por si mesma, e nem sequer programática. Através dela, o legislador do Decreto-Lei de Execução Orçamental limitou-se a abrir a porta para, em função da avaliação das consequências no equilíbrio económico-financeira das empresas operadoras de infraestruturas, vir a ser alterada, por via legislativa, a proibição de repercussão que consta do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017.
V-Mas, através da referida norma, o legislador não revogou a norma do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017, nem sequer estabeleceu que ela terá inexoravelmente de ser revogada.
W-Repare-se que o Decreto-Lei de Execução Orçamental “contém as regras que desenvolvem os princípios estabelecidos no Orçamento do Estado para 2017, assegurando, em paralelo, uma rigorosa execução orçamental”. De referir que o resultado interpretativo deverá ser aquele que não seja incompatível com a Lei do Orçamento do Estado para 2017.
X-Com efeito, o Decreto-Lei de Execução Orçamental existe porque existe um Orçamento do Estado e destina-se a desenvolver os imperativos deste último.
Y-Relativamente ao facto de ter sido novamente inscrito no artigo 133.º da Lei do Orçamento do Estado para 2021 a proibição da repercussão da TOS nos consumidores finais, entende a Recorrida que a norma referida veio apenas reiterar novamente a proibição de repercussão, muito possivelmente, perante o incumprimento continuado das operadoras de infraestruturas. Significa igualmente que o legislador quis manter, inequivocamente, a proibição de repercussão da TOS nos consumidores finais (nomeadamente, em 2021).
Z-A Recorrida desenvolve a atividade siderúrgica e de fabricação de ferro-ligas, não se dedica à produção, distribuição, comercialização ou revenda de gás natural. Assim, tratando-se a Recorrida de uma consumidora de gás, a cobrança da TOS contraria lei expressa (cfr. artigo 3.º, al. g), do Decreto-Lei n.º 62/2020, de 28 de agosto).
AA-Assim, tendo sido repercutida na Recorrida a TOS, torna-se claro que esta repercussão é ilegal, não podendo ser limitada pelo Decreto-Lei de Execução Orçamental.
BB-Por todo o exposto, a decisão recorrida deverá ser mantida nos seus precisos termos, por ser conforme ao Direito.
CC-Veja-se que para além da sentença do douto Tribunal “a quo”, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto tem vindo a decidir, na sua esmagadora maioria, a favor do contribuinte quanto á mesma questão facto-jurídica, nomeadamente nos processos: 841/21.5BEPRT, 2311/20.0BEPRT, 148/21.8BEPRT, 772/21.9BEPRT, 797/21.4BEPRT, 118/21.6BEPRT, 133/21.0BEPRT, 1141/21.6BEPRT, 184/21.4BEPRT, 185/21.2BEPRT, 73/21.2BEPRT, 936/21.5BEPRT, 39/21.2BEPRT, 777/21.0BEPRT, 786/21.9BEPRT, 947/21.0BEPRT, 955/21.1BEPRT.
DD-Por fim, discorda-se igualmente da Recorrente na parte em que defende a improcedência do pedido de juros indemnizatórios peticionado pela Recorrida.
EE-Os juros indemnizatórios revestem “uma função reparadora dos prejuízos causados ao contribuinte pelo facto de ter ficado privado ilicitamente durante certo período, de uma quantia. O reconhecimento destes juros visa repor a situação que se verificaria se o contribuinte não tivesse procedido ao pagamento indevido do tributo. Pelo contrário, não corresponde à punição de quem cometeu o erro do qual resultou aquele pagamento indevido.” (CARLA CASTELO TRINDADE e SERENA CABRITA NETO, Contencioso Tributário, Vol. I - Procedimentos, Princípios e Garantias, Almedina, 2017, p. 216).
FF-Atendendo ao caso em apreço, tendo a ora Recorrente repercutido ilegalmente a TOS na Recorrida, esta viu-se privada, ilicitamente, há mais de um ano, de uma quantia que lhe era devida pelo que deverá ser devidamente compensada.
GG-Não obstante a A..., S.A. – Sucursal Portugal, não integrar a Administração Tributária e Aduaneira nem ser um ente público equiparado, para o efeito da discussão em causa nos presentes autos, é ela que indevidamente repercutiu o tributo à Impugnante, ora Recorrida.
HH-Ao cobrar a TOS à Recorrida em violação de lei expressa, a Recorrente cobra um tributo que não é devido pela Recorrente, privando-a, deste modo, de uma quantia que era sua.
II-A repercussão da TOS traduz-se, assim, num empobrecimento real e efetivo da tesouraria da Impugnante, ora Recorrida, e num enriquecimento da tesouraria da A..., S.A. – Sucursal Portugal.
JJ-Refira-se que, em tese, o direito a juros indemnizatórios devidos à Recorrida, B..., é independente do eventual direito de regresso que a Recorrente possa ter sobre outras entidades.
KK-Perante o exposto, a decisão recorrida deverá ser mantida quanto à anulação da repercussão efetuada pela ora Recorrente e restituído o montante pago a título de TOS, por ser conforme ao Direito.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.417 a 425 do processo físico).
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Com dispensa de vistos legais (cfr.artº.657, nº.4, do C.P.Civil, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário), vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.382-verso e 383 do processo físico):
A-Em 03/04/2019, a “A..., S.A. – Sucursal Portugal” emitiu em nome da Impugnante, com referência ao mês de março de 2019, a fatura n.º FT RN 1908/01510, no valor de € 646 362,59, que incluía a quantia de € 10.248,01 a título de TOS – cfr. fls. 60 a 63 do SITAF, cujo teor se dá por reproduzido.
B-Em 30/04/2019, a Impugnante procedeu ao pagamento da fatura mencionada na alínea antecedente – cfr. fls. 64 do SITAF, cujo teor se dá por reproduzido.
