Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0848/16.4BEPNF
Data do Acordão:05/04/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:IRC
CRÉDITO DE IMPOSTO
DUPLA TRIBUTAÇÃO
DERRAMA
Sumário:I - Se determinado sujeito passivo residente em território nacional obtém rendimentos no estrangeiro que aí foram sujeitos a tributação, em face da regra da universalidade poderá ocorrer uma situação de dupla tributação em território nacional. Sucede, assim, uma dupla tributação jurídica internacional quando o mesmo rendimento, na esfera do mesmo sujeito passivo, é tributado no mesmo período em diferentes Estados, podendo o Estado de residência do beneficiário do rendimento permitir a sua eliminação. O mecanismo do crédito de imposto consiste em deduzir à colecta do I.R.C. determinada quantia de imposto já paga no outro país com o limite daquela que seria liquidada em território nacional. Estamos perante a consagração unilateral do método de imputação ordinária. O imposto pago no estrangeiro constitui um crédito relativamente ao tributo devido no Estado de residência (Portugal), mas tal crédito não excederá o valor de I.R.C. que seria devido no caso de tais rendimentos terem sido originados no nosso país. O mesmo é dizer que a dupla tributação é totalmente eliminada quando o imposto pago no estrangeiro for igual ou inferior ao liquidado no estado de residência e será, apenas, atenuada caso seja superior (cfr.artº.91, do C.I.R.C.).
II - Actualmente prevista no artº.18, da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei 73/2013, de 3/9 (cfr.anterior artº.14, da Lei 2/2007, de 15/01), a derrama municipal deve configurar-se como um verdadeiro imposto, o qual incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de I.R.C. dos sujeitos passivos desta cédula tributária, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do município em causa, mais acrescendo ao imposto principal de cuja existência prévia depende.
III - O artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2012, não distingue as situações em que existe ou não CDT, sob pena de se postergar o princípio da igualdade tributária, na correcção ao cálculo do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, pelo que a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da "fracção do IRC" aí prevista.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA00071447
Nº do Documento:SA2202205040848/16
Data de Entrada:11/29/2018
Recorrente:A........, S.A
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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"A………, S.A.", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal visando sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. de Penafiel, constante a fls.146 a 160 do processo físico, a qual julgou totalmente improcedente a presente impugnação intentada pela sociedade recorrente e tendo por objecto a liquidação adicional de I.R.C., relativa ao ano fiscal de 2012 e no valor a reembolsar de € 6.535.217,73, mais sendo apurado um saldo a pagar no valor de € 638.236,28, tudo conforme a respectiva demonstração de acerto de contas.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.215 a 243 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
i-A derrama municipal é um imposto acessório do IRC, atualmente na modalidade de adicionamento, incidindo sobre o lucro tributável dos sujeitos passivos do IRC;
ii-O que significa que se o rendimento não estiver sujeito a IRC não será devida derrama municipal;
iii-A ligação da derrama municipal ao IRC não se limita, assim, apenas ao seu apuramento, mas depende, inclusive, da incidência ou não deste, sem prejuízo, obviamente, das normas previstas na Lei das Finanças Locais, aplicável à data dos factos, que regulamentam certos aspetos da incidência real e pessoal e da liquidação da derrama municipal;
iv-Assim sendo, o texto da lei - fração do IRC - abrange a derrama municipal, por aplicação do princípio accessorium sequitur principale (o acessório segue o principal), ou seja, não exclui (função negativa do elemento gramatical) a interpretação aqui preconizada pela Recorrente;
v-Na redação inicial da norma aqui em apreço a expressão “fração do IRC” tinha de ser necessariamente e em todos os casos interpretada em conformidade com os textos convencionais, os quais no seu artigo 2° da Modelo de Convenção Fiscal da OCDE incluíam, independentemente da sua formulação, os impostos municipais;
