Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0215/17.2BEFUN
Data do Acordão:02/28/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRC
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
REVISÃO
LIQUIDAÇÃO
Sumário:I - O artigo 90.º, n.º 10, do Código do IRC deve ser interpretado no sentido de que tal liquidação pode ser corrigida no prazo da caducidade do direito respetivo se for apurado nesse prazo que a realidade tributária do sujeito passivo é diversa da apurada através daquela forma de liquidação;
II - A correção a que alude o número anterior pode ser efetuada a pedido do contribuinte que apresente a declaração em falta, devendo os dados respetivos ser investigados e livremente valorados pela administração no quadro dos seus poderes oficiosos;
III - É, por isso, ilegal e deve ser anulada a decisão administrativa de indeferir o pedido de revisão dessa liquidação apenas por não ter sido demonstrado que a falta de entrega da referida declaração não se dever a comportamento negligente do sujeito passivo.
IV - No entanto, a apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração de rendimentos em falta depois de decorrido o prazo a que alude o artigo 120.º do Código do IRC não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação efetuada pela administração nos termos do mesmo dispositivo legal;
V - É, por isso, ilegal e deve ser revogada a decisão judicial de anular a liquidação oficiosa apenas pelo facto de tal declaração ter sido entretanto apresentada.
Nº Convencional:JSTA000P31957
Nº do Documento:SA2202402280215/17
Recorrente:AT- RAM
Recorrido 1:A..., LDA. (Zona Franca da Madeira)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA, interpôs recurso da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A..., LDA., com o número de identificação fiscal e de pessoa coletiva ...63 e com sede na Avenida ..., ... ..., contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato tributário de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º ...01, relativo ao exercício de 2011, com a consequente anulação dessa liquidação oficiosa.

Com a interposição do recurso, foram apresentadas alegações e formuladas as seguintes conclusões: «(…)

A) Com base na factualidade dada como provada, o MM. Tribunal a quo, exarou a douta sentença, ora recorrida, em 07/10/2022, concluindo que, deveria a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma ..., ao abrigo do princípio do inquisitório, e para tanto desenvolvendo as diligências que entendesse necessárias, procurar perceber se os elementos declarados pela Impugnante eram aptos ou não a substituir os elementos por si considerados na elaboração da liquidação oficiosa (liquidação que em face de assentar em elementos ficcionados não pode deixar de se considerar como tendo natureza provisória, como a isso aponta o princípio da tributação pelo rendimento real).

B) Entende a douta sentença recorrida que não está em questão uma obrigação, por parte da AT de considerar, sem mais, verdadeiros os elementos extemporaneamente declarados, até porque ao não entregar a declaração dentro do prazo legal, a Impugnante não pode beneficiar da presunção de boa-fé que decorre do n.º 1 do art.º 75.º da Lei Geral Tributária, não podia era a AT-RAM, ignorar por completo os elementos declarados, sem procurar aferir da sua veracidade, o que poderia ter feito, designadamente, através de um procedimento inspetivo.

C) Salvo o devido respeito, é nosso entendimento que a douta sentença recorrida padece de erro de julgamento sobre a matéria de direito, porquanto faz uma errónea subsunção do caso concreto ao direito aplicável, designadamente nos artigos 90.º, n.º 1, alínea b) e n.º 10, do CIRC (artigo 83.º na redação vigente à data da liquidação impugnada), artigos 55.º, 58.º e 74.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 59.º do CPPT, pelas razões que vamos infra expor.

D) A douta sentença ora recorrida incide a sua fundamentação na circunstância de que a AT-RAM ter ignorado por completo os elementos – extemporaneamente - declarados pela recorrida na declaração Modelo 22 de IRC, ainda dentro do prazo de caducidade, tendo assim incorrido em vício de violação de lei, vício que conduz à anulabilidade da liquidação impugnada (cfr. n.º 1 do art.º 163.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável ex vi al. d) do art.º 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), razão pela qual concedeu provimento à presente impugnação.

E) Entendimento com o qual discordamos.

F) Com efeito, está em causa nos autos uma liquidação oficiosa de IRC, efetuada à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 e n.º 10 do artigo 90.º do Código do IRC (CIRC), à data artigo 83.º do mesmo diploma, tendo por base os elementos que a AT dispunha, designadamente os elementos relativos ao último exercício em que a contribuinte submeteu voluntariamente a sua declaração.