C-A Impugnante deduziu a presente impugnação em 05/01/2021, após a decisão de absolvição da instância do Município da Maia, por ilegitimidade passiva, proferida no processo n.º 2066/19.0BEPRT – cfr. fls. 4 a 55 e 230 a 237 do SITAF.
D-Dá-se por reproduzido o teor do contrato de fornecimento de gás natural, celebrado entre as partes, inserto a fls.595 a 611 do SITAF.
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Factos não provados - Inexistem, com relevância para a decisão da causa…".
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados resultou da análise dos documentos, não impugnados, juntos aos autos…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida julgou procedente a presente impugnação, em consequência do que anulou o acto impugnado de repercussão da taxa de ocupação do subsolo (TOS) à sociedade ora recorrida, no valor total de € 10.248,01 (cfr.al.A) do probatório supra), mais condenando a sociedade recorrente a restituir à recorrida o tributo pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.
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Relembre-se que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O recorrente dissente do julgado alegando, em primeiro lugar e em sinopse, que a sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente o artº.85, nº.3, da LOE 2017, e o artº.70, do Decreto-Lei de Execução Orçamental para 2017. Que o citado artº.85, nº.3, da LOE 2017, é parcialmente ineficaz, seja porque não reúne as condições necessárias para projectar os seus efeitos na realidade, seja porque o legislador expressamente explicitou o condicionamento da sua produção de efeitos até ao momento da entrada em vigor do novo regime jurídico sobre a repercussão da TOS (cfr.conclusões 1 a 14 do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
Antes de mais, dir-se-á que a taxa pode definir-se como uma prestação coactiva, devida a entidades públicas, com vista à compensação de prestações efectivamente provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos. Em contraste com o imposto, de características unilaterais, a taxa caracteriza-se pela sua natureza comutativa ou bilateral, devendo o seu valor concreto ser fixado de acordo com o princípio da equivalência jurídica. A natureza do facto constitutivo que baseia o aparecimento da taxa pode consistir na prestação de uma actividade pública, na utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares (cfr.artº.4, nºs.1 e 2, da L. G. Tributária; artºs.3 e 4, do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, aprovado pela Lei 53-E/2006, de 29/12; artº.15, nº.2, da L.F.L. aprovada pela Lei 2/2007, de 15/1; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 28/10/2020, rec.581/17.0BEALM; Sérgio Vasques, Regime das Taxas Locais, Introdução e Comentário, Cadernos do I.D.E.F.F., nº.8, 2009, pág.83 e seg.; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª. Edição, 2007, pág.30 e seg.; Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2013, pág.43 e seg.).
Relativamente à TOS deve vincar-se que a jurisprudência, do Tribunal Constitucional e do S.T.A., é uniforme no sentido de concluir que os tributos liquidados visando a ocupação de via pública e, mais especificamente, o subsolo, revestem a natureza de taxas (cfr.v.g.ac.Tribunal Constitucional 365/2003, de 14/07/2003; ac.Tribunal Constitucional 366/2003, de 14/07/2003; ac.Tribunal Constitucional 396/2006, de 28/06/2006; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 20/01/2010, rec.731/09; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª. Secção, 17/11/2010, rec.174/10; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 28/10/2020, rec.581/17.0BEALM).
Como pano de fundo do presente processo temos o fenómeno da repercussão fiscal, o qual a lei passou, alegadamente, a proibir, em sede de taxa de ocupação do subsolo (TOS) e quanto às facturas emitidas aos consumidores finais, como decorre do artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017 (Lei 42/2016, de 28/12, com entrada em vigor no dia 1/01/2017 - artº.276).
Revertendo ao caso dos autos, o Tribunal "a quo" decidiu que a norma em apreço - o artº.85, nº.3, da LOE de 2017 - é apta a produzir efeitos imediatos, porquanto não se encontra dependente da alteração do quadro legal em vigor, isto é, da mediação de outras normas, para produzir os seus efeitos jurídicos, em consequência do que o acto de repercussão da TOS na factura de fornecimento de gás natural, emitida pela sociedade recorrente, objecto do processo (cfr.al.A) do probatório supra), padece da ilegalidade que lhe vem assacada.
O recorrente defende que não, dado que a norma em causa não é imediatamente constitutiva de direitos para os consumidores, antes carecendo, para ser eficaz, de densificação legislativa ou regulamentar adicional.
Vejamos quem tem razão.
No que respeita à factualidade pertinente, releva, para o que nos importa apreciar e decidir face ao objecto do recurso, ter ficado provado que na factura emitida pela sociedade recorrente à sociedade recorrida, referente ao mês de Março de 2019, que tem como montante total € 646 362,59, está incluído o valor de € 10.248,01 a título de "Taxa de Ocupação de Subsolo". Ou seja, relevou para o julgamento ter ficado provado que na factura apresentada a pagamento à recorrida e por esta efectivamente paga está incluída a TOS (cfr.als.A) e B) do probatório supra). Esta taxa foi liquidada pela Câmara Municipal da Maia ao distribuidor de gás natural ("C..., S.A."), que a repercutiu ao comercializador ("A..., S.A. - Sucursal em Portugal"), a qual a vai repercutir no consumidor final, no caso, a sociedade recorrida.
Recorde-se que o fornecimento de gás é considerado um serviço público essencial, o qual se encontra sujeito a especiais regras de protecção dos utentes do mesmo serviço (cfr.artº.1, nº.2, al.c), da Lei 23/96, de 26/07, com as alterações introduzidas por diplomas legais posteriores, sendo o último a Lei 51/2019, de 29/07).
Passemos ao exame hermenêutico do citado artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017 (Lei 42/2016, de 28/12).