vi-Quando a norma em apreço foi alterada, Portugal, enquanto Estado da Residência, passou a conceder, independentemente da existência ou não de uma CDT, o crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, não alterou a expressão “fração do IRC”;
vii-Quanto ao elemento teleológico da norma em apreço, a decisão do legislador em conceder, mesmo na ausência de uma CDT, aos seus residentes com rendimentos obtidos no estrangeiro (Estado da Fonte), um crédito de imposto dá expressão ao princípio da neutralidade na exportação, segundo o qual “os sujeitos passivos que obtenham rendimentos noutros Estados devem ficar abrangidos por um tratamento fiscal similar ao aplicável àqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente no Estado da Residência;
viii-A única restrição prevista pelo legislador é a resultante do método da imputação ordinária ou limitada, que fixa o valor do imposto estrangeiro dedutível que seria devido se os rendimentos em causa tivessem sido obtidos em território nacional;
ix-Além do mais, o intérprete não poderá, naturalmente, deixar de ter em consideração as obrigações internacionais assumidas por Portugal, bem como o costume internacional que Portugal tem seguido nesta matéria, para efeitos de interpretar a norma aqui em apreço na unidade do sistema jurídico;
x-No plano do elemento racional / teleológico da interpretação da norma em apreço, a manutenção da coleta da derrama municipal iria conduzir à dupla tributação internacional do rendimento, contrariando o espírito e o fim da norma em causa;
xi-Deste modo, podemos concluir que a fração do IRC constante da alínea b) do n.° 1 do artigo 91º do Código do IRC deve incluir a derrama municipal, relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro, independentemente de Portugal ter celebrado uma CDT com os Estados da Fonte desses rendimentos;
xii-Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo quanto a este aspeto;
xiii-Sem prescindir,
xiv-A Recorrente entende que os Comentários ao Modelo de Convenção Fiscal da OCDE podem e devem servir de instrumentos de auxílio na interpretação do artigo 91º do Código do IRC, essencialmente, por duas razões;
xv-A primeira é que a interpretação e aplicação do artigo 91° do Código do IRC não se limita, desde a Lei n.° 75/93, de 20 de dezembro, aos casos que resultam da aplicação da CDT celebrada por Portugal, mas sim a todos os rendimentos obtidos no estrangeiro;
xvi-Se o que esteve na génese do artigo 91° do Código do IRC foi a aplicação do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional ao IRC e aos impostos municipais, a ampliação dos seus efeitos a todos os rendimentos obtidos no estrangeiro (por efeito da Lei n.° 75/93, de 20 de dezembro) não alterou as suas razões de ser;
xvii-Em segundo lugar, nada impede que o intérprete e o aplicador da Lei perante o (difícil) exercício de interpretação se possa socorrer, na medida do possível, dos referidos Comentários que, apesar de não serem juridicamente vinculantes para o caso em apreço e mesmo na aplicação da CDT, possuem uma força moral importante que funcionam como meios auxiliares na interpretação;
xviii-Deste modo, podemos concluir que a fração do IRC constante da alínea b) do n.° 1 do artigo 91° do Código do IRC deve incluir a derrama municipal, relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro, independentemente de Portugal ter celebrado uma CDT com os Estados da Fonte desses rendimentos;
xix-Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, quanto a este aspeto;
xx-Sem prescindir,
xxi-A Recorrente defendeu que interpretação e aplicação da expressão fração do IRC, prevista no artigo 91° do Código do IRC, não pode conduzir à violação das regras da Organização Mundial do Comércio e, igualmente, do Acordo sobre a Promoção e a Proteção Recíproca de Investimentos que proíbem a discriminação fiscal positiva;
xxii-O que resulta numa situação de discriminação tributária, não desejada pelos acordos internacionais celebrados por Portugal;
xxiii-A interpretação a dar às normas fiscais deverá ter em consideração a unidade do sistema jurídico, incluindo todos os acordos internacionais e, sobretudo, aqueles que expressamente proíbem a discriminação fiscal: artigo 3° do Acordo sobre a Promoção e a Proteção Recíproca de Investimentos, Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio de 1994 (Marraquexe) e Estatutos da Organização Mundial do Comércio;