G) Ora, em causa nos autos está uma situação em que a AT se substituiu, por imposição legal, ao contribuinte quanto ao cumprimento da obrigação acessória declarativa, pelo que, como refere – e bem – a douta sentença recorrida a presunção de veracidade e boa-fé dos elementos declarados na Modelo 22 de IRC submetida pela recorrida, em 07.01.2013 deixa de existir.

H) Ora, é precisamente a partir deste momento que a nossa discordância com a douta sentença recorrida fica vincada.

I) Com efeito, é nosso entendimento que a douta decisão judicial está inquinada de erro na subsunção do direito aplicável ao caso concreto, porquanto, contrariamente ao que defende o Tribunal a quo, recai sobre o sujeito passivo – e não sobre a AT - o ónus da prova do excesso da quantificação dessa matéria tributável ou, no caso concreto, sobre a verificação de prejuízos fiscais que pretende ver reportados,

J) ónus esse que não é satisfeito com a mera apresentação de uma declaração de rendimentos, porquanto, como já ficou dito, tal declaração, “in casu”, não beneficia da presunção de veracidade consagrada no nº1 do artigo 75º, da LGT, por não ter sido apresentada no prazo previsto no artigo 120.º (então 112.º) do CIRC.

K) Veja-se, a este respeito e num âmbito duma situação em tudo idêntica à dos autos, o entendimento exarado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do processo n.º 0416/09.7BECBR, de 03.02.2021, seguindo o qual:

“Com efeito, na situação dos autos, perante a falta de cumprimento do dever de apresentação da declaração de rendimentos por parte do sujeito passivo, a AT lançou mão do mecanismo legal previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 83º do CIRC, recorrendo a uma matéria tributável ficcionada- matéria coletável do exercício mais próximo, o que equivale a dizer que recorreu a uma avaliação indirecta da matéria tributável, procedimento este que fundamentou nos termos legais e cujos pressupostos não foram postos em causa pela Recorrente.

Nessa medida, é inequívoco que, ao contrário do que pretende a Recorrente, recai sobre o sujeito passivo o ónus da prova do excesso da quantificação dessa matéria tributável, ónus esse que não é satisfeito com a mera apresentação de uma declaração de rendimentos, porquanto, como já ficou dito, tal declaração, “in casu”, não beneficia da presunção de veracidade consagrada no nº1 do artigo 75º, da LGT, por não ter sido apresentada no prazo previsto no artigo 112º do CIRC.

Não se olvide ainda que, na situação em apreço, em bom rigor, nem sequer se pode falar em “declarações de substituição”, pois não estamos perante nenhum dos casos previstos no então artigo 114º do CIRC (actual 122º).

Deste modo, as declarações a que alude a Recorrente apenas poderão ser valoradas pela AT, desde que acompanhadas por outra documentação e meio probatórios que permitam ajuizar sobre a veracidade e aderência à realidade dos dados ali inscritos, esforço probatório que não foi realizado pela Recorrente, como se deixou exarado na sentença recorrida, asserção esta que a Recorrente não põe em causa, pelo que, o recurso não pode proceder nesta sede.

A Recorrente faz ainda alusão à violação dos princípios do inquisitório, deveres de imparcialidade, justiça e proporcionalidade, bem como o princípio da tributação pelo rendimento real.

Ora, como se crê ter demonstrado, recaindo sobre o sujeito passivo, neste caso, o ónus da prova do excesso da matéria tributável tida em consideração na liquidação oficiosa, e não tendo carreado para os autos de reclamação graciosa ou de recurso hierárquico quaisquer elementos probatórios, não era exigível à AT a realização de quaisquer diligências complementares que se mostrassem necessárias à comprovação desses dados.

Além disso, o princípio constitucional consagrado no artigo 104º nº 2 da CRP, no sentido de que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real é perfeitamente compatível com o apuramento da matéria tributável por meios indiretos.