O citado artº.85, da Lei 42/2016, de 28/12 (LOE de 2017), ostentava a seguinte previsão e estatuição:
Artigo 85.º
Taxas de direitos de passagem e de ocupação do subsolo


1 - Para efeitos de liquidação da taxa municipal de direitos de passagem e da taxa municipal de ocupação do subsolo, as empresas titulares das infraestruturas comunicam a cada município, até 31 de março de 2017, o cadastro das suas redes nesse território, devendo proceder à atualização da informação prestada até ao final do ano.
2 - Na ausência da comunicação a que se refere o número anterior, o município presume que as infraestruturas estão localizadas na totalidade dos metros lineares da respetiva rede viária urbana.
3 - A taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores.
4 - No primeiro semestre de 2017, é revista a Lei das Comunicações Eletrónicas, aprovada pela Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro.

É hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.9, do C.Civil; artº.11, da L.G. Tributária; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. Edição, 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pág.181 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de C.T.Fiscal, nº.174, 1996, pág.363 e seg.).
E recorde-se que o intérprete e aplicador da lei deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, como também que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Pelo que, na exegese da norma não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Portanto, o limite da interpretação encontra-se na letra ou no texto da norma, o qual condiciona todos os vectores de interpretação reconhecidos pela doutrina, como sejam os elementos histórico, sistemático ou teleológico (cfr.artº.9, nºs.2 e 3, do C.Civil).
Revertendo ao caso dos autos, para bem compreendermos o teor da norma sob exame, importa, antes de mais, que façamos uma breve densificação da taxa que aqui está em causa, onde encontra o seu fundamento jurídico, como é determinada ou quantificada e quem é ou, pelo menos até 1/01/2017, era responsável pelo seu pagamento.
Com a publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei 30/2006, de 15/02, (Entretanto revogado pelo Decreto-Lei 62/2020, de 28 de Agosto). foram introduzidos na ordem jurídica nacional os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN), bem como ao exercício das actividades de recepção, armazenamento, transporte, distribuição e comercialização de gás natural e à organização dos mercados de gás natural - em conformidade com as regras comuns consagradas na Directiva 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26/06, (A Directiva 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, revogou a Directiva 98/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998). que tiveram por finalidade o incremento de um mercado livre e concorrencial.
Conforme consta do seu preâmbulo, visou-se com este diploma concretizar no plano normativo a linha estratégica da Resolução do Conselho de Ministros 169/2005, de 24 de Outubro, definindo para o sector do gás natural um quadro legislativo coerente e articulado com a referida legislação comunitária e os principais objectivos estratégicos aprovados na referida resolução.
Posteriormente foi publicado o Decreto-Lei 140/2006, de 26/07, o qual, desenvolvendo os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural, aprovados pelo citado Decreto-Lei 30/2006, de 15/02, instituiu o regime jurídico aplicável ao exercício das actividades de transporte, armazenamento subterrâneo, recepção, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito, à distribuição e comercialização de gás natural e à organização dos mercados de gás natural - desta forma se completando a transposição da aludida Directiva 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26/06.
Com particular relevo para o que nos autos nos importa decidir, ficou estabelecido no artº.7, do referido Decreto-Lei 140/2006, de 26/07 (Entretanto revogado pelo Decreto-Lei 62/2020, de 28 de Agosto)., que a atribuição das concessões para o exercício desta actividade compete ao Conselho de Ministros, sendo os respectivos contratos de concessão outorgados pelo ministro responsável pela área da energia, em representação do Estado. E, no seu artº.70, que os contratos de concessão de distribuição regional em vigor tinham que ser alterados de acordo com as bases estabelecidas no seu Anexo IV, assegurando-se nos novos contratos o direito das concessionárias à manutenção do equilíbrio económico e financeiro das respectivas concessões.
No Conselho de Ministros de 3 de Abril de 2008, foi aprovada a Resolução 98/2008, de 3 de Abril de 2008 (publicada no Diário da República nº.119/2008, Série I, de 23 de Junho, e doravante apenas designada por Resolução) que possui o seguinte teor:
"O Decreto-Lei 30/2006, de 15 de Fevereiro, ao estabelecer as bases gerais da organização e do funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) em Portugal, bem como as bases gerais aplicáveis ao exercício das várias actividades que integram o SNGN e à organização dos mercados de gás natural, prevê que a distribuição de gás natural é uma actividade exercida em regime de concessão de serviço público.
No desenvolvimento dos princípios acima referidos, o artigo 7.º do Decreto-Lei 140/2006, de 26 de Julho, dispõe que a atribuição das concessões para o exercício desta actividade compete ao Conselho de Ministros, sendo os respectivos contratos de concessão outorgados pelo ministro responsável pela área da energia, em representação do Estado.
O mesmo diploma estabelece ainda no n.º 1 do artigo 70.º que os actuais contratos de concessão de distribuição regional devem ser alterados de acordo com as bases estabelecidas no anexo iv do Decreto-Lei 140/2006, de 26 de Julho, assegurando-se nos novos contratos o direito das concessionárias à manutenção do equilíbrio económico e financeiro das respectivas concessões.
Obtido o acordo de cada uma das concessionárias sobre as alterações introduzidas nos respectivos contratos, encontram-se reunidas as condições para atribuir as concessões de distribuição regional de gás natural, em regime de serviço público, a celebrar entre o Estado Português e as sociedades E..., S.A., F..., S.A., G..., S.A., H..., S.A., D..., S.A., e I..., S.A.
Assim:
Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei 140/2006, de 26 de Julho, e nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:
1 - Aprovar, sob proposta do Ministro da Economia e da Inovação, as minutas dos contratos de concessão de serviço público de distribuição regional de gás natural a celebrar entre o Estado Português e as sociedades E..., S. A., F..., S.A., S. A., G..., S. A., H..., S. A., D..., S. A., e I..., S. A.