xxiv-Deste modo, podemos concluir que a fração do IRC constante da alínea b) do n.° 1 do artigo 91° do Código do IRC deve incluir a derrama municipal, relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro, independentemente de Portugal ter celebrado uma CDT com os Estados da Fonte desses rendimentos;
xxv-Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo quanto a este aspeto;
xxvi-Sem prescindir,
xxvii. O princípio da justiça (artigo 266°, n.° 2, da CRP) e o princípio da capacidade contributiva (artigo 4° da LGT), corolário do princípio da igualdade (artigo 13° da CRP), na aceção da dupla tributação, não têm um alcance limitado em função de se tratar de imposto principal (IRC) ou de imposto acessório deste (derrama municipal);
xxviii-Sempre que se verificar uma duplicação injustificada de tributação de imposto, existe violação do princípio da justiça e do princípio da capacidade contributiva;
xxix-A Lei das Finanças Locais, aplicável à data dos factos, regulamentas certos aspetos da incidência real e pessoal e da liquidação da derrama municipal;
xxx-A Lei das Finanças Locais não regulamenta, nem tem a pretensão de o fazer, aspetos relacionados com a eliminação ou atenuação da dupla tributação internacional;
xxxi-O regime legal da eliminação ou atenuação da dupla tributação internacional está previsto no Código do IRC e aplica-se ao imposto principal (IRC) e aos demais impostos acessórios (derrama estadual e derrama municipal);
xxxii-Acresce que não faz qualquer sentido manter intata a coleta da derrama municipal e, assim, sujeitar a Recorrente à tributação dos rendimentos obtidos no estrangeiro no Estado da Fonte e no município da sua sede geográfica, portanto com dupla tributação, e afastar da tributação o Estado (sujeito ativo da relação jurídica tributária do IRC);
xxxiii-Deste modo, podemos concluir que a fração do IRC constante da alínea b) do n.° 1 do artigo 91° do Código do IRC deve incluir a derrama municipal, relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro, independentemente de Portugal ter celebrado uma CDT com os Estados da Fonte desses rendimentos;
xxxiv-Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, quanto a este aspeto;
xxxv-Sem prescindir,
xxxvi-Caso se venha a verificar a improcedência total da impugnação judicial não se verifica o requisito previsto no n.° 1 do artigo 53° da LGT: o vencimento da impugnação judicial que tenha como objeto a dívida garantida;
xxxvii-Se se verificar o vencimento da impugnação judicial em apreço, quanto à parte aí contestada - crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional - e por erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, conforme as causas de pedir e o pedido aqui em apreço, o prazo de manutenção da garantia bancária por período superior a três anos não se aplica, nos termos do n.° 2 do artigo 53° da LGT;
xxxviii-Deste modo, podemos concluir que, caso a impugnação judicial venha a obter vencimento na parte contestada - crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional - o pedido de indenização pela prestação da garantia indevida deve ser deferido;
xxxix-Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, quanto a este aspeto.
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Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.253 a 256 do processo físico).
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Corridos os vistos legais (cfr.fls.260 e 264 do processo físico), vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.148 e 149 do processo físico):
A-Na declaração Modelo 22 do exercício de 2012, no campo C.353 - “Dupla tributação internacional”, do Quadro 10, a impugnante deduziu o montante de € 20.418.020,10, referente a IRC devido pelas sucursais, incluindo a derrama municipal, pago no estrangeiro, sendo € 20.207.299,60, referente à sucursal em Angola e € 210.720,50, referente à sucursal do Botswana (fls. 27 a 99).
B-A Autoridade Tributária e Aduaneira considerando que a taxa da derrama municipal não pode concorrer para o cálculo da fração do IRC a levar em conta no crédito por dupla tributação internacional, por não haver convenção de dupla tributação internacional com Angola, detetou uma divergência no montante de € 903.304,28, relativa à sucursal de Angola, entre o valor do crédito do imposto por dupla tributação internacional declarado pela impugnante, no valor de € 20.207.299,60, e o apurado por si, no valor de € 19.303.995,32 (fls. 27 a 99).