Efectivamente, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 84/2003, Proc. 531/99) refere que “a tributação das empresas pelo seu rendimento real constitui um princípio ou uma regra que permite, excepcionalmente, desvios ou excepções”, ou seja, aquele TC tem admitido o apuramento da matéria tributável por meio de presunção, desde que as mesmas sejam ilidíveis, o que se verifica no caso concreto.

Sendo assim, como é, não merece qualquer censura a decisão recorrida quando aponta que “o princípio constitucional da tributação das empresas sobre o seu rendimento real não é impeditivo de qualquer liquidação tendo por base os elementos que a Administração Fiscal disponha, mormente a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada, no caso de o sujeito passivo não cumprir com obrigações declarativas ou não as cumprir nos prazos legalmente estabelecidos.”

(sublinhado nosso).”

L) Dito isto, julgamos que a sentença ora recorrida padece de errónea subsunção do direito aplicável ao caso concreto, porquanto recai sobre o sujeito passivo – e não sobre a AT, como defendido pela douta sentença recorrida - o ónus da prova do excesso da quantificação dessa matéria tributável ou, no caso concreto, sobre a verificação de prejuízos fiscais que pretende ver reportados,

M) ónus de prova esse que implicaria trazer ao conhecimento da administração fiscal (em sede dos procedimentos graciosos) ou ao tribunal, em sede de impugnação judicial, os elementos contabilísticos que permitissem verificar que a liquidação oficiosa não se poderia manter, por, in casu, se verificarem os prejuízos fiscais declarados na Modelo 22 de IRC submetida extemporaneamente pela recorrida e que não se satisfaz pela mera apresentação/submissão dessa declaração, pelo que não incumbia então à AT proceder às diligências para aferir da sua veracidade, à luz do princípio do inquisitório aludido na sentença ora recorrida.

N) Tudo visto, pugnamos pela procedência do presente recurso e pela substituição da decisão por outra que julgue a impugnação improcedente».

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Remetidos os autos ao Supremo Tribunal Administrativo, foram os mesmos com vista ao M.º P.º.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, tendo-se pronunciado no sentido do provimento do recurso.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.


***

2. Ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados em primeira instância.

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3. O presente recurso tem por objeto uma sentença que decidiu, de um lado, que violava a lei «não considerar os prejuízos declarados pela Impugnante em declaração de substituição entregue dentro do prazo de caducidade» e, de outro lado, que a Impugnante tinha direito à reconstituição da situação que existiria «mediante o reconhecimento dos prejuízos declarados».

A primeira parte da decisão está relacionada com o pedido de anulação da decisão do recurso hierárquico do indeferimento do pedido de revisão do ato tributário de liquidação oficiosa.

Assim, o Mm.º Juiz a quo decidiu, na prática, que o pedido de revisão dessa liquidação deveria ter sido admitido e que os fundamentos desse pedido deveriam ter sido considerados na respetiva decisão.

O que, no caso, não sucedeu, porque foi decidido pela AT-RAM que não foram reunidos os pressupostos do conhecimento do pedido de revisão.

A segunda parte da decisão está relacionada com o pedido de anulação do ato de liquidação oficiosa e com o pedido de reconhecimento, para todos os efeitos legais, dos prejuízos fiscais de € 4.340.668,73.

Assim, o Mm.º Juiz a quo decidiu, nesta parte, que a liquidação deveria ter sido anulada no procedimento de revisão por haver prejuízos a reportar. E que, por isso, a reconstituição da situação que existiria se a ilegalidade não tivesse sido praticada se traduziria no reconhecimento dos prejuízos declarados numa liquidação que «substituísse» a liquidação oficiosa.

Se bem interpretamos, a Recorrente não se conforma com o assim decidido por entender que a ora Recorrida não teria direito nem à revisão da liquidação nem, por conseguinte, à anulação da liquidação (e muito menos, a que os prejuízos fiscais fossem reconhecidos).

E por isso é que concluiu que a procedência do presente recurso passava pela substituição da decisão recorrida por outra que julgasse a impugnação (totalmente) improcedente [conclusão “N)” do recurso].

Isto é, por uma decisão que não acolhesse nenhum dos pedidos formulados pela ora Recorrida.