2 - Determinar que os originais dos contratos referidos no número anterior fiquem arquivados na Secretaria-Geral do Ministério da Economia e da Inovação.
3 - Determinar que a presente resolução produz efeitos a partir da data da sua aprovação.".

Em anexo à Resolução constam as minutas dos contratos de concessão, estabelecendo-se em todos eles, para o que aqui releva, o seguinte:
"(…)
8. É reconhecido à concessionária o direito de repercutir, para as entidades comercializadoras de gás ou para os consumidores finais, o valor integral das taxas de ocupação do subsolo liquidado pelas autarquias locais que integram a área da concessão na vigência do anterior contrato de concessão mas ainda não pago ou impugnado judicialmente pela concessionária, caso tal pagamento venha a ser considerado obrigatório pelo órgão judicial competente, após trânsito em julgado da respectiva sentença, ou após consentimento prévio e expresso do concedente.
(…)".
Mais se estabeleceu na cláusula 7.ª das minutas dos contratos de concessão de distribuição de gás natural, sob a epígrafe «Direitos e obrigações da concessionária», o seguinte:
"(…)
1 - A concessionária beneficia dos direitos e encontra-se sujeita às obrigações estabelecidas nos Decretos-Leis nºs. 30/2006, de 15 de Fevereiro, e 140/2006, de 26 de Julho, e demais legislação e regulamentação aplicáveis à actividade que integra o objecto da concessão, sem prejuízo dos demais direitos e obrigações estabelecidos no presente contrato.
2 - Assiste à concessionária o direito de repercutir sobre os utilizadores das suas infra-estruturas, quer se trate de entidades comercializadoras de gás ou de consumidores finais, o valor integral de quaisquer taxas, independentemente da sua designação, desde que não constituam impostos directos, que lhe venham a ser cobrados por quaisquer entidades públicas, directa ou indirectamente atinentes à distribuição de gás, incluindo as taxas de ocupação do subsolo cobradas pelas autarquias locais.
3 - Na sequência do estabelecido no n.º 2 e no que respeita às taxas de ocupação do subsolo a liquidar pelas autarquias locais que integram a área da concessão, os valores pagos pela concessionária em cada ano civil serão repercutidos por município sobre as entidades comercializadoras utilizadoras das infra-estruturas ou sobre os consumidores finais servidos pelas mesmas nos termos a definir pela ERSE.
(…)".

Em suma, até à emissão da Resolução, o pagamento da TOS, enquanto contrapartida pela utilização e aproveitamento de bens de domínio público e privado municipal pelas redes de distribuição de gás natural, era, por força do preceituado nos artºs.6, nº.1, al.c), e 7, nº.2, do RGTAL, da exclusiva responsabilidade das concessionárias. Após a Resolução, e por força do estatuído no mesmo diploma, o pagamento da TOS passou a poder ser imputado ao consumidor final.
Em nota final deste enquadramento importa ainda registar que o citado Decreto-Lei 140/2006, de 26/07, define como cliente final "o cliente que compra gás natural para consumo próprio"(artº.3, al.g), deste diploma) (Definição mantida pelo Decreto-Lei 62/2020, de 28 de Agosto, conforme artº.3, al.g), deste diploma legal)., que a metodologia de repercussão do valor da TOS que cada Município aplica, incluída nas facturas de gás natural, nos termos definidos pela ERSE, depende da extensão da rede de distribuição instalada em cada concelho, e que o valor unitário da TOS repercutido é composto por uma componente variável que incide sobre o consumo de gás natural (kWh) e uma componente fixa aplicada sobre o número de dias do período de facturação em causa.
Avançando.
Como se constata da leitura da sentença recorrida, e deixámos já consignado, o julgamento de improcedência da acção acompanhou a tese defendida pela sociedade recorrida, louvando-se, nuclearmente, no entendimento de que a norma prevista no artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017 (Lei 42/2016, de 28/12) não é automaticamente operacional, estando a sua eficácia dependente da criação de um quadro jurídico tendo em vista a alteração do regime legal de repercussão da TOS.
Haverá que examinar da validade e da eficácia da mesma norma, já supra identificada.
Podia defender-se que a própria norma cuja eficácia se discute é inconstitucional (assim se pondo em causa a sua validade) por constituir um "verdadeiro cavaleiro orçamental" (cavaliers budgétaires), uma vez que não é possível descortinar qualquer relação entre o seu conteúdo e uma questão de natureza financeira ou orçamental - nem com o Orçamento de Estado, nem com os orçamentos municipais - a não ser o facto de este tributo passar a constituir um encargo para as empresas privadas que explorem redes de distribuição de gás natural em regime de concessão. Por outro lado, a sua vigência não se esgota com o termo do ano fiscal em causa, não sendo tal matéria objecto de discussão nos presentes autos.
A questão da validade dos "cavaleiros orçamentais", nome sob o qual a doutrina e a jurisprudência designam as normas incluídas no Orçamento do Estado sem relação directa com matéria financeira ou orçamental, constitui, como é sabido, questão há muito debatida no ordenamento jurídico nacional, onde assume contornos mais problemáticos atenta a inexistência, ainda hoje, e contrariamente ao que ocorre em outros ordenamentos jurídicos, de resposta expressa na nossa Lei Fundamental.
Sem prejuízo de se ter presente que não existe ainda consenso na doutrina sobre a melhor solução oferecida pelo ordenamento jurídico, e que em abono de uma e outra das teses em confronto são aduzidos argumentos ponderosos, certo é que, ao nível da jurisprudência constitucional, que aqui releva sobremaneira, o entendimento tradicional e maioritário vai no sentido da sua validade, por, não existindo no ordenamento jurídico-constitucional qualquer proibição expressa de inclusão deste tipo de normas [Vide, acórdãos do Tribunal Constitucional 461/87 (processo nº.176/87), de 16/12/1987; 358/92 (processo nº.120/92); de 11/11/1992; 141/2002 (processos nº.198/92 e 62/93), de 9/04/2002; e 360/2003 (processo nº.13/2003), de 8/07/2003]., e pese embora constituir prática "discutível, e até censurável, seja do ponto de vista doutrinário, seja do da técnica da legislação" se dever concluir que essa censura não encontra fundamento "do ponto de vista jurídico-constitucional".