C-Por esse motivo, a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à correção do valor deduzido no C. 353 do Q. 10 da declaração Mod. 22, da impugnante do exercício de 2012, no montante de € 903.304,28, relativa a crédito de imposto por dupla tributação internacional (fls. 27 e 99).
D-A impugnante foi sujeita a uma ação inspetiva ao exercício de 2012, cujas conclusões constam do relatório de inspeção tributária de folhas 27 a 99 do processo administrativo (PA), cujo teor aqui se dá por reproduzido.
E-Com base no referido relatório de inspeção tributária, os serviços de inspeção tributária procederam à correção da matéria tributável do exercício de 2012, no montante de € 299.586,20, em resultado das correções dos valores das depreciações não aceites como gastos, dos gastos não documentados, dos encargos não devidamente documentados e dos gastos não indispensáveis à realização dos rendimentos (fls. 27 a 99 do PA).
F-Os serviços de inspeção tributária consideraram que, com base nos documentos apresentados pela impugnante, foi detetada uma divergência, entre o valor de crédito de imposto por dupla tributação internacional declarado pela impugnante na declaração Mod. 22 do exercício de 2012 e o apurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos referidos em B), no montante de € 903.304,28, relativa à sucursal de Angola (fls. 27 a 99 do PA).
G-Os serviços de inspeção tributária apuraram ainda uma correção do valor da tributação autónoma declarada, no montante de € 15.032,40, a favor da impugnante (fls. 27 a 99 do PA).
H-Na sequência das correções realizadas em E) e G) os serviços de inspeção tributária apuraram um IRC em falta, no exercício de 2012, no montante de € 888.271,88 (€ 903.304,28 - € 15.032,40) (fls. 27 a 99 do PA).
I-As correções à matéria tributável referidas em E) e o IRC em falta, apurado nos termos descritos de A) a C) e F) a H), deram origem à liquidação impugnada, que apurou um valor a reembolsar de € 6.535.217,73, de que resultou um saldo a pagar de € 638.236,28 (fls. 27 a 29).
J-A impugnante não pagou a liquidação impugnada até 20/04/2016, data limite de pagamento voluntário (fls. 19 do PA).
K-Em 10/05/2016 foi instaurado o processo de execução fiscal n.° 356520160101034103 para cobrança coerciva da dívida da liquidação impugnada (fls. 19 do PA).
L-Em 23/05/2016, a impugnante apresentou no Serviço de Finanças de Valongo 2 - Ermesinde a garantia bancária n.° 00125-02-2015178, prestada pelo Banco ……….., SA, no valor de € 808.264,69, para suspensão do processo de execução fiscal (fls. 20 do PA).
M-A garantia bancária foi aceite por despacho de 06/06/2016 e o processo de execução fiscal foi suspenso (fls. 20).
X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Com relevância para a decisão da causa inexiste matéria de facto julgada não provada…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou a impugnação judicial totalmente improcedente e, em consequência:
1-Absolveu a Fazenda Pública do pedido de anulação do acto tributário objecto do processo, na parte em que a liquidação adicional resulta do I.R.C., por um lado, apurado com base nas correcções em sede de tributação autónoma e, por outro, do apuramento realizado com suporte nas correções à matéria tributável, por não ter sido invocada qualquer ilegalidade nestas parcelas da mesma;
2-Absolveu a Fazenda Pública do pedido de anulação da liquidação impugnada, na fracção restante, a qual resulta do I.R.C. apurado por desconsideração de parte do crédito por dupla tributação internacional, devido a improcedência do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito;
3-Absolveu a Fazenda Pública do pedido de condenação em indemnização por prestação de garantia indevida.