No entanto, a Recorrente fundamenta a procedência do recurso no facto de a Recorrida não ter levado ao conhecimento da AT-RAM (nem nos procedimentos graciosos nem em impugnação judicial) os elementos contabilísticos que permitissem verificar os prejuízos fiscais declarados na Modelo 22 de IRC [conclusão “M)” do recurso].

Assim, a Recorrente considera (além do mais) que não havia fundamento para rever a liquidação oficiosa porque não foi demonstrado que os elementos nela considerados deveriam ser revistos.

Ora, a Recorrente não tem razão nesta parte.

Desde logo, porque não foi essa a razão porque a AT-RAM indeferiu o pedido de revisão e indeferiu o recurso hierárquico dessa decisão.

A AT-RAM, indeferiu esses procedimentos por entender que não estavam reunidos os requisitos para conhecer do pedido de revisão.

Assim, a AT-RAM entendeu que o sujeito passivo só teria direito à revisão da matéria tributável a coberto dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, isto é, com fundamento em injustiça grave e notória e desde que o erro não lhe fosse imputável. E que, no caso, esses requisitos não estavam reunidos por ser manifesto que a liquidação se deveu a um comportamento negligente do próprio contribuinte.

Pelo que a AT-RAM ficou a montante da questão de saber se havia fundamento para rever a liquidação oficiosa com os fundamentos que constavam do pedido respetivo. Porque se limitou a concluir que o procedimento não podia prosseguir para a apreciação desses fundamentos.

Assim, as razões que a Recorrente ora apresenta para sustentar o indeferimento desses procedimentos nunca podiam aproveitar às decisões administrativas respectivas.

De qualquer modo, essas razões seriam manifestamente insuficientes e inadequadas para indeferir o pedido de revisão.

Na verdade, a Recorrente entende que o pedido de revisão deveria ser indeferido porque não lhe incumbia proceder a diligências para aferir da veracidade dos prejuízos, à luz do princípio do inquisitório.

Mas não é assim. Porque, como decorre do artigo 58.º da Lei Geral Tributária, o princípio do inquisitório é um princípio geral dos procedimentos tributários e dele decorre que a administração deve tomar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, não estando sequer subordinada à iniciativa do autor do pedido.

O que se tem entendido é que, nos procedimentos desencadeados pelos interessados para que a administração se pronuncie sobre uma pretensão por aqueles formulada, são estes que suportam o ónus de não ter sido apurado o bem fundado da sua pretensão.

Só que, nos procedimentos (e nos processos) para os quais vale o princípio do inquisitório, a regra o ónus de prova só intervém em situações de dúvida insuprível, isto é, em situações em que depois de terem sido tomadas as diligências necessárias e adequadas à prova dos factos, a dúvida persiste, sobrevindo uma situação de non liquet [sobre esta matéria, pode ver-se Manuel de Andrade, in «Noções Elementares de Processo Civil», 1993 reimpressão, pág. 199].

Situação que nunca poderia ter ocorrido no caso, porque os procedimentos nem sequer chegaram à fase instrutória.

E que, nesta parte, não é idêntica à tratada do acórdão a que a Recorrente alude no ponto 15 das doutas alegações de recurso e na alínea “K)” das respectivas conclusões, visto que ali estava em causa uma situação em que tinha sido consignado e valorado, na própria sentença recorrida, que o sujeito passivo não tinha realizado nenhum esforço probatório, asserção que não tinha sido oportunamente infirmada pelo ali recorrente.

Para terminarmos este ponto, não podemos deixar de lembrar que as liquidações oficiosas a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC são efetuadas com base em regras de avaliação ou determinação dos valores sujeitos a tributação que assentam notoriamente no objetivo de simplificação e que visam, globalmente, obviar à falta de colaboração do contribuinte e assegurar que esta não obsta à tributação.

Só que, ao determinar o recurso a esses elementos ou valores e a atribuir-lhe um especial valor representativo, o legislador acaba por permitir que a administração abstraia, até certo ponto, da situação individual e concreta do sujeito passivo.

Pelo que estes mecanismos de simplificação encontram-se em tensão dialética com as exigências materiais constitucionais de apuramento da realidade fiscal. Precisamente porque contêm regulações generalizadoras, que procuram o individual através do que é típico ou permitem que se tome como certo o que é apenas provável ou possível.