A explicação para esta utilização censurável mas historicamente sistemática é-nos explicada de forma clara pela doutrina: "[a] natureza calendarizada da lei do Orçamento explica, em grande parte, a sua utilização para fazer aprovar normas sem direta, nem por vezes indireta, incidência materialmente orçamental. Ao fazer-se incluir uma determinada matéria na lei do Orçamento pretende-se, normalmente, beneficiar da certeza de que essa lei será aprovada num prazo reduzido, que entrará em vigor numa data certa e que, no momento da sua discussão e aprovação, as atenções andarão, previsivelmente, arredadas das normas que aí, mais ou menos, subtilmente, se infiltraram" (cfr.Tiago Duarte, A Lei Por Detrás do Orçamento - A Questão Constitucional da Lei do Orçamento, Almedina, 2007, pág.441 e seg.).
É verdade, não se olvida, que a posição a que fizemos referência, que se mantém até hoje, tem vindo, ao longo do tempo, a ser acompanhada de um discurso fundamentador em que se realça a existência de uma tese defensora de exigências acrescidas assente na verificação de uma "conexão mínima entre o cavalier e a lei do orçamento (por se considerar inadmissível que se aproveite a lei do orçamento para regular matérias em tudo a ele absolutamente estranhas, como o seriam, por exemplo a regulamentação do regime de bens do casamento, ou do sistema de recursos em processo civil)". (Ponto 42. do citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº.141/2002, integralmente disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020141.html). Porém, mesmo nos casos contados em que tal aconteceu, a mais das vezes em termos abstractos, e, em caso algum, de forma determinante para o juízo de validade da norma, também aí se conclui, depois de se sublinhar que essa conexão mínima até existe, que "o facto de a inclusão deste tipo de normas nos diversos orçamentos do Estado ser uma prática habitual ou reiterada, como aliás disso dão conta os vários acórdãos deste Tribunal que sobre tais matérias têm sido proferidos, com uma ampla tradição remontando ao constitucionalismo monárquico e que não se encontra excluída pelo actual texto constitucional, pelo que deve ser aceite tal inclusão orçamental, nos termos supra expostos. Assim, e independentemente de outras considerações, não se tem por ilegítima a inclusão das normas em causa na lei do orçamento". (Ponto 42. do citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº.141/2002).
Acresce que, como se diz no Parecer nº.6/2018, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado na II série do D.R., 11/06/2018, a propósito de um outro preceito (inserida na LOE 2018 e relativa à aplicação da Tarifa Social aos Clientes de Gás Natural) em que a questão da validade da norma também se colocou, "o teor do atual n.º 5 do artigo 165.º da Constituição, introduzido pela revisão constitucional de 1989, ao aceitar a existência de autorizações legislativas na Lei do Orçamento em matérias não fiscais apresenta-se como um forte apoio para se admitir os cavaleiros orçamentais no ordenamento jurídico-constitucional português", e embora o n.º 2 do artigo 31.º prescreva que «[a]s disposições constantes do articulado da lei do Orçamento do Estado devem limitar-se ao estritamente necessário para a execução da política orçamental e financeira" (…) "parece dever concluir-se do seu teor, particularmente do seu último segmento - "para a execução da política orçamental e financeira" - como ressalta Nazaré da Costa Cabral ("A Nova Lei de Enquadramento Orçamental: Reflexões Breves sobre a sua Forma, Conteúdo e Efeitos", in Estudos de Homenagem Ao Prof. Doutor JORGE MIRANDA, volume V, Coimbra Editora, 2012, pág.787). , que "abre uma infinitude de possibilidades […], qualquer medida que tenha incidência no plano da política orçamental ou da política financeira (e serão a maior parte) parece, portanto, poder ser acolhida na lei do OE". No mesmo sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito dos limites objectivos da lei do orçamento escrevem: "Admitindo-se que a lei do orçamento possa conter matérias não orçamentais (a favor ver o AcTC n.º 461/87, entre outros), então não poderá deixar de se entender que nessas matérias a lei do orçamento tem de ser considerada como uma lei comum, de modo a poder ser alterada nos termos gerais e não ficar sujeita à regra da vigência anual e à exclusividade da iniciativa legislativa governamental, podendo continuar em vigor mesmo depois da substituição do orçamento, salvo indicação em contrário" (cfr.Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs.1112 e 1113; "idem", Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol.II, 2ª. Edição revista, Universidade Católica Editora, 2018, pág.262 e seg.).
Atento tudo o acabado de mencionar, concretamente a norma cuja validade se aprecia, o identificado artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017, está inserida no Capítulo V "Finanças Locais", do mesmo diploma, tendo como epígrafe "Taxas de direitos de passagem e de ocupação do subsolo", mais alterando a conformação legal do âmbito de incidência da Taxa Municipal de Direitos de Passagem e da TOS e atendendo às repercussões económicas que dessa alteração podem resultar. Com este enquadramento e teor não pode dizer-se que seja indiscutível que deva ser excluída do conceito de normas financeiras e, assim sendo, que não tenha, no caso, o mínimo de conexão com o orçamento que a jurisprudência constitucional vem recentemente exigindo.