X
Relembre-se que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
A sociedade recorrente dissente do julgado alegando, em primeiro lugar e em síntese, que a expressão "fracção do IRC" constante do artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor em 2012, deve incluir a derrama municipal, relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro, independentemente de Portugal ter celebrado uma CDT com o Estado da Fonte desses rendimentos. Que a tal conclusão se deve chegar com base nos diversos elementos de exegese da norma em causa. Igualmente se devendo concluir no mesmo sentido em virtude dos acordos internacionais celebrados por Portugal, nomeadamente, a Organização Mundial do Comércio e o Acordo sobre a Promoção e a Protecção Recíproca de Investimentos, ambos proibindo a discriminação fiscal positiva. Ainda, a interpretação defendida pelo Tribunal "a quo" viola os princípios constitucionais da justiça e da capacidade contributiva. Que a sentença recorrida não fez uma correcta interpretação jurídica do segmento da correcção que procede ao cálculo do crédito de imposto por dupla tributação internacional, na parte da dedução de imposto sobre o rendimento suportado pela sua sucursal de Angola (cfr.conclusões i) a xxxiv) do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
Em primeiro lugar, é mester vincar-se que se operou o trânsito em julgado da sentença recorrida na parcela em que absolveu a Fazenda Pública do pedido de anulação do acto tributário objecto do processo, na parte em que a liquidação adicional resulta do I.R.C., por um lado, apurado com base nas correcções em sede de tributação autónoma e, por outro, do apuramento realizado com suporte nas correções à matéria tributável (cfr. artº.635, nº.5, do C.P.Civil).
Quanto ao verdadeiro objecto do recurso, abordemos, em primeiro lugar, a figura da derrama municipal.
Actualmente prevista no artº.18, da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei 73/2013, de 3/9 (cfr.anterior artº.14, da Lei 2/2007, de 15/01), a derrama municipal deve configurar-se como um verdadeiro imposto, o qual incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de I.R.C. dos sujeitos passivos desta cédula tributária, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do município em causa, mais acrescendo ao imposto principal de cuja existência prévia depende (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 21/05/2014, rec.1543/13; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 13/01/2021, rec.3652/15.3BESNT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/11/2021, rec.255/17.1BESNT; ac.Tribunal Constitucional 197/2013, 9/04/2013, proc.602/12; Joaquim Freitas Rocha, Direito Financeiro Local, 3ª. Edição, Almedina, 2019, pág.192 e seg.).
"In casu", cumpre aferir se no cálculo do limite à dedução de imposto, por dupla tributação jurídica internacional, previsto no artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2012, se deve ou não incluir a derrama municipal, portanto, se esta se deve compreender na "fracção do IRC" a que faz menção a previsão da norma.
O Tribunal "a quo" entende que não.
A sociedade recorrente defende que sim, com base nos esteios da apelação supra identificados para onde se remete.
Vejamos quem tem razão.
Antes de mais, se dirá que é hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.9, do C. Civil; artº.11, da L.G.Tributária).
Se determinado sujeito passivo residente em território nacional obtém rendimentos no estrangeiro que aí foram sujeitos a tributação, em face da regra da universalidade poderá ocorrer uma situação de dupla tributação em território nacional. Sucede, assim, uma dupla tributação jurídica internacional quando o mesmo rendimento, na esfera do mesmo sujeito passivo, é tributado no mesmo período em diferentes Estados, podendo o Estado de residência do beneficiário do rendimento permitir a sua eliminação. O mecanismo do crédito de imposto consiste em deduzir à colecta do I.R.C. determinada quantia de imposto já paga no outro país com o limite daquela que seria liquidada em território nacional. Estamos perante a consagração unilateral do método de imputação ordinária. O imposto pago no estrangeiro constitui um crédito relativamente ao tributo devido no Estado de residência (Portugal), mas tal crédito não excederá o valor de I.R.C. que seria devido no caso de tais rendimentos terem sido originados no nosso país. O mesmo é dizer que a dupla tributação é totalmente eliminada quando o imposto pago no estrangeiro for igual ou inferior ao liquidado no estado de residência e será, apenas, atenuada caso seja superior (cfr.artº.91, do C.I.R.C.; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/11/2021, rec. 255/17.1BESNT; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.761 e seg.; Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pág.205 e seg.; Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2ª. Edição Actualizada, Almedina, 2007, pág.748 e seg.).