A compatibilização entre uns e outras faz-se admitindo os mecanismos ou as técnicas que promovam sempre a correspondência possível com a situação real do sujeito e assegurando que a sua utilização não põe em causa a predominância da tributação do rendimento real.

Assim, o recurso a mecanismos ou a técnicas de simplificação deve considerar-se justificado enquanto for possível concluir que contribui para a aplicação igual da lei. Isto é, enquanto for possível afirmar que não existe nenhuma informação fidedigna que permita outras formas de liquidação que atendam à sua situação individual e concreta. Porque, de outro modo, se estará a insistir numa tributação que já se sabe que não incide sobre o rendimento real e que, por isso, promove a aplicação desigual da lei.

É esse equilíbrio que, a nosso ver, o legislador almejou no n.º 10 do artigo 90.º em análise: ao determinar que a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso e no prazo da caducidade do direito a liquidar, o legislador concede que a técnica utilizada na liquidação não permite mais do que uma aproximação à realidade fiscal do sujeito e assegura que predominará sempre a determinação direta e exata, se a ela for possível aceder no prazo da caducidade do direito à liquidação.

Assim, o teor da declaração de rendimentos apresentada neste prazo deve ser apreciado e livremente valorado pela administração no quadro dos seus poderes oficiosos de investigação, que deverá exercer com recurso, designadamente, a uma participação mais efetiva e uma colaboração total e incondicional do contribuinte no procedimento respetivo, a fim de despistar a necessidade de corrigir a liquidação já efetuada.

Estamos, por isso, perante um regime especial de revisão de atos tributários, só devendo aplicar-se as regras gerais deste procedimento que com ele não sejam incompatíveis.

Acrescente-se que, a nosso ver, ao dispor que «a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso», o legislador não está a remeter para os pressupostos de admissão do procedimento respetivo, mas para os pressupostos da correção em si mesma.

E o que daqui decorre é que, ao contrário do que concluiu a AT-RAM, a correção da liquidação oficiosa efetuada ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º não ocorre apenas quando a falta de apresentação da declaração periódica não é imputável ao contribuinte.

Precisamente porque daí derivaria que – ao contrário do que foi pretendido pelo legislador e do que sempre resultaria dos princípios gerais da tributação – estes mecanismos simplificados de determinação do rendimento prevaleceriam sobre o apuramento da situação individual e concreta mesmo quando já não fossem necessários nem adequados para assegurar a igualdade na tributação.

E não se contraponha à correção da liquidação a necessidade de penalizar os contribuintes que não colaborem com a administração. Por um lado, as formas simplificadas de apuramento só penalizam os contribuintes a quem a sua aplicação seja concretamente desfavorável. Por outro lado, os procedimentos de liquidação não têm como objetivo a aplicação de sanções, sendo que a adoção de soluções que funcionem objetivamente como tal devem ser condicionadas e proporcionadas aos objetivos fiscais a atingir.

De todo o exposto deriva que a Recorrente não tem razão ao concluir que não incumbia à AT-RAM proceder às diligências para aferir a veracidade dos factos declarados no Modelo 22 de IRC submetida extemporaneamente pela Recorrida.

E ao pretender, com tal fundamento, que a impugnação fosse julgada totalmente improcedente.

Pelo que o recurso não pode merecer provimento nesta parte.

4. Só que do facto de se legal a decisão de não verificar a existência dos prejuízos fiscais também não deriva a ilegalidade da liquidação mediatamente impugnada.

Porque do facto de haver o dever de verificação da existência dos prejuízos também não deriva que os prejuízos existem.

Assim, a conclusão tirada na sentença recorrida e segundo a qual a AT-RAM não poderia ter ignorado «por completo os elementos declarados, sem procurar aferir a sua veracidade» é, pelo seu lado, manifestamente insuficiente para sustentar a conclusão de que a liquidação oficiosa merece ser corrigida.

E, por conseguinte, para deferir a pretensão à sua anulação.

Bem vemos que, para aí chegar, o Mm.º Juiz a quo considerou que os prejuízos foram apresentados em «declaração de substituição» e que havia que perceber se os elementos declarados eram aptos ou não «a substituir» a liquidação que, sendo oficiosa, tem «natureza provisória».