Concluímos, pois, tendo especialmente por referência a jurisprudência constitucional citada, que o ordenamento jurídico-constitucional português admite as normas designadas por cavaleiros orçamentais e que, mesmo para quem entenda que essa admissão está dependente da existência da citada conexão mínima, há que dizer que, no caso concreto, ela se verifica.
Firmada a validade ou conformidade constitucional do artº.85, nº.3, da Lei do OE/2017 para 2017, passamos a adiantar as razões porque julgamos que esta norma é também plenamente eficaz.
Desde logo, a norma é, "per se", sem a intermediação ou complementação de quaisquer outras, apta a regular de forma directa e imediata a realidade nela contemplada. O legislador assim o diz, de forma clara, directa e incondicional: "A taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores."
Por outro lado, nem nesta norma, nem em qualquer outra da mesma Lei, se faz depender a proibição consagrada no transcrito normativo de quaisquer regulamentações, estudos ou alterações legais, nem existe norma a impor expressamente o deferimento no tempo da sua aplicação, assim devendo concluir o aplicador da lei que a disposição em apreço tem que ser interpretada como uma proibição expressa e incondicional de repercussão da TOS nos consumidores a partir da entrada em vigor da Lei que a aprovou, tudo conforme decidido pelo Tribunal "a quo".
E não se diga que a ser assim carece de sentido quer o preceituado no artº.70, nº.5, do Decreto-Lei de Execução Orçamental do OE de 2017 (25/2017, de 3/03) quer a necessidade de em posteriores Orçamentos se voltar a consagrar a mesma proibição, quer, por fim, o Despacho 315/21, de 11/01/2021, e o grupo de trabalho que neste último está previsto, entretanto constituído.
Relativamente ao Decreto-Lei de Execução Orçamental, sublinhamos, antes de mais, que, por natureza e imposição legal, constitui o instrumento onde ficam estabelecidas as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado a que respeita.
Sendo esse o seu objecto, como decorre, no caso, do artº.1, do citado Decreto-Lei 25/2017, de 3/03, parece poder concluir-se que a LOE, no caso para o ano de 2017, constitui o quadro legal que, simultaneamente, legitima as normas que integram o Decreto de Execução Orçamental e limita o âmbito da sua aplicação, devendo as normas que integram este último ser interpretadas, primacialmente, em conformidade com os princípios e normas integradas naquela primeira, desta forma se assegurando que um diploma cuja exclusiva elaboração e execução está cometida ao Governo, não altere, em matéria orçamental, o que ficou decidido pela Assembleia da República, a quem, sob proposta do Governo, compete aprovar o Orçamento de Estado (cfr.artº.161, al.g), da C.R.Portuguesa; artº.53, da Lei de Enquadramento Orçamental actualmente em vigor - Lei 151/2015, de 11/09).
Ora, o citado artº.70, do Decreto-Lei 25/2017, de 3/03, não disciplina a repercussão da taxa de ocupação do subsolo, o que bem se compreende porque, como já deixámos explicitado, o artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017, constitui uma norma auto-exequível, ou seja, apta, sem qualquer regulamentação complementar a produzir todos os seus efeitos (também designada pela doutrina como "norma autónoma"). (cfr. José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 4ª. Edição, Editorial Verbo, 1987, pág.474 e seg.).
Nesta sede, não deve o aplicador do direito confundir duas questões distintas, que são, por um lado, a de saber se a proibição do artº.85, nº.3, da LOE 2017, nos termos em que ficou consagrada, era susceptível de produzir efeitos imediatos à data da sua entrada em vigor e, por outro, a questão de saber quais as repercussões que dessa disposição, produzindo efeitos imediatos, resultam para as empresas operadoras de infraestruturas do ponto de vista financeiro.
Para que estas duas questões pudessem estar correlacionadas e dependentes uma da outra, necessário seria que o legislador tivesse feito depender a examinada proibição do apuramento dessas consequências. O que não fez, limitando-se ou comprometendo-se, como resulta da conjugação do artº.85, nºs.1 e 2, da LOE 2017, e do artº.70, nºs.1 a 5, do Decreto de Execução Orçamental, a definir os novos pressupostos de determinação da TOS e a desenvolver os procedimentos necessários à avaliação ou determinação do impacto da proibição no referido equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas e, em função do que viesse a ser apurado, alterar o quadro legal em vigor.
Volta a vincar-se, o que está em causa nos autos é a exegese do artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017, mais concretamente a sua susceptibilidade de produzir efeitos imediatos na esfera jurídica dos consumidores finais, que, em primeira linha, terá sempre que resultar da interpretação desta norma em conformidade com os critérios interpretativos consagrados no artº.9, do C.Civil, e no artº.11, da L.G.Tributária, conforme mencionado supra.
Quanto ao teor das sucessivas normas orçamentais (cfr.artº.246, da Lei do OE de 2019/Lei 71/2018, de 31/12; artº.133, da Lei do OE de 2021/Lei 75-B/2020, de 31/12), tal como do Despacho 315/2021, de 11/01/2021, e da constituição do grupo de trabalho neste previsto, deve concluir-se que toda esta legislação reforça a interpretação por nós perfilhada de que o legislador apenas "cuidou da futura regulação da TOS" mas não revogou a proibição de repercussão do seu valor aos consumidores (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/02/2023, rec.2/21.3BEALM).
Ainda, do citado Decreto-Lei 140/2006, de 26/07, e das bases das concessões nele consagradas (anexo IV), convocadas na Resolução 98/2008, de 3 de Abril de 2008, resulta que a própria Lei, não só previu que o concedente podia, por via legislativa, alterar unilateralmente o contrato de concessão, como previu ainda os meios ou modalidades através dos quais a reposição do equilíbrio económico e financeiro da concessão se devia efectuar, se a ela devesse haver lugar. O que significa, salvo melhor entendimento, que tendo o Governo (Estado) por via da LOE 2017, alterado unilateralmente o contrato de concessão, proibindo a repercussão no cliente final da TOS, haveria que apurar se da modificação unilateralmente imposta tinha efectivamente resultado um desequilíbrio financeiro no contrato e, em caso afirmativo, qual a sua amplitude para que fossem adoptadas uma das modalidades de reposição legalmente previstas, sendo neste contexto, a nosso ver, que deve ser interpretado o preceituado no artº.85, nº.1, da LOE 2017, tal como os consequentes desenvolvimentos consagrados no artº.70, do Decreto-Lei de Execução Orçamental do OE de 2017 (25/2017, de 3/03).