Avancemos.
No que diz respeito à exegese do artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2012, desde logo, se deve chamar à colação o elemento histórico de interpretação, tal como a própria letra da lei (enquanto limite de interpretação da norma - cfr.artº.9, nº.2, do C.Civil), atentando na evolução do texto da norma, ou seja, na utilização, pelo legislador da expressão "fracção do IRC". Ora, esta expressão permanece inalterada no texto legal desde a primitiva redação do Código do I.R.C. (cfr.artº.73, al.b), do C.I.R.C., na versão aprovada pelo dec.lei 442-B/88, de 30/11). O que assume particular relevo interpretativo, porquanto, inicialmente, o crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional apenas era conferido aos rendimentos oriundos de países com os quais Portugal tivesse em vigor uma CDT.
Ou seja, na redacção inicial da norma, a expressão "fracção do IRC" tinha, necessariamente e em todos os casos, que ser interpretada em conformidade com os textos convencionais, sendo que a própria Convenção Modelo da OCDE (cfr.artº.2, nº.1, com a epígrafe "impostos visados"), independentemente da formulação em concreto utilizada, abrange a derrama municipal.
Quando, mais tarde, o legislador decidiu que Portugal, enquanto país da residência, passaria a atribuir, unilateralmente (ou seja, independentemente da existência de uma CDT) um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, não alterou a expressão "fracção do IRC". Ou seja, também a análise da evolução do elemento literal da norma não permite, em momento algum, surpreender uma vontade legislativa de distinguir entre a efectivação (as colectas às quais pode ser deduzido) do crédito de imposto nas situações em que existe uma CDT e aquelas em que não existe, em que a concessão de tal crédito é unilateral, resultante da lei interna (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/11/2021, rec.255/17.1BESNT; Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pág.206 e seg.).
O elemento teleológico da interpretação também aponta no mesmo sentido. A decisão de Portugal passar a conceder, unilateralmente (i. e., na ausência de uma CDT que o imponha), aos seus residentes com rendimentos oriundos do estrangeiro, um crédito em razão do imposto pago nos países da fonte dá expressão ao chamado princípio da neutralidade na exportação: "os sujeitos passivos que obtenham rendimentos noutros estados devem ficar abrangidos por um tratamento fiscal similar ao aplicável àqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente no estado de residência". Está, pois, em causa uma igualdade entre residentes, que não deve resultar limitada por interpretações restritivas da lei, ou seja, por interpretações que restrinjam a possibilidade efectiva, ainda que parcial, de dedução de um tal crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/11/2021, rec.255/17.1BESNT).
Ainda como elemento racional ou teleológico de interpretação, se deve chamar à colação as obrigações assumidas por Portugal, nomeadamente, no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), as quais vão no sentido da eliminação de restrições à livre concorrência internacional em matéria de investimento, as quais resultarão mais cabalmente cumpridas se, no plano fiscal, se evitarem diferenciações entre os residentes que invistam no exterior, consoante o país onde tais investimentos aconteçam. Por outras palavras, mesmo que se possa entender que tais compromissos internacionais não vinculam directamente o legislador fiscal, o intérprete não poderá deixar de os ter presentes, em nome da unidade do sistema jurídico, considerado no seu todo. A interpretação que assegura a coerência do sistema jurídico é, certamente, a que corresponde "à solução legal mais acertada" que é suposto ter sido acolhida pelo legislador (cfr.artº.9, nº.3, do C.Civil - "ratio legis").
Com estes pressupostos, deve concluir-se, contrariamente ao Tribunal "a quo", que o artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2012, não distingue as situações em que existe ou não CDT, sob pena de se postergar o princípio da igualdade tributária, na correcção ao cálculo do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, pelo que a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da "fracção do IRC" aí prevista, mais se devendo mencionar em defesa desta perspectiva hermenêutica da norma a jurisprudência deste Tribunal e do Tribunal Constitucional e a doutrina (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/11/2021, rec.255/17.1BESNT; ac.Tribunal Constitucional 603/2020, 11/11/2020, proc.172/20; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.762, em anotação ao artº.91, do C.I.R.C.).