Assim, o Mm.ª Juiz a quo terá em entendido que a declaração apresentada fora de prazo constituía uma forma de autoliquidação e que esta seria adequada a substituir a liquidação oficiosa, sem prejuízo da verificação dos elementos dela constantes, designadamente em procedimento inspetivo para o efeito instaurado.

Este entendimento também não pode ser aqui corroborado.

De um lado, porque só constitui declaração de substituição a que substitua a declaração adrede apresentada. No caso, o que temos é a pretensão à substituição de uma liquidação oficiosa, que pressupõe precisamente que a declaração não foi apresentada.

De observar, a este propósito, que o artigo 90.º, n.º 10, do Código do IRC só prevê que a liquidação oficiosa possa ser corrigida, nada dispondo sobre a possibilidade de a mesma ser substituída.

De outro lado, o legislador só atribui natureza provisória a uma liquidação quando estiver prevista na lei a realização de outra liquidação relativamente ao mesmo período – ver o n.º 9 do mesmo artigo 90.º.

É certo que, para chegar ao seu entendimento, o Mm.º Juiz a quo também apelou à jurisprudência que alude ao «caráter provisório» do montante apurado oficiosamente pela administração nos termos do mesmo dispositivo.

Só que o que se pretende com tal expressão é dizer o que já acima dissemos: que o apuramento dos rendimentos através de elementos parcelares e objetivos não deve ser tido pela administração como adequado substituto da declaração do sujeito passivo e não deve dispensá-la, por isso, do dever funcional de verificação da sua situação tributária.

Pelo que se contrapõe, ali, a natureza provisória desse apuramento ao dever de corrigir a liquidação respetiva sempre que seja apurado que o resultado real é diverso. E não a natureza provisória da liquidação ao dever de a substituir por outra sempre que seja apresentada a declaração em falta.

Deve, assim, concluir-se que a apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração de rendimentos em falta depois de decorrido o prazo a que alude o artigo 120.º do Código do IRC não tem por efeito necessário a anulação da liquidação efetuada oficiosamente pela administração.

Até porque, como referiu o próprio Tribunal a quo e decorre da jurisprudência para que remete (e, em particular, do acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de maio 2016, tirado no recurso n.º 0415/15), a declaração de rendimentos tardiamente apresentada não beneficia da presunção de verdade estabelecida no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, devendo ser livremente valorada».

Foi também o que, neste âmbito, se decidiu no acórdão a que a Recorrente alude no ponto 15 das doutas alegações de recurso e na alínea “K)” das respectivas conclusões.

Pelo que o recurso merece parcial provimento.


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5. Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões, que valerão também como sumário do acórdão:

I. O artigo 90.º, n.º 10, do Código do IRC deve ser interpretado no sentido de que tal liquidação pode ser corrigida no prazo da caducidade do direito respetivo se for apurado nesse prazo que a realidade tributária do sujeito passivo é diversa da apurada através daquela forma de liquidação;

II. A correção a que alude o número anterior pode ser efetuada a pedido do contribuinte que apresente a declaração em falta, devendo os dados respetivos ser investigados e livremente valorados pela administração no quadro dos seus poderes oficiosos;

III. É, por isso, ilegal e deve ser anulada a decisão administrativa de indeferir o pedido de revisão dessa liquidação apenas por não ter sido demonstrado que a falta de entrega da referida declaração não se dever a comportamento negligente do sujeito passivo.

IV. No entanto, a apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração de rendimentos em falta depois de decorrido o prazo a que alude o artigo 120.º do Código do IRC não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação efetuada pela administração nos termos do mesmo dispositivo legal;

V. É, por isso, ilegal e deve ser revogada a decisão judicial de anular a liquidação oficiosa apenas pelo facto de tal declaração ter sido entretanto apresentada.


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6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão que anulou a liquidação impugnada.

No mais, isto é, na parte em que dela decorre a anulação da decisão que indeferiu o pedido de revisão dessa liquidação, nega-se provimento ao recurso.

Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento, que se fixa em 50% para cada uma das partes.

Fica desde já dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais, atendendo ao grau de complexidade do processado e considerando a utilidade económica das pretensões formuladas.

Lisboa, 28 de fevereiro de 2024. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.