Com estes pressupostos, deve este Tribunal concluir que não existe fundamento para que, ao artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017, não deva ser reconhecida eficácia plena a partir de 2017, isto é, que a norma cuja eficácia avalizamos produziu efeitos desde 1/01/2017.
Por consequência, o acto de repercussão da TOS impugnado (cfr.al.A) do probatório supra), no valor total de € 10.248,01, montante incluído na factura relativa ao fornecimento de gás natural do mês de Março de 2019, liquidada à impugnante e ora recorrida pela sociedade recorrente "A..., S.A. - Sucursal em Portugal", é ilegal, devido a violação do disposto no examinado artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017, conforme o decidido pelo Tribunal "a quo".
X
Ainda, aduz a sociedade recorrente, em síntese, que não existe fundamento legal para o reembolso da quantia paga, acrescida da entrega de juros indemnizatórios à sociedade recorrida, ao abrigo do artº.43, da L.G.T. (cfr.conclusões 15 a 17 do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar mais um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal pecha.
As obrigações pecuniárias e de quantidade, como é o caso da obrigação de apuramento de juros derivada do indevido pagamento de uma liquidação tributária, devem ser cumpridas de acordo com o princípio nominalista, em moeda que tenha curso legal no País, impondo a lei o pagamento de juros face a tal tipo de obrigações. Os juros consistem no preço do dinheiro em função do tempo, remunerando o seu titular em face da sua disponibilização temporal a terceiro ou, por outras palavras, são os frutos civis, constituídos por coisas fungíveis e que representam o rendimento de uma obrigação de capital (cfr.artºs.550 e 806, nº.1, ambos do C.Civil; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 26/05/2022, rec.1611/11.4BELRS-A; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/02/2023, rec. 971/21.3BELRS; João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.I, 7ª. edição, Almedina, 1991, pág.844 e seg., e 867 e seg.; José Maria Fernandes Pires e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Almedina, 2015, pág.357).
Especificamente na área do direito tributário, nos termos do artº.100, da L.G.Tributária, em virtude da procedência total ou parcial de impugnação a favor do sujeito passivo, a A. Fiscal está obrigada à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto objecto do litígio, tal dever compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios ou moratórios, se for caso disso, computados a partir do termo do prazo da execução espontânea da decisão (cfr.artº.43, da L.G.T.).
Em face de tal postulado, a anulação judicial do acto tributário implica o desaparecimento de todos os seus efeitos "ex tunc", tudo se passando como se o acto anulado não tivesse sido praticado, mais devendo a reintegração completa da ordem jurídica violada ser efectuada de acordo com a teoria da reconstituição da situação actual hipotética (cfr.Diogo Freitas do Amaral, A execução das sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª. Edição, Almedina, 1997, pág.70; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, 4ª.Edição, Editora Encontro da Escrita, 2012, pág.868 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, 6ª. Edição, 2011, pág.526 e seg.).
No que, concretamente, diz respeito aos juros indemnizatórios correspondem estes à materialização de um direito de indemnização que tem raiz constitucional. Com efeito, no artº.22, da C.R.Portuguesa, estabelece-se que o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
A norma constitucional remete para o instituto da responsabilidade civil, pelo que serão aplicáveis as respectivas regras.
A obrigação de pagamento de juros indemnizatórios tem o seu fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado (cfr.Lei 67/2007, de 31/12), constituindo a contra face dos juros compensatórios a favor da Administração Fiscal. Com estes pressupostos, pode dizer-se que a natureza dos juros indemnizatórios é substancialmente idêntica à dos juros compensatórios, sendo, como estes, uma indemnização atribuída com base em responsabilidade civil extracontratual (cfr.ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 26/05/2022, rec.1611/11.4BELRS-A; Jorge Lopes de Sousa, Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por Actos llegais, Áreas Editora, 2010, pág.37 e seg.).
O citado artº.22, da C.R.Portuguesa, consagra "o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos" (cfr.J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 4ª. Edição, Coimbra Editora, I Volume, pág.425 e seg.; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol.I, 2ª. Edição revista, Universidade Católica Editora, 2017, pág.344 e seg.)., um dos princípios estruturantes do Estado de Direito Democrático.
Atendendo à função primordial de protecção dos cidadãos em caso de lesões provocadas pelas entidades públicas que a citada norma constitucional prossegue, a doutrina vem entendendo que o preceito é apto a responsabilizar quer as entidades públicas quer as entidades privadas que, em substituição do Estado, estão incumbidas do exercício de funções públicas ou desempenham por força de lei poderes públicos, sob pena de subversão do referido princípio constitucional. Ou seja, não há que excluir da responsabilidade consagrada no artº.22, da C.R.P., as entidades privadas nas situações em que os actos por si praticados ainda o são na prossecução do interesse público e no exercício de poderes públicos, isto é, sempre que exista uma conexão entre o acto lesivo e a concreta função ou serviço público legalmente cometido a essa entidade privada.
Aliás, constituindo a actividade tributária um domínio particularmente invasivo dos direitos dos cidadãos, não podem subsistir dúvidas que é também neste domínio que a garantia constitucional da reparação da lesão resultante de acto materialmente tributário assume acentuado relevo.