Com estes pressupostos, enferma o acto de liquidação adicional, na parcela objecto do recurso (cfr.als.B) e C) do probatório) de erro nos pressupostos de direito o que tem como consequência a sua anulação na parte impugnada, contrariamente ao decidido pelo Tribunal "a quo".
Sem necessidade de mais amplas considerações, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão recorrida, mais devendo os autos baixar ao Tribunal "a quo" para exame do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida (cfr.conclusões xxxvii) e xxxviii) do recurso - face ao qual não foi produzida a prova necessária, atento o carácter parcelar da decretada anulação, o qual se deve transmitir ao montante de indemnização a fixar - cfr.artº.53, nº.1, da L.G.T.), ao que se provirá na parte dispositiva do presente acórdão.
X
DISPOSITIVO
X
Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO, REVOGAR A DECISÃO RECORRIDA, ANULAR O ACTO DE LIQUIDAÇÃO NA PARCELA OBJECTO DA PRESENTE APELAÇÃO e ordenar o regresso dos autos ao T.A.F. de Penafiel, a fim de aí prosseguirem com o conhecimento do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, se a tal nada mais obstar.
X
Condena-se a entidade recorrida em custas, nesta instância de recurso (cfr.artº.527, do C.P.Civil), embora a dispensando do pagamento da taxa de justiça, visto não ter produzido contra-alegações.
X
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 4 de Maio de 2022. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) - Gustavo André Simões Lopes Courinha (Vencido conforme voto que infra segue) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva, em substituição)

"Voto vencido o presente acórdão, por entender que, além do elemento literal de interpretação – o qual não sugere o alargamento do conceito de “fracção do IRC” – concorrem ainda no sentido sufragado pela Recorrente dois outros argumentos relevantes.
Em primeiro lugar, entendo que só havendo a necessidade de fazer cumprir o acordado numa CDT é que se impõe uma interpretação conforme deste conceito com as obrigações fiscais internacionais do Estado Português, atento o âmbito objectivo das Convenções de Dupla Tributação previsto no artigo 2.º das mesmas, que não se restringe ao IRC, antes abarcando outros impostos sucedâneos sobre o rendimento.
O facto de, por força da evolução legislativa verificada, se ter passado a eliminar unilateralmente a dupla tributação jurídica internacional mesmo nos casos em que não exista Convenção de Dupla Tributação em vigor (como sucedia, à data, com Angola) – pese embora mantendo-se a mesma expressão “fracção de IRC” – não implica que o sentido interpretativo a dar à mesma se tenha de manter inalterado. Não se nos afigura, portanto, decisivo o argumento relativo à evolução legislativa do método unilateral de eliminação da dupla tributação jurídica internacional.
Acresce a este um outro argumento, que respeita à natureza autónoma da derrama e distinta do IRC e que conduz, não raramente, ao apuramento de coletas distintas num e noutro imposto.
Com efeito, a derrama possui, de há vários anos, uma natureza indiscutivelmente independente da do IRC, com ele apenas partilhando (e, ainda assim, apenas parcialmente) a base de incidência, traduzida no lucro tributável e não na matéria colectável (como se prevê no IRC). Assim, como explica SALDANHA SANCHES, “a sua relação com o IRC cinge-se, portanto, para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos” – do autor, cfr. “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 137.
Tal implica que os raciocínios de similitude que, noutros tempos (quando a derrama se podia configurar como um adicional ao IRC), poderiam porventura fundar uma equivalência de tratamento – para mais assente no princípio Acessorium sequitur principale – se encontram, em nossa opinião, hoje completamente ausentes. E isto, apesar de, para efeitos de uma Convenção de Dupla Tributação (a existir), a derrama configurar, em nossa opinião, um imposto claramente abrangido pela mesma.
Tenderíamos, em suma, a negar provimento ao presente Recurso."

GUSTAVO LOPES COURINHA