Em conformidade com o regime estabelecido no citado artº.43, da L.G.T., para o que ora releva, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços, de que resultou um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (nº.1), sendo aplicável, na sua contagem, a taxa prevista para os juros compensatórios (nº.4).
Por sua vez, por força do preceituado no artº.35, nº.10, da L.G.T., a taxa dos juros compensatórios é equivalente à taxa dos juros legais fixados nos termos do artº.559, nº.1, do C.Civil, resultando deste preceito que os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça, das Finanças e do Plano, os quais devem ser calculados à taxa de 4%, por força do artº.1, da Portaria 291/2003, de 8/04.
"In casu", já ficou decidido que o acto de repercussão é ilegal por violação do artº.85, nº.3, da Lei do OE para 2017, e que desse acto ilegal resultou o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que não temos dúvidas em afirmar que se verificam estes particulares requisitos de atribuição de juros indemnizatórios.
A única questão que se pode colocar será a de saber se a recorrente, enquanto pessoa colectiva de direito privado (no caso constituída sob a forma de sociedade anónima), ainda poderá considerar-se abrangida pelo artº.43, da L.G.T. Ou seja, se a concessionária de um serviço público, no que respeita a lesões patrimoniais decorrentes de um acto de repercussão de tributo por si praticado ao abrigo do poder que para esse efeito lhe foi legalmente conferido, deve integrar o conceito de "serviços", assim ficando onerada com a obrigação de pagamento dos juros indemnizatórios previstos no citado normativo.
Nesta sede, chamamos à colação a doutrina que considera que ainda é de abranger no conceito de "serviços" as empresas privadas concessionárias de serviço público que, nesta condição, substituem a Administração nas relações com o público e actuam como se fossem entidades públicas. Pode falar-se de relações jurídicas administrativas multipolares com vértice publicizado (entre a esfera do Estado e a esfera própria da sociedade se intercala uma maior ou menor área de carácter híbrido, em que funções públicas são levadas a cabo por entidades mistas ou por entidades particulares, em virtude da delegação do Estado, a que podemos chamar a zona pública não-estadual). (cfr.Francisco Paes Marques, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares - Contributo para a sua Compreensão Substantiva, Almedina, 2011, pág.37 e seg.).
Acresce que o Estado ao conceder legalmente à sociedade comercializadora de gás, ora recorrente, a possibilidade de repercutir um tributo, a investiu de um poder tributário que a mesma exerce perante os seus clientes, o que "configura ainda uma competência tributária derivada ou de segundo grau" proveniente da figura da repercussão fiscal. A TOS continua, assim, a consubstanciar "uma contraprestação à prestação estadual constituída pela utilização privativa do domínio público do Estado, nada se alterando, sob o ponto de vista da substância das coisas, pela circunstância de essa utilização ocorrer no quadro de uma concessão de exploração desse mesmo domínio público".
Assim, a circunstância da entidade que praticou o acto lesivo (repercussão ilegal) ser uma entidade privada, uma sociedade anónima, não determina a sua exclusão do âmbito de aplicação do artº.43, nº.1, da L.G.T., interpretado em conformidade com o artº.22, da C.R.Portuguesa, porque o poder de repercutir a TOS (acto materialmente tributário praticado no exercício de uma actividade de serviço público), que legalmente lhe foi atribuído, corresponde ao exercício de um poder de autoridade típico do Estado. Por outras palavras, a actividade desenvolvida pela concessionária não perde a sua natureza pública administrativa apenas por ser desenvolvida sob a forma de sociedade anónima, nem o acto de repercussão, praticado no contexto legal definido deixa de ser materialmente tributário por ser praticado pela sociedade comercializadora de gás, ora recorrente, devendo entender-se que os valores cobrados ao consumidor na parte que respeitam à contrapartida da utilização pela recorrida do bem de domínio público possuem ainda tendencialmente a natureza de créditos tributários.
Em suma, o pagamento da TOS, por via do acto de repercussão, representa ainda a cobrança de uma receita coactiva e não a mera satisfação, por parte do cliente final, de uma obrigação privada assumida no âmbito de um contrato sinalagmático que tem como contraparte a sociedade recorrida. Interpretação que, se bem vemos, encontra respaldo no artº.18, nº.1, da L.G.T., norma que consagra uma noção ampla de sujeito activo da relação tributária, nela se incluindo a figura do representante, entendendo-se ser nesta última figura que se integra o concessionário do serviço público de gás natural, a funcionar na arrecadação da TOS como um substituto "ex lege", assim promovendo a cobrança do tributo por meio da respectiva repercussão. Também chamadas entidades de direito público por atribuição e constituindo sujeitos activos da relação jurídica tributária de natureza complexa (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/02/2023, rec.2/21.3BEALM; Joaquim Freitas da Rocha e Hugo Flores da Silva, Teoria Geral da Relação Jurídica Tributária, Almedina, 2017, pág.74 e seg.).
Rematando, no contexto de facto e de direito que emerge dos autos, é de considerar a sociedade comercializadora de gás ora recorrente integrada no conceito de "serviços" consagrado no artº.43, nº.1, da L.G.T. Em consequência, entendemos que não existe qualquer obstáculo em reconhecer à sociedade recorrida o direito de reaver o que ilegalmente lhe foi exigido e pagou e, bem assim, o direito a receber o valor correspondente aos juros indemnizatórios, calculados à taxa de 4% desde a data em que esse pagamento indevido se verificou (30/04/2019 - cfr.al.B) do probatório supra) até efectivo e integral reembolso.
Atento o relatado, sem necessidade de mais amplas considerações, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida embora com a presente fundamentação, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DESTE SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condena-se a sociedade recorrente em custas (cfr.artº.527, do C.P.Civil).
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 8 de Março de 2023. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Anabela Ferreira Alves e Russo.